Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0453929
Nº Convencional: JTRP00037092
Relator: CAIMOTO JÁCOME
Descritores: FALÊNCIA
CRÉDITO
SALÁRIO
HIPOTECA VOLUNTÁRIA
HIPOTECA LEGAL
CONSTITUCIONALIDADE
Nº do Documento: RP200407080453929
Data do Acordão: 07/08/2004
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: CONFIRMADA A SENTENÇA.
Área Temática: .
Sumário: I - A declaração de falência faz extinguir os privilégios creditórios das entidades referidas no artigo 152 do Código dos Processos Especiais de Recuperação de Empresas e de Falência, extinção que abrange os créditos da Segurança Social que estejam garantidos por hipoteca legal.
II - Os créditos por salários em atraso dos trabalhadores da falida gozam de prioridade na graduação, relativamente a crédito bancário garantido por hipoteca voluntária.
III - Não viola princípios constitucionais a interpretação do artigo 751 do Código Civil, no sentido de conferir prevalência aos créditos por salários em atraso, relativamente ao crédito bancário que goza de hipoteca, por o direito ao salário dever prevalecer sobre o princípio da segurança do comércio jurídico imobiliário.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO

1- RELATÓRIO

O Banco X.............., S.A, o Banco Y............., S.A, e o Instituto de Gestão Financeira e Segurança Social e Outros, no apenso respectivo do processo de falência nº .../2002, do .. Juízo, do Tribunal Judicial de ............, em que é falida a sociedade comercial "B...................., LDA.", reclamaram a verificação dos seus créditos, nos termos do nº 1, do artº 188º, do Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência (CPEREF), pedindo que sejam reconhecidos ou verificados e graduados no lugar que lhes competir.
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Foi proferido saneador-sentença (artº 200º, do CPEREF), no qual se decidiu:
“Pelo exposto, e reiterando que as custas saem precípuas, declaro reconhecidos os créditos reclamados nos termos supra referidos, e graduo os mesmos da seguinte forma:

* Quanto ao bem imóvel garantido por hipoteca descrito na CRP de ......... sob o Nº .../..... da Freguesia de ............, Concelho de ............:

1º O crédito dos trabalhadores supra identificados.
2º O crédito do Banco Z.........., S.A., até ao valor garantido pela hipoteca.
3º O crédito do Banco X.........., S.A., até ao valor garantido pela hipoteca.
4º O crédito do Banco Y.........., S.A., até ao valor garantido pela hipoteca.
5º O crédito do INETI.
6º Os demais créditos que são comuns.

*Quanto aos bens móveis e imóvel não onerado:

1º O crédito dos trabalhadores supra identificados.
2º O crédito do INETI.
3º Os demais créditos que são comuns.
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Data da falência: 12 de Julho de 2002 (data da declaração da mesma, não existindo elementos que nos permitam fixar data anterior)
Custas pela massa falida”.
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Inconformados, os mencionados reclamantes apelaram da referida decisão, tendo, nas suas alegações, concluído:

Conclusões do Banco X..............., S.A.

1. O crédito do recorrente encontra-se garantido por hipoteca sobre o imóvel da falida, garantia essa que confere ao credor o direito de ser pago pelo valor de certas coisas imóveis ou equiparadas, com preferência sobre os demais credores que não gozem de privilégio especial ou prioridade de registo.
2. Os créditos dos trabalhadores emergentes do contrato de trabalho e sua cessação, gozam de privilégios mobiliários e imobiliários gerais;
3. Os créditos privilegiados mobiliários e imobiliários gerais são incertos e indeterminados, causando incerteza na ordem jurídica existente.
4. Os privilégios mobiliários gerais, não valem contra terceiros que sejam titulares de direitos oponíveis ao credor, não tendo característica de sequela são afastados da categoria de verdadeiras garantias reais, artigo 749º C.C.;
5. Os privilégios imobiliários gerais não são uma figura reconhecida no C.C., porquanto não está expressamente contemplada qualquer regra de prioridade;
6. Por aplicação analógica do artigo 749° C.C., aos privilégios imobiliários gerais, estes apenas têm prioridade, aberto o concurso de credores, relativamente aos créditos comuns.
7. Por razões de direito, garantia e segurança proporcionadas pelo registo, o crédito garantido por hipoteca prevalece relativamente aos créditos privilegiados imobiliários gerais;
8. A Sentença recorrida, por violação do artigo 2° da CRP e decisão contrária ao determinado no AC TC n.º 0363/2002, deve ser alterada, graduando-se o crédito hipotecário, à frente dos créditos privilegiados imobiliários gerais;
9. Foram ainda violados com a decisão recorrida as disposições dos artigos 686° n.º 1 e 749° do Código Civil.

