Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
7798/22.3T8PRT-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ISABEL FERREIRA
Descritores: ARBITRAMENTO DE REPARAÇÃO PROVISÓRIA
LEGITIMIDADE PASSIVA
Nº do Documento: RP202401117798/22.3T8PRT-A.P1
Data do Acordão: 01/11/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGAÇÃO
Indicações Eventuais: 3. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – A providência de arbitramento de reparação provisória é dependência de acção de indemnização fundada em morte ou lesão corporal, nela só podendo figurar como parte passiva quem é parte na acção principal, na qualidade de obrigado a indemnizar.
II – Não sendo admitida a intervenção principal provocada do lado passivo de uma determinada pessoa (na sequência da revogação, em sede de recurso, do despacho que a havia admitido) na acção principal, igualmente não pode ser admitida essa mesma intervenção no procedimento cautelar instaurado como dependência desta acção.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 7798/22.3T8PRT-A.P1
(Comarca do Porto – Juízo Central Cível do Porto – Juiz 6)


Relatora: Isabel Rebelo Ferreira
1ª Adjunta: Isabel Silva
2º Adjunto: João Venade

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Acordam no Tribunal da Relação do Porto:


I AA intentou, em 16/02/2023, no Juízo Central Cível do Porto do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, procedimento cautelar de arbitramento de reparação provisória contra Fundo de Garantia Automóvel e BB, pedindo “o arbitramento de uma quantia mensal nunca inferior a €760,00 a título de reparação provisória pelos danos causados, a pagar solidariamente por ambos os Réus”.
Alegou para tal que, no dia 20/03/2021, ocorreu um embate entre o seu veículo, por si conduzido, e um outro veículo, cuja responsabilidade imputa ao condutor deste último (que, segundo o Doc. 1, para o qual se remete no requerimento inicial, era o 2º requerido), em consequência do qual sofreu vários danos, incluindo lesões que determinam a sua incapacidade para o trabalho desde aquele dia até ao presente, estando a prover ao seu sustento apenas com o subsídio de desemprego, no montante mensal de €576,00, prestação que irá terminar em 27/02/2023, não dispondo de quaisquer bens ou poupanças de que possa lançar mão, tendo despesas com renda de casa, luz, água, alimentação e vestuário e com os tratamentos necessários à sua recuperação. Alegou ainda que o 1º requerido assumiu a responsabilidade pela reparação do acidente (resultando dos Docs. 5 e 6 referidos no requerimento inicial que tal situação decorrerá de o outro veículo interveniente no acidente não ter, à data, seguro válido em vigor).
O 1º requerido deduziu oposição, invocando a sua ilegitimidade, por não ter sido também demandada a proprietária do veículo alegadamente responsável pelo acidente, e impugnando os factos alegados relativamente aos danos sofridos e à situação de necessidade do requerente.
O 2º requerido não deduziu oposição.
Em 17/04/2023 teve início a audiência final, que havia sido designada, na qual foi tentada a conciliação das partes, na sequência do que foi requerida por estas a suspensão da instância por 5 dias, com vista a alcançarem eventual acordo, o que foi deferido.
Após, nesse mesmo dia, o requerente apresentou um requerimento no qual refere que por lapso não intentou também a providência contra a proprietária do veículo, como deveria fazer, atento o disposto no art. 62º, nº 1, do D.L. 291/2007, de 21/08, e requer a intervenção principal provocada da mesma, a sociedade “A..., Lda.”.
Não tendo havido oposição dos requeridos, em 11/05/2023 foi proferido o seguinte despacho:
“Nos termos do artº Artigo 62º, nº 1, do D. L. 291/2007, de 21 de Agosto, as acções destinadas à efectivação da responsabilidade civil decorrente de acidente de viação, quando o responsável seja conhecido e não beneficie de seguro válido e eficaz, são propostas contra o Fundo de Garantia Automóvel e o responsável civil, sob pena de ilegitimidade.
Ora, pese ter sido ultrapassado os prazos de admissão prevista no artº 318º do CPC., certo é que a falta [d]o requerido terá como consequência a absolvição a instância e a necessidade de intentar nova providência contra todos os responsáveis civis, o que constituiria um acto inútil, quando nos presentes autos ainda é possível fazer intervir o proprietário do veículo, sem que o mesmo seja privado dos seus direitos de defesa e de produção de prova.
