Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
75277/22.0YIPRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ANABELA MORAIS
Descritores: ATO UNILATERAL DE COMÉRCIO
TAXA DE JURO COMERCIAL
Nº do Documento: RP2025111075277/22.0YIPRT.P1
Data do Acordão: 11/10/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O Decreto-Lei nº 32/2003, de 17/12, não teve por finalidade regular as transacções comerciais com consumidores ou proteger os consumidores, mas somente favorecer os credores comerciais em determinadas transacções comerciais, mantendo-se o regime dos actos unilaterais de comércio e a aplicabilidade da taxa de juro comercial a esses actos.
II - De harmonia com o disposto nos artigos 99º e 102.º, § 3 do Código Comercial, para a aplicação dos juros comerciais, não é necessário que o acto seja subjectivamente comercial quanto a ambas as partes mas, que o seja em relação ao credor.
III - Assim, continua a ser aplicável aos actos de comércio unilaterais, previstos no artº 99º do Código Comercial, mesmo que o devedor seja consumidor, a taxa aplicável aos créditos comerciais decorrente do artº 102º, § 3º, do mesmo diploma, ressalvando os casos em que deva concluir-se pela natureza civil do negócio.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 75277/22.0YIPRT.P1

Acordam as Juízas da 5ª Secção (3.ª Secção Cível) do Tribunal da Relação do Porto, sendo

Relatora: Desembargadora Anabela Morais

Primeira Adjunta: Desembargadora Carla Jesus Costa Fraga Torres

Segunda Adjunta: Desembargadora Teresa Maria Sena Fonseca

I_ Relatório

A autora A..., Lda. apresentou, em 22/8/2022, requerimento de injunção, contra AA, pedindo o pagamento da quantia de 7.061,41€, a título de capital em dívida, juros de mora e taxa de justiça paga.

No requerimento de injunção, alegou que:

_ Em meados do ano 2020, o requerido solicitou-lhe a realização de trabalhos de pintura no rés-do-chão da sua moradia, sita em ..., Vila Nova de Gaia, tendo, para o efeito, em 21 de Julho de 2020, elaborado o orçamento discriminativo dos trabalhos a efectuar, no valor de 5.431€, acrescido de IVA, os quais lhe foram adjudicados.

_ Efectuados os trabalhos, a requerente emitiu a respectiva factura ..., datada de 26.10.2021, com vencimento a 30 dias, no montante de 6.680,13€, com IVA incluído, que entregou ao requerido.

_ O requerido não pagou à requerente tal montante, estando ainda em dívida a totalidade dos serviços prestados e dos materiais fornecidos, pese embora tenha recepcionado a obra e não tenha apresentado nenhuma reclamação.

_ Apesar de interpelado para proceder ao pagamento do montante em dívida, por cartas registadas com aviso de recepção, datadas de 16.02.2022 e 18.03.2022, o requerido não as recebeu, tendo sido as mesmas devolvidas por não reclamadas.

_ Além do valor da factura - 6 680,13€ -, estão ainda em dívida os juros vencidos entre 25/11/2021 e 22/08/2022, calculados no valor de 279,28€ [valor de 47,40 € (37 dias a 7,00%) + 231,88 € (181 dias a 7,00%)], a que acrescem os juros de mora vincendos, contados desde 23.08.2022 até integral e efectivo pagamento.

I.1_ Citado, o requerido deduziu oposição.

Admitiu ter contratado os serviços da requerente para efectuar a reparação e pintura dos tectos, paredes, portas, janelas e escadas do seu imóvel destinado a habitação, sito na Rua ..., e que o preço ajustado foi de 5.431,00€, acrescido de IVA à taxa legal em vigor.

Alegou, em síntese, que:

_ Aquando da adjudicação da obra, o requerido entregou a quantia de 1.000,00€, ao sócio-gerente da sociedade requerente, tendo posteriormente, no mês de Outubro de 2021, entregue a quantia de 2.000,00€, facto que esta, que claramente age de má-fé, está a ocultar;

_ A requerente, no decurso da obra, foi solicitando tranches ao requerido, conforme os custos e matérias que ia dispondo.

_ Do valor orçamentado de 5.431,00€, acrescido de IVA à taxa legal em vigor, já foi paga a quantia de 3.000,00€.

_ A restante quantia não foi paga pelo requerido porque a requerente não executou a totalidade a obra, como o que executou padece de defeitos graves.

_ No decurso da obra, o requerido verificou vários serviços mal executados que reportou à requerente: a pintura das paredes ficou lastimável, tendo sido realizada sem qualquer isolamento das madeiras que estão completamente danificadas com tinta; e o envernizamento da escadaria e das portas de madeira e respectivas guarnições, está por acabar.

_ Por cinco vezes, o requerido deslocou-se à sede da requerente para que fossem terminados os trabalhos. No entanto, até à presente data tal não aconteceu, tendo o réu o direito a recusar a prestação, bem como exigir a reposição do bem, mediante a reparação e conclusão da obra, ou a redução adequada do preço.

_ No que respeita à alegada interpelação para efectuar o pagamento da factura, refere desconhecer que a factura havia sido emitida em 26/10/2021, razão pela qual não reclamou, nem o poderia fazer.

_ A requerente tem perfeito conhecimento que o requerido reside em França, vindo a Portugal apenas nos meses de férias (Dezembro e Agosto), tendo, no entanto, optado por não enviar as interpelações para pagamento para a sua morada principal, em França, ou por correio eletrónico.

