Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
| Processo: |
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| Nº Convencional: | JTRP000 | ||
| Relator: | ISABEL PEIXOTO PEREIRA | ||
| Descritores: | PROCEDIMENTO ESPECIAL DE DESPEJO DIFERIMENTO DE DESOCUPAÇÃO DO LOCADO TRANSAÇÃO JUDICIAL | ||
| Nº do Documento: | RP202411071216/23.7YLPRT-A.P1 | ||
| Data do Acordão: | 11/07/2024 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
| Decisão: | CONFIRMADA | ||
| Indicações Eventuais: | 3ª SECÇÃO | ||
| Área Temática: | . | ||
| Sumário: | I - No contexto do diferimento da desocupação de imóvel arrendado para habitação prevista no art.º 864º do CPC, precisamente idêntico ao do art. 15º do NRAU em apreço, não estamos perante uma norma excepcional, antes de norma especial, por razões de natureza social, aplicável na execução para entrega de imóvel arrendado para habitação. II - Donde, ainda em situações em que não está em causa a cessação do arrendamento por falta de pagamento das rendas, por força da interpretação extensiva ou mesmo de aplicação analógica é possível ou admissível diferir a desocupação de imóvel arrendado para habitação. III - Os elementos de racionalidade expressos nas previsões legais expressas de situações de deferimento são critérios de decisão para conceder o diferimento da desocupação em situações ou casos não directamente contemplados. IV - Ponderada a idiossincrasia da situação sub judice concreta, deve aceitar-se que a diferença de tratamento que o legislador conferiu ao arrendatário habitacional que enfrenta uma situação de carência económica e que vê gravemente afectado o seu direito a habitação condigna colhe, no caso em apreço, inteira aplicação, pela identidade das razões imperiosas que justificaram o diferimento da desocupação, daí que sempre se deva concluir que subjacente à aplicação extensiva da norma está um fundamento razoável, aferível a partir de um critério racional constatável. V - Não obstante, precludido o direito dos arrendatários ao diferimento por uma dupla ordem de razões. VI - Quando se considerem os termos do acordo outorgado nos autos, no confronto já com o que era objecto de discussão, mormente atenta a dedução do pedido de diferimento da ocupação pelos arrendatários, importa, por interpretação, ter por adquirido que o acordo outorgado contemplava já o diferimento da desocupação e pelo prazo máximo legalmente permitido. Os termos da transacção resolveram totalmente o objecto da acção e, assim, o pedido de diferimento da desocupação, com o que, decorrido o prazo acordado, esgotado o tempo convencionado, a implicar, nos termos acordados, haver lugar à execução imediata do despejo, sem a possibilidade de discussão agora do já resolvido por transacção. VI - A sentença de homologação de transacção judicial confere ao negócio determinados efeitos processuais, atribuindo-lhe eficácia executiva e autoridade de caso julgado. A autoridade do caso julgado determina, ressalvada a previsão do art. 291º do CPC, não verificada, que os direitos e obrigações das partes fixados na transacção (judicialmente homologada) fiquem definidos em termos definitivos, ficando as partes vinculadas às obrigações ali fixadas. VIII - Estando em causa uma pretensão deduzida em sede de oposição ao PED, ainda quando não tivesse sido regulada pelas partes no acordo ou transação outorgada que pôs termo ao processo (e já se viu que não foi o que aconteceu, tendo estas previsto o regime do diferimento da desocupação), homologada a transação por sentença, o trânsito em julgado desta precludiria a possibilidade de apreciação nos autos da questão incidental, uma vez que afirmado o direito de os AA obterem o despejo imediato numa determinada data. | ||
| Reclamações: | |||
| Decisão Texto Integral: | Processo nº 1216/23.7YLPRT-A.P1
Tribunal Judicial da Comarca do Porto Juízo Local Cível de Vila Nova de Gaia - Juiz 2
Relatora: Isabel Peixoto Pereira 1º Adjunto: Paulo Dias da Silva 2º Adjunto: José Manuel Monteiro Correia * Acordam os juízes da 3.ª secção do Tribunal da Relação do Porto: I. Versa o presente recurso sobre o despacho datado de 10-09-2024 (sob a referência 463230484 do Citius), o qual indeferiu o diferimento da desocupação do locado, deduzido pelos requeridos AA e BB. Junto do BNA foi apresentada pretensão de despejo, sendo que, em oposição ao requerimento de despejo proposto pelos requerentes, os requeridos deixaram escrito, para o que interessa, o seguinte: «De todo o modo, e para o caso de assim não se entender, sempre se deixa expresso o que já acima se referiu: o imóvel objecto dos autos é a casa morada de família do agregado familiar composto pelos requerentes, pelos três filhos menores de idade destes (dois com 8 e um com 10 anos), isto é, por cinco pessoas; os requerentes não dispõem de qualquer outra habitação para onde ir; a requerida aufere de rendimento social de inserção o valor de 324,00€; o requerido aufere apenas 117,00€ de apoio à renda, vivendo de biscates que não ultrapassam os €150,00 mensais; os requeridos não usufruem de qualquer outro apoio social. Em suma, verificam-se todos os requisitos de que depende o pedido de diferimento da desocupação de imóvel arrendado para habitação, nos termos do artigo 15.ᵒ-N, n.ᵒˢ 1 e 2, alínea a), da Lei n.ᵒ 6/2006, de 27 de Fevereiro, o que expressamente se requer, pelo período de cinco meses, devendo o Fundo de Socorro Social do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social pagar ao senhorio as rendas correspondentes ao período de diferimento, ficando aquele sub-rogado nos direitos deste, nos termos do artigo 15.ᵒ-N, n.ᵒ 3, da Lei n.ᵒ 6/2006, de 27 de Fevereiro». Terminando, pedindo, «para o caso de ser decretado o despejo, ser a desocupação diferida pelo prazo de cinco meses, devendo o Fundo de Socorro Social do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social pagar ao senhorio as rendas correspondentes ao período de diferimento, ficando aquele sub-rogado nos direitos deste».
