Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
| Processo: |
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| Nº Convencional: | JTRP00037554 | ||
| Relator: | JOÃO BERNARDO | ||
| Descritores: | LOTEAMENTO CLANDESTINO USUCAPIÃO | ||
| Nº do Documento: | RP200501060436408 | ||
| Data do Acordão: | 01/06/2005 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | APELAÇÃO. | ||
| Decisão: | CONFIRMADA A SENTENÇA. | ||
| Área Temática: | . | ||
| Sumário: | I - Em acções onde se discute se determinado tracto de terreno, situado em zona rural, integra um caminho público ou um lote de terreno particular, é frequente a divisão profunda e frontal entre as versões das testemunhas que depuserem. II - Nessa situação podem relevar, para aferição da matéria de facto, nomeadamente elementos derivados da razão de ser do caminho e sua utilidade normal. III - Devendo o Tribunal da Relação ainda ter em conta o sentido da decisão de primeira instância porque a gravação dos depoimentos das testemunhas encerra um profundo estreitamento relativamente ao que, quanto a tais testemunhas, o Juiz “a quo” dispôs. IV - O ingresso de bens no domínio público pode ter lugar nos termos gerais de aquisição da propriedade (contrato, sucessão por morte, usucapião, ocupação, acessão, expropriação, etc). V - Não obsta a tal ingresso, por usucapião, que a afectação ao uso público tenha derivado de loteamento clandestino. | ||
| Reclamações: | |||
| Decisão Texto Integral: | Acordam no Tribunal da Relação do Porto: I – B.......... e mulher C.........., D.......... e mulher E.........., F.......... e mulher G.........., H.......... e mulher I.........., todos residentes na Rua ............, freguesia de .........., do concelho de .........., Intentaram contra: J.......... e mulher L.........., residentes .........., nº .., da mesma freguesia. A presente acção popular. Alegaram, em síntese, que : Há cerca de 28 anos, o Sr. M.......... decidiu fraccionar em pequenas parcelas ou lotes um prédio rústico dele, situado no ............. ou ........... da dita freguesia de .........., para as vender com destino a construção. Para permitir o acesso a essas parcelas, rasgou um caminho com mais de 500 metros de comprimento por 7 metros de largura, em toda a extensão do terreno, no sentido Norte/Sul, desde a estrada principal de .......... até ao caminho velho de ..........; Após ter aberto o dito caminho, entregou-o à Junta de Freguesia de .........., para fazer nele as obras de melhoramento que bem entendesse e para o afectar à livre circulação de todas as pessoas; A Junta de Freguesia recebeu-o para esse fim e fez aí diversas obras de beneficiação, dentro das suas disponibilidades orçamentais, para melhorar as condições de utilização pelos particulares, e atribuiu-lhe a designação de “Rua ..........”; Desde então, o referido caminho passou a ser utilizado livremente por todas as pessoas que por ali quisessem passar, designadamente os residentes da localidade de .........., a pé, a cavalo, em veículos de tracção animal ou de automóvel; Em 1999, os réus compraram uma parcela de terreno para construção, com a área de 1.000 metros quadrados, situada na extremidade Sul do prédio fraccionado e que confina a Poente com o caminho público designado por Rua ..........; Após a terem comprado, requereram alterações na descrição na matricial da dita parcela, designadamente no que respeita à área, que aumentaram de 1.000 m² para 1.450 m², e na sua confrontação poente, que indicaram ser a parcela pertencente ao autor B..........; Com tal alteração os réus visaram incluir no seu lote de terreno a extremidade Sul do caminho público designado por Rua .........., com 30 metros de comprimento por 7 metros de largura, subtraindo-o ao domínio da freguesia e à livre circulação das pessoas; Na execução desse seu desígnio, em Dezembro de 2000, os réus ocuparam essa parte do dito caminho, com gruas e materiais de construção e, desde então, não mais a desocuparam nem permitiram o seu uso pela população, arrogando-se donos dessa parcela do dito caminho. Pediram, em conformidade: a) Que seja declarado que o caminho identificado nos autos é um bem do domínio público; b) Que os réus sejam condenados a reconhecer tal