Concluiu o requerido, alegando que recusa-se a proceder ao pagamento do preço em falta até à eliminação dos defeitos alegados, em conformidade com o disposto no artigo 428º do Código Civil, e pede que a acção seja julgada improcedente e, em consequência, seja absolvido do pedido.

I.2_ Realizado julgamento foi proferida sentença, constando do dispositivo:

“Pelo exposto, o Tribunal decide julgar:

• Totalmente improcedente a matéria de excepção do não cumprimento do contrato;

• Parcialmente procedente, por provada nessa medida, a presente acção declarativa especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergente de injunção, e consequentemente:

_ Condenar o réu AA no pagamento à autora da quantia de 4.680,13€ (quatro mil seiscentos e oitenta euros e treze cêntimos), a título de capital em dívida e I.V.A. em vigor, acrescida de juros de mora comerciais vencidos e vincendos desde a citação;

_ Absolver a ré do pedido de pagamento da taxa de justiça, sem prejuízo do direito ao pagamento das custas de parte;

Custas pelas partes, na proporção do decaimento e vencimento da acção (artigos 527.º, n.º 1 e 2 do C.P.C. e 6.º, n.º 1 do R.C.P.).

Registe e notifique. Fixa-se à acção o valor de 6.959,41€ (seis mil novecentos e cinquenta e nove euros e quarenta e um cêntimos).”

I.3_Inconformado com essa decisão, o réu interpôs recurso da mesma, formulando, a final, as seguintes conclusões:

“Quanto à matéria de facto

1. Impõe-se considerar como parcialmente provado o ponto VI no que concerne ao envernizamento da escadaria, uma vez que o próprio relatório pericial, assim o determinou.

Quanto à matéria de Direito

2. Resultando provado que os trabalhos não estavam perfeitamente concluídos, está verificada a exceção de não cumprimento por parte do Réu, não havendo lugar a juros.

3. A existirem juros, os mesmos são juros civis e não comerciais, uma vez que não se trata de uma relação comercial.

Nestes termos e nos demais de Direito se Requer, com os fundamentos constantes das Conclusões formuladas, a procedência do presente recurso e, consequentemente, seja revogada a decisão recorrida, sendo o Recorrente absolvido do pagamento de juros.”

I.4_ Notificada, a autora/recorrida apresentou resposta, pugnando pela improcedência do recurso.

Aduziu a recorrida que o Senhor Perito não viu, aquando da vistoria, a obra realizada pela apelada, mas uma obra posterior, feita por iniciativa do apelante, alterando substancialmente aquela que havia sido efectuada pela apelada. Daqui resulta claramente que não pode o Senhor Perito confirmar a versão do apelante de que tais defeitos são imputáveis à acção da apelada pois, não viu o estado da obra após a conclusão da mesma por parte da apelada, mas tão só constatou o seu estado já depois de um terceiro ter feito intervenções no local.

O apelante transcreve do relatório a parte que lhe interessa, olvidando a parte mais importante e que é sem dúvida aquela em que o Senhor Perito advertiu que “desconhece o estado da obra em data anterior à realização da vistoria” e o facto de o apelante ter informado “que a pintura das paredes e das madeiras foram efectuadas recentemente a expensas suas, por outra entidade que não o Autor”.

Não se provando que os defeitos existentes decorrem da actuação da apelada, não assistia ao apelante a faculdade de recusar a sua prestação, uma vez que a obra da apelada estava terminada, não tendo assim cabimento a invocação da excepção do não cumprimento do contrato.

O apelante põe em causa a existência de um acto comercial no caso dos presentes autos, alegando que “não basta a mera qualidade de empresa por parte do titular”. A apelada é uma sociedade comercial que se dedica ao exercício da actividade de construção civil e actividades conexas (e foi nessa qualidade que foi contratada pelo apelante), pelo que pratica actos de comércio ao realizar trabalhos de construção civil por solicitação de terceiros, tendo como escopo o lucro, como foi o caso dos autos. Assim, os juros moratórios deverão ser contabilizados por aplicação da taxa supletiva de juro comercial.

I.5_ O recurso foi admitido com o regime de subida e efeito adequados.

I.6_ Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

II_ Objecto do recurso

Nos termos do disposto nos artigos 635º, nº. 4, e 639º, nºs1 e 2, do Código de Processo Civil são as conclusões das alegações de recurso que estabelecem o thema decidendum do mesmo, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso que resultem dos autos.

Assim, há que apreciar as seguintes questões:

1_ Impugnação da decisão da matéria de facto por referência ao facto ínsito no ponto vi dos factos não provados [“O envernizamento da escadaria e portas de madeira e respectivas guarnições, está por acabar”] pretendendo que seja transferido para a matéria de facto provada o segmento referente à escadaria.

2_ Desacerto da decisão de considerar não operante a excepção de não cumprimento do contrato invocada pelo réu/recorrente, para paralisar o pagamento do preço reclamado pela autora.

3_ Saber se a taxa de juros aplicável é a taxa supletiva de juros comerciais.