Aos 04/12/2023 celebraram as partes uma transacção nos seguintes termos: «1º – Os Autores desistem do pedido; 2º – Os Réus desistem do pedido reconvencional; 3º Autores e Réus acordam em que o contrato de arrendamento se mantém até ao dia 30 de Junho de 2024, dia em que cessará por acordo, comprometendo-se os Réus a desocupar o imóvel até ao final desse mesmo dia, livre de pessoas e bens, no estado em que actualmente se encontra; 4º Em caso de não cumprimento da entrega do imóvel na data prevista, prosseguirá, sem mais, o incidente de despejo imediato; 5º Com o presente acordo os Autores prescindem do pagamento das rendas vencidas até à presente data bem como dos juros peticionados, e do recebimento das rendas vincendas até 30 de Junho de 2024; 6º Com o cumprimento do presente acordo Autores e Réus declaram nada mais terem a receber uns dos outros no âmbito do contrato de arrendamento em causa nos autos. A mesma foi homologada por sentença no mesmo dia e notificada às partes na data em apreço bem assim.
Por requerimento datado de 02-07-2024 os requerentes/recorrentes vieram aos autos peticionar o seguinte: «Ora, perante tantas adversidades, não resta outra alternativa aos réus que não seja requerer a V. Exa., atendendo a tudo o que se disse e ao facto de estar em causa uma habitação para esta família onde se inclui 3 crianças menores, se digne conceder um prazo adicional para a entrega do imóvel em causa, bem como, sem prejuízo, ordenar todas as diligências judiciais junto da entidade pública competente para o apoio social no âmbito da habitação por forma a que se encontre uma solução viável para esta família pois que não podem os réus, pese embora seja a sua intenção, entregar este imóvel enquanto não tiverem uma alternativa digna para si e para os seus filhos».
Sobre o mesmo requerimento recaiu o despacho datado de 09-07-2024 (referência 461986145): «A presente instância encontra-se extinta em virtude da homologação por sentença de transacção judicial, por via da qual se fixaram de modo definitivo os direitos e deveres das partes. Por tal motivo, o pedido formulado no âmbito da presente acção declarativa por AA e BB carece de fundamento legal, sem prejuízo da eventual aplicação das regras de diferimento da desocupação de imóvel arrendado para habitação no âmbito de acção executiva para entrega de imóvel arrendado que venha a ser instaurada».
Subsequentemente, o Tribunal autorizou a «entrada imediata» no domicílio dos requeridos, por despacho de 06-09-2024 (referência 463151132).
Vieram, então, os requeridos ora recorrentes, em 09-09-2024, apresentar o seguinte requerimento: «Ora, perante tantas adversidades, e agora o Doutamente ordenado por Despacho, não resta outra alternativa aos réus que não seja requerer a V. Exa., atendendo a tudo o que se disse e ao facto de estar em causa uma habitação para esta família onde se inclui 3 crianças menores, isto é, razões sociais imperiosas, se digne, ao abrigo do artigo 15ᵒ - N do NRAU, conceder um prazo adicional para a entrega do imóvel em causa - deferimento de desocupação -, por período de 5 meses, ou por outro que V. Exa. entenda por conveniente mas nunca inferior a 4 meses, e, consequentemente, se digne ordenar a suspensão imediata dos efeitos do Despacho proferido a 06-09-2024, bem como, sem prejuízo, ordenar todas as diligências judiciais junto da entidade pública competente para o apoio social no âmbito da habitação por forma a que se encontre uma solução viável para esta família pois que não podem os réus, pese embora seja a sua intenção, entregar este imóvel enquanto não tiverem uma alternativa digna para si e para os seus filhos».
Foi sobre este último que recaiu o despacho recorrido, que indeferiu o requerido, mediante a seguinte fundamentação: «O requerido pediu o diferimento da desocupação do locado muito após o inteiro decurso do prazo da oposição, tendo-o feito já após prolação da sentença, motivo pelo qual o requerimento se apresenta extemporâneo, o que impõe o seu indeferimento. (…) Ainda que assim não se entendesse, os requerentes não alegam factos subsumíveis aos pressupostos acima enunciados do diferimento da desocupação do locado, o que sempre tornaria o seu pedido manifestamente improcedente.». Vieram, novamente, os recorrentes aos autos, através de requerimento datado de 10-09-2024, aduzir que: «encontram-se em situação de carência económica, auferindo como único rendimento do agregado familiar no total de 5 pessoas, em que 3 são menores, o Rendimento Social de Inserção no montante de €759,20 (inferior à retribuição mínima mensal garantida) (…) Devendo o Tribunal, por imperioso, considerar o facto de os requerentes não disporem de outra habitação imediata, existir um agregado familiar de 5 pessoas, em que integram 3 menores, sendo que um deles padece de problemas de saúde a nível respiratório e precisa de cuidados de saúde junto dos progenitores, bem como não têm retaguarda familiar», reiterando o pedido de deferimento de desocupação, o qual foi novamente indeferido, desta feita por estar já decidido.
Interpuseram recurso do despacho de indeferimento primeiro, já identificado, os RR/recorrentes, concluindo nos termos seguintes: a) O presente recurso tem como objecto o despacho datado de 10-09-2024 (referência 463230484), o qual indeferiu o pedido de diferimento de entrega do locado formulado pelos requeridos; b) Estando os autos munidos dos elementos necessários à verificação do requisito de que depende o diferimento de entrega do locado, deve o despacho proferido a 10-09-2024 (referência 463230484) ser revogado e substituído por outro que defira aquele diferimento; c) Caso assim não se entenda, devem os requeridos ser convidados a juntar comprovativo das suas condições de vida, de forma a ter-se por verificado o requisito a que se refere o artigo 864.ᵒ, n.ᵒ 2, alínea a), do Código de Processo Civil.