Conclusões do Banco Y............., S.A.

1ª - Os créditos dos trabalhadores da Falida foram graduados à frente do crédito reclamado pelo Recorrente, garantido por hipoteca, pelo facto da sentença recorrida ter entendido que o privilégio imobiliário geral previsto no artº 12º, da Lei nº 17/86, de 14/06, com a redacção dada pela Lei nº 96/2001, de 20/08, prefere à hipoteca, nos termos do artº 751º, do C.Civil.
2ª - Por força da hipoteca constituída a seu favor pela Falida sobre o imóvel descrito na Conservatória do Registo Predial de ......... sob o n° .../..... da freguesia de ......., por escritura pública outorgada em 12.06.1997, no Cartório Notarial de ......., o Recorrente veio reclamar o crédito hipotecário sobre a Falida, no montante de Euros 288.697,70.
3ª - O Tribunal “a quo” não fez correcta interpretação do artº 12° do Lei n° 17/86 com a redacção dada pela Lei n° 96/2001 de 20 de Agosto, e do artº 735° n° 3 do Código Civil.
4ª - O privilégio imobiliário geral contido no artº 12° da citada Lei n° 17/86 e no artº 4° da citada Lei n° 96/2001, constitui uma derrogação do princípio geral consagrado no artº 735° n° 3 do Código Civil, que estabelece que os privilégios imobiliários são sempre especiais.
5ª - As normas referidas em 4ª supra têm de ser consideradas normas excepcionais relativamente ao princípio geral consagrado no citado artº 735° n° 3 do Código Civil.
6ª - As mencionadas Leis nºs 17/86 e 96/01 não regulam o concurso dos privilégios imobiliários gerais por elas criados outros direitos de garantia real, nem regulam a sua relação com os direitos de terceiros.
7ª - Tais questões terão de ser resolvidas com o recurso às normas dos artºs 686°, n° 1 e 751° do Código Civil.
8ª - O artº 748° do Código Civil, para o qual remetem os aludidos artº 12° da Lei n° 17/86 e artº 4° da Lei n° 96/01, regula o concurso de créditos com privilégios imobiliários especiais consagrados nos artºs 743° e 744° do Código Civil.
9ª - O artº 751° do código Civil regula apenas a relação dos privilégios imobiliários especiais com os direitos de terceiros e o seu concurso com as restantes garantias reais.
10ª - Em caso de concurso entre privilégios imobiliários gerais e a hipoteca legalmente constituída e registada, regulará o artº 686° n° 1 do Código Civil.
11ª - A interpretação que a sentença recorrida fez do artº 12º da Lei n° 17/86 e do artº 4º da Lei n° 96/2001, confere a estes privilégios a natureza de uns verdadeiros direitos reais de garantia, munidos de sequela sobre todos os imóveis existentes no património das entidades devedoras dos créditos laborais e atribui-lhes preferência sobre direitos reais de garantia designadamente a hipoteca ainda que anteriormente constituídos.
12ª - Só os créditos municiados desse direito real de garantia atribuídos directamente lei privilégio por especial ou convenção das partes penhor e hipoteca acompanha e persegue a coisa sobre que recaiem e a que estão intimamente ligados prevalecem sobre qualquer outro direito, mesmo que, total ou parcialmente, com ele incompatível.
13ª - Só os privilégios especiais é que constituem, tal como o penhor e a hipoteca, direitos reais de garantia, em contraste com os privilégios gerais privados dessa prerrogativa.
14ª - Os ajuizados privilégios imobiliários gerais, assim interpretados funcionam à margem das regras do registo, uma vez que a ele não estão sujeitos e sacrificam os demais direitos de garantia, previstos no artº 751º do Código Civil, designadamente a hipoteca.
15ª - Tal interpretação está, assim, ferida de inconstitucionalidade por violação dos princípios da segurança jurídica e da confiança do cidadão emanados do princípio do Estado de Direito Democrático, consagrado no artigo 2º da Constituição da República Portuguesa.
16ª - As normas contidas no artº 120 da Lei n° 17/86 e no artº 4º da Lei n° 96/2001, interpretadas como foram na sentença recorrida, no sentido de que os privilégios imobiliários (gerais) nelas contidos preferem à hipoteca, nos termos do artº 751º do Código Civil, estão feridas de inconstitucionalidade material por violação do Estado de Direito Democrático.
17ª - O princípio constitucional da protecção da confiança requer um mínimo de certeza nos direitos das pessoas e nas expectativas que lhes são criadas pelo ordenamento jurídico, e, ao mesmo tempo, censura as afectações, inadmissíveis, arbitrárias e excessivamente onerosas.
18ª - O registo predial tem um escopo prioritário que consiste em dar segurança e protecção aos direitos dos particulares, a fim de evitar ónus ocultos que possam dificultar a constituição e circulação de direitos com eficácia real sobre imóveis.
19ª - Uma vez que os créditos dos trabalhadores da Falida emergentes contrato individual de trabalho não estão sujeitos a registo, o Recorrente que registou o seu privilégio hipotecário vê-se, assim, confrontado com o reconhecimento de créditos que frustra a fiabilidade que o registo predial merece.
20ª - Como não existe qualquer conexão entre o imóvel onerado pela garantia invocada pelo Recorrente e os créditos dos trabalhadores da Falida emergentes de contrato individual de trabalho, que geraram a dívida, a sua subsistência constituiria uma lesão desproporcionada do comércio jurídico.
21ª - O crédito hipotecário do Recorrente terá de ser graduado antes dos reconhecidos créditos laborais dos trabalhadores da Falida.
22ª - A sentença recorrida violou os artºs 686º n° 1, 735° n° 3, 748°, 749°, 751 ° do Código Civil, o artº 2° da Constituição da República Portuguesa, o artº 12° da Lei n° 17/86 e o artº 4° da Lei n° 96/2001.