e a devolverem ao domínio público a parte do dito caminho que ocuparam, deixando-a livre à circulação de pessoas, animais e veículos. Contestaram estes. Na parte que agora importa, alegaram que: Os factos alegados são insuficientes para sustentarem as pretensões dos AA; O caminho aberto pelo anterior dono do prédio, destinava-se apenas a permitir o acesso às parcelas constituídas, e não à livre circulação de todas as pessoas, sendo, por isso, um caminho de consortes, e não um caminho público; A parcela de terreno que os autores reclamam dos réus nunca fez parte do dito caminho, o qual termina na extremidade Sul, no ponto onde o referido caminho confina com a parcela deles, RR; Nunca a Junta de Freguesia ou qualquer outra entidade administrativa fez ali obras de beneficiação e os únicos melhoramentos que teve foram feitos pelos donos das respectivas parcelas de terreno, que o iam compondo à medida que iam construindo nessas parcelas; Na parte em que a parcela de terreno reclamada dos réus confina com o caminho Velho de ......... existe e sempre existiu um desnível de cerca de 2 metros de altura, que impede se sempre impediu de por ali transitarem pessoas e muito menos automóveis, animais e carros de tracção animal. II – A acção prosseguiu a sua normal tramitação e, na altura própria, foi proferida sentença, cuja parte decisória é do seguinte teor: 1.º - Declaro e condeno os réus a reconhecer que o caminho descrito no art. 1º da petição inicial, que parte da estrada principal de .........., na sua extremidade Norte, atravessa o lugar .......... ou .......... e desemboca no caminho velho de .........., na sua extremidade Sul, com mais de 500 metros de comprimento por 7 metros de largura, é um caminho público que pertence ao domínio público da Junta de Freguesia de .......... do concelho de .........., afecto ao uso livre e directo de toda a gente. 2 . º - Mais declaro que desse caminho público faz parte integrante a parcela de terreno identificada no art. 38º da petição inicial, ocupada pelos réus, com 30 metros de comprimento por 7 metros de largura, situada na sua extremidade Sul, desde o início do prédio dos réus até ao caminho velho de .........., e condeno os réus a devolvê-la à referida Junta de Freguesia e a deixá-la livre à circulação de pessoas, animais e veículos. III - Apelam os RR, concluindo as alegações do seguinte modo: 1- A resposta à matéria de facto deve ser alterada nos termos do art.º 712° do C.P.C. 2- A matéria constante dos artigos n° 24° e 25° da base instrutória deve ser dada como "provados". 3- A matéria constante dos artigos n° 1 a 8; 13, 15, 16, 17, 18, 19 ,20, 21 e 23 da base instrutória deve ser dada como "não provados". 4- Os depoimentos das testemunhas arroladas pelos AA. são pouco credíveis, nos termos do disposto no art. 616° n° 2 do C.P.C.. 5- A Junta de Freguesia, enquanto entidade responsável por obras públicas, tem-se limitado a tratar como público o terreno até à propriedade dos Recorrentes, todavia só nele colocando iluminação, saneamento e água, à medida que se vão construindo novas casas. 6- Estes procedimentos só tiveram lugar até à extremidade da propriedade dos ora Recorrentes. 7- Nunca em tempo algum a Junta de Freguesia asfaltou o caminho em frente à propriedade dos Recorrentes, nele colocou iluminação, água ou saneamento. 8- Toda e qualquer obra de beneficiação naquela parcela de terreno foi levada a cabo pelos ora Recorrentes. 9- O Caminho Velho de .......... nunca foi ligado à Estrada Principal de .........., desde logo, por esta ligação ser fisicamente impossível - desnível acentuado, com muro na extremidade. 10- O pedaço de estrada à entrada da parcela dos ora Recorrentes apresentou durante vários anos um desnível de cerca de dois metros, o que tornava impossível a passagem por esta parcela de qualquer veículo automóvel. 11- Os ora Recorridos ou qualquer outra pessoa nunca passaram ou tiveram sequer necessidade de passar no caminho em frente à propriedade dos Recorrentes. 12- Antes de ser construído o prédio dos Recorrentes, só lá existia uma vinha abandonada, silvaredo e lixo. 13- Só é possível circular de carro até ao lote de terreno dos ora Recorrentes, sendo necessária inverter a marcha no local onde a estrada é, para o efeito mais larga. 