Contra-alegaram os Recorridos, concluindo nos seguintes termos: A) Contrariamente ao alegado pelos Réus não existe qualquer violação de qualquer norma legal no douto despacho recorrido, pelo que os Autores aderem aos fundamentos de fato e Direito do mesmo douto despacho recorrido, que aqui se dão por integralmente por reproduzidas, pelo que deverá improceder o presente recurso, com falta de base legal e fática. B) Além disso, no processo em causa foi obtido um acordo, cuja transação foi homologada por douta sentença, onde consta que: “Em caso de não cumprimento da entrega do imóvel na data prevista, prosseguirá, sem mais, o incidente de despejo imediato”, os Réus aceitaram que no caso de não entregarem a habitação em causa na data acordada será efetuado o despejo de imediato, sem qualquer incidente, de que agora querem pôr mão. C) Além disso, a douta sentença de 04/12/2023 há muito que já transitou em julgado, encontrando-se o processo findo. Concluem pela improcedência do recurso.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
II. Considerando que o objeto do recurso, sem prejuízo de eventuais questões de conhecimento oficioso, é delimitado pelas suas conclusões (cfr. arts. 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do C.P.C.), são de direito[1] as questões a tratar e reconduzem-se: - à aferição da tempestividade ou extemporaneidade da dedução do pedido de diferimento da desocupação pelos arrendatários; - à verificação do fundamento legal e dos pressupostos do diferimento da desocupação. * No despacho recorrido entendeu-se que: “De acordo com o artigo 15.º-N, n.º 1, da Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro, no caso de imóvel arrendado para habitação, dentro do prazo para a oposição ao procedimento especial de despejo, o arrendatário pode requerer ao juiz do tribunal judicial da situação do locado o diferimento da desocupação, por razões sociais imperiosas. (…) O requerido pediu o diferimento da desocupação do locado muito após o inteiro decurso do prazo da oposição, tendo-o feito já após prolação da sentença, motivo pelo qual o requerimento se apresenta extemporâneo, o que impõe o seu indeferimento”.
Desde logo, impõe-se, consultado o teor mesmo ou os termos da oposição ao procedimento especial de despejo, junta aos autos, concluir que logo na ocasião da dedução da oposição foi pelos recorrentes imediatamente formulada a pretensão de diferimento da desocupação, nos termos da convocada norma. Com o que a questão não vem a sê-lo a da intempestividade da dedução ou formulação do pedido… Adiante-se, temos para nós que vem a ser a preclusão do direito subjacente, a um tempo, por regulação/acordo nos termos da transacção outorgada e sempre por via do efeito negativo do caso julgado constituído pela sentença homologatória da mesma transacção, que impedem a apreciação mesma do renovado pedido de diferimento da desocupação, com o que, a final e muito embora por razões distintas, se imponha o indeferimento liminar do pedido, como ocorreu. Vejamos. Nos termos do art. 15ºN do NRAU, na redação vigente, a aplicável, o diferimento da desocupação do imóvel, no caso de resolução por não pagamento de rendas, depende da demonstração da existência de nexo causal entre essa falta de pagamento da contrapartida do direito à ocupação do imóvel com base no contrato (a renda) e uma situação de carência de meios do arrendatário para liquidar essa prestação. Todavia, a lei estabelece uma presunção de carência desses meios, quando o arrendatário seja beneficiário do subsídio de desemprego de valor igual ou inferior à retribuição mínima mensal garantida, ou de rendimento social de inserção. Essencial é, assim, que a falta de pagamento da renda se deva a carência de meios do arrendatário, seja essa situação presumida ou comprovada. É sabido que “no diferimento de desocupação em causa, há que conciliar o direito ao despejo do senhorio com direitos de personalidade fundamentais do inquilino, como são os direitos ao sossego e ao repouso, à reserva da intimidade da vida pessoal, familiar e doméstica no domicílio, para o que releva o direito fundamental à habitação. Deve o tribunal ajuizar no seu prudente arbítrio, balanceando os interesses em conflito, de inquilino e senhorio, discorrendo sobre os elementos de facto concretos, balizando-os pelos critérios normativos naquele nº 2 do art.º 15º-N.” – cf. acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 27-10-2022, processo n.º 505/22.2T8ALB.P1, na base de dados da dgsi. O diferimento da desocupação do arrendado apenas pode ser autorizado, por razões sociais imperiosas, quando estiver demonstrada uma das seguintes situações: a) sendo a entrega pedida com fundamento na resolução por não pagamento de rendas, que a falta desse pagamento se deva a carência de meios do arrendatário; b) em qualquer situação, quando o arrendatário tenha deficiência com grau comprovado de incapacidade igual ou superior a 60 % – Ac. Tribunal da Relação do Porto de 2023-03-23, Relator: ARISTIDES RODRIGUES DE ALMEIDA, http://www.dgsi.pt/jtrp. Tem sido reiteradamente sustentado que para que a pretensão do arrendatário proceda, não lhe basta invocar que se encontra em alguma das situações previstas nas alíneas a) ou b) do n.º 2 do art.º 15º-N do NRAU, impondo-se-lhe ainda o ónus de invocar e demonstrar as concretas circunstâncias a que o juiz deverá atender para conceder o diferimento da desocupação, ou seja, o facto de não dispor imediatamente de outra habitação, o número de pessoas que habitam o local arrendado, a sua idade, o seu estado de saúde e a sua situação económica e social – cf. Maria Olinda Garcia, in Arrendamento Urbano - Regime Substantivo e Processual, 3.ª Edição, Coimbra Editora, 2014, a págs. 37-38, apud acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 8-05-2018, processo n.º 320/17.5T8LSA.C1, na base de dados da dgsi. Tem-se entendido também que, no contexto deste incidente “Estão em causa critérios com forte componente de discricionariedade, suportados por motivos de oportunidade e conveniência, em que o Tribunal se baseia para decidir, de forma homóloga à jurisdição voluntária. E terão de ser demonstrados a boa-fé, aqui psicológica, que não, apenas jurídica, do arrendatário e, em sede de factos – que, nos termos do artigo 342.º n.