Conclusões do Instituto de Gestão Financeira e Segurança Social

1. O ora apelante viu o seu crédito graduado como comum através de despacho de verificação e graduação de créditos proferido pelo Tribunal Judicial da Comarca de ........, invocando para o efeito o art.º 152 do C.P.E.R.E.F..
2. Considera o aqui apelante, tal fundamentação legal apenas aplicável aos privilégios creditórios, privilégios estes, que se extinguem passando os respectivos créditos a ser exigidos como comuns, com as limitações decorrentes da parte final do art.º 152º do CPEREF.
3. O IGFSS, Delegação de ............, reclamou os seus créditos no montante de 1.828.393,94 €, sendo 1.069.602,03 €, de contribuições não pagas declaradas nas declarações de remunerações compreendidas entre Abril a Agosto/94 e Outubro /94 a Novembro/2001, 757.258,29 € referente aos respectivos juros de mora vencidos até Julho de 2002, 1.369,29 €, respeitante a juros de mora referentes a contribuições pagas fora do prazo legal e respeitantes aos meses de Novembro/96, Dezembro/96, Outubro/98 e Novembro/98, Fevereiro/99, Março/99 e Dezembro/2000, e 164,33 €, relativo a coima e custas em processos de Contra-Ordenação.
4. O crédito relativo a contribuições e respectivos juros de mora, foi graduado como comum, relativamente ao produto da liquidação o imóvel registado na Conservatória do Registo Predial de ........., com a descrição predial n.º .../....., bem este que faz parte integrante da massa falida, tendo sido constituídas hipotecas legais para garantia de contribuições em divida e respectivos juros de mora, pelas Ap. ../...... e Ap. ../......., sobre o imóvel registado na Conservatória do Registo Predial de ............, Freguesia de .............., com a descrição predial nº .../.....,
5. Com fundamento em que, parafraseando a douta sentença de verificação e graduação de créditos, "se o crédito da Segurança Social garantido por hipoteca legal fosse graduado preferencialmente, e não como credito comum, não faria qualquer sentido o legislador extinguir uns privilégios e deixar outros, seria retirar com uma das mãos o que se dava com outra (...)".
6. "e, certamente, não foi esse o intuito do legislador (…).
7. Está-se apenas perante um caso em que a letra da lei ficou aquém do seu espírito (…).
8. Face a todo o exposto, deverão os créditos (…) da Segurança Social que beneficiam de hipoteca legal, ser graduados como créditos comuns." (sublinhado nosso).
9. Decisão esta, com a qual, não podemos, definitivamente concordar, posto que,
10. O art° 152 do CPEREF, nada dispõe relativamente às hipotecas legais constituídas por quem quer que seja, detendo-se apenas em regulamentar a extinção dos privilégios creditórios do Estado, das autarquias e das instituições de Segurança Social.
11. Ora, se verificarmos o disposto no art° 152, chegamos nitidamente à conclusão de que, os privilégios creditórios, também estes garantias reais consagradas no artº 733 e 744 do Código Civil - cfr. Ac. STA de 4/02/04, processo nº 2078/03- 2.ª Secção - se extinguem passando os respectivos créditos a ser exigidos como comuns, excepção feita aos que se constituem no decorrer do processo de recuperação de empresa ou de falência.
12. Entendendo o Tribunal "a quo" que, o citado art.º 152º, abrange a extinção a hipoteca legal pois, se assim não se entendesse, acabar-se-ia por frustrar a intenção legislativa.