14- De acordo com levantamentos aerofotométricos datados de 1974 e 1984, é perfeitamente visível que não há qualquer caminho público ou privado naquele local, apenas aparece uma "rodeira pedonal". 15- O caminho foi aberto para servir os lotes que iam sendo vendidos gradualmente. 16- Não há possibilidade de aquisição desta parcela de terreno por usucapião. 17- A declaração emitida pelo M.......... não pode ser levada em conta, porquanto a mesma foi emitida em circunstâncias duvidosas e exclusivamente para juntar nestes autos. 18- Não existe documento idóneo, nem qualquer deliberação da Junta de Freguesia de .......... sobre este caminho ou parcela de terreno em causa. Contra-alegou a parte contrária, pugnando pela manutenção do decidido. IV – Ante as conclusões das alegações, importa tomar posição sobre: Se deve ser alterada a matéria de facto nos termos pretendidos; Se o caminho deve ser considerado público e, sendo-o, se integra a parcela de terreno que os AA referem. V – Na 1.ª instância, o Sr. Juiz considerou provado o seguinte: Por acordo das partes ou documentos: a) Há cerca de 28 anos, M.......... resolveu proceder à venda de um prédio rústico de que era proprietário, sito no .......... ou .........., freguesia de .........., a confrontar do Norte com estrada, do Nascente com caminho público, do Sul com caminho público e do Poente com N.........., e inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo nº 958º da referida freguesia. b) Para o efeito, o referido M.......... fraccionou o referido prédio em várias e diferentes parcelas e procedeu à venda dessas parcelas separadamente e a diferentes pessoas. c) Para conseguir acesso livre às parcelas de terreno que não confrontavam com a estrada nacional e facilitar a sua venda, rasgou, no prédio referido em a), um caminho ou arruamento, com mais de 500 metros de comprimento por 7 metros de largura, o qual parte da estrada principal de .......... e atravessa o dito prédio. d) Do conjunto de parcelas referidas em b), os autores B.......... e mulher compraram uma dessas parcelas, por escritura lavrada no Cartório Notarial de .......... em 4/10/1971. e) Os autores H.......... e mulher compraram outra parcela, por escritura lavrada no mesmo Cartório Notarial em 17/07/1980. f) Os autores D.......... e mulher e F.......... e mulher compraram, cada um dos casais, por escrituras lavradas em 1987, uma outra parcela a O.........., o qual as tinha comprado ao referido M.......... . g) Os quatro casais aqui autores construíram, nas suas respectivas parcelas de terreno, as suas casas de habitação, onde, desde então, passaram a residir. h) Os autores F.......... e mulher e H.......... e mulher acedem às suas casas, exclusivamente, pelo caminho ou arruamento referido na al. c). i) Os dois restantes casais demandantes, cujas parcelas confrontam a poente com a estrada nacional, usam o dito caminho ou arruamento para também acederem a suas casas pelo lado nascente destas. j) Também P.........., residente na freguesia de .........., do concelho de .........., comprou ao M..........., em 1972, uma das parcelas de terreno referidas em b), com a área de 1000m². k) Tal parcela, situada no topo Norte do prédio referido em a), foi vendida aos aqui réus no ano de 1999. l) Para poder realizar essa venda, o P.........., no dito ano de 1999, participou à Repartição de Finanças do concelho de ........., para inscrição matricial, um lote de terreno para construção urbana com a área de 1000m² e indicou que o dito lote confrontava a poente com caminho público. m) Posteriormente, já com artigo matricial atribuído, o P.......... requereu a rectificação da descrição matricial, no que respeita à confrontação a poente, de forma a fazer constar que o dito lote confrontava a poente com o ora autor B.......... . n) Após a aquisição desse lote de terreno pelo réu e feito o averbamento à matriz em seu nome, este requereu as seguintes alterações à descrição matricial: - Em 5 de Abril de 2000 requereu que fosse rectificado o fim a que se destinava o terreno, fazendo constar que se destinava a terra de cultivo; - Em 6 de Julho de 2000 requereu a rectificação da área, fazendo constar que tinha a área