Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
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| Nº Convencional: | JTRP000 | ||
| Relator: | JUDITE PIRES | ||
| Descritores: | AÇÃO PARA EFETIVAÇÃO DE RESPONSABILIDADE CIVIL LESADO INSOLVENTE COMPETÊNCIA MATERIAL DO TRIBUNAL JUÍZOS CÍVEIS JUÍZO DE COMÉRCIO | ||
| Nº do Documento: | RP202411079243/23.8T8PRT.P1 | ||
| Data do Acordão: | 11/07/2024 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
| Decisão: | REVOGADA | ||
| Indicações Eventuais: | 3ª SECÇÃO | ||
| Área Temática: | . | ||
| Sumário: | I - A competência, como medida de jurisdição atribuída a cada tribunal para conhecer de determinada questão a ele submetida, e enquanto pressuposto processual, determina-se pelos termos em que a acção é proposta, isto é, pela causa de pedir e pedido respectivos. II - Para uma acção destinada a efectivar a responsabilidade civil de terceiros por alegados danos causados a empresa declarada insolvente são materialmente competentes os juízos cíveis e não o juízo de comércio onde foi proferida a sentença de insolvência. III - Tal acção tem tramitação autónoma, não correndo termos por apenso ao processo de insolvência. | ||
| Reclamações: | |||
| Decisão Texto Integral: | Processo n.º 9243/23.8T8PRT.P1
Tribunal Judicial da Comarca do Porto Juízo Central Cível do Porto – Juiz 1
Acordam no Tribunal da Relação do Porto:
I. RELATÓRIO. Massa Insolvente de A..., S.A., representada pelo seu Administrador Judicial, propôs acção declarativa de condenação, sob a forma comum contra: 1.º - AA, M.I. Advogado com a C.P. ......, com domicílio profissional na Rua ..., ..., ... PORTO; 2.º - BB, M.I. Advogado com a C.P. ......, com domicílio profissional na Rua ..., ..., ... PORTO; e 3.º - CC, com o NIF......, residente na Rua ..., ..., ... ..., pedindo, com fundamento na responsabilidade civil por factos ilícitos, a condenação dos Réus a indemnizarem a Autora pelos danos que causaram à mesma, em quantia não inferior a € 76.599,00, além de juros vencidos e vincendos. Na sua contestação, excepcionaram os Réus a incompetência material do Juízo Central Cível do Porto, onde a acção foi proposta, pedindo que seja esta remetida ao Tribunal Judicial da Comarca do Porto – Juízo de Comércio de Santo Tirso – Juiz 4, por ser este o tribunal materialmente competente, e ser apensada ao processo de insolvência que nesse tribunal corre termos com o n.º 947/20.8T8STS. A Autora pugnou pela competência do tribunal onde foi proposta a acção, invocando a decisão de 8 de Maio de 2023, proferida pelo Juiz 4 do Juízo de Comércio de Santo Tirso que se considerou incompetente em razão da matéria, indeferindo liminarmente a petição. Foi proferida decisão que, julgando procedente a arguida excepção de incompetência absoluta em razão da matéria, absolveu os Réus da instância. Não se conformando a Autora com tal decisão, dela interpôs recurso de apelação para esta Relação, formulando com as suas alegações as seguintes conclusões: “I. A competência material do Tribunal, afere-se pelo pedido e causa de pedir, nos termos em que são configurados pelo Autor. II. A causa de pedir e pedido formulados nos presentes autos, ainda que pareçam enquadráveis na previsão do artigo 83.º n.º 3 do CIRE, estão fora do elenco de competências definidas pelo artigo 128.º da LOSJ, pelo que a sua apreciação não poderá ser submetida a tribunal de competência especializada de comércio, conforme decidido pelo Juiz 4 dos Juízo de Comércio de Santo Tirso no proc. n.º 947/20.8T8STS-H. III. O Tribunal competente, consequentemente, será o Tribunal Judicial de competência genérica cível, sendo o Tribunal territorialmente competente, o Juízo Central Cível do Porto, nos termos dos artigos 64.º e 71.º do CPC e artigo 117.º da LOSJ IV. A decisão recorrida viola os artigos 64.º e 71.º do CPC, artigos 117.º e 128.º da LOSJ, e faz uma errada interpretação do artigo 83.º do CIRE. Nestes termos e nos melhores de direito, que o douto suprimento de Vs. Exas. acolherão, deverá ser dado provimento ao presente recurso e, em consequência, ser julgado competente o Tribunal Recorrido, pois assim se fará inteira e já acostumada JUSTIÇA”. Os recorridos AA e CC apresentaram contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso. Colhidos os vistos, cumpre apreciar.