III_ Fundamentação de facto

Pelo Tribunal a quo foram considerados os seguintes factos:

“_ Factos provados

1) O réu é proprietário de um imóvel destinado a habitação, sito na Rua ...;

2) Em meados do ano 2020, o réu solicitou à autora a realização de trabalhos no rés-do-chão da sua moradia, acima mencionada;

3) Em 21/07/2020, a autora elaborou o orçamento discriminativo dos trabalhos a efectuar, no valor de 5.431,00€ acrescido de I.V.A., que o réu adjudicou;

4) Orçamento do qual consta “Trabalhos a executar no Rés do Chão da moradia: Preparar tetos, paredes, portas, janela e escada para receber pintura: lixar, dar de mão primário; Pintar tectos, paredes, portas, janela e escada; Fornecimento de todos os materiais necessários à execução dos trabalhos; (…) condições de pagamento a combinar” – documento cujo teor se dá integralmente por reproduzido;

5) Efectuados os trabalhos, a requerente emitiu a factura ..., datada de 26/10/2021, no montante de euros 6.680,13€, I.V.A. incluído, que entregou ao requerido, em data não concretamente apurada;

6) Factura da qual consta “Preparar paredes, tetos, portas, janela e escada: lixar, dar mão de primário; Pintar paredes, tetos, portas, janela e escada; Fornecimento dos materiais necessários à execução dos trabalhos” – documento cujo teor se dá integralmente por reproduzido;

7) O requerido recepcionou a obra e apresentou reclamação;

8) Em datas não concretamente apuradas, mas após a adjudicação da obra, o réu entregou a título de pagamento duas tranches de 1.000,00€ cada uma.”

_ Factos não provados:

“I. Factura com vencimento a trinta dias;

II. A autora solicitou ao réu o pagamento por cartas registadas com aviso de recepção, datadas de 16/02/2022 e 18/03/2022;

III. As cartas foram devolvidas por não reclamadas;

IV. Logo aquando a adjudicação da obra, o réu entregou a quantia de 1.000,00€ à autora, tendo posteriormente, no mês de Outubro de 2021, entregue mais 2.000,00€;

V. A pintura das paredes foi realizada sem qualquer isolamento das madeiras, que estão completamente danificadas com tinta;

VI. O envernizamento da escadaria e portas de madeira e respectivas guarnições, está por acabar;

VII. Por cinco vezes, o réu se deslocou à sede da autora para que fossem terminados os trabalhos.”

IV_ Fundamentação de direito

1ª Questão

Dissente a recorrente da decisão proferida quanto à matéria de facto sustentando que se impõe- considerar como parcialmente provado o ponto VI no que concerne ao envernizamento da escadaria, uma vez que o próprio relatório pericial assim o determinou.

Advoga a recorrida que o apelante transcreve do relatório a parte que lhe interessa, olvidando a parte mais importante e que é aquela em que o Senhor Perito advertiu que “desconhece o estado da obra em data anterior à realização da vistoria” e o facto de o apelante ter informado “que a pintura das paredes e das madeiras foram efectuadas recentemente a expensas suas, por outra entidade que não o Autor”.

Cumpre apreciar e decidir.

Previamente à apreciação importa fazer um breve esclarecimento quanto ao objecto da impugnação. Pese embora, a recorrida tenha apresentado resposta no pressuposto de a impugnação abranger toda a factualidade vertida no ponto VI dos factos provados, a recorrente dissente, apenas, da decisão da matéria de facto por referência ao envernizamento da escadaria.

A prova pericial apresenta a singularidade de ter por fim a percepção ou apreciação de factos por meio de peritos, quando sejam necessários conhecimentos especiais (técnicos, científicos ou artísticos) que os julgadores não possuem. Ao Senhor Perito incumbe pronunciar-se sobre os factos por si observados, valorando-os em razão dos conhecimentos especiais que possui e expondo as suas observações e as suas impressões sobre os factos por si presenciados e retirando conclusões objectivas, sendo deste forma que concorre, positiva ou negativamente, para que o Tribunal forme a sua convicção sobre o facto (ou factos) em causa, considerando que o julgador não detém esses conhecimentos especiais. Assim, a menção, pelo Senhor Perito, no relatório que elaborou, do que lhe foi transmitido pelo réu, não constitui prova pericial, sendo as declarações deste valoradas por terem sido prestadas em audiência.

No seu relatório, no que respeita ao quesito “se o envernizamento da escadaria e portas e respectivas guarnições ainda se encontram por terminar”, o Senhor Perito respondeu “na escadaria revestida a madeira maciça, [foram] identificados defeitos de remates e de acabamento, razão pela qual devem ser eliminados os defeitos identificados nos degraus e nas molduras de remate, devendo ser aplicado o acabamento com verniz em toda a escadaria”.

Em audiência, o réu explicou que o serviço contratado foi de pintura: serviço de pintura de todo o interior da casa; não pediu serviços de envernizamento. Terminado os trabalhos executados pela autora, as escadarias e as portas não foram pintadas, mas envernizadas e encontravam-se piores do que antes dos trabalhos e teve que repintar as paredes todas. Chamou o Senhor BB e com a sua ajuda, pintou de branco, as paredes, portas e guarnições. Faltam as escadarias e os acabamentos das pinturas na escadaria e na cozinha.

Na sua oposição, o réu alegou, efectivamente, que “o envernizamento da escadaria e portas de madeira e respectivas guarnições, está por acabar”. A consequência, no plano jurídico, desta situação de facto, e se a mesma permite, ou não, a excepção do não cumprimento do contrato, será apreciada em sede oportuna.