º 1 do Código Civil lhe cumpre alegar e provar – o não dispor de outra habitação, em termos imediatos e, ainda, para aferir da premente necessidade de permanência no locado: - o número de pessoas que consigo habitam (por também terem, eventualmente, de ser realojadas); - a idade do arrendatário (critério sempre presente até no revogado artigo 107.º n.º 1, alínea a) do RAU e 36.º n.º 1 do NRAU); e - o estado de saúde, (que muitas vezes pode condicionar, ou dificultar, a imediata mudança de residência).– cf. acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 17-03-2016, processo nº 2090/15.2YLPRT.L1-6, na mesma base de dados. Além disso, a apreciação da pretensão em causa estará sempre balizada por exigências de boa fé, que hão-de presidir à configuração do quadro socioeconómico do inquilino existente ao momento em que se coloca a questão do diferimento da desocupação do locado, não deixando de considerar que serão sempre razões sociais imperiosas que haverão de justificar a restrição do direito do senhorio, para o que releva ainda, como tem sido reconhecido pela jurisprudência, o critério de a desocupação imediata do local causar ao inquilino um prejuízo muito superior à vantagem conferida ao senhorio. Seguro é que a jurisprudência, aparentemente maioritária, tem reconhecido que o diferimento da desocupação não é uma decorrência automática da verificação de um dos fundamentos das alíneas a) e b) do n.º 2 do mencionado art.º 15º-N, mas tais fundamentos constituem um pressuposto necessário – cf. neste sentido, na doutrina, ainda que a propósito do similar art.º 864º do CPC, José Lebre de Freitas, Armindo Ribeiro Mendes e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Volume 3º, 3ª Edição, pág. 894; António Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. II – Processo de Execução, Processos Especiais e Processo de Inventário Judicial, 2020, pág. 298 – “Esta cláusula geral não opera automaticamente, exigindo-se que, em concreto, ocorra uma das circunstâncias previstas nas als. a) ou b) do n.º 2 (que operam como presunções legais da verificação de razões sociais imperiosas), não podendo o diferimento da desocupação ser entendido como mais um derradeiro prazo, de concessão automática.”; Luís Menezes Leitão, Arrendamento Urbano, 9ª Edição, pág. 213 e 222 – “O diferimento da desocupação é decidido de acordo com o prudente arbítrio do tribunal, apenas podendo ser deferido se estiver em causa algum dos fundamentos referidos no art.º 864º, n.º 2, CPC.”. Ora, já se decidiu que não é admissível o recurso a este incidente, quando em causa estiver a restituição de imóvel, em consequência de declaração de nulidade de contrato (de arrendamento verbal para habitação do executado), por não enquadrável no disposto na alínea a) do nº2 do artº 864 do C.P.C – Cfr. Ac. Tribunal da Relação de Lisboa de 2019-10-10, Relatora: CRISTINA NEVES, http://www.dgsi.pt/jtrl; nem também sendo outrossim directamente aplicável num caso de cessação do contrato de arrendamento por oposição à renovação da iniciativa do senhorio – cfr. Ac. Relação de Lisboa de 04.07.2023, no processo 10798/22.0T8LRS-A.L1-7, na mesma base de dados. Assim é que o recurso ao diferimento da desocupação de imóvel constitui um meio de tutela excepcional concedido ao arrendatário, a depender, pois, do enquadramento na hipótese legal típica que o concede. Discutível agora se a situação dos autos se deve ter por abrangida pela ratio legis da norma em referência (art. 15º do NRAU) porquanto em causa uma cessação convencional ou por acordo/revogação do arrendamento, nos termos da transacção outorgada nos autos, acima reproduzida e para a qual nos remetemos. A cessação do contrato por via da revogação encontra acolhimento no art. 1082.º do CC. Este normativo consagra a revogação do contrato mediante acordo a tanto dirigido, que deve ser celebrado por escrito quando não seja imediatamente executado ou quando contenha cláusulas compensatórias ou outras cláusulas acessórias. Manifesto que a apontada transacção, pelos seus termos, tem que ser interpretada e entendida no sentido de que, com ele, as partes quiseram de mútuo acordo, pôr termo, para o futuro e em data certa, ao contrato de arrendamento; abstraindo das razões invocadas para o despejo, mormente a falta de pagamento das rendas que se constituía como causa de pedir do procedimento especial de despejo instaurado. Trata-se, com efeito, da admissibilidade agora de aplicação da norma a uma situação não expressamente por ela contemplada e por via de uma interpretação extensiva ou por analogia. Aqui seguiremos de muito perto a posição assumida pelo Ac. da Relação de Lisboa de 04.07.2023, já citado, a um tal propósito. Assim é que, No contexto do diferimento da desocupação de imóvel arrendado para habitação prevista no art.º 864º do CPC, precisamente idêntico ao do art. 15º do NRAU em apreço, esta norma tem sido entendida como excepcional, que não comporta aplicação analógica – cf. art.º 11º do Código Civil. Assim se entendeu no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 12-07-2018, processo n.º 719/17.7T8OER-A.L1-7, a propósito da aplicação do art.º 864º do CPC numa situação em que o executado não tinha a qualidade de arrendatário: “As situações previstas são claramente excecionais, representando a compressão do direito de propriedade do senhorio ou do direito dos credores do insolvente no âmbito do processo respetivo em favor de quem já não terá título para deter o imóvel. Conforme se disse no Ac. da RP de 13.5.2014 a propósito do tema: “(…) Nos termos do regime em questão há, então, uma equiparação do insolvente ao arrendatário habitacional, numa circunstância de perda do direito que fundava a ocupação da casa onde habitavam: no primeiro caso, o direito de propriedade; no segundo caso, o direito contratual ao gozo do arrendado. Estamos, em qualquer caso, perante soluções jurídicas de excepção, pois a regra é a de que, mediante circunstâncias que constituem o pressuposto da obrigação de entrega do imóvel, este seja efectiva e imediatamente entregue, ora ao senhorio exequente, no caso do fim do arrendamento; ora ao administrador da insolvência, no caso da perda de propriedade, por apreensão para a massa insolvente, ora ao adquirente, no caso da sua venda ou adjudicação. São, com efeito, excepcionais as normas que permitem o diferimento do cumprimento de obrigação de entrega de uma coisa ao seu dono, porque restritivas do respectivo direito de propriedade, designadamente em favor de quem não tem já qualquer título para as manter. (…).” Estando, assim, em causa normas excepcionais, as mesmas não permitem aplicação analógica, embora consintam interpretação extensiva, de acordo com o art.