Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1878/11.8TAMAI.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MARIA DO CARMO SILVA DIAS
Descritores: INSTRUÇÃO
ARGUIDO
INADMISSIBILIDADE LEGAL DA INSTRUÇÃO
Nº do Documento: RP201401291878/11.8TAMAI.P1
Data do Acordão: 01/29/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A instrução requerida pelo arguido destina-se a comprovar judicialmente a decisão de deduzir acusação (para não ser submetido a julgamento, o que depende da formulação de um juízo negativo que terá por suporte factos e razões alegadas no RAI) exigindo-se, para o efeito, que o requerimento de abertura de instrução (RAI) contenha, ainda que em súmula, as razões de facto e de direito que fundamentam a discordância relativamente à acusação, podendo, se for caso disso, indicar os actos de instrução que pretende que o juiz leve a cabo, os meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e os factos que, através de uns e de outros, espera provar (art. 287º, nº 2, do CPP).
II - As razões de facto e de direito que fundamentam a discordância do arguido, para serem aptas e idóneas à abertura de instrução, têm de estar directamente relacionadas com a acusação contra si proferida e com o inquérito que a sustenta. O que se compreende uma vez que a dedução de acusação (pelo Ministério Público, como neste caso sucede), depende de no inquérito terem sido recolhidos indícios suficientes do acusado ter cometido o crime que nessa peça lhe é imputado (art. 283º, nºs 1 a 3, do CPP).
III - O RAI pode ser rejeitado (nº 3 do art. 287º do CPP) por “Inadmissibilidade legal da instrução”, conceito este que o legislador não define. O facto de indicar alguns casos em que se verifica formalmente essa situação (v.g. quando se está perante uma forma de processo especial, quando a instrução é requerida fora das situações indicadas no art. 287º, nº 1, do CPP), não significa que tal conceito (“inadmissibilidade legal da instrução”) deva ser interpretado de forma restrita ou que tenha de ser restringido a uma visão formal.
IV - A “inadmissibilidade legal da instrução” abrange uma interpretação material, atenta a filosofia subjacente a essa fase preliminar e, por isso, engloba igualmente os casos em que o alegado no requerimento de abertura de instrução não satisfaz as finalidades da instrução, como sucede, por exemplo, quando o RAI é inepto (seja apresentado pelo assistente, seja apresentado pelo arguido).
V - É o que sucede no caso em que o arguido, para além de não ter alegado factos e/ou razões que mostrassem que a acusação fora mal deduzida, esqueceu que a instrução não é um pré-julgamento. Os factos por si alegados, que temporalmente se diz terem ocorrido antes do crime de abuso de confiança qualificado que lhe foi imputado, apenas confirmam a acusação pública e, os alegados, que temporalmente se diz terem ocorrido após o cometimento do mesmo crime, são inócuos, não tendo idoneidade para abalar os pressupostos do crime imputado, cometido anteriormente.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: (proc. n º 1878/11.8TAMAI.P1)
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Acordam, em conferência, os Juízes do Tribunal da Relação do Porto:
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I- RELATÓRIO
1. No processo nº 1878/11.8TAMAI do 1º Juízo de Competência Criminal do Tribunal Judicial da Maia, em 6.6.2013, foi proferida a seguinte decisão (fls. 195 a 207) que rejeitou, por inadmissibilidade legal, o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo arguido B…:
Requerimento de abertura de instrução formulado pelo arguido B… a fls. 174 e ss:
Não se conformando com o despacho de acusação proferido pela Digna Magistrada do MP, no qual se imputa ao arguido a prática de crime de abuso de confiança qualificado pp pelo artº 205, nº 1 e 4, al. a), do Código Penal, o arguido, B…, veio a fls. 174 e ss, requerer abertura de instrução.
Alegou, em suma, que
- Por manifesta impossibilidade financeira da empresa, a sociedade locatária incorreu em incumprimento, não tendo efectuado o pagamento, nas respectivas datas de vencimento, das rendas que se venceram entre Junho e Outubro de 2009.
- Nessa ocasião, o arguido tentou resolver o impasse através da entrega ao Denunciante da retroescavadora em apreço, tendo este manifestado a sua recusa a tal proposta.
- Pelo que, logo que a sociedade locatária logrou reunir algum capital disponível, procedeu ao pagamento das prestações em atraso ao Banco locador e continuou a liquidar as que entretanto se foram vencendo.
- E assim sucedeu até Março de 2010, data do último pagamento efectuado pela sociedade locatária.
- Nessa ocasião, já a sociedade locatária, por intermédio do aqui arguido, havia procedido à venda da retroescavadora em questão, o que sucedeu em Dezembro de 2009.
- Fé-lo, porém, motivado pela asfixia financeira em que se encontrava a sociedade, sem liquidez para proceder ao pagamento de vencimentos em atraso e dos subsídios de Natal desse ano, aos seus funcionários e, bem assim, para pagamento das prestações de uma conta-caucionada que a sociedade locatária detinha noutra instituição bancária.
- E sempre norteado pela ideia de que o bem em causa passaria a integrar, no final do contrato de locação financeira, a esfera patrimonial da sociedade.
- Só assim se concebe que mesmo após a venda do bem a sociedade tenha continuado a liquidar prestações no âmbito do referido contrato, como supra se referiu.
- Acontece que, já em 2010, um credor da sociedade locatária requereu a insolvência desta, a qual veio efectivamente a ser decretada por Sentença proferida no âmbito do Proc. n° 47/10.9TYVNG do 1º Juízo do Tribunal do Comércio de Vila Nova de Gaia;
- Com a declaração de insolvência da sociedade locatária, perdeu definitivamente a expectativa de o bem passar a integrar o património da sociedade.
- O Banco Denunciante procedeu então ao preenchimento da livrança entregue em branco por ocasião da outorga do contrato de locação financeira pelo valor de € 12,848,58;
- Com base na qual instaurou a respectiva acção executiva contra a sociedade locatária e seus sócios-gerentes, enquanto avalistas, entre os quais, o aqui arguido e que corre os seus termos pelo 3º Juizo Civel do Tribunal Judicial de Matosinhos sob o n°1880/11.0TBMTS.
O arguido já assumiu o pagamento integral da quantia exequenda e custas em prestações mensais, por acordo com o Denunciante, que se encontra a cumprir.
- Ao preceder à venda da retroescavadora em apreço, quando se encontram já decorridos cerca de ¾ de execução do contrato, o aqui arguido agiu sem consciência da ilicitude da sua conduta.
- De facto, pese embora soubesse que o referido bem não pertencia á sociedade C…, SA de que era sócio-gerente e que a mesma era mera locatária do bem, a verdade é que o arguido estava plenamente convicto de que o bem viria a integrar o património da empresa no termo do contrato de locação financeira, através do exercício do direito de opção de compra.
- Ao vender o bem em causa, o arguido agiu sem intenção de causar qualquer prejuizo ao Denunciante, ao qual continuou a pagar as prestações relativas ao contrato, enquanto a capacidade financeira da empresa o foi permitindo.
Conclui que não pode o Arguido ser acusado da prática do crime de abuso de confiança, pois ao vender o bem locado agiu na convicção de que o mesmo ingressaria no património da sociedade locatária, além de que o fez movido pela intenção de colmatar a falta de liquidez da empresa que a impossibilitava de cumprir os seus compromissos com funcionários e outras obrigações emergentes.
Nunca foi propósito do arguido prejudicar o Denunciante pois a sua intenção foi sempre a de cumprir o contrato até final, pagando as respectivas prestações e exercendo, afinal, a opção de compra do bem.
Tal desiderato foi, todavia, inviabilizado pelo decretamento da insolvência da sociedade locatária.
Requereu o seu interrogatório e a inquirição de uma testemunha.
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Cumpre proferir despacho liminar, sendo certo que o requerimento só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução – artigo 287º, n.º 3 do Código de Processo Penal.
O tribunal é competente.
O requerimento é tempestivo – artigo 113º do CPP.
O requerente tem legitimidade – artigo 287º, n.º 1, al. a), do CPP.
Importa, agora, apreciar a admissibilidade legal da instrução.
Findo o Inquérito, o Ministério Público proferiu despacho de acusação, imputando ao arguido a prática de crime de abuso de confiança agravado pp pelo artº 205º, nº 1 e 4, al. a) do Código Penal.
O arguido, não se conformando, requereu instrução, com os fundamentos, em suma, supra expostos.
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Apreciemos.