de 1450m². o) Operadas as referidas alterações à matriz, no dia 4 de Agosto de 2000, no .. Cartório Notarial de .........., os réus outorgaram uma escritura de justificação notarial em que, referindo-se à mesma parcela de terreno adquirida a P.........., declararam ser donos e legítimos possuidores de “uma parcela de terreno para construção urbana, com a área de 1450m², situada no .........., freguesia de .........., do concelho de .........., a confrontar do Norte com F.......... e caminho público, do Sul com caminho público, do Nascente com M.......... e do Poente com B..........”, declarando ainda que tinham adquirido essa parcela de terreno por contrato de compra e venda meramente verbal feita a P.......... e mulher, por volta do ano de 1978. p) Com base na referida escritura, os réus procederam ao registo em seu nome da dita parcela de terreno e nela iniciaram a construção de uma casa de habitação. Em sede de audiência de julgamento: 1) O caminho supra referido na al. c), quando foi construído pelo M.........., ia desembocar no caminho velho de .......... — (r. ao nº 1 da BI). 2) Logo que concluiu a abertura do dito caminho ou arruamento, o M.......... entregou-o à Junta de Freguesia de .......... para que o afectasse ao trânsito do público em geral — (r. ao nº 2 da BI). 3) A Junta de Freguesia recebeu-o e atribuiu-lhe a designação de “Rua ..........” — (r. ao nº 3 da BI). 4) E, no exercício das suas funções, a Junta de Freguesia foi aí efectuando obras diversas para melhorar e facilitar o trânsito — (r. ao nº 4 da BI). 5) Colocando no seu leito vários camiões de godo e areia — (r. ao nº 5 da BI). 6) Fazendo a instalação de rede eléctrica, com a colocação de postes de iluminação e transporte de energia — (r. ao nº 6 da BI). 7) Fazendo obras para o abastecimento doméstico de água — (r. ao nº 7 da BI). 8) E também fez a numeração das casas — (r. ao nº 8 da BI). 9) E quando a Junta de Freguesia não procedia, atempadamente, a obras de melhoramentos, eram os próprios moradores e transeuntes que retiravam as águas do trilho e colocavam pedras e areia a servir de calçada — (r. ao nº 10 da BI). 10) Tanto os demandantes como os demais habitantes de .........., sempre, após o referido sob a al. 2), usaram o referido caminho para passar a pé ou de automóvel até à última casa, atento o sentido norte/sul, que é a casa do autor de F.......... — (r. ao nº 11 da BI). 11) Dali para a frente, porque o piso ainda não estava adaptado para a circulação de veículos, passavam a pé, até ao caminho velho de .......... — (r. ao nº 12 da BI). 12) Sempre a população de .......... e designadamente os demandantes, fizeram uso livre e indiscriminado do caminho para passarem a pé, desde a estrada principal, a Norte, até ao caminho velho de .........., a Sul — (r. ao nº 13 da BI). 13) Tal caminho vem sendo usado livremente por qualquer pessoa da aldeia de .......... que pretenda por ali passar, de automóvel até à casa do autor F.........., e a pé em toda a sua extensão, incluindo os últimos 30 metros, até ao caminho velho de .........., porque o mau estado do piso desta parte do caminho ainda não permite a circulação de veículos automóveis — (r. ao nº 14 da BI). 14) A qualquer hora do dia e da noite — (r. ao nº 15 da BI). 15) Sem oposição de alguém — (r. ao nº 16 da BI). 16) O que acontece ininterruptamente há mais de 28 anos — (r. ao nº 17 da BI). 17) O referido caminho está devidamente delimitado pelas estremas das parcelas de terreno para construção que o marginam a poente e a nascente, e, nalguns troços, pelos muros das casas que, entretanto, já ali foram construídas — (r. ao nº 18 da BI). 18) Em Dezembro de 2000, os réus, quando iniciaram a construção da sua casa de habitação na sua parcela de terreno, a que se alude na al. p), ocuparam a parte do caminho que confina com essa parcela de terreno, com a área de 30m x 7m — (r. ao nº 19 da BI). 19) Desde então, arrogando-se donos dessa área do caminho, recusam-se a desocupar a referida área — (r. ao nº 20 da BI). 20) Aterraram essa parte do caminho em cerca de 3m de altura, para impossibilitar a passagem — (r. ao nº 21 da BI). 21) E retiraram um poste de condução de energia eléctrica que se encontrava colocado nessa área do caminho, deslocando-o para junto da casa do autor F.......... — (r. ao nº 22 da BI). 