Assim sendo, ao abrigo do princípio de gestão processual ínsito no artº 630º, nº 2 e 6º do CPC, admite-se a intervenção principal de A..., Ldª.
Custas do incidente a cargo do A./, sem prejuízo do apoio judiciário, fixando-se a taxa de justiça em 4 UCs – artº 527º do Código Processo Civil e artigo 7º, Tabela II, do RCP.
Notifique
Cite nos termos do artº 319º, nº 1, do CPC”.
Citada a interveniente, a mesma apresentou oposição, na qual invoca a inadmissibilidade do seu chamamento, por há muito ter sido ultrapassado o momento processual para o efeito no processo principal e não poder, consequentemente, ser também parte no procedimento cautelar, defende não haver responsabilidade da sua parte por não ter a direcção efectiva do veículo e ter a responsabilidade civil transferida para a companhia de seguros, e impugna os factos invocados no requerimento inicial como fundamento da providência requerida.
Procedeu-se seguidamente a audiência de produção de prova.
Após, foi proferida decisão, em 04/07/2023, na qual se entendeu não ocorrer nenhuma razão superveniente para alterar o despacho que admitiu a intervenção principal provocada e se decidiu condenar solidariamente os requeridos e a interveniente a pagarem ao requerente a quantia mensal de € 760,00.
De tal decisão veio a interveniente interpor recurso, tendo, na sequência da respectiva motivação, apresentado as seguintes conclusões, que se transcrevem:
«I. A Recorrente não se pode conformar com a Douta Sentença proferida.
II - A Recorrente foi chamada aos autos principais, e, consequentemente, aos termos do procedimento cautelar aqui em causa, oito meses após ter sido proferido Despacho Saneador nos autos principais e quando já se encontrava designada data para se proceder a julgamento no presente apenso (procedimento cautelar), não tendo os seus direitos de defesa e impugnação sido salvaguardados, tendo em conta que foi privada de intervir na fase dos articulados e mesmo de se pronunciar sobre o Despacho Saneador.
Face ao exposto,
III - O chamamento da aqui Recorrente aos autos principais, e, consequentemente ao presente procedimento cautelar (apenso) é processualmente inadmissível e nulo, por violação grosseira do artigo 319.º do C.P.C. e do artigo 20.º da C.R.P., devendo a Recorrente ser absolvida do pedido.
Sem prescindir, por mera cautela,
IV - O Requerido BB, condutor do veículo automóvel interveniente no acidente de viação em causa nos autos, impugnou a versão do Requerente e a sua responsabilidade na ocorrência do acidente, bem como os documentos juntos.
V – A Recorrente também impugnou a versão do acidente apresentada pelo Requerente, bem como a documentação junta, não podendo o simples facto do Requerido Fundo de Garantia Automóvel ter assumido responsabilidade pela reparação do acidente, vincular a Recorrente, mas apenas tal Fundo.
VI - A única prova produzida na audiência de julgamento foi o depoimento da esposa do Requerente, CC, conforme ata de julgamento datada de 3 de julho de 2023, tendo tal depoimento 9m e 38s, não tendo esta assistido ao acidente em causa nos autos, nem sequer se pronunciado sobre o mesmo, não existindo qualquer prova de que o Requerente esteja com incapacidade total para o trabalho, uma vez que ainda não teve lugar o exame pericial ao Requerente já decidido nos autos principais, não tendo as lesões sofridas a suscetibilidade de produzir incapacidade total para o trabalho.
Pelo que,
VII - Os factos indiciariamente provados sobre os números 3, 4, 5, 6, 7, 9, 16, 17, 22, 23, 24, 29, 30 e 35 devem ser dados como não provados, por inexistência de prova que os estribe, absolvendo-se a recorrente do pedido.
Sem prescindir, mesmo que assim não fosse,
VIII - O Requerente não alegou que a Recorrente possuía a direção efetiva do veículo aquando do acidente, porquanto o mesmo era utilizado no seu interesse, não tendo tal facto sido sequer alegado, muito menos dado como indiciariamente provado, pelo que sempre teria a Recorrente de ser absolvida do pedido, tendo em conta as regras do ónus da prova.
Sem prescindir, apenas por mera e excessiva cautela,
XIX - Não foi dado como indiciariamente provado que o veículo propriedade da Recorrente não possuía seguro válido e em vigor, apenas tendo sido dado como indiciariamente provado que a companhia de seguros declinou responsabilidade, tendo a Recorrente chamou a companhia de seguros aos autos (autos principais).