Consigna-se, desde já, que o presente despacho tem por base, em grande parte, os fundamentos expostos pelo Exmo Dr. Pedro Daniel Dos Anjos Frias, in Revista Julgar nº 19 (Jan - abril de 2013) sob o artigo “Um olhar destapado sobre o conceito de inadmissibilidade legal da instrução”.
A instrução, como fase intermédia entre o inquérito e o julgamento «visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento» (art. 286.°, n.º 1 do Código de Processo Penal).
A fase de instrução permite que a actividade levada a cabo pelo Ministério Público durante a fase do inquérito possa ser controlada através de uma comprovação, por via judicial, traduzindo-se essa possibilidade na consagração, no nosso sistema, da estrutura acusatória do processo penal, a qual encontra assento legal no artigo 32.°, n.º 5 da Constituição da República Portuguesa.
Por isso, a actividade processual desenvolvida na instrução é materialmente judicial e não materialmente policial ou de averiguações - Acórdão da Rel. de Lisboa de 12.07.1995, CJ XX-IV-140, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, vol. III, pág. 128.
A instrução «visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento» (art. 286.°, n.º 1, do Código de Processo Penal).
Posto isto, qual é o significado da expressão comunicacional comprovar? Comprovar significa concorrer para provar; corroborar; confirmar; demonstrar; vir corroborar (Vd: «Dicionário da Língua Portuguesa», Porto Porto Editora, 5 edição, pág. 346: «Novo dicionário Lello da Língua Portuguesa», Porto, Lello Editores 1996, pág. 449: «Grande Dicionário da Língua Portuguesa — Cândido de Figueiredo», Lisboa Bertrand Editora, 25. Edição pág. 666)
Assim, a ideia da comprovação pretende referir-se, em um modo de ver dinâmico, à actividade de comprovar propriamente dita e, em um modo de ver estático, ao resultado dessa actividade (de comprovar).
Aqui chegados podemos tentar uma primeira redução compreensiva sobre o “para que serve” a instrução, afinal, um dos âmagos da problemática.
Trata-se de verificar se se confirma (corrobora ou demonstra, etc.) o acerto da decisão de acusar, se esta é, com efeito e passe a expressão, o fruto são de um pomar, se é decorrência dos factos apurados e dos meios de prova recolhidos no inquérito e aí analisados pelo Ministério Público.
De forma apodíctica: trata-se de verificar se se corrobora ser a acusação uma decorrência dos factos apurados e dos meios de prova recolhidos rio inquérito (pressupostos de facto) e se a mesma se incrusta validamente no ordenamento jurídico processual penal (pressupostos de direito).
Desde a entrada em vigor do Código de Processo Penal, seja, desde 1987, se diz abundantemente que a instrução, coma fase facultativa de um determinado processo penal em curso, é um puro «instrumento de controlo” (A expressão é, por último, utilizada por Nuno Brandão, «A Nova Face da Instrução», in RPcc, Ano 18, n. 2 e 3, Abril-Setembro 2008).
Daí que a actividade de comprovação globalmente considerada, em que afinal se traduz a ideia de controla jurisdicional a realizar sobre a decisão do Ministério Pública, não se possa transformar em outra realidade materialmente diversa.
Assim, a comprovação só pode realizar-se sob o horizonte do conjunto de razões de facto e de direito de discordância em relação à decisão do Ministério Público, vertidas no requerimento de abertura de instrução apresentado e a sua finalidade é a realização de um juízo sobre se se verificam os pressupostos legais para a submissão, ou não, da causa, ou uma sua parte, a julgamento, vd. os artigos 286°, n.° 1, 287°, n.°5 1, aI. b), e 2, 288°, n.° 4, e 308°, n.° 1, todos do CPP.
Dos dois pontos anteriores podemos extrair as seguintes proposições preliminares conclusivas:
Primeira: A instrução tem por fim apenas a comprovação judicial da decisão de acusar.
Segue-se daqui que a instrução não pode servir para outra finalidade que não esta, a que a lei lhe determina. Designadamente, não pode ser utilizada para repetir o que na investigação já se efectuou, para a realizar de novo, ou para ensaiar a defesa antecipando o julgamento, etc.
Nenhuma destas realidades respeita o valor semântico do enunciado escolhido pelo legislador e, por sobre tudo, a realidade teleológica que lhe subjaz: comprovar (em face do que já existe).
Segunda: Na instrução a única actividade a desenvolver é a da comprovação judicial e esta tem por objecta, desde logo, o inquérito lato sensu.
Terceira: A comprovação judicial carece de ser despoletada, o que acontece mediante a apresentação do requerimento, onde têm que constar os fundamentos necessários a servir de apoio ou arrimo a essa actividade (as razões de facto e de direito de discordância em relação à decisão do Ministério Público esgrimidas pelo arguido).
Quarta: A instrução configura unicamente um momento de ‘controlo” da conformidade/legalidade da actividade do Ministério Público que culminou com a decisão de acusar e nada mais.
O pressuposto necessário para que o arguido possa requerer a abertura da instrução é que ‘tenha sido objecto de uma acusação, vd. o artigo 287.°, n.° 1, al. a), do CPP.
E por ter sido acusado e entender que não deve ser submetido a julgamento, o arguido irá suscitar a intervenção de um terceiro, o juiz de instrução, o que fará mediante a apresentação de um requerimento onde se contenham as suas razões de discordância, com o objectivo de demonstrar o desacerto da decisão de acusar naquele concreto processo, à luz e por força dos elementos que nele, e nesse momento, então existiam.
Ora, para demonstrar o desacerto da decisão de acusar com que culminou o concreto processo onde foi acusado, o arguido terá que pôr em causa o juízo indiciário determinante do exercício da acção penal, o que fará mediante a apresentação do requerimento que terá de conter uma ou mais razões por onde se vislumbre o desacerto de o sujeitar a julgamento.
O chamamento do juiz de instrução destinar-se-á, como vimos, apenas e tão são, a averiguar (comprovar) se, naquele concreto processo composto pelos mais diversos elementos, se comprova, ou não, o bem fundado (o acerto) do juízo que o Ministério Público efectuou com base nos mesmos e corporizado na decisão de acusar.
A instrução configura, como é sabido, um puro momento de controlo de uma actividade pretérita e depende de um impulso de terceiro — o arguido. Este impulso concretiza-se mediante a apresentação do requerimento de abertura de instrução que não se pode limitar a contestar a acusação mas, ao invés, deve atacar os fundamentos fácticos colhidos no inquérito em que aquela se fundou (i), ou os meios de prova em que tais factos estão arrimados (ii) ou mesmo o procedimento (latu senso) concretamente adoptado pelo Ministério Público ou pelo Assistente que culminou na prolação do despacho de acusação ou na dedução de acusação particular (iii).
Assim, o requerimento do arguido, ainda que não sujeito a formalidades especiais, tem que conter, em ordem às finalidades legais da instrução, desde logo e, ainda que por súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação pública (ou particular)- vd. o n.° 2 do artigo 287 do CPP.
Daí que a discordância não se possa limitar (reduzir) à alegação de, por ex., não serem verdadeiros os factos narrados no libelo. Se assim fosse haveria uma paridade total entre o requerimento para a instrução e a contestação. E qual seria a congruência endoprocessual deste modo de perceber as coisas?
A discordância há-de ser composta por um conjunto de razões vinculadas ao inquérito, que neste ou sobre este se projectem, que desnudem ser desacertada a decisão de acusar tomada com base nos elementos que existiam. Ou, então, se tomada sem determinados elementos, desde que a inexistência destes no processo não se compreenda, ante a sua intrínseca, evidente e notória necessidade, em ordem à decisão a tomar sobre a acusação, tornando a dedução desta, em face de tal omissão e por força desta, incompreensível, indevida, e sempre, em qualquer dos casos, processualmente desalicerçada ou injustificada.
Assim, a discordância relativamente à acusação terá que passar necessariamente e a título meramente exemplificativo por tópicos como estes:
- O que é que não foi feito no inquérito e por causa disso foi deduzida acusação?
- O que se fez no inquérito não basta para deduzir acusação e porquê?
- O que é que foi desatendido no inquérito e por assim ter sido a actividade culminou na dedução de acusação?
- Que meios de prova colhidos no inquérito não foram valorados de todo, ou foram mal valorados e por assim ter ocorrido está o despacho final inquinado?