22) Impedindo que a população circule nessa faixa do dito caminho a partir da casa do autor F.......... até ao caminho velho de .......... — (r. ao nº 23 da BI). 23) O caminho supra referido na al. c) foi construído pelo então proprietário do prédio referido em a) para servir todas as parcelas em que o dito prédio foi fraccionado — (r. ao nº 24 da BI). ………………….. VI – No que concerne à alteração da matéria de facto, há, no plano genérico, a ter em conta o que tem vindo a ser salientado por este tribunal em inúmeros arestos e que até se impõe pela evidência: Temos, no que respeita aos depoimentos orais, apenas a voz das testemunhas. Ou seja, muito menos do que teve ao seu alcance o Sr. Juiz “a quo” que pôde constatar o aspecto destas, as sua reacções e aí por diante. Já no caso específico do presente recurso, há ainda a ter em conta que o Sr. Juiz se deslocou ao local, que observou detalhadamente. E, se é certo que verteu, como tinha que verter, na acta, o que de interessante constatou, não é menos certo que a leitura desta fica necessariamente aquém do que ali foi directamente observado. Também com referência ao nosso caso, não podemos deixar de reparar que o Sr. Juiz fundamentou a sua decisão em termos extremamente esclarecedores das opções factuais que levou a cabo, tendo revelado, também por aí, uma detalhada e profunda apreciação da prova. VII – De qualquer modo, este Tribunal da Relação não pode valorar as considerações acabadas de fazer em ordem a abdicar do conhecimento que a lei lhe impõe quanto à bondade da decisão factual. E, por isso, passamos à análise concreta do que temos como correcto. VIII – Sabemos da experiência que, neste tipo de situações, se gera em meios rurais e, consequentemente de grande interrelacionamento pessoal, uma divisão de posições. Por razões ligadas aos fundamentos dos conflitos ou até alheias a eles, as pessoas dividem-se e aparecem nos tribunais em situação de extrema e, por vezes, apaixonada, opinião pessoal. Não devem, então, surpreender o julgador contradições frontais, emoções e aí por diante. IX – A nível factual o cerne do conflito pode-se enunciar do seguinte modo: Foi “cedido” e “aberto” um caminho que passou a utilização comum. Esse caminho, que partia da estrada de ........., chegava ao caminho velho de .......... ou findava ao chegar ao lote dos RR, que assim integrava a parte necessária para se aceder a tal caminho velho? X – 1 O caminho emergiu de acto de loteamento levado a cabo por M.......... (cujos elementos de identificação constam de folhas 29 do procedimento cautelar apenso) dono do prédio onde se inseria o tracto de terreno a ele destinado. Este M.........., conhecido por Q.........., faleceu tempos antes do julgamento. Mas subscreveu a declaração de folhas 30 do mesmo apenso e nele declarou que o caminho se inicia junto ao prédio do restaurante “..........” e “termina junto ao caminho velho de ..........”. Esta declaração, como é evidente, tem regime probatório de apreciação livre pelo tribunal, mas, vinda de quem vem, assume importância a ter em conta por qualquer julgador. Das testemunhas, salientamos – como já salientou o Sr. Juiz – S.......... . Pareceu pelo tom de voz (aliás falando em esforço, por ter um aparelho para poder falar) não estar particularmente “apaixonado” relativamente ao desfecho da acção e foi quem rasgou o caminho, sendo ainda irmão da anterior proprietária da parcela que agora pertence aos réus. São dois referenciais de extrema importância e esta testemunha indicou, mesmo no local, o percurso do caminho (cfr-se folhas 135 verso), incluindo a zona que agora os RR dizem pertencer-lhes. A testemunha T.......... por lá passou muitas vezes porque tinha que andar a conselho médico. Sustentou, peremptoriamente, que o caminho abrangia a zona em litígio. O que foi corroborado, com boas razões de ciência também pelas as testemunhas O........... (que foi o primeiro a construir na zona) e U.......... . Por sua vez, as testemunhas dos AA que estiveram ligadas à Junta de Freguesia (V.........., X......... e Z..........) também revelaram bom conhecimento do que se passou e carrearam factos – ainda que com