II.OBJECTO DO RECURSO. 1. Sendo o objecto do recurso definido pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pela recorrente e as que forem de conhecimento oficioso, sem prejuízo daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras, importando destacar, todavia, que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito. 2. Considerando, deste modo, a delimitação que decorre das conclusões formuladas pela recorrente, no caso dos autos cumprirá apreciar se é ou não o tribunal recorrido o competente, em razão da matéria, para apreciar e decidir o litígio.
III. FUNDAMENTOS DE FACTO. As incidências processuais relevantes ao conhecimento do objecto do recurso são as narradas no relatório introdutório.
IV. FUNDAMENTOS DE DIREITO. A competência, como medida de jurisdição atribuída a cada tribunal para conhecer de determinada questão a ele submetida, e enquanto pressuposto processual, determina-se pelos termos em que a acção é proposta, isto é, pela causa de pedir e pedido respectivos[1]. A competência em razão da matéria determina-se pela natureza da relação material controvertida, tal como é configurada pelo autor, independentemente do seu mérito ou demérito. A competência material, afere-se, pois, em função da forma como o autor configura e estrutura a acção, analisando o pedido e a factualidade concreta que lhe serve de fundamento (causa de pedir). De acordo com o artigo 211.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais. E o artigo 64.º do novo Código de Processo Civil determina que “são da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional”. De acordo com os artigos 81.º e 130.º da LOSJ, aprovada pela Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto, os tribunais de comarca desdobram-se em juízos de competência especializada, de competência genérica e de proximidade, prevendo-se em relação à primeira dessas categorias a criação de juízos de competência especializada nas áreas cível, criminal, de instrução criminal, de família e menores, de trabalho, de comércio e de execução, podendo ainda serem criados juízos de competência especializada mista. Do exposto emerge que no âmbito dos tribunais judiciais de 1.ª instância, em sede de competência em razão da matéria, a ponderação a fazer decorre da existência de juízos (centrais) de competência especializada no confronto com os juízos locais ou juízos de competência genérica, sendo que, em consonância com o estatuído no n.º 2 do artigo 40.º da LOSJ, a competência material dos juízos (centrais) de competência especializada é aquela que for expressamente definida pela respectiva norma atributiva de competência, enquanto, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 130.º do mesmo diploma legal, a competência dos juízos locais (ou dos juízos de competência genérica) assume caráter residual. Por conseguinte, a regra geral a atender, que sobressai dos citados preceitos legais, é a de que a competência ratione materiae só deixa de pertencer aos juízos locais (ou aos juízos de competência genérica) se tal competência for especialmente atribuída pela LOSJ a certo e determinado juízo (central) de competência especializada. No que especialmente respeita à competência dos juízos de comércio, determina o artigo 128.º da LOSJ: «1 - Compete aos juízos de comércio preparar e julgar: a) Os processos de insolvência e os processos especiais de revitalização; b) As ações de declaração de inexistência, nulidade e anulação do contrato de sociedade; c) As ações relativas ao exercício de direitos sociais; d) As ações de suspensão e de anulação de deliberações sociais; e) As ações de liquidação judicial de sociedades; f) As ações de dissolução de sociedade anónima europeia; g) As ações de dissolução de sociedades gestoras de participações sociais; h) As ações a que se refere o Código do Registo Comercial; i) As ações de liquidação de instituição de crédito e sociedades financeiras. 