º 11 do C.C.. […] se a analogia pressupõe a existência de uma lacuna da lei, que determinada situação não está compreendida nem na letra nem no espírito da lei, para recorrermos à interpretação extensiva temos de concluir que o caso está contemplado na lei, mas que o texto legal atraiçoou o pensamento do legislador que, ao formular a norma, disse menos do que efectivamente pretendia dizer.” Veja-se, no mesmo sentido, acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 10-10-2019, processo n.º 308/19.1T8OER-A.L1-6 e do Tribunal da Relação de Évora de 11-07-2019, processo n.º 25/16.4 T8PTG-A.E1. Não é, de todo o modo, esta a única visão possível no contexto da interpretação e aplicação das normas em referência. Com efeito, admitindo a aplicação analógica a uma sociedade comercial arrendatária, para lar de terceira idade, não tendo a Segurança Social capacidade para acolher os idosos em causa, no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 11-12-2019, processo n.º 2068/19.7T8FNC-A.L1-2, teceram-se as seguintes considerações: “[…] é certo que não cabe na previsão expressa do n.º 1 do art.º 864.º do CPC. Não significa isto que não seja possível […] aplicar analogicamente o preceito, para integração do que se afigura constituir uma verdadeira lacuna da lei. Na verdade, (…) o art.º 864.º não é uma norma excecional, trata-se sim de norma especial, aplicável na execução para entrega de imóvel arrendado para habitação (a ser norma excecional, admitiria interpretação extensiva - cf. 11.º do CC). Neste sentido, veja-se Marco Gonçalves, in “Lições de Processo Civil Executivo”, 2.ª edição, Almedina, pág. 509: “(…) por razões de natureza social, o Código de Processo Civil prevê regras especiais para as execuções que tenham por objeto a entrega de coisa imóvel arrendada ou que constitua a casa de habitação principal do executado”. Como se adiantou, a questão a decidir é a de saber se numa situação como a dos autos, em que não está em causa a cessação do arrendamento por falta de pagamento das rendas, por força da interpretação extensiva ou aplicação analógica (para o caso, parece-nos indiferente) do art.º 15º N do NRAU[2], é possível ou admissível diferir a desocupação de imóvel arrendado e em que termos. Ora, no contexto da aplicação do regime decorrente do art.º 15º-N do NRAU importa efectuar uma ponderação dos interesses em conflito – o do senhorio, na salvaguarda do seu direito de propriedade e o do inquilino, no seu direito à habitação -, para o que devem ainda ser atendidos os demais princípios materiais que subjazem aos direitos fundamentais constitucionalmente consagrados. Assim, sustenta J. H. Delgado de Carvalho, in Incidente de diferimento da desocupação de imóvel arrendado para habitação; fundamentos[3]: “1. O incidente de diferimento da desocupação de imóvel arrendado para habitação, que se justifica por razões humanitárias, é uma opção do legislador ordinário na tentativa de otimização das soluções de harmonização entre o direito fundamental à habitação e o direito fundamental à propriedade privada, sendo aquela medida, por isso, uma limitação do direito de propriedade. Isto significa que aquele incidente só pode proceder em casos excecionais. 2. Existem duas leituras possíveis sobre os fundamentos que concedem o diferimento, e que se acham previstos no n.º 2 do artigo 864.º do CPC: a) Uma primeira leitura, e porventura a que maior acolhimento tem na jurisprudência, é a de que o pedido de diferimento da desocupação só pode ser concedido nas duas situações previstas nas alíneas a) e b) daquele normativo, vale dizer, tratando-se de resolução do contrato de arrendamento por não pagamento de rendas, a falta do mesmo se deva a carência de meios económicos do arrendatário, ou sendo o arrendatário portador de deficiência com grau comprovado de incapacidade superior a 60%; b) A outra interpretação é no sentido de considerar que o legislador estabeleceu uma otimização apriorística (ex ante) dos dois direitos fundamentais, de modo que o pedido de diferimento é automaticamente concedido no caso de se comprovar uma das hipóteses previstas nas alíneas a) e b) do referido preceito legal; esta solução não obsta, porém, a que também o Juiz faça uma otimização dos dois direitos fundamentais referidos, tendo em conta os critérios de racionalidade previstos no corpo do n.º 2 do artigo 864.º CPC. Quer dizer: de acordo com esta segunda interpretação, é menor o esforço de fundamentação do Juiz em termos de racionalidade jurídica quando o fundamento do diferimento é alguma das situações previstas nas alíneas a) e b), sendo mais exigente a fundamentação para decretar o deferimento nos demais casos em que, ainda por razões humanitárias, se justifica decretar o diferimento da desocupação. Nesta segunda interpretação, os elementos de racionalidade expressos no corpo do nº 2 não são atendidos pelo juiz apenas para determinar o prazo do diferimento - como acontece segundo a primeira interpretação -, mas também são critérios de decisão para conceder o diferimento da desocupação. 3. O incidente de deferimento da desocupação de imóvel arrendado para a habitação não é um meio de caridade; por isso não pode o Tribunal deixar de atender também a situação socioeconómica do senhorio exequente. 4. Não são apenas critérios de decisão os critérios de racionalidade previstos no corpo do n.º 2 do artigo 864.º do CPC. Também são critérios de decisão os princípios fundamentais que constituem a reserva material da Constituição (princípio da proporcionalidade em sentido estrito, princípio da necessidade e princípio da adequação), que o Juiz deve utilizar na busca da otimização de cada um dos direitos fundamentais, por um lado, e procurando alcançar a concordância prática entre os direitos em conflito, por outro (cf. art.ºs 2º, 18.º, n.º 2 e 17.º da CRP, e art.º 335.º, n.º 1 do CC). 