13. No que às hipotecas legais respeita, tais garantias reais, são constituídas para garantir uma obrigação e consequentemente a possibilidade de ser pago pelo valor de certos bens móveis ou imóveis, com preferência sobre os demais credores (conforme artºs 686, 687, 705 e 708 do Código Civil).
14. E, entendemos nós, não se podem englobar no disposto no artº 152 do CPEREF, uma vez que, salvo o devido respeito, nada na lei aplicável se prevê que aquelas se extingam com a declaração de falência.
15. Tal extinção das hipotecas legais seria desvirtuar o instituto prescrito no Código Civil, mais concretamente o disposto no art.ºs 686, 704, 705 e 708.
16. Além de que, salvo melhor opinião não parece que a omissão no art.º 152° CPEREF, seja de todo inócua nem tão pouco se resuma a um mero esquecimento do legislador.
17. Ter-se-á de ponderar o incontornável elemento literal da norma 152.° pois que, sendo diferentes os universos de ambas as garantias - privilégios creditórios e hipoteca legal - apesar de ambas resultarem da lei (cfr. artºs 704°, 705° e 733 e seguintes do CC) se o legislador pretendesse tratá-las da mesma forma (extinguindo ambas as garantias) tê-lo-ia dito expressamente, e não o fez, prevendo apenas a extinção dos privilégios creditórios (com a excepção da parte final do artº 152.°).
18. A lei é bem clara: escreveu-se "privilégios creditórios". É inconcebível que o legislador não distinga privilégio creditório e hipoteca legal.
19. “Tem de presumir-se que o sabe exprimir com correcção - artigo 9.°, n.º 3 do CC - designadamente quando usa expressões da técnica jurídica”. - cfr. Ac. STJ de 3 de Março de 1998, P. 71/98, in BMJ 475 (1998) - pás 548 e sgs..
20. E, sendo assim, se o legislador deixou "no olvido as hipotecas legais, se o legislador" entendeu por bem não se pronunciar" sobre essa "omissão", a interpretação correcta é que estamos perante um "caso não regulado" (intencionalmente), que não um "caso omisso" - por outras palavras, justifica-se concluir que deparamos com um silêncio "eloquente", significativo de que o legislador não quis abranger aquelas garantias (as hipotecas legais), de que as quis excluir da extinção que decretou, em suma, de que quis restringir essa extinção aos privilégios creditórios e só a eles", AC.STJ - Revista n.º 1141/02.
21. E o Tribunal "a quo" graduou como credores privilegiados, (salvo o devido respeito, inclusivamente não respeitando o princípio da prioridade de registo) o Banco Z........., S.A., o Banco X............, S.A. e o Banco Y..........., S.A., uma vez que os seus créditos se encontram garantidos por hipoteca voluntária registada.
22. Neste particular, o Tribunal "a quo" reconheceu as hipotecas constituídas e aplicou o preceituado na lei civil, concretamente o disposto nos artº 686 e seguintes do Código Civil.
24. Sacrificando a segurança social, e, possivelmente, potenciando o favorecimento em relação aos restantes credores.
23. E desprotegeu o crédito da Segurança Social da garantia de que vem acompanhado!
25. O que não se compreende.
26. Considera inconcebível, o aqui apelante, que o legislador não distinga privilégio creditório e hipoteca legal!
27. Pois, de certo que o legislador, apesar de querer incentivar os entes públicos a lutarem também eles pela viabilização das empresas, ponderou as vantagens e inconvenientes de ir mais ou menos longe.