2 - Compete ainda aos juízos de comércio julgar as impugnações dos despachos dos conservadores do registo comercial, bem como as impugnações das decisões proferidas pelos conservadores no âmbito dos procedimentos administrativos de dissolução e de liquidação de sociedades comerciais. 3 - A competência a que se refere o n.º 1 abrange os respetivos incidentes e apensos, bem como a execução das decisões». A tipificação das acções elencadas no citado normativo permite enunciar um critério que, no essencial, alinha com questões que, de forma mais directa, se acham associadas à realidade das sociedades comerciais, compreendendo ainda, após a entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18.03, os processos de insolvência de pessoas singulares. O teor do referido dispositivo permite, todavia, concluir que a competência dos Juízos de Comércio não abrange todas as questões que objectiva ou subjectivamente tenham natureza comercial, sendo restrita àquelas que, no prudente critério do legislador, mais justificavam a separação da esfera de competência residual atribuída aos Juízos Cíveis. Claramente foi opção do legislador, além de elencar as concretas acções que devem ser interpostas nesses juízos de competência especializada, alargar essa competência aos incidentes e apensos de cada um dos processos aí expressamente previstos e bem assim aos processos de execuções das decisões neles proferidas. Com efeito, para além das acções tipicamente apontadas no referido artigo 128.º, o CIRE alarga ou estende essa competência a outras acções ou procedimentos que directamente não se encontram incluídas nessa norma atributiva. É o caso das disposições vertidas nos artigos 82.º, n.ºs 3 a 6 (acções de responsabilidade de terceiros, conexa com a situação de insolvência), 85.º (acções que estejam pendentes à data da declaração de insolvência e que estejam relacionadas com a massa insolvente), 86.º (processos em que tenha sido declarada a insolvência de pessoas que respondam por dívidas do insolvente ou que mantenham com ele relações justificadoras de os respectivos processos correrem em conjunto), 89.º, n.º 2 (acções relativas a dívidas da massa insolvente), 120.º a 126.º e 146.º a 148º (acções de verificação ulterior de créditos ou de outros direitos), todos do CIRE. No caso vertente, a acção, fundada na responsabilidade civil por factos ilícitos foi instaurada pela Massa Insolvente da A..., S.A., representada pelo respectivo Administrador de Insolvência, que, alegando terem os Réus, por acção/omissão, causado prejuízos à massa insolvente no valor de €76.599,00, deles reclamam indemnização nesse montante. Considerando tais elementos objectivos, facilmente se constata que tal acção não se enquadra em nenhuma das específicas previsões das normas sobre distribuição de competência material aos Juízos de Comércio. Sustenta a decisão recorrida que “...caso a presente acção viesse a ser julgada provada e procedente (hipótese que, como é evidente, apenas se coloca como exercício de raciocínio) haveria um benefício patrimonial da Massa Insolvente e não, claro está, da pessoa do próprio AI”, acrescentando que “devemos considerar que estamos perante uma acção cujo resultado é susceptível de influenciar o valor da massa insolvente e, por conseguinte, uma daquelas que, segundo o art. 82º, nº 3, al. b) e nº 6 do CIRE deve correr por apenso ao processo de insolvência”. Aceita-se de bom grado que o desfecho favorável da acção possa reflectir-se no património da massa insolvente, com acréscimo do seu valor, beneficiando reflexamente os respectivos credores. Entende-se, todavia, que a extensão da competência material ao Juízo de Comércio não se basta com qualquer proximidade ou conexão entre o concreto litígio subsequente à declaração de insolvência e alguma das acções para cuja apreciação é aquele competente. Como alerta o acórdão do STJ de 1.06.2017[2], as normas adjectivas e as que respeitam à organização judiciária “devem pautar-se pela clareza, de modo a evitar discussões em torno da simples identificação do tribunal com competência especializada para a apreciação dos litígios”, sendo certo que “para que esse objectivo não seja