- Que diligências ou provas deveriam, à evidência, ter sido realizadas ou recolhidas, e por tal não ter sucedido, não espanta que a decisão final fosse de acusar?
- Qual foi o erro de subsunção jurídico-penal da factualidade imputada e quais são as consequências que desse erro se projectam sobre a finalidade intrínseca da instrução requerida pelo arguido, isto é, a sua não submissão a julgamento?
- Quais foram os elementos que o Ministério Público não considerou e de onde resultaria que isto e aquilo não corresponde à verdade?
-Quais foram as diligências que se realizaram e que acabaram desconsideradas, apesar da sua relevância, sem se saber porquê, com a dedução do despacho de acusação?
Etc.
Nisto consistem as razões de facto e/ou de direito a que alude o artigo 287.°, n.° 2, do CPP e que terão que advir da análise que o arguido realize sobrem o conteúdo do inquérito que culminou com a decisão de acusar, isto, obviamente, sem prejuízo das situações verdadeiramente patológicas que corrompam o próprio libelo como, por ex. se os factos aí descritos não constituírem crime.
Razões de facto e de direito de discordância relativamente á decisão de acusar, afinal uma exigência do n.° 2 do artigo 287° do CPP que, sublinhamos, tem consequência(s) directa(s) sobre o conteúdo do requerimento que se apresenta para despoletar a fase da instrução.
Há condições que o requerimento apresentado pelo arguido tem que conter, preencher ou observar para, afinal, ser prestável à funcionalidade a que vem votado.
Tais condições são as razões de facto e de direito de discordância relativamente à decisão de acusar com o recorte e implicações para estas acima referidos, sendo certo que só definidas deste modo podem tais razões de discordância ser aptas a fundar os alicerces em que assentará a actividade de comprovação que se solicita ao juiz, só assim será possível, com efeito, concretizar as finalidades legais da instrução.
É este o critério para sanear as razões, que servem para realizar a comprovação daquelas outras que, servindo para muitas outras coisas, não prestam, de facto, para esse efeito, não têm essa funcionalidade, sequer potencial.
Donde, não valem como repositórios de razões de discordância aqueles requerimentos oferecidos pelo arguido cujo conteúdo consista ou se limite:
— A apresentar uma mera versão ou contraversão factual — ainda que espelho de uma intenção verosímil — totalmente alheada do inquérito, do que neste se passou e da decisão com que o mesmo findou (contestação motivada);
— A repetir ou a completar o inquérito;
— A negar os factos vertidos na acusação pública, como a sua autoria, participação, etc. (simples contestação);
— A invocar factualidade nova trazida para dentro do processo apenas por meio do requerimento para a instrução (aliás, em flagrante violação do principio da lealdade sempre e quando: se garantiu ao arguido a sua audição e este nada disse nesse momento ou posteriormente (i); ou sempre que a existência ou possibilidade de constatação de tal factualidade ‘nova” fosse notória a todas as luzes para qualquer decisor no momento do encerramento do inquérito, ou seja, que com ela pudesse e devesse contar (ii) 1;
— A pretender antecipar a fase do julgamento isto é, a pretender realizar na instrução tudo o que é típico (próprio) do julgamento, transformando-a num simulacro de julgamento;
— A pretender substituir a ideia matriz da comprovação preordenada à submissão ou não a julgamento do arguido por toda uma outra ideia que se concretize em apreciar se o arguido deve ou não ser condenado pelo crime que lhe é imputado.
O objecto da comprovação tem que ser concreta e especificadamente enunciado ou definido no/pelo requerimento do sujeito processual nela interessado, por força da conjugação do n.° 2 do artigo 287.° com o n.° 4 do artigo 288.° ambos do CPP.
Assim, sem inquérito ou sem exposição de razões de discordância com a natureza e recortes definidos obstaculiza-se a concretização da actividade de comprovação judicial da decisão em acusar.
Sublinha-se, de facto, que se a fase da instrução se caracteriza pela actividade de comprovação, se esta, por sua vez, consiste numa actividade de demonstração, de confirmação, atribuída a um terceiro (o juiz) e que tem por objecto o inquérito (como actividade) e o juízo do Ministério Público corporizado na decisão de acusar com que aquele findou, então será mister que o requerimento que se apresenta para abrir esta fase tenha que possuir um conteúdo concreto que se ligue umbilicalmente com o tipo de actividade que se vai desenvolver na instrução e, justamente por isso, se adeqúe às finalidades legais desta.
Do exposto resultam já projecções ou reflexos vários sobre o tipo de razões de discordância relativamente à acusação, a que alude o artigo 287°, n.° 2, e que devem necessariamente constar do conteúdo do requerimento por meio do qual se pretende catalisar a comprovação judicial da decisão de acusar
Serão as razões de discordância vinculada, como as definimos, de facto e/ou de direito relativamente á decisão de acusar.
Daí que, ante a incontestada proibição da prática de actos inúteis, quando nada de relevante em ordem às referidas finalidades se diga no requerimento: para que servirá este?
Para tudo com certeza, mas já não, efectivamente, e de fundo, para verificar se a decisão de acusar, surgiu de modo fáctico e regular como consequência da actividade desenvolvida no inquérito.
De facto, nas situações em que a instrução e impulsionada pelo arguido o requerimento deste, ainda que não sujeito a formalidades especiais, deverá conter em ordem às finalidades da instrução, desde logo e ainda que por súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação publica ou particular.
Logo, um requerimento que se limite a um simples «não fui eu que pratiquei os factos», ou «os artigos tais e tais da acusação são falsos», etc., não traduz a apresentação de razões de facto e de direito de discordância com o juízo realizado pelo Ministério Público vertido na decisão tomada.
Igualmente, um requerimento que se concretize apenas na apresentação de urna versão diversa para os acontecimentos sem estar alicerçada em nada mais, designadamente, em um qualquer aspecto crítico com raízes no inquérito, também não satisfaz as exigências legais.
Relembra-se que o requerimento de abertura de instrução não é idêntico á contestação nem tem igual finalidade.
Em síntese, só mediante um requerimento em que se respeite os conteúdos e limites assinalados pela finalidade legal da instrução se poderá levar a cabo a discussão sobre a actividade do MP corporizada no seu despacho acusatório, ou seja, só assim se poderá realizar a actividade de comprovação judicial da dedução de acusação por parte do MP, ou seja, só assim serão respeitadas as finalidades legais da Instrução.
Ora, nos termos em que o arguido requereu a instrução, com a alegação de factos que, na sua perspectiva, exclui a sua culpa (com invocação do contexto de crise mundial e que agiu sem culpa e sem intenção de se apropriar do IVA não entregue), constata-se que o requerimento apresentado não tem um conteúdo que permita controlar a actividade do Ministério Público ou seja saber se a acusação foi ou não, “o fruto são de um pomar”.
Por meio deste requerimento não se consegue, nem se permite, demonstrar ou concluir, pelo desacerto da decisão de acusar. Quando muito pretende-se contestar os factos vertidos na acusação. Mas nunca poderá ser (ou ter aptidão para constituir) um requerimento idóneo à abertura da fase da instrução.
De facto, um requerimento com um conteúdo deste género é um requerimento que surge totalmente ao arrepio das finalidades legais da instrução, que está em contradição insuperável com as mesmas e, por isso, é imprestável para realizar a actividade típica e única da instrução.
E o mesmo vale para todos os requerimentos que se apresentem fundados apenas em versões diversas dos factos, em negações motivadas, em contestações, claras ou encapotadas, sem nunca olharem criticamente para dentro do inquérito.
Concluindo: Para poder ser o catalisador da fase da instrução, o requerimento apresentado pelo sujeito processual arguido tem que possuir um conteúdo que o comprometa decisiva e inexoravelmente com as finalidades legais da instrução.
Mas e quando assim não seja?
Antecipando, deverá o requerimento ser rejeitado.
Perante um requerimento que não contem os elementos legalmente exigíveis à realização das finalidades legais da instrução (tal como definidas/positivadas pelo Legislador) e que assim não pode endógena e inexoravelmente concretizar a garantia de defesa que a instrução, por sua vez, consubstancia, não deve ser admitido sob pena de irremediável contradição legal.