28. Acabou o legislador por se ficar apenas pelos privilégios creditórios. Neste sentido, ver Acórdão do STJ de 3/3/98, Proc. 71/98, publicado in BMJ n.º 475, 548, Acórdão de Revista do STJ nº 558/03 -6a, de 25/03/03, Acórdão de Revista do STJ nº 1141/02 de 18/06/2002 in CJSTJ, X, 2°, pág. 114, Acórdão do ST J de 8/2/2001, Processo 3968/00, Acórdão do STJ de Revista n. 198/03, 2° Secção de 27 de Maio de 2003, Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, apelação n.º 987/02, relativo ao Processo de Falência sob o n.º 157/99, 2° juízo do Tribunal da Comarca de Ílhavo, Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, Apelação n.º 243/02, relativo ao processo de falência sob o n.º 299/2000 do 4.° juízo Cível do Tribunal de Comarca de Santa Maria da Feira.
29. Deste modo, considera o aqui apelante, a decisão do Tribunal "a quo" manifestamente contra legem no qual se admite a extinção das hipotecas legais, válida e regularmente por si constituídas sobre o imóvel da falida.
30. Pelo que, e atendendo à não aplicação do regime do art.º 152 do C.P.E.R.E.F. às hipotecas legais, nos termos expostos, deverá graduar-se as hipotecas legais constituídas pelo ora Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, Delegação de ..........., pelo produto da liquidação do imóvel supra identificado, como crédito privilegiado e,
31. Atendendo ao principio da prioridade do registo, a Ap. ../....., seguida da Ap. ../....., imediatamente após o Banco Y............., S.A., este precedido do Banco X............., S.A, e só depois o Banco Z.........., S.A..
32. Uma vez que Banco X.............., S.A., e o Banco Y............., S.A., têm hipotecas anteriormente registadas e por isso mais antigas que as hipoteca constituídas pelo ora apelante IGFSS, Delegação de ........., de acordo com o estipulado no n.º 1 do art.º 6 do Código do Registo Predial.
33. Integrando, imediatamente a seguir e se necessário o saldo dos restantes créditos comuns, rateadamente, se necessário.
34. É que, no presente caso, extinto o privilégio creditório por força do art° 152 do CPEREF, resta ainda ao apelante, após a diligência de registo, nos termos legais, pelo qual providenciou, como garantia do seu crédito as hipotecas legais.
35. Deve, por isso, ser graduado como privilegiado, em consequência das hipotecas legais registadas que o acompanham garantisticamente, o crédito do apelante relativo a contribuições em débito e respectivos juros de mora respectivamente aos períodos abrangidos pelas referidas hipotecas legais, pelo produto da liquidação do imóvel supra identificado, uma vez que apenas se extinguem os privilégios creditórios de acordo com o art.º 152 do C.P.E.R.E.F..
36. Foram por isso violados os artigos 686.°, 687.°, 705.° e 708.° do Código Civil, uma vez que as hipotecas legais constituídas, tem como finalidade a protecção dos credores hipotecários e a possibilidade de ser pago pelo produto ou valor de certos bens móveis ou imóveis.
37. Bem como foi dada ao art.º 152° do CPEREF uma interpretação manifestamente "contra legem".
38. Proporcionando-se um nítido favorecimento de credores com violação grosseira do princípio de igualdade de tratamento de credores, subjacente ao diploma legal 132/93, de 23 de Abril, com a redacção dada pelo D.L. 315/98, de 20 de Outubro, bem como ainda se encontra violado o principio da prioridade registral consagrado no artº 6.° do Código de Registo Predial.