5. Importa igualmente pôr em relevo que os objetivos humanitários que justificam o diferimento da desocupação não podem ser só alcançados ao nível privado, devendo intervir também os organismos públicos com competência na área da assistência social. Isto significa que é aplicável o nº 6 do 861.º do CPC, no sentido de que deve haver uma participação ativa dos serviços locais de assistência social.” Na situação decidenda, cabe ter presente que o acordo ou transacção homologado por sentença, que se executa, o foi numa acção que teve como causa de pedir a falta de pagamento de rendas pelos requeridos/recorrentes e que estes logo aduziram a situação de insuficiência económica que se constitui como razão para o diferimento peticionado como concausa para a falta de pagamento das rendas, sendo que convocada uma situação económica que integra facto-base da presunção do nexo causal previsto na norma (assim o rendimento e composição do agregado). Donde, afigura-se-nos justificado, por interpretação extensiva, convocar a norma/ previsão da alínea a) do n.º 2 do art. 15º-N do RAU, convocando a similitude das situações, mesmo não tendo ocorrido a resolução do contrato com fundamento na falta de pagamento de rendas… Na verdade, ainda que a cessação do contrato não se tenha baseado na falta de pagamento das rendas, já que acordando as partes a cessação/revogação do contrato sem a discussão subjacente à causa de pedir e de defender, manifesto, pela consideração dos articulados da acção e dos termos mesmos do acordo ou transacção, estar-lhe subjacente o incumprimento da obrigação de pagar a renda e a situação de carência económica dos arrendatários. Ou seja, estão presentes as mesmas razões sociais imperiosas, que mereceram da parte do legislador, em particular em matéria de arrendamento urbano, uma protecção especial, aliás, em conformidade com direitos constitucionalmente consagrados – cf. art.ºs 72º e 65º da Constituição da República Portuguesa e art.ºs 26.º, n.º 4, c), 31.º, n.º 4, b), 36.º, n.ºs 1, a) e 57.º, n.º 1, f) o NRAU. Na verdade, se se atentar no princípio da igualdade consagrado no art.º 13º da Constituição da República Portuguesa, nas suas duas vertentes, sustentável a aplicação, no caso, da norma do n.º 2 do art.º 15º-N do NRAU a uma situação não directamente contemplada na lei. Com efeito, atenta a idiossincrasia da situação sub judice, deve aceitar-se que a diferença de tratamento que o legislador conferiu ao arrendatário habitacional que enfrenta uma situação de carência económica e que vê gravemente afectado o seu direito a habitação condigna colhe, no caso em apreço, inteira aplicação, pela identidade das razões imperiosas que justificaram o diferimento da desocupação, daí que sempre se deva concluir que subjacente à aplicação extensiva da norma está um fundamento razoável, aferível a partir de um critério racional constatável – cf. neste sentido, acórdão do Tribunal Constitucional de 26-11-2008, processo n.º 569/08, acessível em https://blook.pt/caselaw/pt/tc/460790/. Isto posto, convocável a aplicação da norma em apreço, por interpretação extensiva e alegados pelos arrendatários os factos ou circunstâncias integradores dos pressupostos legais exigidos (rendimento, composição do agregado e nexo com a falta de pagamento da renda) e na ocasião oportuna, a dedução da oposição mesma, não colhe a decidida extemporaneidade do requerimento… Não obstante, como adiantado, precludido o direito dos arrendatários ao diferimento por uma dupla ordem de razões, também já aventadas. Na verdade, quando se considerem os termos do acordo outorgado nos autos, no confronto já com o que era objecto de discussão, mormente atenta a dedução do pedido de diferimento da ocupação pelos arrendatários, importa, por interpretação, ter por adquirido que o acordo outorgado contemplava já o diferimento da desocupação e pelo prazo máximo legalmente permitido… Caracteriza-se a transacção judicial como um "contrato processual", pelo que não é a homologação judicial da transacção que decide a controvérsia substancial trazida a juízo pelas partes, uma vez que tão-só fiscaliza a regularidade e a validade de tal pacto. É, pois, o litígio resolvido por vontade exclusivamente das partes e não ex vi da sentença homologatória proferida pelo Juiz. A transacção exarada num processo que põe termo ao litígio entre as partes constitui um contrato processual, consubstanciando um negócio jurídico efectivamente celebrado entre as partes na acção correspondente àquilo que estas quiseram e conforme o conteúdo da declaração feita. Ou seja, tal transacção equivale à celebração, entre as partes, de um “contrato de transacção”, previsto nos artigos 1248º a 1250º, do Código Civil. De todo o modo, estando em causa uma transacção judicial, a sentença de homologação confere ao negócio determinados efeitos processuais, atribuindo-lhe eficácia executiva e autoridade de caso julgado. A autoridade do caso julgado determina, em princípio, que os direitos e obrigações das partes fixados na transacção (judicialmente homologada) fiquem definidos em termos definitivos, ficando as partes vinculadas às obrigações ali fixadas; sem prejuízo apenas do disposto no art.291, n.ºs 1 e 2 do CPC, ao permitir que, não obstante o trânsito em julgado da sentença, possa vir a ser decretada, em nova acção, a nulidade ou anulabilidade dessa transacção. A transacção - seja ela judicial ou extrajudicial - é um negócio jurídico (contrato) que, naturalmente, está submetido às normas que regulam essa matéria, mormente aos princípios gerais da interpretação. Entende-se estar em causa, na questão jurídica sujeita a escrutínio, essencialmente, aqui também, uma questão de interpretação, igualmente jurídica, constituída em problema judiciário, como elemento noemático, essencial, a dirimir. Empreendendo, firme-se que o limite da interpretação é a letra, o texto. Deste modo, a apreensão literal do próprio texto, ponto de partida de toda a interpretação, é já interpretação, embora incompleta, pois será sempre necessária uma tarefa de interligação e valoração que escapa ao domínio literal. Nesta tarefa de interligação e valoração que acompanha a apreensão do sentido literal, intervêm elementos lógicos, apontando a doutrina elementos de ordem sistemática, histórica e racional ou teleológica. Por outras palavras: o intérprete não deve