Procede, assim, a impugnação da matéria de facto e, em consequência:

i. deve ser eliminada a referência à escadaria no ponto vi) dos factos não provados, passando a constar do mesmo a seguinte redacção:

“VI. O envernizamento das portas de madeira e respectivas guarnições encontra-se por acabar;”.

ii. deve ser aditado aos factos provados com a factualidade eliminada do ponto vi, com a seguinte redacção:

9. Na escadaria revestida a madeira maciça, o envernizamento apresenta defeitos nos degraus e nas molduras de remates.

2ª Questão

Insurge-se o recorrente contra a decisão proferida pelo Tribunal a quo invocando que os trabalhos não estavam perfeitamente concluídos, pelo que está verificada a excepção de não cumprimento do contrato por parte do Réu.

Dissente a recorrida invocando que os defeitos existentes não decorrem dos trabalhos por si executados.

Pelo Tribunal a quo foi qualificado como contrato de prestação de serviços (artigo 1154.º do C.C.), na modalidade da empreitada (artigos 1207.º e seguintes do C.C.), o acordo celebrado entre autora e réu. Tal qualificação, com a qual concordamos, não suscitou controvérsia entre as partes.

Previamente à apreciação da questão se deve ou não operar a excepção de não cumprimento do contrato (ou cumprimento defeituoso do contrato), impõe-se aferir quais os trabalhos adjudicados à autora, mormente se incluem o envernizamento da escadaria.

Resulta dos factos provados que, no ano de 2020, o réu adjudicou à autora a realização dos trabalhos, no rés-do-chão da sua moradia, que se mostram enunciados no orçamento elaborado e 21/7/2020, a saber: “preparar tectos, paredes, portas, janela e escada para receber pintura: lixar, dar de mão primário; pintar tectos, paredes, portas, janela e escada; fornecimento de todos os materiais necessários à execução dos trabalhos”.

Essa foi a posição assumida nos articulados, quer pela autora, quer pelo réu, não existindo qualquer divergência quanto a essa factualidade[1].

O principal direito do dono da obra traduz-se no direito de exigir do empreiteiro a obtenção do resultado a que este se obrigou. Sendo a retribuição um elemento essencial do contrato, o dono da obra, ora réu/recorrente, tem como obrigação principal o pagamento do preço, nos termos acordados.

Nos termos do artigo 428.º, n.º 1, do Código Civil, «[s]e, nos contratos bilaterais não houver prazos diferentes para o cumprimento das prestações, cada um dos contraentes tem a faculdade de recusar a sua prestação enquanto o outro não efectuar a que lhe cabe ou não oferecer o seu cumprimento simultâneo».

Os pressupostos da excepção de não cumprimento do contrato são:

i) a obrigação cujo cumprimento é recusado tem de estar numa relação de sinalagmaticidade com contraobrigação não cumprida;

ii) não existir uma obrigação de cumprimento prévio por parte daquele que invoca a exceptio;

iii) o exercício da excepção não exceder os limites impostos pelo princípio da boa fé. a existência de um contrato bilateral, a não existência da obrigação de cumprimento prévio por parte do contraente que invoca a excepção, não cumprimento ou não oferecimento do cumprimento simultâneo da contraprestação; não contrariedade à boa fé.

Escreve Ana Taveira da Fonseca[2], a «exceptio non adimpleti contractus apresenta-se como uma decorrência da relação que se estabelece entre prestações emergentes de um contrato bilateral. Para este efeito, deve entender-se por contrato bilateral (…) aquele do qual provêm obrigações que têm por objeto a realização de prestações entre as quais existe uma relação de interdependência ou, mais precisamente, um laço de sinalagmaticidade do qual resulte que cada uma delas constitui a causa da outra. O sinalagma une obrigações que têm por objeto prestações que constituem correspetivamente a causa no sentido de razão de ser ou fim, da [outra].»

Apesar de a lei apenas prever a hipótese de não haver prazos diferentes para o cumprimento das prestações, entende-se que a excepção pode ser invocada ainda que haja vencimentos diferentes, por aquele dos contraentes cuja prestação deva ser feita depois da do outro; só não poderá opô-la o contraente que devia cumprir primeiro[3].

Volvendo aos presentes autos, relembremos que o réu/recorrente assenta a excepção de não cumprimento do contrato no facto de o envernizamento da escadaria revestida a madeira maciça, apresentar defeitos nos degraus e nas molduras de remates. Todavia, da factualidade provada, não resulta que esse serviço tenha sido objecto do contrato celebrado entre autora e réu, ou seja, não se encontra demonstrado que a autora se obrigou a executar tal trabalho.

Pelo exposto e sem necessidade de mais considerandos, improcede a excepção.

3ª Questão

Dissente o recorrente do segmento da decisão que o condenou no pagamento de “juros à taxa supletiva comercial, nos termos dos artigos 99.º e 102.º do Código Comercial”, sustentando que sendo devidos juros, “são juros civis e não comerciais, uma vez que não se trata de uma relação comercial".

Advoga a recorrida/autora que é uma sociedade comercial que se dedica ao exercício da actividade de construção civil e actividades conexas tendo como escopo o lucro e, nessa qualidade, foi contratada pelo réu para a prática de actos que se inserem no seu objecto. Assim, os juros moratórios deverão ser contabilizados por aplicação da taxa supletiva de juro comercial.

Dispõe o artigo 102º do Código Comercial que há lugar ao decurso e contagem de juros em todos os actos comerciais em que for de convenção ou direito vencerem-se e nos mais casos especiais fixados naquele Código.