Houve resposta às alegações, pugnando-se pela manutenção do decidido.
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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

2- FUNDAMENTAÇÃO

2.1- OS FACTOS

Não foi impugnada a matéria de facto dada como provada na 1ª instância (conjunto dos cem (100) créditos reclamados e reconhecidos) que, considerando-se como assente, aqui se dá como reproduzida (artº 713º, nº 6, do CPC).

2.2- 0 DIREITO

O objecto do recurso é determinado pelas conclusões da alegação do recorrente (arts. 684º, nº 3 e 690º, nº 1, do CPC).
No concurso de credores processado por apenso ao mencionado processo de falência, verificados e reconhecidos os créditos reclamados, o julgador a quo graduou-os de acordo com o que entendeu resultar da lei substantiva, nos termos que se deixaram descritos.
As questões suscitadas nas apelações são:
- a aplicação, ou não, do regime do artº 152º, do CPEREF, às hipotecas legais;
- a prevalência, ou não, da hipoteca sobre os privilégios imobiliários gerais relativos aos créditos laborais;
- a inconstitucionalidade da norma da al. b) do n° 1 do artº 12°, da lei 17/86, de 14/06, e da norma do artº 4°, da Lei n° 96/2001, de 20/08, quando interpretadas no sentido de que o privilégio imobiliário geral nelas conferido aos créditos laborais prefere à hipoteca, nos termos do artº 751°, do Código Civil (CC).
Vejamos.
Nos termos do artº 152º, do CPEREF,, "com a declaração de falência extinguem-se imediatamente, passando os respectivos créditos a ser exigidos como créditos comuns, os privilégios creditórios de Estado, autarquias locais e das instituições de segurança social, excepto os que se constituírem no decurso do processo de recuperação da empresa ou da falência" (versão dada pelo DL nº 315/98, de 20/10, ao DL nº 132/93, de 23/04).
Tal como se decidiu na 1ª instância, também se entende que a abolição dos privilégios creditórios resultante do mencionado normativo abrange os créditos da Segurança Social que estejam garantidos por hipoteca legal.
As razões de tal entendimento mostram-se adequada e desenvolvidamente expostas na sentença recorrida, sendo desnecessário repeti-las (ver, além da jurisprudência citada na decisão recorrida, Luís Carvalho Fernandes e João Labareda, CPEREF Anotado, 3ª ed., p. 404, e o Ac. desta Relação de 07/01/2002, Apelação nº 1621/01, 5ª secção, Relator Des. Fonseca Ramos).
No referente à questão da prevalência, ou não, da hipoteca sobre os privilégios imobiliários gerais relativos aos créditos laborais, também damos o nosso apoio ao ajuizado na 1ª instância.
A noção de hipoteca é-nos dada no artº 686º, do CC.
O que seja privilégio creditório diz-nos o artº 733º, do CC.
No artº 735º, nº 3, preceitua-se no sentido de que os privilégios imobiliários são sempre especiais.
Da al. b), do n° 1, do artº 12°, da lei 17/86, de 14/06, e da norma do artº 4°, da Lei n° 96/2001, de 20/08, resulta a constituição de privilégios imobiliários gerais relativamente aos créditos emergentes do contrato de trabalho, embora ao arrepio do regime jurídico geral estabelecido no citado artº 735°, n° 3, do CC.
Estabelece o artº 749º, do CC, que o privilégio geral não vale contra terceiros, titulares de direitos que, recaindo sobre as coisas abrangidas pelo privilégio, sejam oponíveis ao exequente.