deixar-se arrastar pelo alcance aparente do texto, mas deve restringir este em termos de o tornar compatível com o pensamento implícito, se chegar à conclusão de que o redactor adoptou um texto que atraiçoa o seu pensamento, na medida em que diz mais do que aquilo que se pretendia dizer; o intérprete limita a redacção aparente, por entender que o texto vai além do sentido (Cf. Parecer da PGR: DR, II, de 26-11-1992, pág. 11227). A letra do texto é, naturalmente, neste contexto, o ponto de partida da interpretação, cabendo-lhe, desde logo, como assinala Baptista Machado, uma função negativa: eliminar aqueles sentidos que não tenham qualquer apoio ou, pelo menos, qualquer correspondência ou ressonância nas palavras utilizadas (Introdução ao Direito, 1987, págs. 187 e ss.). Ou, como diz Oliveira Ascensão, «a letra não é só o ponto de partida, é também um elemento irremovível de toda a interpretação. Quer dizer que o texto funciona também como limite de busca do espírito» (O Direito - Introdução e Teoria Geral, 1978, pág. 350). Como escreveu Francesco Ferrara, Interpretação e Aplicação das Leis, 3.ª ed., 1978, págs. 127 e ss. e 138 e ss., para apreender o sentido do escrito, a interpretação socorre-se de vários meios: Em primeiro lugar busca reconstituir o seu pensamento através das palavras utilizadas, na sua conexão linguística e estilística, procura o sentido literal. Mas este é o grau mais baixo, a forma inicial da actividade interpretativa. As palavras podem ser vagas, equívocas ou deficientes e não oferecerem nenhuma garantia de espelharem com fidelidade e inteireza o pensamento: o sentido literal é apenas o conteúdo possível; para se poder dizer que ele assume correspondência à mens relatio, é preciso sujeitá-lo a crítica e a controlo. Indagando, a partir dos termos da transacção, celebrada pelas partes neste processo, se teve em vista regular/resolver bem assim a questão do diferimento da desocupação que os RR ora recorrentes haviam suscitado subsidiariamente, leva-se em consideração que o n.º 1 do art. 236.° do Cód. Civil (sentido normal da declaração) representa a consagração da chamada «teoria da impressão do declaratário», teoria que entende que a declaração negocial deve ser interpretada como um declaratário medianamente sagaz, diligente e prudente, a interpretaria, colocado na posição concreta do declaratário. O Código não se pronuncia sobre o problema de saber quais as circunstâncias atendíveis para a interpretação, ensinando Mota Pinto que «se deverá operar com a hipótese de um declaratário normal: serão atendíveis todos os coeficientes ou elementos que um declaratário medianamente instruído, diligente e sagaz, na posição do declaratário efectivo, teria tomado em conta» (Teoria Geral do Direito Civil, 1980, pág. 421). A título exemplificativo, Manuel de Andrade refere «os termos do negócio», «os usos da prática, em matéria terminológica ou de outra natureza que possa interessar», «a finalidade prosseguida pelo declarante», «os interesses (...) em jogo no negócio» (Teoria Geral da Relação Jurídica, vol. II, pág. 313, nota I). A interpretação a que se refere o n.º 1 do artigo tem lugar, tratando-se de declarações receptícias de vontade, quando ambas as partes não tenham entendido do mesmo modo a declaração e é, então, de fazer no sentido que o declaratário, com base em todas as circunstâncias por ele conhecidas ou reconhecíveis por um declaratário normal colocado na sua posição, podia e devia entender, conforme o teria feito um declaratário normal, como sendo o visado pelo declarante. O declaratário não pode interpretar, sem mais, a declaração pelo seu sentido literal, devendo ter em atenção as circunstâncias por ele conhecidas ou reconhecíveis por um declaratário normal colocado na sua posição que possam esclarecê-lo sobre o que o declarante pretendeu significar. O declaratário deve procurar determinar o que o declarante quis significar com ela; nessa indagação não é obrigado a toda e qualquer diligência, mas à que teria um declaratário normal, colocado na posição concreta em que ele real declaratário se encontra, devendo ter, assim, em atenção as circunstâncias por ele conhecidas ou cognoscíveis por um declaratário normal (RLJ, 110.°-351). A regra do n.º 2 do artigo é aplicável a todas as declarações receptícias, ainda que formais, desde que, quanto a estas, as razões determinantes da forma do negócio se não oponham (RLJ, 110.°-351). Tal regra significa que a ambiguidade ou inexactidão de uma designação não prejudica quando o declaratário a tenha entendido no sentido querido pelo declarante. Quando diversamente o declaratário tenha entendido, podendo fazê-lo, a declaração num sentido diferente do querido pelo declaratário intervém a regra do n.º 1 do artigo (RLJ, 110.°-352). Por esta forma se revelando de perfeita pertinência e conformidade, de acordo com tais pressupostos e levando em conta o teor integral da transação outorgada e exequenda, acima reproduzido, no contexto do litígio desenhado pela causa de pedir e de defender, como decorrência inevitável, insusceptível de ultrapassagem, por forçosa remissão intertextual, ter por “regulada” contratualmente a questão do diferimento da desocupação, mediante a fixação de um prazo para a entrega da habitação dilatado no tempo, idêntico de resto ao prazo máximo legal do peticionado (e donde em discussão) diferimento. Autores e Réus acordaram em que o contrato de arrendamento se manteria até ao dia 30 de Junho de 2024 (foi em Dezembro de 2023 a transacção), dia em que cessaria por acordo, comprometendo-se os Réus a desocupar o imóvel até ao final desse mesmo dia, livre de pessoas e bens. Mais acordaram que em caso de não cumprimento da entrega do imóvel na data prevista, prosseguirá, sem mais, o incidente de despejo imediato. Ora, o sentido útil desta cláusula 4ª não pode ser outro se não o de regular entre as partes a questão da entrega do imóvel e, assim, a da desocupação. Temos de ter como certo - e presumir face às regras da experiência comum - que as partes, porque acompanhadas pelos seus distintos advogados, souberam exprimir convenientemente as suas intenções. Ora, quer a declaração negocial expressa como a tácita podem e devem ser objecto da interpretação objectivista - a chamada «teoria da impressão do declaratário» nos termos do n.