O Decreto-Lei n.º 32/2003, de 17 de Fevereiro, alterado pelo Decreto-Lei n.º 107/2005, de 1 de Julho, e pela Lei n.º 3/2010, de 27 de Abril, transpôs para o ordenamento interno a Directiva n.º 2000/35/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 29 de Julho de 2000, a qual estabelecia medidas contra os atrasos de pagamento nas transações comerciais. De harmonia com o § 3.º do artigo 102º do Código Comercial, na redacção introduzida pelo Decreto-Lei 32/2003, os juros moratórios legais e os estabelecidos sem determinação de taxa ou quantitativo, relativamente aos créditos de que sejam titulares empresas comerciais, singulares ou coletivas, são os fixados em portaria conjunta dos Ministros das Finanças e da Justiça.

O Decreto-Lei nº 62/2013, de 10 de Maio, visa transpor para a ordem jurídica interna a Directiva n.º 2011/7/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de Fevereiro de 2011, procedendo à revisão do anterior regime e à sua substituição à luz do novo diploma comunitário. Consta do seu preâmbulo «[a] Diretiva n.º 2011/7/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de fevereiro de 2011, revogou a Diretiva n.º 2000/35/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 29 de julho de 2000, e introduziu medidas adicionais para dissuadir os atrasos de pagamentos nas transações comerciais. Esta diretiva regula todas as transações comerciais, independentemente de terem sido estabelecidas entre empresas(a estas se equiparando os profissionais liberais) ou entre empresas e entidades públicas, tendo em conta que estas são responsáveis por um considerável volume de pagamentos às empresas. Por conseguinte, regula todas as transações comerciais entre os principais adjudicantes e os seus fornecedores e subcontratantes. Todavia, não se aplica às transações com os consumidores, aos juros relativos a outros pagamentos, como por exemplo os pagamentos efetuados nos termos da legislação em matéria de cheques ou de letras de câmbio, ou aos pagamentos efetuados a título de indemnização por perdas e danos, incluindo os efetuados por companhias de seguro. Assim, e conforme já resulta do enquadramento legal vigente, o regime previsto neste diploma não é aplicável às operações de concessão de crédito bancário, que são reguladas por lei especial.”

Por força das alterações introduzidas por esse diploma, o artigo 102º do C. Comercial, no seu § 4º, estipula que a taxa de juro referida no parágrafo anterior não pode ser inferior ao valor da taxa de juro aplicada pelo Banco Central Europeu à sua mais recente operação principal de refinanciamento efetuada antes do 1.º dia de Janeiro ou de Julho, consoante se esteja, respetivamente, no 1.º ou no 2.º semestre do ano civil, acrescida de 7 pontos percentuais”, dispondo o seu §5.º, «[n]o caso de transações comerciais sujeitas ao Decreto-Lei n.º 62/2013, de 10 de maio, a taxa de juro referida no parágrafo terceiro não poderá ser inferior ao valor da taxa de juro aplicada pelo Banco Central Europeu à sua mais recente operação principal de refinanciamento efetuada antes do 1.º dia de janeiro ou julho, consoante se esteja, respetivamente, no 1.º ou no 2.º semestre do ano civil, acrescida de oito pontos percentuais.» .

Decorre das disposições citadas a existência, no nosso ordenamento jurídico, de duas taxas supletivas comerciais:

_ a taxa aplicável às transacções comerciais sujeitas ao Decreto-Lei nº 62/2013;

_ a taxa aplicável às obrigações comerciais não sujeitas ao regime decorrente do Decreto-Lei nº 62/2013, de 10 de Maio.

De harmonia com o disposto no artigo 2º, nº2, alínea a), do Decreto-Lei nº62/2013, estão excluídos do âmbito de aplicação desse diploma “[o]s contratos celebrados com consumidores”, o mesmo sucedendo com o Decreto-Lei nº32/2003, atento o disposto na alínea a) do nº2 do seu artigo.

Sobre a questão, ensina o Supremo Tribunal de Justiça, no Acórdão proferido em 06/04/2013, no processo 2358/10.4TJLSB.L1.S1[4]:

«I-O DL n.º 32/2003, de 17-12, não teve por finalidade disciplinar transações comerciais com consumidores.

II - Esse diploma legal teve em vista a transposição para o nosso ordenamento jurídico interno da Directiva n.º 2000/35/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, prevendo um regime de juros de mora mais favorável aos credores comerciais nas transações referidas nos seus arts. 2.º e 3.º, em que as partes não podem ser consumidores.

III - Esse regime visando favorecer os comerciantes naquelas transacções em caso de mora dos seus devedores, em nada contendeu com a regulamentação das demais transacções comerciais, nomeadamente daquelas em que uma das partes é consumidor, que continuaram sujeitas ao regime anterior ao mesmo decreto-lei, salvo a alteração ligeira do art. 102.º do CCom, introduzida pelo mesmo decreto-lei, artigo esse que continuou aplicável aos devedores consumidores.».

Na fundamentação do citado Acórdão que permitimo-nos respeitosamente transcrever, decidiu o Supremo Tribunal de Justiça:

«O referido decreto–lei alterou a redacção do art. 102º do Cód. Comercial, mas deixou intocado o art. 99º do mesmo diploma legal onde se prevê que os actos comerciais que o sejam apenas em relação a uma das partes será regulado pela lei comercial quanto a todos os contraentes.