Por outro lado, dispõe o artº 751º, do CC, que «Os privilégios imobiliários são oponíveis a terceiros que adquiram o prédio ou um direito real sobre ele, e preferem à consignação de rendimentos, à hipoteca ou ao direito de retenção, ainda que estas garantias sejam anteriores» (redacção anterior à dada pelo DL nº 38/2003, de 08/03, em vigor desde 15/09/2003, acrescentando-se apenas a referência a privilégios imobiliários especiais).
Não se desconhecendo, naturalmente, as divergências existentes na doutrina e na jurisprudência sobre a matéria, entendemos que o regime a aplicar ao privilégio imobiliário geral por créditos laborais em atraso, instituído pelas Leis n°s 17/86, 14/06, e 96/2001, de 20/8, é o previsto no artº 751° do CC.
Na medida em que a questão se mostra proficientemente analisada, passamos a transcrever o que, a propósito, foi ponderado no recente acórdão desta Relação e secção, de 10/05/2004 (apelação nº 719/04-Relator Des. Cunha Barbosa):
“Não há dúvida que os privilégios consagrados no Código Civil são tão só privilégios mobiliários gerais e especiais e os imobiliários especiais – artº 735° do CCivil, pelo que o privilégio imobiliário geral criado, posteriormente, pelas leis n° 17/86, de 14/6 e 96/2001, e relativamente a créditos laborais, constitui uma anomalia face ao sistema jurídico vigente à data da sua introdução, pelo que não podia aquele diploma legal (código civil) prever o regime jurídico da sua oponobilidade a direitos de terceiros, como fez para os privilégios gerais – artº 749° do CCivil e, bem assim, para o privilégio imobiliário – artº 751° do CCivil.
Assim, não prevendo a lei especial (que criou tal privilégio imobiliário geral) o referido regime jurídico, haverá de procurar-se na lei geral (código civil) se dele resulta um regime que se aplique directamente e, para a hipótese de este inexistir, deverá procurar-se nela o regime aplicável que mais se aproxime, tendo em conta o disposto no n° 2 do artº 1° da lei n° 17/86, de 14/86, em que se determina a aplicabilidade da lei geral em tudo o que nela se não encontra especialmente previsto.
Daí que inexistindo um regime jurídico directamente aplicável, como resulta do já supra exposto, ter-se-á que nos resta ou o regime previsto no artº 749° do CCivil, por se tratar de um privilégio geral, ou o previsto no artº 751°, por se tratar de um privilégio imobiliário.
Afigura-se-nos que não poderá deixar de ser o previsto no artº 751º, desde logo, porque face ao objecto do privilégio imobiliário – “imóveis” - é neste que se regula a preferência relativamente a outras garantias susceptíveis de terem como seu objecto um imóvel, constituindo este, por isso, o regime mais próximo.
Acresce que se entende poder afirmar que existe uma particular relação de proximidade entre o objecto da garantia - património do devedor (empresa) - e o crédito em que a prestação laboral que dá origem ao crédito (salário) contribui, se não directamente, pelo menos indirectamente, para a criação e aumento, ou, no mínimo, para a conservação e património (empresarial ou societário), encontrando-se também neste privilégio imobiliário, apesar da sua designação como geral, a especificidade e motivos que justificaram os privilégios imobiliários previstos no Código Civil, admitindo-se que o legislador especial tenha designado aquele privilégio imobiliário como geral por experimentar, face à função e alguma indefinição do património da empresa, dificuldade em o determinar de forma concreta e permanente.