Pelo que,
X - Mesmo que se entendesse que a inexistência de seguro (não dada como indiciariamente provada), desobrigava o Requerente de alegar que a Recorrente possuía a direção efetiva do veículo aquando do acidente, porquanto o mesmo era utilizado no seu interesse, entendimento que não se professa ou se subscreve, ainda assim tinha a Recorrente de ser absolvida do pedido.
Em conclusão,
XI - O chamamento aos autos da Recorrente é nulo por violação de normas legais fundamentais, não existe produção de prova que sustente os factos dados como indiciar[ai][ia]mente provados, não se provou que a Recorr[r]ente tivesse a direção efetiva do veículo, pelo que a Recorrente tem necessariam[ne][en]te de ser absolvida do pedido.
XII - Decidindo, como decidiu, a Sentença recorrida, além do mais, violou o disposto nos artigos 607.º do C.P.C., 500.º do Código Civil, 318.º do C.P.C. e 20.º da C.R.P.

TERMOS EM QUE, SE DEVE CONCEDER PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO, E, CONSEQUENTEMENTE, REVOGAR-SE A DOUTA SENTENÇA RECORRIDA NO QUE DIZ RESPEITO À RECORRENTE, E, CONSEQUENTEMENTE ABSOLVENDO-SE A MESMA DO PEDIDO, COM O QUE SE FARÁ
JUSTIÇA».
O requerente apresentou contra-alegações, defendendo que o recurso não merece provimento e deve manter-se a decisão recorrida.
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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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II - Considerando que o objecto do recurso, sem prejuízo de eventuais questões de conhecimento oficioso, é delimitado pelas suas conclusões (cfr. arts. 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do C.P.C.), são as seguintes as questões a tratar:
a) apreciar da admissibilidade da intervenção principal provocada da recorrente;
b) apurar da alteração da matéria de facto indiciada conforme propugnado pela recorrente;
c) averiguar, com base na pretendida alteração da matéria de facto ou independentemente dela, se inexiste fundamento para o decretamento da providência requerida no que à recorrente respeita.
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Vejamos a primeira questão.
Para a sua apreciação, para além da factualidade constante do relatório que antecede, importa ainda ter presente os seguintes factos, retirados da análise do processo principal e do Apenso B (recurso):
1) Em 28/04/2022, AA intentou, no Juízo Central Cível do Porto do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, acção declarativa comum contra Fundo de Garantia Automóvel e BB, pedindo a condenação destes, com vista ao ressarcimento dos danos sofridos com o acidente de viação em causa nos autos:
“a) a pagar ao Autor, a título de indemnização, a quantia líquida de €345.000,000 (trezentos e quarenta e cinco mil euros) acrescida dos juros até efectivo e integral pagamento.
b) a suportar todo o tipo de tratamentos, internamentos, acompanhamento médico e medicamentoso, suportando ainda os custos encargos com intervenções cirúrgicas, internamentos, fisioterapia, psiquiatria, ortopedia, sem prejuízo do valor da perda de retribuição que o Autor irá sofrer, quer no período de clausura hospitalar, quer no período de recuperação, sendo que, por estes danos não poderem ser determinados ou quantificados nesta data, requer-se seja a sua liquidação remetida para execução de sentença”;
2) Em 31/05/2022, o 1º R. apresentou contestação, onde se defendeu por impugnação, não invocando quaisquer excepções, designadamente a da sua ilegitimidade processual;
3) Em 02/06/2022, o 2º R. apresentou contestação, onde igualmente se defendeu por impugnação, não invocando quaisquer excepções;
4) Em 11/10/2022 dispensou-se a realização da audiência prévia, proferiu-se despacho saneador, fixou-se o objecto do litígio e enunciaram-se os temas da prova;
5) O despacho saneador proferido tem o seguinte teor:
“O Tribunal é competente em razão da nacionalidade, da matéria, e da hierarquia.
Não se verifica qualquer nulidade susceptível de anular todo o processado.
As partes possuem personalidade, capacidade judiciárias e são as legítimas.
Não se verifica qualquer excepção, nulidade ou questão prévia de que cumpra conhecer.”;
6) Em 15/11/2022 foi proferido despacho a admitir os meios de prova, incluindo a realização de prova pericial;
7) Em 17/04/2023 o A. apresentou um requerimento no qual refere que por lapso não intentou também a acção contra a proprietária do veículo, como deveria fazer, atento o disposto no art. 62º, nº 1, do D.L. 291/2007, de 21/08, e requer a intervenção principal provocada da mesma, a sociedade “A..., Lda.”.