Não o fazer, isto é, admitir o requerimento e prosseguir por este caminho será dar mais razões às premonitórias palavras do Sr. Prof. Figueiredo Dias, palavras recentes, e que aqui me permito transcrever:
«Continuo todavia a prever o dia em que a instrução será eliminada como fase processual autónoma; (...). Uma tal eliminação será consequência, por uma parte, de o modelo preconizado pelo CPP para esta fase — como simples comprovação por um juiz de instrução da decisão do MP de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito — não ter podido ser até hoje cumprido pela praxis; antes ter sido frequentemente desvirtuado em direcção a um simulacro de julgamento, antecipado e provisório, inadmissível à luz dos princípios gerais e de um mínimo de eficiência, jurídica e socialmente exigível, do processo penal. Distorção que persistiu mesmo depois que a revisão de 1998 tentou, timidamente embora, atalhar a esta perversão. E sem que possa prever-se com fundamento, como também opinou Nuno Brandão, que as alterações agora introduzidas façam esperar que a situação se modifique.» (in DIAS, Jorge de Figueiredo, «Sobre a Revisão de 2007 do Código de Processo Penal Português», Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 18, N.°’. 2 e 3, Abril-Setembro 2008, Coimbra Editora, pág. 376).
Assim, a apresentação de um requerimento para a abertura da instrução, por banda do arguido, cujo conteúdo esteja em contradição com as finalidades legais da instrução, não deve ser admitido por, muito justamente, não permitir a comprovação judicial da decisão de acusar, ou dito por outra forma, tudo o que a extravase ou que contrarie as finalidades da instrução não é instrução. E verdadeiro extraneu em relação a esta.
Esta derradeira afirmação entronca directamente com a problemática das causas de rejeição do requerimento para a abertura da instrução que o legislador definiu no artigo 287°, n.° 3, do CPP, de entre elas, com o conceito de inadmissibilidade legal.
Prescreve o artigo 287°, n.° 3, o seguinte:
«O requerimento só pode sér rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução
No que respeita à inadmissibilidade legal da instrução, que aqui releva apreciar, refira-se aos processos especiais, conforme refere o artº 286º, nº 3, do CPP.
Quando o exercício da acção penal se concretiza na forma de processo comum, o arguido, pode suscitar o controlo desse exercício ao juiz, o que fará mediante a apresentação do requerimento para a abertura da instrução, nos termos do artigo 287°, n.° 1, aI. a), e 2, do CPP.
Porém, quando tal requerimento se apresente, à margem de dúvida, construído de modo irrito para o fim (legal) a que se pode destinar (a não comprovação judicial da decisão de acusar), quando o mesmo não tenha aptidão intrínseca para despoletar e consubstanciar a actividade típica da instrução, não se vê como possa ou deva ser recebido.
Quando tal suceda, não se vê como seja possível considerar tal requerimento legalmente admissível para o desiderato que tem de encerrar sem, do mesmo passo, se esboroarem as finalidades legais da fase da instrução.
Será esta uma patologia reconduzível igualmente à inadmissibilidade legal da instrução, patologia e de génese material.
Esta linha condutora concretizar-se-á em todas aquelas situações em que a instrução não pode desenvolver-se, onde, de facto, a actividade típica da comprovação judicial está impedida á partida por força do concreto conteúdo do requerimento que o arguido apresenta para abrir a fase jurisdicional de instrução.
De facto, quando o requerimento apresentado pelo arguido não contenha um conjunto de razões vinculadas de discordância com raízes no inquérito e no que aí ocorreu fica irremediavelmente impossibilitada a concretização das finalidades legais da instrução.Tal sucederá, como vimos já, seja quando o requerimento se esgota na negação pura e simples dos factos vertidos na acusação (contestação simples), seja quando se resume a uma mera versão ou contraversão factual (contestação motivada), seja quando se limite á alegação de factualidade exógena ou exterior que apenas por meio do requerimento entra no procedimento curso.
É indiscutível na jurisprudência, no que concerne ao requerimento para a abertura da instrução apresentado pelo assistente, a relevância do conteúdo deste em decorrência da parte final do disposto no artigo 287°, n.° 2, do CPP, constituindo causa de rejeição do mesmo, Justamente por inadmissibilidade legal, sempre e quando no concreto conteúdo desse requerimento o assistente não deduza a «acusação alternativa». E a possibilidade da prolação de um despacho de aperfeiçoamento está vedada por força da jurisprudência uniforme constante do Acórdão do Pleno das Secções Criminais do STJ de 12/05/2005, publicado no DR. 1 Série, de 4/11/2005.
Assim, o RAI apresentado pelo arguido que se limita a negar a prática dos factos e a consignar que os factos se terão passado como relatado aquando do seu interrogatório, não se mostra apto á realização das finalidades da instrução.
Ora, nas faz qualquer sentido admitir um requerimento apresentado pelo arguido cujo conteúdo dê azo á prática de actos inúteis, que dê azo a um simulacro de julgamento, que ao fim permita tudo menos aquilo para que foi apresentado: a abertura de instrução com o objectivo de comprovar o “mal” fundado do despacho de acusação.
Assim, se o RAI apresentado pelo arguido não tem aptidão para fundar e firmar as finalidades da instrução, deve ser rejeitado, pois que, o mesmo é dizer, com e em tais condições não pode haver lugar á instrução e esta será legalmente inadmissível.
Temos para nós ser esta a única consequência compatível com a natureza do vício de fundo, de evidente ineptidão, de que padecerá tal requerimento.
Assim se respeitará, de um lado, a natureza da fase da instrução, de outro, a celeridade processual, de outro ainda, a proibição da prática de actos inúteis e, por último, acentuar-se-á o princípio da auto-responsabilização do sujeito processual arguido.
Doutra banda, entendemos que, perante um requerimento com tais patologias de conteúdo, não está em causa a prática de um acto meramente irregular que cumpra ser sanado mediante a prolação de um despacho de aperfeiçoamento. Este tipo de despacho apenas se justificaria para o esclarecimento ou correcção de um ponto ou outro do requerimento, para limar uma qualquer aresta. Já não se justifica aperfeiçoar o que ab initio não tem qualquer prestabilidade para a concretização das finalidades legais da instrução (Também ao assistente, quando apresenta um requerimento em cujo conteúdo não se destrince a «acusação alternativa», é negado, por jurisprudência uniforme, e bem, a possibilidade de aperfeiçoar o mesmo e a consequência é a da sua rejeição por inadmissibilidade legal. Justamente porque a consequência de tal aperfeiçoamento redundaria em novo pedido de abertura da instrução).
Nestes termos e pelos fundamentos expostos, ao abrigo do disposto no art. 287.°, n.ºs 2 e 3, quer porque a instrução é inadmissível, quer por o RAI padecer de ineptidão para os fins da instrução - atentas as disposições conjugadas dos arts. 286º, nº 1 e 287°, n° 2 e 3 ambos do CPP - rejeito tal requerimento.
Sem custas.
Notifique.
Após trânsito, remeta os autos á distribuição.
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2. Não se conformando com essa decisão, recorreu o arguido B… (fls. 232 a 236) apresentando as seguintes conclusões:
i. O requerimento para abertura de instrução só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução.
II. O arguido, ora recorrente, reúne todos os pressupostos e requisitos processuais para requerer a fase processual facultativa da instrução, encontrando-se representado por advogado, tendo legitimidade e apresentando o seu requerimento atempadamente;
III. A rejeição liminar, com fundamento em inadmissibilidade legal, não tem cabimento na previsão do art. 287º, nº 2, do CPP.
IV. Ao ter subsumido o vício que enferma o requerimento de abertura de instrução no conceito de inadmissibilidade legal, sem que este comporte tal interpretação, a decisão recorrida violou o disposto no art. 287º, nº 3 do CPP;
V. Ainda que não se tratasse de irregularidade processual, o artigo 123º do Código de Processo Penal, de acordo com o artigo 508º do Código de Processo Civil aplicável ex vi do artigo 4º do Código de Processo Penal, uma vez que de lacuna se trata, permitia que o fosse proferido despacho de aperfeiçoamento.
VI. Não o tendo feito, foram estes preceitos violados.
Termina pedindo que seja revogada a decisão sob recurso e substituída por outra que admita a abertura de instrução ou, caso assim não se entenda, que convide o arguido a aperfeiçoar o seu requerimento.
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3. Nesta Relação, o Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer (fls. 249 e 250) no sentido da improcedência do recurso.
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4. Foi cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2, do CPP.
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5. Colhidos os vistos legais realizou-se a conferência.
Cumpre, assim, apreciar e decidir.
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II- FUNDAMENTAÇÃO:
O objecto do recurso (neste caso interposto pelo arguido) é demarcado pelo teor das suas conclusões (art. 412º, nº 1, do CPP).