º1 do art. 236º Código Civil. No tocante à interpretação, o art. 236.°, determinado por razões de protecção ao declaratário e de segurança do tráfico, consagrou a denominada teoria da impressão do destinatário, vindo privilegiar o sentido objectivo da declaração negocial. Assim, a interpretação das declarações negociais não se dirige a fixar um facto simples - o sentido que o declarante quis imprimir à sua declaração -, mas o sentido jurídico da declaração. Como se adiantou, no contexto de um acordo de cessação voluntária do arrendamento/revogação, as partes acordaram uma data protelada no tempo para aquela cessação e a entrega/restituição do imóvel, reconduzindo-se à possibilidade de uma realização imediata de execução forçada daquela desocupação, findo ou decorrido o prazo contratualmente estipulado; o que se reconduz à previsão mesma de um período temporal de diferimento da desocupação. Como auxiliar interpretativo, no sentido da corroboração desta intenção, veja-se o “alívio” do arrendatário da renda devida pelo gozo da coisa, desobrigando-o do cumprimento da obrigação correspectiva mais típica do contrato, mantido “apenas” para salvaguardar as fragilidades do agregado subjacentes ao pedido de diferimento da desocupação, em discussão na acção e, assim, resolvido a contento… Tudo para dizer que os termos da transacção resolveram totalmente o objecto da acção e, assim, o pedido de diferimento da desocupação, com o que, decorrido o prazo acordado, esgotado o tempo convencionado, a implicar, nos termos acordados, haver lugar à execução imediata do despejo, sem a possibilidade de discussão agora do já resolvido por transacção. Ainda que assim não fosse, a sentença homologatória da transacção, com os efeitos processuais assinalados, extingue a acção e, consequentemente, a possibilidade de apreciação nos autos de questões eventualmente não dirimidas ou resolvidas pela transacção ou acordo homologados. Trata-se, entre outras, de situações em que, no dizer de Manuel de Andrade[4], «uma vez julgada procedente uma acção, nela se afirmando competir ao autor certo direito, com base em certo acto ou facto jurídico, a força e autoridade do caso julgado impedirá mais tarde, por qualquer motivo não superveniente … se possa vir impugnar aquele direito, com isto negando ou por qualquer forma se intentando prejudicar bens correspondentes por aquela decisão reconhecidos ao autor». E daí concluir-se que o caso julgado cobre, desde logo, o deduzido (por acção e a título defensional), valendo a máxima «tantum judicatum quantum disputatum debebat». E isto acontece porque, como refere o Acórdão do STJ, de 10.10.2012, na base de dados da dgsi «o trânsito em julgado de uma qualquer decisão de mérito é susceptível de produzir outros efeitos, mais difusos, mas não menos importantes quando se trata de relevar os valores da certeza e da segurança jurídica que qualquer sistema deve buscar e proteger». Surge, assim, ligada ao instituto do caso julgado, a figura da preclusão[5], pois que, se assim não fosse, ficaria sempre aberta a possibilidade de sucessiva renovação do litígio, a pretexto da insuficiência de decisão que, transitada, não houvesse versado sobre a totalidade da causa defendendi. Acompanhamos ainda Miguel Teixeira de Sousa[6], que analisando as “relações mútuas” entre a preclusão e caso julgado, conclui que «o caso julgado apenas impede a alteração da decisão transitada com base num fundamento precludido. Em contrapartida, em relação a um fundamento que não se encontra precludido, o caso julgado não realiza nenhuma função de estabilização. Muito pelo contrário: o caso julgado pode ser modificado ou até destruído por um fundamento não precludido». Ora, estando em causa uma pretensão deduzida em sede de oposição ao PED, ainda quando não tivesse sido regulada pelas partes no acordo ou transação outorgada que pôs termo ao processo (e já se viu que não foi o que aconteceu, tendo estas previsto o regime do diferimento da desocupação), homologada a transação por sentença, o trânsito em julgado desta precludiria a possibilidade de apreciação nos autos da questão incidental, uma vez que afirmado o direito de os AA obterem o despejo imediato numa determinada data… E é ainda o que impede a convocação do art. 864º do CPC, que se constitui como uma disposição de conteúdo e ratio idênticos ao do apreciando regime do NRAU. De todo o modo, no PED, como se viu, o momento oportuno para a formulação da pretensão de deferimento da desocupação vem a sê-lo o da dedução da oposição ao pedido de despejo…, com o que, em princípio, precludida a possibilidade de dedução em sede executiva… Sempre afastada a possibilidade de poder estar em causa uma situação de insuficiência económica superveniente, já que, nos termos da al. a) do nº 2 do art. 864º, exige-se o nexo causal entre esta e a situação de falta de pagamento da renda que se constitui como causa ou razão do despejo, com o que necessariamente anterior. Sempre, nas hipóteses ainda de aplicação extensiva ou analógica da previsão legal do diferimento da desocupação, necessária a afirmação daquele nexo, como pressuposto da similitude das situações que pressupõe a mesma aplicação, a determinar, pois, a irrelevância ou preclusão de qualquer situação de insuficiência económica subsequente à ocasião da contestação ao pedido de despejo. Na situação versada sequer em causa esta, já que reconduzindo-se os requerentes, precisamente, ao pedido feito aquando da oposição. Tudo para justificar a não admissão da dedução pelos Recorrentes do incidente do deferimento do despejo, mantendo-se a decisão recorrida e, consequentemente, a determinação do despejo “imediato”. * Consigna-se que, não obstante perigosamente próxima, vista a dedução, contra o acordado/assumido de uma pretensão resolvida por acordo ou transacção, de comportamento processual integrador das previsões sob as alíneas a), 1ª parte e d) do n.º 2 do art. 542º do CPC, se tem por caracterizada, vista a invocada situação de necessidade da habitação, uma actuação com culpa diminuída, a não implicar o sancionamento da conduta.
III. Pelo exposto, nega-se provimento ao recurso, mantendo-se a decisão recorrida, de indeferimento do pedido de diferimento da desocupação do arrendado. Custas do recurso a cargo dos apelantes. Notifique. |