8) O 2º R. pronunciou-se, em 19/04/2023, defendendo o indeferimento do requerido, “por manifesta extemporaneidade, atenta a fase dos autos”.
9) Em 11/05/2023 foi proferido o seguinte despacho:
“Nos termos do artº Artigo 62º, nº 1, do D. L. 291/2007, de 21 de Agosto, as acções destinadas à efectivação da responsabilidade civil decorrente de acidente de viação, quando o responsável seja conhecido e não beneficie de seguro válido e eficaz, são propostas contra o Fundo de Garantia Automóvel e o responsável civil, sob pena de ilegitimidade.
Ora, pese já se ter sido prolatado despacho saneador, nessa medida ultrapassado os prazos de admissão prevista no artº 318º do CPC., certo é que a falta o requerido terá como consequência a absolvição a instância e a necessidade de intentar nova acção contra todos os responsáveis civis, o que constituiria um acto inútil, quando nos presentes autos ainda é possível fazer intervir o proprietário do veículo, sem que o mesmo seja privado dos seus direitos de defesa e de produção de prova.
Assim sendo, ao abrigo do princípio de gestão processual ínsito no artº 630º, nº 2 e 6º do CPC, admite-se a intervenção principal de A..., Ldª.
Custas do incidente a cargo do A./, sem prejuízo do apoio judiciário, fixando-se a taxa de justiça em 4 UCs – artº 527º do Código Processo Civil e artigo 7º, Tabela II, do RCP.
Notifique
Cite nos termos do artº 319º, nº 1, do CPC”;
10) O 2º R. recorreu desta decisão, em 16/05/2023, pugnando pela revogação da mesma e pelo indeferimento do chamamento;
11) Citada a interveniente, a mesma apresentou contestação em 20/06/2023, defendendo a inadmissibilidade do chamamento, alegando a sua falta de responsabilidade quanto ao ressarcimento dos danos do acidente dos autos e a responsabilidade da companhia de seguros, requerendo a intervenção principal provocada desta, e impugnando os factos alegados na petição inicial;
12) Por despacho de 02/10/2023, e sem qualquer oposição, foi admitida a intervenção principal provocada da companhia de seguros “B..., S.A.”;
13) No âmbito do recurso interposto pelo 2º R. foi proferida decisão singular pelo Tribunal da Relação do Porto, em 12/10/2023, que não foi objecto de qualquer impugnação e já transitada em julgado, na qual se deu provimento ao recurso e se revogou o despacho recorrido, “considerando intempestiva” a dedução do incidente de intervenção principal provocada;
14) Em 16/10/2023, o A. apresentou requerimento com o seguinte teor:
“O Autor foi notificado do Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, o qual decidiu revogar a decisão que admitiu a intervenção principal provocada da sociedade A..., Lda, do qual não pretende recorrer.
Ora, sem a intervenção daquela sociedade existe uma preterição de Litisconsórcio necessário, o que leva necessariamente à absolvição dos Réus da Instância.
O Autor, pretende de imediato dar entrada de outra ação cível, nos mesmos termos da mesma, para evitar qualquer decurso de prescrição.
Pelo que, requer a V. Exa. se digne a reconhecer a exceção [de] dilatória de preterição de litisconsórcio necessário, absolvendo os Réus da Instância, por forma a que o Autor possa de imediato dar entrada de outra ação.”;
15) E em 17/10/2023, o 1º R. apresentou requerimento onde, perante a decisão do Tribunal da Relação do Porto, requer que seja reconhecida a excepção da sua ilegitimidade, absolvendo-se o mesmo da instância;
16) A interveniente Seguradora apresentou contestação, em 31/10/2023, onde invoca que à data do acidente o veículo já não estava segurado na contestante e impugna os factos alegados na petição inicial;
17) Em 02/11/2023 foi proferido o seguinte despacho: “Aguarde-se pelas decisões a proferir pela Relação nos restantes apensos”, sendo que o único recurso pendente é o que agora se aprecia.
Apreciemos então.
De acordo com o disposto no art. 364º, nº 1, do C.P.C., excepto se for decretada a inversão do contencioso, o procedimento cautelar é dependência de uma causa que tenha por fundamento o direito acautelado (sublinhado nosso).