Assim, incumbe a este Tribunal da Relação verificar se o Sr. JI (Juiz de Instrução), em vez de rejeitar o RAI (requerimento de abertura de instrução) apresentado pelo arguido, por inadmissibilidade legal, antes o deveria aceitar, declarando aberta a instrução ou, subsidiariamente, se deveria ter convidado o arguido a aperfeiçoar aquele requerimento (RAI).
Passemos então a apreciar as questões colocadas.
Em traços gerais, começaremos por dizer que, a instrução destina-se, consoante os casos, ou a comprovar judicialmente a decisão de deduzir acusação ou a proceder ao controlo judicial da decisão do MºPº de arquivar, sempre tendo em vista a submissão ou não da causa a julgamento (art. 286º, nº 1, CPP).
Enquanto fase jurisdicional[1] (ainda que facultativa), a instrução compreende a prática dos actos necessários que permitam ao juiz de instrução proferir a decisão final (decisão instrutória) de submeter ou não a causa a julgamento.
A instrução não é um pré-julgamento, nem tão pouco se traduz numa forma de completar a investigação feita no inquérito[2].
Nos termos do nº 2 do art. 287º (requerimento para abertura de instrução), do CPP, “O requerimento não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros, se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto nas alíneas b) e c) do n.º 3 do artigo 283.º Não podem ser indicadas mais de 20 testemunhas.”
A instrução requerida pelo arguido (como é este o caso) destina-se a comprovar judicialmente a decisão de deduzir acusação (para não ser submetido a julgamento[3], o que depende da formulação de um juízo negativo que terá por suporte factos e razões alegadas no RAI) exigindo-se, para o efeito, que o requerimento de abertura de instrução contenha, ainda que em súmula, as razões de facto e de direito que fundamentam a discordância relativamente à acusação, podendo, se for caso disso, indicar os actos de instrução que pretende que o juiz leve a cabo, os meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e os factos que, através de uns e de outros, espera provar.
O requerimento de abertura de instrução apresentado pelo arguido tem de conter no mínimo, mesmo em súmula, as razões da discordância com a decisão de acusar, obviamente considerando o âmbito e as finalidades da instrução (art. 286º, nº 1, do CPP), que é a de o juiz de instrução “comprovar judicialmente a decisão de acusar” (verificar se há indícios suficientes para submeter a causa a julgamento).
Não podendo haver instrução (que é facultativa, dependendo neste caso de requerimento do arguido idóneo para o efeito) sem previamente existir inquérito (excluídos os processos especiais, por aí não ser admissível instrução, conforme o art. 286º, nº 3, do CPP), é lógico que para o juiz de instrução poder “comprovar judicialmente a decisão de acusar” e ter condições de, se for o caso, formular um juízo negativo (como pedido no RAI), o arguido tem previamente de indicar as razões de facto e de direito da sua discordância, quanto àquela acusação contra si deduzida, decisão essa proferida após o encerramento do respectivo inquérito.
Portanto, as razões de facto e de direito que fundamentam a discordância do arguido, para serem aptas e idóneas à abertura de instrução, têm de estar directamente relacionadas com a acusação contra si proferida e com o inquérito que a sustenta.
O que se compreende uma vez que a dedução de acusação pelo Ministério Público, como neste caso sucede, depende de no inquérito terem sido recolhidos indícios suficientes do acusado ter cometido o crime que nessa peça lhe é imputado (art. 283º, nºs 1 a 3, do CPP).
Segundo o nº 3 do art. 287º do CPP, “O requerimento só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução.”
Aqui está em causa a rejeição do requerimento de abertura de instrução por inadmissibilidade legal da instrução.
O legislador não define o que entende por “inadmissibilidade legal da instrução”.
O facto de indicar alguns casos em que se verifica formalmente essa situação (v.g. quando se está perante uma forma de processo especial, quando a instrução é requerida fora das situações indicadas no art. 287º, nº 1, do CPP), não significa que o conceito de “inadmissibilidade legal da instrução” tenha de ser interpretado de forma restrita ou que tenha de ser restringido a uma visão formal.
A “inadmissibilidade legal da instrução” abrange uma interpretação material, atenta a filosofia subjacente a essa fase preliminar e, por isso, engloba igualmente os casos em que o alegado no requerimento de abertura de instrução não satisfaz as finalidades da instrução, como sucede, por exemplo, quando o RAI é inepto (quer seja apresentado pelo assistente, quer seja apresentado pelo arguido).
Com efeito, sabido que o JI está confinado pelo alegado no RAI (art. 288º, nº 4, do CPP), não podendo substituir o sujeito processual que requer a fase de instrução, não se pode exigir a prática de actos de instrução quando o RAI é inepto.
A ineptidão do RAI é um obstáculo à abertura de instrução (por exemplo quando, perante o arquivamento do Ministério Público, o assistente no RAI não apresenta uma acusação alternativa ou quando, perante a acusação do Ministério Público, o arguido no RAI não alega factos ou razões que habilitem o juiz de instrução a, se for o caso, proferir decisão de não submissão da causa a julgamento).
Não é admitida por lei, por ser ilícita, a prática no processo de actos inúteis (cf. art. 137º do CPC vigente à data em que foi proferida a decisão sob recurso - actualmente correspondente ao art. 130º do CPC - aplicável ex vi do art. 4º do CPP).
Por isso se compreende que, sendo o RAI “inepto”, independentemente do sujeito processual com legitimidade para o apresentar, mais não reste ao juiz de instrução do que rejeitá-lo, por inadmissibilidade legal, nos termos do art. 287º, nº 3, do CPP.
Ora, neste caso concreto, o arguido foi acusado da prática de um crime de abuso de confiança qualificado p. e p. no art. 205º, nºs 1 e 4, al. a), do CP, com base nos seguintes factos:
Pelo menos, no período compreendido entre 2004 e Outubro de 2010, o arguido foi sócio gente da sociedade de C…, Lda, com o NIF ………, com sede na …, nº …., sala .., Matosinhos e, nessa qualidade era quem exercia efectivamente as funções de administração de tal sociedade.
Nessa qualidade e, em representação de tal sociedade, em 6 de Fevereiro de 2006, celebrou com o Banco D…, SA, um contrato de locação financeira, com a referência …….., tendo por objecto, entre outra, uma máquina retro escavadora, modelo …, no valor total de 43.521,06.
No âmbito de tal contrato, no mês de Fevereiro de 2006, tal máquina, pertencente ao D…, SA, foi entregue ao arguido e a E…, identificada a fls. 133, na qualidade de representantes legais da sociedade de C…, Lda, pelo prazo de 60 meses.
Nos termos do contrato de locação mencionado, com duração de 60 meses:
- a sociedade de C…, Lda, como locadora[4], não podia ceder a utilização da máquina referida, aliená-la, onerá-la, sublocá-la ou deslocá-la, nem dela dispor por qualquer forma que não a expressamente prevista no contrato, sem autorização do Banco D…, SA, locador e proprietário exclusivo de tal máquina;
- a sociedade de C…, Lda, poderia optar pela compra da máquina até à data do vencimento da última renda do contrato e, caso não exercesse tal opção, no termo do contrato, deveria restituí-la ao D…, SA;
- o D…, SA poderia resolver o contrato, por sua iniciativa, sem qualquer outra formalidade, por carta registada e com aviso de recepção, no caso da sociedade de C…, Lda, não pagar qualquer das rendas.
Todavia, em Junho de 2009, o arguido na qualidade de único gerente de facto da sociedade de C…, Lda, decidiu deixar de efectuar as prestações mensais vencidas a partir de 25 de Junho de 2009 e apoderar-se da máquina mencionada.
O arguido sabia que a referida máquina não lhe pertencia, nem pertencia à sociedade de C…, Lda.
Por carta registada, datada de 27 de Outubro de 2009, o D…, SA, procedeu à resolução do contrato de locação em questão, comunicando à sociedade de C…, Lda que, em virtude da falta de pagamento das rendas de locação financeira vencidas entre 25 de Junho de 2009 e 25 de Outubro de 2009, o contrato ficaria resolvido no prazo de 9 dias a contar da data da recepção de tal carta, caso não fosse efectuado, no prazo de 8 dias, o pagamento dos montantes em dívida, acrescidos de 50%.
O arguido teve conhecimento de tal carta e, não obstante, decidiu não efectuar o pagamento das rendas vencidas, nem restituir a máquina ao D…, SA, mas passar a dispor da mesma como se fosse sua, vendendo-a.