Por outro lado, quando o decreto-lei nº 32/2003 fala em excluir da sua aplicação dos consumidores, está a dizer o que já resultava do conceito de transacção comercial abrangida pelo mesmo diploma legal onde não entram as transacções comerciais em que uma das partes seja consumidor, tal como resulta do art. 3º do mesmo diploma legal.

Na falta de alteração do disposto no referido art. 99º se tem de entender que o regime previsto no decreto-lei nº 32/2003 não é aplicável aos consumidores, mas o disposto no art. 102º do Cód. Comercial na nova redacção dada pelo mesmo diploma legal se aplica a todos os actos comerciais previstos em geral na lei comercial, em que se incluem as transacções em que uma das partes sejam um consumidor.

Em face da redacção deficiente do texto do decreto-lei nº 32/2003, no aspecto de não mexer na redacção do art. 99º referido e dizer que o regime do mesmo se não aplica aos consumidores, a finalidade do legislador que justificou o referido diploma legal atrás exposta levaria a fazer uma interpretação restritiva daquele art. 2º, nº 2 al. a) no sentido de que o art. 102º mencionado continua a aplicar-se em geral aos actos comerciais e mesmo àqueles em que uma das partes reveste a natureza de consumidor. Interpretação restritiva consiste em o legislador haver adoptado um texto que atraiçoa o seu pensamento, na medida em que diz mais do que aquilo que pretendia dizer. E para se aferir desse pensamento legislativo, um dos elementos de interpretação da lei prevista no art. 9º do Cód, Civil, consiste no elemento racional ou teleológico que “consiste na razão de ser da lei (ratio legis), no fim visado pelo legislador ao elaborar a norma. O conhecimento deste fim, sobretudo quando acompanhado do conhecimento das circunstâncias (políticas, sociais, económicas, morais, etc.) em que a norma foi elaborada ou da conjuntura político-económico-social que motivou a “decisão“ legislativa (occasio legis) constitui um subsídio da maior importância para determinar o sentido das normas”- Baptista Machado, in “Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador”, pág.182 e 183, da 9ª reimpressão.

Ora tendo em conta a acima exposta intenção do legislador ao introduzir o decreto-lei 32/2003 referido no nosso ordenamento, de modo algum se poderá dizer que o mesmo quis restringir a adopção da taxa de juros comerciais prevista no art. 102º do Cód. Comercial aos contratos em que uma das partes é consumidor que expressamente foram afastados da regulamentação introduzida por aquele decreto-lei.

Assim, o regime legal deste decreto-lei é aplicável às transacções comerciais elencadas nos seus arts. 2º e 3º, em que se não compreende as transacções celebradas com consumidores, mas a alteração do art. 102º do Cód. Comercial também levada a cabo naquele decreto-lei, porém, aplica-se a todas as transacções comerciais, pois este art. 102º é aplicável a essa generalidade de transacções e não apenas às transacções previstas no referido decreto-lei. A não alteração do disposto no art. 99º do Cód. Comercial apontam para a mesma interpretação. Não adoptar esta interpretação, salvo o respeito devido a opiniões em contrário, implica violar a regra do art. 9º, nº 3 do Cód. Civil. Além disso, aponta no mesmo sentido a razão de ser da existência de uma taxa de juros de mora especial para as actividades comerciais que consiste numa protecção do comerciante credor, mas nada tem a ver com a protecção do consumidor que entrando em mora, se vê na situação de qualquer devedor de actos comerciais, nos termos do art. 99º referido. O decreto-lei em apreço não visou proteger os consumidores, mas tão somente proteger os comerciantes em determinadas transacções comerciais - que se não estabelecem com consumidores -, mas sem ter qualquer intenção de adoptar meios proteccionistas dos consumidores inexistentes no regime legal anterior. Também, a pequena diferença entre os juros comerciais e os juros civis aponta para a mesma interpretação. Mas de qualquer modo, repete-se, não consta do relatório do citado decreto-lei nº 32/2003 ou da Directiva que aquele visou transpor para o nosso ordenamento jurídico, qualquer intenção de proteger os consumidores, mas tão somente favorecer os credores comerciais em determinadas transacções comerciais a que os consumidores são estranhos.».

No mesmo sentido, decidiu o Tribunal da Relação de Guimarães, no Acórdão proferido em 7/11/2019[5]:

«No nosso ordenamento jurídico, desde o 2º semestre de 2013, passaram a coexistir, por assim terem sido fixadas, duas taxas supletivas de juros comerciais, uma para as obrigações comerciais que não caibam no âmbito da aplicação do Decreto-Lei n.º 62/2013 e outra para as que estão sujeitas à sua regulação, as quais têm sido objeto dos competentes avisos. Este diploma, assim como o DL 32/2003, não visou regular o regime dos contratos celebrados com consumidores, antes pelo contrário, afastaram-nos do âmbito da sua aplicação, não se podendo, pois, entender, que alteraram o regime dos juros fixados para os atos comerciais que não cabem no campo da sua alçada.

Assim, resta ainda ver o campo de aplicação da taxa supletiva de juros moratórios aplicável a outras operações que tenham por objeto créditos de que sejam titulares empresas comerciais, singulares ou coletivas, nos termos do artigo 102º § 3 do nosso Código Comercial.

Tem-se, quanto a estes últimos, discutido se, para a sua aplicação o ato ou negócio de onde esta provém deve ser comercial em relação ao devedor, não bastando que o seja subjetivamente comercial em relação ao credor.