Por seu turno, especificamente no que concerne à providência de arbitramento de reparação provisória, resulta dos arts. 388º, nºs 1 e 2, e 390º, nº 2, do C.P.C., que esta pressupõe a dependência da providência de uma acção de indemnização fundada em morte ou lesão corporal e que o direito a acautelar é o direito da pessoa que assume a qualidade de lesado na acção principal a ser indemnizada pela pessoa que nessa mesma acção assume a qualidade de obrigado a indemnizar.
Não há dúvidas, pois, que o direito a acautelar no procedimento cautelar constitui o fundamento da acção principal (instaurada ou a instaurar), tendo de haver coincidência (em termos jurídicos) entre o direito que se invoca num e noutro dos processos, bem como entre a pessoa do lesado e a pessoa do obrigado à reparação.
Como se diz no Ac. da R.C. de 19/03/2019, publicado em www.dgsi.pt, com o nº de processo 2560/10.9TBPBL-B.C1, “o referido art. 364º, nº 1, consagra as características da instrumentalidade e dependência. O procedimento cautelar surge para servir o fim da acção, e assim a relação entre o processo cautelar e o processo principal (de que aquele depende) é uma relação instrumental”.
Portanto, vistas essas características de instrumentalidade e dependência, verifica-se que no presente procedimento cautelar apenas podem assumir a qualidade de partes (requerente e requeridos) aqueles que são partes na acção principal e que, por esse motivo, podem, a final, vir a ser condenados a indemnizar o lesado.
Se um requerido não é parte na acção principal, o mesmo não poderá ser nesta condenado a indemnizar o lesado, pelo que também não pode ser condenado a reparar provisoriamente o dano, posto que essa reparação nunca poderá passar de provisória a definitiva.
Ora, no caso, tendo sido proferidas duas decisões autónomas (embora na mesma data) de admissão da intervenção principal provocada da ora recorrente, uma na acção principal e outra no procedimento cautelar, verifica-se que a decisão proferida na acção principal foi revogada em recurso, não tendo sido admitida a intervenção da chamada, por decisão já transitada em julgado.
O que significa que, neste momento, a ora recorrente deixou de ser parte na acção principal.
Sendo assim, a mesma também não pode ser parte no procedimento cautelar, posto que não assume a qualidade de obrigada à indemnização, não podendo ser condenada a reparar provisoriamente um dano que não lhe será assacado na acção principal.
Para além de que, se a sua intervenção não foi admitida na acção principal, não pode igualmente sê-lo no procedimento cautelar que é dependência daquela.
Ademais, a falta de oportunidade do chamamento que se detectou na acção principal, conforme aludido na decisão singular do respectivo recurso, igualmente ocorre no presente procedimento, uma vez que a fase dos articulados terminou em 17/04/2023 (data em que se iniciou a audiência final), em conformidade com o disposto nos arts. 385º, nº 2, ex vi do art. 389º, nº 1, e 318º, nº 1, al. a), do C.P.C..
Por conseguinte, não é admissível a intervenção principal provocada da recorrente também no procedimento cautelar, o que tem como consequência a revogação do despacho de 11/05/2023, que a admitiu, e da decisão final de 04/07/2023 no que à recorrente respeita (o objecto do presente recurso, em cujos limites este tribunal de recurso tem de se situar, mantendo-se esta decisão quanto aos dois requeridos, não recorrentes).
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Em face da conclusão a que se chegou no tratamento da primeira questão analisada, é de concluir pela obtenção de provimento do recurso interposto pela interveniente, tornando-se desnecessário apreciar as restantes questões colocadas no recurso.
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III - Por tudo o exposto, acorda-se em conceder provimento ao recurso, revogando-se o despacho de 11/05/2023 e a decisão final de 04/07/2023 no que à recorrente respeita (mantendo-se a mesma quanto aos dois requeridos, não recorrentes), não se admitindo a intervenção principal provocada desta.
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Custas da apelação pelo recorrido, sem prejuízo do benefício do apoio judiciário (art. 527º, nºs 1 e 2, do C.P.C.).
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Notifique.
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Sumário (da exclusiva responsabilidade da relatora - art. 663º, nº 7, do C.P.C.):
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datado e assinado electronicamente

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Porto, 11/01/2024
Isabel Ferreira
Isabel Silva
João Venade