Assim, no dia 4 de Dezembro de 2009, vendeu a máquina mencionada, que se encontrava no estaleiro sito da Rua …, Maia, junto à sua residência, entregando-a pelo preço de € 17.000,00, a pessoa que não foi possível identificar, da área de Penafiel ou Paredes, e que se dedicava à compra e venda de máquinas de construção civil.
O arguido sabia que a referida máquina retro escavadora lhe havia sido entregue com a obrigação de a restituir, caso a sociedade de C…, Lda não optasse pela respectiva compra e que não o fazendo e vendendo-a causava ao D…, SA, um prejuízo, no mínimo, no valor de € 17.000,00.
O arguido quis agir da forma descrita com a intenção de se apoderar da máquina mencionada, contra a vontade do proprietário, passando a dispor dela como se seu dono fosse, vendendo-a e gastando a quantia monetária correspondente ao respectivo preço, como se fosse sua.
Agiu de forma livre e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida por lei.
Essa acusação assenta nos indícios recolhidos durante o inquérito, que foram considerados suficientes.
No entanto, lendo o RAI apresentado pelo arguido (constando do despacho sob recurso o que de essencial foi alegado) logo se verifica que o mesmo não contém as razões de facto e de direito que fundamentam a sua discordância em relação à acusação pública contra si deduzida, susceptíveis de habilitar o Sr. JI a proferir, se for o caso, uma decisão de não pronúncia, como é pretendido.
No RAI, como bem diz o Sr. JI, o arguido alega factos novos, que não decorrem das provas recolhidas em inquérito, contestando o alegado na acusação a partir da versão que ali e naquele momento resolveu apresentar.
Note-se que, em sede de inquérito, em 21.11.2011, o arguido foi interrogado nessa qualidade (fls. 83 e 84), tendo declarado que “não deseja prestar declarações neste momento. Atendendo à complexidade da matéria, compromete-se, num prazo de 30 dias, a juntar aos autos prova documental, bem como esclarecimentos relativamente aos factos pelos quais teve conhecimento agora.
E, o que é certo é que até à dedução da acusação pública (o que sucedeu em 29.4.2013), o arguido não juntou quaisquer documentos, nem prestou esclarecimentos.
Obviamente que o arguido pode exercer o direito ao silêncio e não tem de colaborar com a investigação, ainda que tivesse assumido alguns compromissos na altura do seu interrogatório, no qual foi assistido por um dos advogados por si constituídos, como se verifica da procuração de fls. 77 e de fls. 83 e 84.
Mas, convém igualmente lembrar que o exercício do direito ao silêncio não impede que a autoridade judiciária que preside ao inquérito (Ministério Público) avalie as provas que ali tenha recolhido, quando declara encerrada essa fase preliminar dos autos.
Foi precisamente avaliando as provas recolhidas no inquérito, designadamente a carta de fls. 61 e 62, datada de 6.4.2011, onde o arguido assume ter sido vendida a retroescavadora em questão em 4.12.2009, pelo valor de 17.000,00€[5], “para fazer face a despesas muitíssimo urgentes da empresa (…)”, que o Ministério Público deduziu a respectiva acusação.
Ora, incumbia ao arguido, se pretendia requerer a abertura de instrução para ser recusada a acusação contra si formulada, alegar factos e/ou razões que infirmassem minimamente as provas e indícios recolhidos, o que não fez, como se pode verificar pelo teor do RAI.
Nestes autos o arguido foi acusado de um crime de abuso de confiança qualificado p. e p. no art. 205º, nºs 1 e 4, al. a), do CP.
Como sabido, a apropriação, no crime de abuso de confiança, incide sobre uma coisa entregue licitamente (por titulo não translativo de propriedade) ao agente e, realiza-se, pela inversão do título de posse ou detenção.
O elemento objectivo deste tipo legal de crime traduz-se, assim, em primeiro lugar, no licito recebimento de dinheiro ou outra coisa, por titulo que produza para aquele que recebe, a obrigação de restituir a mesma coisa ou valor equivalente, ou de lhe dar um emprego determinado e, em segundo lugar, na ilegítima apropriação dessa coisa através da inversão do titulo de posse ou detenção, ou seja, no passar o agente a dispor da coisa animo domini.
Verifica-se o elemento subjectivo (dolo) quando o agente, sabendo que o objecto material do crime se encontra em seu poder por título que implica a obrigação de restituir ou apresentar esse objecto, ou o valor equivalente, quer fazê-lo seu, dispondo desse objecto como se fosse o proprietário.
O crime consuma-se quando o agente, que recebe a coisa móvel por título não translativo de propriedade para lhe dar determinado destino, dela se apropria, passando a agir animo domini, entendendo-se a inversão do titulo através da demonstração por actos objectivos, reveladores de que o agente já está a dispor da coisa como se fosse sua[6].
Um dos «actos concludentes» de que se pode deduzir «que o agente inverteu o título de posse e passou a comportar-se perante a coisa como proprietário» é a «disposição [da coisa] de forma injustificada»[7].
A agravação da moldura abstracta desse crime ocorre quando se verificam, também, determinadas circunstâncias qualificativas, designadamente (no que aqui interessa) quando a coisa entregue "é de valor elevado" (art. 205º, nº4, alínea a), do CP).
Tendo presente os pressupostos do crime imputado ao arguido na acusação pública, é manifesto que os factos que o recorrente alegou no RAI não são aptos, nem idóneos a habilitar o Sr. JI a proferir, se fosse o caso, decisão de não submeter a causa a julgamento (finalidade da instrução neste caso requerida pelo arguido, que justificaria e conferia materialidade à intervenção do Sr. Juiz de Instrução), razão pela qual os actos de instrução que indicou (com os quais visava provar os novos factos que alegara) são igualmente irrelevantes para satisfazer as finalidades da instrução.
Mesmo considerando que a instrução pode limitar-se ao debate instrutório, o certo é que neste caso, tal como o arguido configurou o RAI, o Sr. Juiz de Instrução estava confinado a proferir despacho de pronúncia, por os factos que invocou não serem idóneos/aptos para conjecturar sequer uma decisão de não pronúncia.
Ou seja, o alegado no RAI não contraria (não afasta total ou parcialmente), como era mister, os fundamentos que suportam a acusação.
Com efeito, o que consta do RAI apenas confirma a acusação, não evitando o julgamento, o que torna inútil a abertura da instrução e, nessa medida, existe inadmissibilidade legal da instrução, o que é fundamento de rejeição nos termos do art. 287º, nº 3, do CPP.
Concretizando, o alegado nos artigos 5 a 28 (sendo irrelevante o que alega nos artigos 1 a 4) do RAI[8], apenas confirma que o arguido, gerente efectivo da locatária sociedade de C…, Lda, sabia que a retroescavadora em questão era propriedade do D…, SA (portanto não lhe pertencia, quer individualmente, quer enquanto gerente da sociedade locatária) e, apesar disso, inverteu o titulo de posse, dela se apropriando ilegitimamente quando a vendeu a terceiro (em altura em que não estavam pagas todas as prestações em dívida e em que a sociedade que geria não exercera a opção de compra) como se fosse propriedade da locatária, gastando o preço da venda em benefício da sociedade que geria (o que também mostra como foi injustificada a referida venda).
Em Dezembro de 2009 o arguido sabia bem que a locatária que geria detinha precariamente aquela máquina e, apesar disso, dispôs dela (vendendo-a) como se fosse sua propriedade.
Mesmo quando se refere à tentativa de resolver o “impasse” decorrente de a sociedade locatária que geria ter deixado de pagar as rendas vencidas entre Junho e Outubro de 2009, por impossibilidade financeira, propondo-se entregar a retroescavadora em questão ao locador, proposta que não foi aceite, revela que sabia que essa máquina não era dele, nem da sociedade que geria e que conhecia bem a que título a mesma era detida pela locatária, bem como as obrigações que tinha.
O facto de poder ter pago rendas vencidas a partir de Novembro de 2009, sendo certo que procedeu à venda da dita máquina no mês seguinte (em Dezembro de 2009), como refere no RAI, pode indiciar que pretendeu enganar o locador (evitando a apreensão atempada daquela máquina, visto que logo em Dezembro a vendeu por “impossibilidade financeira” da sociedade que geria, impossibilidade esta que não se coloca em causa uma vez que em 2010 - concretamente por sentença de 20.8.2010 - veio aquela sociedade a ser declarada insolvente), mas isso é irrelevante uma vez que o arguido não foi acusado do crime de burla, mas antes do de abuso de confiança.