alguma paixão – que levam à integração no caminho da parte em litígio. X – 2 No outro “prato da balança” temos os depoimentos das testemunhas arroladas pelos RR., com depoimentos antagónicos. Confirma-se bem o que deixámos dito em VIII. XI – Neste quadro probatório, cremos relevar o ficou dito em VI. Contribuindo ainda para o acolher da posição que nos chega da 1ª instância dois factores: Um emergente duma situação de normalidade: como se pode ver da planta de folhas 81 do apenso de procedimento cautelar, justificava-se muito a ligação entre a estrada de ......... e o caminho velho de .........., compreendendo-se muito mal que, aberto tal caminho, pelo menos até ao terreno dos RR, ali findasse, a alguns metros duma ligação que, seguramente, era importante para atalhar percursos, também seguramente, frequentes. Com a procedência da pretensão do J.......... e da mulher, uma grande volta se imporia a quem vivesse junto ao restaurante “..........”, e quisesse alcançar o caminho velho. O outro radica-se no tipo de deslocação habitual das testemunhas que foram ouvidas. De modo tendencial, temos testemunhas dum lado que por ali transitavam a pé (as dos AA) e do outro testemunhas que por lá circulavam de carro (as dos RR). Quanto à circulação automóvel, é evidente que ela cessava onde começava a zona agora em litígio, impondo-se ali uma inversão de marcha. Mas, quanto à circulação a pé, ela continuava, como continuou para o público em geral, nomeadamente para as testemunhas que assim transitavam. Aliás, esta dicotomia, para além da explicação atinente à impossibilidade de continuação do percurso do carro (evidente face ao declive e estado do terreno) terá como razão de ser um previsível desinteresse em alcançar o caminho velho, por este não estar vocacionado para o trânsito automóvel. XII – Do que vimos expondo, resulta que entendemos não alterar a matéria de facto que nos chega. …………………… Podemos, então, passar à subsunção jurídica XIII – À partida temos um tracto de terreno particular que se pretende, na parte relativa ao falado caminho, ter adquirido a natureza de público. A Constituição da República (art.º 84º) refere que pertencem ao domínio público os bens que ali enumera, sendo certo que róis enumerativos se podem também ver, além do mais, na alínea g) do Dl n.º23 565, de 12.2.10934 e no DL n.º477/80, de 15.10. Mas estas enumerações não nos importam, porque reportadas a situações estáticas puramente enunciativas e o nosso caso se prende com uma situação dinâmica, consistente em saber se um tracto de terreno particular passou ou não passou a ter o carácter de público. XIV – Por outro lado, temos, no caso em apreço, duas especificidades, relativamente ao regime geral: Uma emergente de se tratar dum caminho; Outra derivada de estarmos perante um caso de loteamento clandestino. XV – Por se tratar dum caminho, somos conduzidos, em primeira linha ao Assento de 19.4.1989 (D.º da Rep.ª de 2.6.): “São públicos os caminhos que, desde tempos imemoriais, estão no uso directo e imediato do público”. Mas este não nos resolve a nossa questão: O caminho foi aberto há cerca de 28 anos, não tendo sido – porque não existia como tal – objecto do mencionado uso imemorial. De proveitoso para o nosso caso, fica, pois, apenas a discussão que esteve subjacente à mencionada fixação jurisprudencial. Na verdade, tinha-se dividido a Jurisprudência entre a suficiência do aludido uso directo, imediato e imemorial e a necessidade de ter havido apropriação, produção, administração ou jurisdição por pessoa colectiva de direito público. Fica, então, a ideia de que a natureza pública dum caminho pode advir destes actos de apropriação, produção, administração ou jurisdição por parte de pessoa colectiva de direito público. E, efectivamente, assim é. O ingresso de bens no domínio público pode ter lugar nos termos gerais de aquisição da propriedade (contrato, sucessão por morte, usucapião, ocupação, acessão, expropriação, etc – art.ºs 1316º, 1345.º e 1304.