Dir-se-á, ainda, que o disposto no n° 3, al. b) do artº 12° da Lei 17/86, de 14/06, e n° 4, al. b) do artº 4° da lei n° 96/2001, de 20/8, determinam a aplicabilidade do regime previsto no artº 751°, do CCivil, ao privilégio imobiliário por eles criado, na medida em que determina que a graduação do crédito por ele garantido haverá de efectuar-se à frente dos créditos mencionados no artº 748º, do CC e que beneficiam de privilégio imobiliário (especial), sendo que, a entender-se que era inaplicável o regime do artº 751° do CCivil, criar-se-ia um dificuldade de conjugação de tais normativos sempre que houvesse que proceder à graduação de créditos privilegiados e referidos no artº 748° do CCivil, créditos garantidos por hipoteca e créditos por salários em atraso, na medida em que estes cederiam, então, perante a hipoteca e aqueles (do art° 748° do CCivil) teriam de ficar à frente da hipoteca por força do artº 751° do CCivil que não podia deixar de se lhe aplicar, tornando-se plenamente ineficaz (letra morta) a norma contida naqueles artº 12°, n° 3, al. b) da Lei n° 17/86 e 4°, n° 4, al. b) da lei n° 96/2001, relegados que ficariam os créditos por salários em atraso para depois da hipoteca e, por consequência, para depois dos créditos referidos no artº 748° do CCivil, prejudicando ou impedindo a aplicabilidade de tais preceitos legais”.
Em reforço da tese exposta chama-se a atenção para o estatuído no n° 3, do artº 59°, da Constituição da República, e, bem assim, ao disposto no artº 377º, do C. do Trabalho, aprovado pela Lei nº 99/2003, de 27/08 - na qual se revogou, expressa e respectivamente, a Lei n° 17/86 e a Lei n° 96/2001 - que veio a estabelecer, além do mais, que os créditos emergentes do contrato de trabalho e da sua violação ou cessação, pertencentes ao trabalhador, gozam de privilégio imobiliário especial sobre os bens imóveis do empregador nos quais o trabalhador preste a sua actividade (em consonância com a nova redacção dada, pelo citado DL nº 38/2003, de 08/03, ao artº 751º, do CC, bem como com o estatuído no nº 3, do artº 735º, deste diploma legal).
Por fim, no tocante à questão da invocada inconstitucionalidade da norma da al. b) do n° 1 do artº 12°, da Lei 17/86, de 14/06, e do artº 4°, da Lei n° 96/2001, de 20/08, pensamos que a sua interpretação no sentido de que o privilégio imobiliário geral nelas conferido aos créditos laborais prefere à hipoteca, por aplicação do regime do artº 751°, do CC, não incorre em inconstitucionalidade, por violação da aludida disposição da Lei Fundamental (artº 2º) ou do princípio constitucional da protecção da confiança (segurança jurídica).
Citando o acórdão do Tribunal Constitucional n° 498/2003/T. Const. – Proc. n° 317/2002, de 22 de Outubro de 2003, publicado no DR, II Série, n° 2, de 03/01/2004, concluiu-se, no referido acórdão 10/05/2004, que a aplicabilidade de tal regime (artº 751º, do CC) coloca em confronto dois princípios de dimensão constitucional, a saber, o princípio da segurança (no tráfico do comércio jurídico imobiliário) e o principio do direito ao salário pelo trabalhador, devendo prevalecer este por se tratar de um direito de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias.
Assim também nos parece.
Em suma, não se verifica a inconstitucionalidade material apontada pelas recorrentes à decisão recorrida, não merecendo esta censura jurídico-constitucional.
Improcedem, deste modo, as conclusões dos recursos de apelação, devendo manter-se a decisão recorrida.

3- DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedentes as apelações, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas pelas apelantes.
Porto, 8 de Julho de 2004
Manuel José Caimoto Jácome
Carlos Alberto Macedo Domingues
José António Sousa Lameira