Esta discussão tem a ver com a conflituosidade que se pode verificar entre a defesa do consumidor e o objetivo da tutela do crédito e do credor, este último com particular relevo no direito comercial, a qual justifica a existência de juros moratórios agravados para os créditos comerciais profissionais.

Ora, entende-se a previsão do artigo 102.º, § 3 do Código Comercial é clara: ao não exigir que o ato seja subjetivamente comercial quanto a ambas as partes, mas explicando que exige (apenas) para a aplicação dos juros comerciais que o seja em relação ao credor, está a tomar nítida posição sobre tal questão, tutelando, num ato unilateralmente comercial, o credor face ao consumidor relapso.».

Desta forma, [conclui-se] que, porque o autor se dedicava profissionalmente à prática dos contratos aqui em apreço (…), apesar do ato ser unilateralmente comercial, apenas quanto ao credor, beneficia da tutela que lhe fornece o artigo 102º § 2 do Código Comercial, vencendo-se juros, no caso de incumprimento da obrigação, à taxa supletiva de juros moratórios aplicável a operações que tenham por objeto créditos de que sejam titulares empresas comerciais, singulares ou coletivas (não abrangidas pelo decreto-lei nº 62/2013 de 10.05.2013).»

Sufragamos o entendimento exposto. Conforme consta do seu preâmbulo e do seu artigo 1º, o Decreto-Lei 32/2003, transpôs para a ordem jurídica interna a Directiva n.º 2000/35/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 29 de Junho, a qual estabelece medidas contra os atrasos de pagamento nas transacções comerciais.

O Decreto-Lei nº 32/2003, de 17/12, não tem por finalidade regular as transacções comerciais com consumidores ou proteger os consumidores, mas somente favorecer os credores comerciais em determinadas transacções comerciais. Como o salienta Salvador da Costa «esta Directiva foi essencialmente motivada, por um lado, pelo facto de recaírem sobre as empresas, particularmente as de pequena e média dimensão, pesado encargos administrativos e financeiros em resultado de prazo de pagamento excessivamente longos e de atrasos de pagamento, e que de que isso constituía a principal causa de insolvência, ameaçando a sua sobrevivência e a perda de numerosos postos de trabalho. E por outro, pelo facto de os atrasos de pagamento constituírem incumprimento dos contratos, financeiramente atraente para os devedores, devido às baixas taxas de juro aplicáveis e à lentidão dos processos de indemnização.»[6].

Assim, continua a ser aplicável aos actos de comércio unilaterais, previstos no artº 99º do Código Comercial, mesmo que o devedor seja consumidor, a taxa aplicável aos créditos comerciais decorrente do artº 102º, § 3º, do mesmo diploma, ressalvando os casos em que deva concluir-se pela natureza civil do negócio.

Como refere o Tribunal da Relação de Coimbra, no Acórdão proferido em 19/10/2010[7], «a finalidade e razão de ser do diploma nada tem a ver com a defesa do consumidor. Em nenhum diploma de defesa do consumidor se disciplina a questão dos juros moratórios: por definição, eles traduzem uma sanção (ou compensação ao credor) pela falta de cumprimento tempestivo. A defesa do consumidor tem cabal entendimento quando se refere a matérias como os deveres pré-contratuais, a formação do contrato, o conteúdo do contrato e os seus efeitos ou vicissitudes, como a responsabilidade do produtor ou o direito ao arrependimento. Porém a mora é “um atraso ilicitamente provocado pelo devedor”, é “uma violação voluntária de certa norma jurídica”, onde, salvo o devido respeito, mal se entenderá um regime de protecção». Acrescentando-se: «A razão de ser da existência de juros de moratórios comerciais nada tem a ver com o devedor, mas tem tudo a ver com o credor: seja o devedor consumidor ou não seja, a razão continua a ser a mesma, ou seja, num caso e noutro (mas já não quando, por exemplo, se trate de actos não comerciais praticados por comerciantes) radica na necessidade de “compensar especialmente as empresas pela imobilização de capitais, pois que, para elas o dinheiro tem um custo mais elevado do que geral, na medida em que deixam de o poder aplicar na sua actividade, da qual extraem lucros, ou têm mesmo que recorrer ao crédito bancário. Em suma, e salvo melhor entendimento, a obrigação de pagamento de juros comerciais respeita a todos os actos comerciais e continua a ser independente da natureza da pessoa do obrigado».

Revertendo aos presentes autos que o réu solicitou à autora A..., Lda. a realização de trabalhos no rés-do-chão da sua moradia. Em 21/07/2020, a autora elaborou o orçamento dos trabalhos a efectuar, no valor de 5.431,00€ acrescido de I.V.A., que o réu lhe adjudicou.

Dispõe o artigo 2.º do Código Comercial que “Serão considerados atos de comércio todos aqueles que se acharem especialmente regulados neste Código e, além deles, todos os contratos e obrigações dos comerciantes, que não forem de natureza exclusivamente civil, se o contrário do próprio ato não resultar”.

Sem pretensões de delongas a propósito da interpretação dessa norma e das múltiplas divergências doutrinárias e jurisprudenciais que tem vindo a ocasionar, o Código Comercial acolheu um critério misto na determinação do que são actos comerciais, fazendo a destrinça entre actos objectivamente comerciais e subjectivamente comerciais (em atenção à natureza de comerciantes dos intervenientes no contrato).

São actos de comércio objectivos aqueles que o artigo 2º do Código Comercial refere na sua primeira parte, isto é, os que são especialmente previstos – como actos de comércio – no Código Comercial, nas leis extravagantes que substituíram partes revogadas do mesmo Código e na demais legislação mercantil.