O que alega quanto a liquidação de prestações no âmbito do dito contrato de locação financeira após a prática do crime, apenas poderá indiciar arrependimento.
Os factos alegados posteriores à venda daquela máquina - v.g. transacção que terá efectuado no âmbito da acção executiva movida pelo banco denunciante contra a sociedade locatária e seus sócios-gerentes - que se relacionam igualmente com a conduta do arguido posterior à prática do crime que lhe foi imputado (e, portanto, não são idóneos para a pretendida recusa da acusação), não tem como consequência “apagar” ou tornar inexistente o crime que anteriormente cometeu.
Note-se, ainda, que a “intenção de causar prejuízo” não faz parte do crime de abuso de confiança que lhe foi imputado, sendo irrelevante a alegação de que agiu sem essa intenção.
Portanto, o que alegou no RAI não permite deduzir que “agiu sem consciência da ilicitude da sua conduta” (artigo 21 do RAI) ou que “estava plenamente convencido de que o bem viria a integrar o património da empresa no termo do contrato de locação financeira, através do exercício do direito de opção de compra” (artigo 23 do RAI) ou que “ao vender o bem em causa o arguido agiu sem intenção de causar qualquer prejuízo ao Denunciante, ao qual continuou a pagar as prestações relativas ao contrato, enquanto a capacidade financeira da empresa foi permitindo” (artigo 24 do RAI), como ali também concluiu, sem fundamento para tanto, considerando o que articulou naquele seu requerimento.
Ou seja, os factos que o arguido alegou no RAI não suportam as deduções que fez nos seus artigos 21, 23 e 24.
Tão pouco o alegado no RAI permitia deduzir que o arguido agiu sem dolo ou que existe qualquer causa de exclusão da culpa ou da ilicitude.
Os factos que alegou (a “manifesta impossibilidade financeira da empresa” que nem lhe permitia pagar os salários em atraso dos empregados e os subsídios de natal, nem as prestações da conta-caucionada) não lhe permitiam sequer ter, em Dezembro de 2009 (altura em que fez a venda, como também alega no RAI), qualquer expectativa séria de a sociedade que geria poder vir a optar (cumprido integralmente o contrato de locação financeira) pela compra da máquina ou que esta iria ingressar no património daquela.
Mas, ainda que tivesse essa expectativa, isso não lhe permitia vender a máquina antes de exercer essa opção, tanto mais que quem a podia vender, em Dezembro de 2009, era apenas o banco denunciante, como o arguido bem sabia quando realizou o negócio da venda daquela retroescavadora que não era sua propriedade e do qual a sociedade que geria era mera locatária (esse acto de venda até pode indiciar a eventual existência de um crime de burla em relação ao terceiro comprador, a menos que este estivesse conluiado com o arguido).
Ou seja, essa alegação é meramente gratuita, sem qualquer relevo no fim pretendido (que é a recusa da acusação).
A motivação que invoca para o seu comportamento (a “intenção de colmatar a falta de liquidez da empresa que a impossibilitava de cumprir os seus compromissos com funcionários e outras obrigações emergentes”) apenas prova que inverteu o título de posse sobre aquela máquina, quando dela se apropriou ilegitimamente, com a venda que concretizou sem autorização ou consentimento da respectiva proprietária.
Portanto, o que sucede neste caso é que o arguido, para além de não ter alegado factos e/ou razões que mostrassem que a acusação fora mal deduzida (e, por isso, não devia ser submetido a julgamento), esqueceu que a instrução não é um pré-julgamento.
Os factos que foram alegados, que temporalmente se diz terem ocorrido antes do crime de abuso de confiança qualificado que lhe foi imputado, apenas confirmam a acusação pública e, os que foram alegados, que temporalmente se diz terem ocorrido após o cometimento do mesmo crime, são inócuos, uma vez que não tem idoneidade para abalar os pressupostos do crime imputado, cometido anteriormente.
Portanto, tendo em atenção o alegado no RAI só podia ser confirmada a decisão de deduzir acusação, o que evidencia que aquela peça é inepta e não satisfaz as finalidades da instrução (já que o Sr. JI apenas podia proferir despacho de pronúncia, quando é certo que, sendo o arguido a requerer a instrução, como aqui sucede, a finalidade da instrução era, como consta do RAI, a “recusa da acusação, tal como está formulada” e, portanto, a não submissão da causa a julgamento).
Sendo o objecto da instrução a acusação, não pode a mesma ser aberta quando o arguido não alega factos e/ou razões aptos e idóneos a “recusar” a mesma acusação, como neste caso pretendia[9].
O que aqui está em causa não é a mera má técnica na elaboração do RAI, mas antes a falta de alegação de factos e/ou razões aptos ao pedido de “recusa da acusação”, falta de alegação essa que não pode ser colmatada pelo JI pelos motivos acima indicados, nem pode ser suprida com a apresentação de novo RAI que necessariamente dava entrada no tribunal fora do prazo estabelecido na lei (o que não pode ser).
O mesmo se passa quando a abertura de instrução é requerida pelo assistente, perante o arquivamento do Ministério Público por crimes públicos ou semi-públicos; nesses casos, sem o assistente apresentar uma “acusação alternativa” (onde alegue os factos integradores do tipo objectivo e do tipo subjectivo do crime a imputar) no RAI, também o mesmo tem de ser rejeitado por “inadmissibilidade legal”.
Nem se diga que é colocado em causa o princípio do contraditório, porque por um lado o arguido teve a possibilidade de o exercer, inclusive em fase de inquérito (quer quando foi interrogado, quer ao abrigo do art. 61º, nº nº1, al. g), do CPP, sendo certo que neste caso o inquérito até era público), sendo da sua responsabilidade o facto de não ter sabido articular o RAI, para a pretendida recusa da acusação e, por outro lado, esse direito pode ser usado de forma plena na fase do julgamento.
Também não há lugar a “convite para aperfeiçoar o requerimento da abertura de instrução”, desde logo porque tal solução afronta o prazo peremptório previsto no art. 287º, nº 1, do CPP.
Por Acórdão do STJ nº 7/2005 (DR I-A de 4.11.2005), foi fixada jurisprudência nos termos seguintes: «Não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, apresentado nos termos do artigo 287.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido.».
A argumentação aí desenvolvida é também aplicável, com as devidas adaptações, quando o RAI é apresentado pelo arguido.
Em resumo, entende-se que, a regra civilista do convite à correcção (ao aperfeiçoamento) do requerimento deficiente (v.g. art. 508º do CPC) não tem aplicação no processo penal.
Neste caso, sendo o RAI apresentado inócuo, como se explicou, é manifesto que não há lugar a qualquer convite ao aperfeiçoamento dessa peça.
De resto, não se verificando qualquer irregularidade de conhecimento oficioso do tribunal da 1ª instância (cf. art. 123º do CPP), nem sendo aqui aplicável (sequer por recurso ao art. 4º do CPP) o disposto no art. 508º do CPC, também não foram violados os preceitos legais invocados pelo recorrente.
Assim, perante o teor do RAI apresentado pelo arguido, tendo em vista o disposto no art. 287º, nºs 2 e 3 do CPP, impunha-se a sua rejeição, por inadmissibilidade legal da instrução.
Por isso, sem necessidade de mais dilatadas considerações, conclui-se pela improcedência do recurso aqui em apreço, mantendo-se a decisão recorrida, sendo certo que não foram violados os princípios e/ou preceitos legais invocados pelo recorrente.
*
III- DECISÃO
Em face do exposto, acordam os Juízes desta Relação em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido B….
Pela improcedência, vai o recorrente condenado em 4 UCs de taxa de justiça.
*
(Processado em computador e revisto pela 1ª signatária. O verso das folhas encontra-se em branco – art. 94º, nº 2, do CPP)
*
Porto, 29-1-2014
Maria do Carmo Silva Dias (relatora)
Ernesto Nascimento (Adjunto)
__________________
[1] Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, Editorial Verbo, 1994, p. 128, citando Jorge Figueiredo Dias, “Sobre os sujeitos processuais no novo Código de Processo Penal”, in Jornadas de Direito Processual Penal, O Novo Código de Processo Penal, Almedina, 1988, p. 16, refere: “A actividade processual desenvolvida na instrução é, por isso, materialmente judicial e não materialmente policial ou de averiguações”. Por isso, é comum afirmar-se que a instrução não é um complemento da investigação feita em inquérito.