postergado, é necessário também que na interpretação das normas sobre a distribuição de competências não se extraiam delas soluções que não foram inequivocamente assumidas pelo legislador. É o legislador e não propriamente o intérprete ou o julgador que deve velar pela correta distribuição das competências, devendo evitar-se interpretações de que resultem soluções que não foram inequivocamente assumidas”. Refere, por sua vez, o acórdão do mesmo STJ de 8.3.2018[3] que “O processo de insolvência apresenta especificidades quer quanto à sua estrutura quer quanto à sua dinâmica (nomeadamente a diversidade tipológica dos intervenientes processuais e a sua natureza urgente) que justificam a intervenção de um juízo especializado, o qual trará um ganho de eficiência técnica e de harmonização decisória (em casos idênticos), que se traduzem numa melhor administração da justiça (por confronto com um hipotético juízo de competência genérica). Todavia, não deverá bastar uma qualquer conexão temática com a matéria da insolvência para que o juízo de comércio seja chamado a decidir”. Numa acção de apreciação da responsabilidade civil de terceiros por alegados danos causados à devedora insolvente, embora o seu desfecho favorável se possa repercutir directamente no património da mesma, com influência na massa insolvente, e, ainda que indirectamente, nos interesses dos respectivos credores, para a procedência da pretensão indemnizatória concorrem outros pressupostos, nomeadamente os previstos no artigo 483.º do Código Civil, que não têm natureza especificamente insolvencial, antes se enquadrando num âmbito mais alargado do direito civil em geral. Neste enquadramento não se vislumbram reais vantagens para o processo de insolvência em que o processo declarativo comum para acionamento da responsabilidade civil de terceiros por danos causados à insolvente corra, por apenso, àquele processo - o que justificaria, para o efeito, a competência do Juízo de Comércio -, não existindo entre os dois processos conexão suficientemente relevante para fundamentar tal apensação. Nestas circunstâncias, a acção destinada a efectivar a responsabilidade civil de terceiros por actos ou omissões de que possam ter emergido danos para a insolvente deve, apesar de instaurada pelo administrador da insolvência, ser proposta nos Juízos Cíveis competentes para a sua preparação e conhecimento, aí prosseguindo os seus termos como acção autónoma[4]. Conclui-se, desta forma, que é competente, em razão da matéria, o Juízo Cível onde a acção foi proposta, pelo que não pode ser mantida a decisão recorrida que julgou procedente a excepção da incompetência absoluta, absolvendo, em consequência os Réus da instância. Não pode, por conseguinte, merecer concordância a decisão recorrida, pelo que, procedendo o recurso, se impõe a sua revogação. * Síntese conclusiva: ……………………………… ……………………………… ……………………………… * Pelo exposto, na procedência da apelação, decide-se revogar a decisão impugnada, declarando competente em razão da matéria o tribunal recorrido, que deverá substituir aquela decisão por outra que determine o prosseguimento da acção. Custas pelos recorridos AA e CC, que apresentaram contra-alegações pugnando pela improcedência do recurso: artigo 527.º, n.º 1 do Código de Processo Civil. Acórdão processado informaticamente e revisto pela 1.ª signatária. Judite PiresAna Vieira Francisca Mota Vieira _______________ [1] Manuel de Andrade, “Noções Elementares de Processo Civil”, pág. 91. [2] Processo n.º 5874/15.8T8LSB.L1-A.S1, www.dgsi.pt. [3] Processo n.º 70/13.1TYLSB-E.L1.S1, www.dgsi.pt. [4] Também o acórdão do STJ de 14.01.2020 (processo n.º 113.10.0TYVNG.EG.P1.S1, https://juris.stj.pt/ecli/ECLI:PT:STJ:2020:113.10.0TYVNG.EG.P1.S1?search=1uUWSl9kn1fKpZoXcdc), em acção declarativa condenatória proposta pela massa insolvente contra terceiro, concluiu que “Após a declaração de insolvência, a acção a intentar pela massa insolvente contra terceiro devedor não corre por apenso aos autos de insolvência, sendo da competência do respectivo juízo cível”. |