Como referem Pedro País de Vasconcelos e Pedro Leitão Pais de Vasconcelos[8], estes actos mantêm a qualificação mercantil, independentemente de serem praticados por comerciantes ou não comerciantes e dentro ou fora do exercício do comércio. São também objectivamente comerciais as actividades (empresas) listadas no artigo 230º do Cód. Comercial e são actos objectivamente comerciais os actos que constituem os seus núcleos fundamentais.

São actos de comércio subjectivos aqueles previstos na segunda parte do artigo 2º do Código Comercial, isto é, “todos os contratos e obrigações dos comerciantes, que não forem de natureza exclusivamente civil, se o contrário do próprio acto não resultar”.

De harmonia com a primeira frase da segunda parte do artigo 2º do C. Comercial, são comerciais os actos e obrigações do comerciante, assim os reservando às sociedades comerciais e a todos os que fazem do comércio profissão (art. 13.º do Cód. Comercial).

Para a concretização do segmento “desde que não tenham natureza exclusivamente civil”, é necessário verificar se o acto ou a responsabilidade em questão pertence a um género que tenha, ou não tenha, uma espécie com natureza mercantil. Têm, assim, natureza exclusivamente civil, todos os actos e responsabilidades cujo género não comporte uma espécie comercial [9].

Referem Pedro País de Vasconcelos e Pedro Leitão Pais que o sentido do último segmento do artigo 2º do C. Comercial é o seguinte: “salvo se do próprio acto, nas suas circunstâncias concretas, resultar que foi praticado pelo comerciante fora do exercício do seu comércio. Na orientação amplificadora que é característica do sistema do Código Comercial, a 2ª parte do seu artigo 2º, estabelece uma presunção de que os actos e responsabilidades do comerciante se inserem no seu comércio; mas esta presunção é ilidível, sendo admitida a prova do contrário. A expressão «o contrário» liga-se a todos os actos e obrigações dos comerciantes».

Podemos concluir que são actos de comércio subjectivos todos os actos e responsabilidades do comerciante, nos moldes traçados no art. 13.º do C. Comercial, que não pertençam a um género que não tenha, pelo menos, uma espécie comercial, e que tenham sido praticados ou assumidos no exercício do seu comércio, presumindo-se, salvo prova em contrário, que efectivamente o foram, e cabendo ao comerciante o ónus da prova em contrário.

A empreitada constitui um contrato cuja natureza e regime é compatível com o exercício da actividade comercial, podendo até integrar esse exercício, não sendo acto por sua natureza insusceptível de comercialização, integrando o leque de actividades previstas no artigo 230º do Código Comercial (artigo 230º, nº6).

Considerando a factualidade apurada e atento o disposto nos artigos 99º e 102º do Código Comercial, à autora assiste direito aos juros de mora, calculados à taxa de juros aplicável aos créditos comerciais (artigo 102º, § 3º, do Código Comercial), contados a partir da data da citação do réu (a data a partir da qual são devidos juros não foi impugnada).

Improcede, assim, o recurso.


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Considerando a improcedência do recurso, as custas do mesmo são da responsabilidade do recorrente (artigo 527º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil).

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V_ Decisão

Pelo exposto, acorda-se em julgar improcedente a apelação interposta pelo réu e, em consequência, confirma-se a decisão recorrida.

Custas do recurso a cargo do recorrente (artigo 527º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil).


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Sumário:

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Porto, 10/11/2025
Anabela Morais
Carla Fraga Torres
Teresa Fonseca
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[1] No artigo 2º da oposição consta: “O Requerido é proprietário da um imóvel destinado a habitação, sito na Rua ..., tendo contratado os serviços da sociedade Requerente para efetuar a reparação e pintura dos tetos, paredes, portas, janelas e escadas daquela habitação, tendo sido ajustado o preço de 5.431,00€ acrescido de IVA à taxa legal em vigor”.
[2] Ana Taveira da Fonseca Comentário ao Código Civil, Direito das Obrigações, Das obrigações em Geral, Obra Colectiva com coordenação de João Brandão Proença, 2021, Universidade Católica Editora, pág. 126.
[3] BMJ, n.º 342, págs. 357.
[4] Acessível em https://juris.stj.pt/ecli/ECLI:PT:STJ:2013:2358.10.4TJLSB.L1.S1.5D?search=ADAjo1y7fGw7Ixwu7Cs.
[5] Acessível em https://www.dgsi.pt/jtrg.nsf/86c25a698e4e7cb7802579ec004d3832/5f524b1cfc104905802584be0055763b?OpenDocument.
[6] Acórdão de 19/2/2019, proferido pelo TRC, no processo nº 4931/18.3T8CBR-A.C1, acessível em www.dgsi.pt.
[7] Acórdão proferido no processo nº 286652/08.0YIPRT.C1, acessível em https://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/8fe0e606d8f56b22802576c0005637dc/f9bc90670ab7774a802577c80036f569?OpenDocument.
[8] Pedro País de Vasconcelos e Pedro Leitão Pais de Vasconcelos, Direito Comercial, vol. I, 2ª ed., Almedina, 2020, pág. 71.
[9] Pedro País de Vasconcelos e Pedro Leitão Pais de Vasconcelos, Direito Comercial, vol. I, 2ª ed., Almedina, 2020, pág. 71.