[2] Assim, entre outros, Ac. do TC nº 459/2000, DR II de 11/12/2000.
[3] O que não significa, nem equivale a qualquer direito de não ser submetido a julgamento, tal como resulta do decidido no Ac. do TC nº 551/98.
[4] Manifesto lapso de escrita uma vez que se quis antes dizer “locatária”.
[5] Consta dessa carta de fls. 61 e 62, datada de 6.4.2011, assinada pelo arguido e dirigida ao Administrador de Insolvência, que foi vendida a retro escavadora em questão em 4.12.2009, pelo valor de 17.000,00€, “para fazer face a despesas muitíssimo urgentes da empresa, as quais passo a descrever a justificar.
Liquidação de Salários e Subsídios de Férias e de Natal em atraso aos nossos funcionários, (…)
Com a verba obtida da comercialização da segunda retroescavadora foi ainda liquidada as seguintes dívidas da empresa C…, Lda:
Avenças em atraso aos Mandatários da C…, Lda.
Pagamento de Taxas de Justiça dos processos judiciais;
Despesas com agua e luz dos N/ escritórios;
A venda da segunda retroescavadora foi um acto realizado de forma perfeitamente consciente pela parte do Gerente da C…, Lda, com o único objectivo de garantir um bem-estar durante o período natalício de 2009 aos ainda funcionários da nossa empresa.
Importante será ainda de salientar que a venda da segunda retroescavadora era a única forma possível de angariação de verbas para a nossa empresa. (…)”.
[6] Cf., entre outros, Ac. STJ de 20/1, 26/5 de 1965 e 8/11/1967, in respectivamente BMJ nºs 143/113, 147/123, 171/215 e Ac. de 12/1/1994 in CJ de Acordãos do STJ 1994, I, 195.
[7] Comentário Conimbricense, Tomo II, p. 104.
[8] Consta do RAI junto a fls. 174 a 180 o seguinte:
1. Nos termos da lei – artigo 286º nº 1 do Código de Processo Penal – a Instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação, em ordem – no caso vertente – a não submeter a causa a julgamento.
2. E, no respectivo requerimento, além do mais, devem ser indicadas as razões, de facto e de direito, de discordância relativamente à acusação (CPP, art. 287º, nº 2).
3. No despacho de acusação elaborado pelo Ilustre Procurador Adjunto vem o Arguido acusado de um crime de abuso de confiança qualificado, previsto e punível pelo artigo 205º, nºs 1 e 4, al. a) do Código Penal.
4. Diz o referenciado normativo legal:
“1. Quem ilegitimamente se apropriar de coisa móvel alheia que lhe tenha sido entregue por título não translativo de propriedade é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.
(…)
4. Se a coisa referida no nº 1 for:
a) De valor elevado, o agente é punido com pena de prisão até cinco anos ou com pena de multa até 600 dias.”
5. Ora, in casu, a coisa móvel em apreço é uma retroescavadora que foi entregue à sociedade C…, Ldª, da qual, o aqui arguido foi sempre sócio-gerente mediante a outorga de um contrato de locação financeira com o denunciante Banco D….
6. O aludido contrato financeiro foi celebrado em 06.02.2006 e pelo prazo de 60 meses, com opção de compra no termo do contrato.
7. E, efectivamente, entre Fevereiro de 2006 e Maio de 2009, a sociedade C…, Ldª cumpriu pontualmente o pagamento das prestações referentes ao contrato em apreço.
8. Por manifesta impossibilidade financeira da empresa, a sociedade locatária incorreu em incumprimento, não tendo efectuado o pagamento, nas respectivas datas de vencimento, das rendas que se venceram entre Junho e Outubro de 2009.
9. Nessa ocasião, o arguido tentou resolver o impasse através da entrega ao Denunciante da retroescavadora em apreço, tendo este manifestado a sua recusa a tal proposta.
10. Pelo que, logo que a sociedade locatária logrou reunir algum capital disponível, procedeu ao pagamento das prestações em atraso ao Banco locador e continuou a liquidar as que entretanto se foram vencendo.
11. E assim sucedeu até Março de 2010, data do último pagamento efectuado pela sociedade locatária.
12. Nessa ocasião, já a sociedade locatária, por intermédio do aqui arguido, havia procedido à venda da retroescavadora em questão, o que sucedeu em Dezembro de 2009.
13. Fê-lo, porém, motivado pela asfixia financeira em que se encontrava a sociedade, sem liquidez para proceder ao pagamento de vencimentos em atraso e dos subsídios de Natal desse ano, aos seus funcionários e, bem assim, para pagamento das prestações de uma conta-caucionada que a sociedade locatária detinha noutra instituição bancária.
14. E sempre norteado pela ideia de que o bem em causa passaria a integrar, no final do contrato de locação financeira, a esfera patrimonial da sociedade.
15. Só assim se concebe que mesmo após a venda do bem a sociedade tenha continuado a liquidar prestações no âmbito do referido contrato, como supra se referiu.
16. Acontece que, já em 2010, um credor da sociedade locatária requereu a insolvência desta, a qual veio efectivamente a ser decretada por Sentença proferida no âmbito do Proc. n° 47/10.9TYVNG do 1º Juízo do Tribunal do Comércio de Vila Nova de Gaia – cfr. doc. 1.
17. Com a declaração de insolvência da sociedade locatária, o aqui arguido perdeu definitivamente a expectativa de o bem passar a integrar o património da sociedade.
18. O Banco Denunciante procedeu então ao preenchimento da livrança entregue em branco por ocasião da outorga do contrato de locação financeira pelo valor de € 12,848,58 (cfr. doc. 2).
19. Com base na qual instaurou a respectiva acção executiva contra a sociedade locatária e seus sócios-gerentes, enquanto avalistas, entre os quais, o aqui arguido e que corre os seus termos pelo 3º Juízo Civel do Tribunal Judicial de Matosinhos sob o n°1880/11.0TBMTS.
20. Importa notar que o aqui arguido assumiu já o pagamento integral da quantia exequenda e custas em prestações mensais, por acordo com o Denunciante, ali executado, que se encontra a cumprir.
Aqui chegados,
21. Ao preceder à venda da retroescavadora em apreço, quando se encontram já decorridos cerca de ¾ de execução do contrato, o aqui arguido agiu sem consciência da ilicitude da sua conduta.
22. De facto, pese embora soubesse que o referido bem não pertencia á sociedade C…, SA de que era sócio-gerente e que a mesma era mera locatária do bem,
23. a verdade é que o arguido estava plenamente convicto de que o bem viria a integrar o património da empresa no termo do contrato de locação financeira, através do exercício do direito de opção de compra.
24. Ao vender o bem em causa, o arguido agiu sem intenção de causar qualquer prejuízo ao Denunciante, ao qual continuou a pagar as prestações relativas ao contrato, enquanto a capacidade financeira da empresa o foi permitindo.
25. Pelo exposto, não pode o Arguido ser acusado da prática do crime de abuso de confiança, pois ao vender o bem locado agiu na convicção de que o mesmo ingressaria no património da sociedade locatária,
26. além de que o fez movido pela intenção de colmatar a falta de liquidez da empresa que a impossibilitava de cumprir os seus compromissos com funcionários e outras obrigações emergentes.
27. Outrossim, nunca foi propósito do arguido prejudicar o Denunciante pois a sua intenção foi sempre a de cumprir o contrato até final, pagando as respectivas prestações e exercendo, a final, a opção de compra do bem.
28. Tal desiderato foi, todavia, inviabilizado pelo decretamento da insolvência da sociedade locatária, como supra se fez notar.
Nestes termos, e nos melhores de direito, requer a V. Exª, se digne declarar aberta a instrução, nos termos do artigo 287º nº 1 a), nº 2, nº 3 e nº 5 do Código de Processo penal, com a produção da prova doravante requerida e demais diligências que entenda convenientes, em ordem à recusa da acusação, tal como está formulada.
Termos em que se requer a V. Exª. se digne ordenar a realização das seguintes diligências de prova:
I- Interrogatório do arguido à matéria alegada no presente requerimento.
II- Inquirição como testemunha de F…, residente na Rua …, …, …, Maia.
Junta: dois documentos e duplicados legais.
[9] A jurisprudência que invocou em sede de recurso relaciona-se com casos distintos do aqui em apreço.