º do CC) - Cfr-se Dr. Durval Ferreira, Posse e Usucapião, 113 e Parecer da PGR de 2.5.85, no BMJ 348, 154. XVI – A Junta de Freguesia não adquiriu o terreno, por doação do M......... . Falta, além de mais, a forma necessária para tal acto. Mas o que este fez integra uma cedência de posse do terreno. O que situa a questão na figura da usucapião. Da qual, visto o tempo decorrido, se verificam os respectivos requisitos. XVII – Esta construção não é, porém, assim tão pacífica. É que, na sequência do que deixámos dito em XIV, há o problema do loteamento clandestino. De acordo com os factos provados, o acto de cedência do caminho não deve ser encarado na sua singularidade. Este acto mais não constituiu de que um elemento duma realidade mais vasta, qual seja a do loteamento que o Sousa levou a cabo (vejam-se as alíneas b) e c) da enumeração factual). Pela data do loteamento estávamos em plena vigência do DL n.º289/73, de 6.6. A operação de loteamento estava dependente de licença da Câmara Municipal (art.º 1.º) e, feita à revelia desta, constituía crime (art.º 30.º). Esta criminalização manteve-se em sucessivos Diplomas, até ao DL n.º 559/99, de 16.12. [A autorização legislativa para vir a lume este diploma (Lei n.º90-A/95, de 1.9.) ainda possibilitava a continuação da criminalização] E foi proferida Jurisprudência reiterada no sentido de que os terrenos ilegalmente loteados deviam ser declarados perdidos a favor do Estado. [Cfr-se, a título exemplificativo, os Ac.s da RL de 7.3.84 e de 15.2.84, em www.dgsi] XVIII – Neste quadro, houve entendimentos de que não podia ter lugar qualquer tutela legal relativa à situação emergente de tais actos criminosos, nomeadamente cessão de posse válida e, consequentemente, usucapião (Cfr-se, Ac.s da RL de 18.4.2002, em www.dgsi.pt - Des. João Camilo, de 18.10.2001 na CJ 2001, IV, 121 - Des. Manuela Gomes e de 30.4.2002 também na CJ, XXVII, 2, 126 – Des. Abrantes Geraldes) e, bem assim, Cons. Quirino Soares (CJ STJ, IV, I, 24). Esta posição não era, contudo pacífica. Em sentido contrário temos o Ac.s desta Relação de 4.7.2002 (em www.dgsi.pt - Des. Pinto de Almeida) e Dr. Durval Ferreira (ob. cit., 474), no essencial, com o argumento de que a usucapião determinava o aparecimento dum direito novo, desligado do que se passara anteriormente. Cremos, nós, ressalvada sempre a devida consideração, que esta segunda construção é de preferir. Até porque as razões, muito ponderosas embora, que levaram à primeira das posições se encontram um tanto esbatidas. Não só pela descriminalização levada a cabo pelo já mencionado DL n.º 559/99, mas, essencialmente, pelo conteúdo da Lei n.º91/95, de 2.9.. Logo, na verdade, a designação que preside a esta de “Processo de Reconversão das Áreas Urbanas de Génese Ilegal” revela que o legislador quis optar por um caminho não radical de denegação do que havia sido feito contra a lei, mas de adaptabilidade e de aproveitamento, ainda que, como é evidente, com as condições ali estabelecidas. Depois, o n.º3 do art.º 18.º permite à Câmara Municipal (onde se processa o pedido de reconversão) dispensar a apresentação de projectos de rede viária electricidade e outros, desde que seja reconhecido, pelas entidades gestoras das redes, que as mesmas já existem e estão em condições de funcionamento. Isto depois de se dispor no art.º 6.º, n.º1 sobre a dimensão e aproveitamento das redes existentes. Em terceiro lugar, temos o n.º2 do art.º 45º: Nos prédios submetidos a operação de loteamento ilegal, presume-se que o loteador pretendeu integrar no domínio público municipal as áreas que afectou, além do mais, a infra-estruturas viárias. Este último preceito parece-nos, então, particularmente concludente, porquanto o legislador, não só não impediu a transferência da propriedade para o domínio público municipal, como até estabeleceu uma presunção nesse sentido. Decerto que não estamos a tomar posição sobre se no caso dos autos se seguiu o regime de conversão agora possibilitado pela lei. Estamos apenas a ter estas normas como interpretativas das que vedam ou não vedam a usucapião do caminho em torno do qual gira a problemática do presente caso. XIX – Temos, pois, que, por aqui, não existe impedimento à mencionada figura da usucapião. XX – Nesta conformidade, nega-se provimento ao recurso e confirma-se a decisão recorrida. Custas pelos recorrentes. Porto, 6 de Janeiro de 2005 João Luís Marques Bernardo Gonçalo Xavier Silvano Fernando Manuel Pinto de Almeida |