Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
| Processo: |
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| Nº Convencional: | JTRP000 | ||
| Relator: | MADALENA CALDEIRA | ||
| Descritores: | ARTIGOS 114 E 115 DO CÓDIGO PENAL CONSEQUÊNCIAS DA SUA FALTA | ||
| Nº do Documento: | RP20251029162/19.3T9VCD.P1 | ||
| Data do Acordão: | 10/29/2025 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | CONFERÊNCIA | ||
| Decisão: | PROVIDO O RECURSO DO MINISTÉRIO PÚBLICO | ||
| Indicações Eventuais: | 1ª SECÇÃO | ||
| Área Temática: | . | ||
| Sumário: | I - Nos crimes semi-públicos (e particulares) cometidos em coautoria, o legislador, perante a tensão entre a indivisibilidade do facto criminoso e a titularidade do direito de queixa, estabeleceu mecanismos (art.ºs. 114.º e 115.º, n.º 3, do CP) que impedem a fragmentação injustificada da responsabilidade dos coautores, impedindo o ofendido de exercer o direito de queixa de forma seletiva, quer pela positiva (perseguir uns e não outros), quer pela negativa (deixar caducar o direito quanto a uns e manter o procedimento quanto a outros). II - A queixa apresentada contra um coautor estende-se ope legis a todos os restantes cuja intervenção relevante se apure no decurso da investigação, dispensando nova queixa ou aditamento (art.º 114.º, do CP). III - A coerência entre os art.ºs 114.º e 115.º, n.º 3, do CP, impõe que este último apenas se aplique aos coautores não mencionados na queixa que o ofendido conhecia, ou podia conhecer com segurança jurídico-penal, no momento da sua apresentação. IV - Quando o ofendido possa legitimamente duvidar da qualidade de coautor ou da relevância penal da conduta de alguém, não há inércia processual relevante (falta de queixa) que se sobreponha e impeça o prosseguimento do procedimento criminal. (Sumário da responsabilidade da Relatora) | ||
| Reclamações: | |||
| Decisão Texto Integral: | Processo: 162/19.3T9VCD.P1 Acordam na 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto I. RELATÓRIO I.1. Por sentença datada de 07.01.2025, referente aos arguidos “A..., Sociedade Unipessoal, Lda.”, AA e BB, foi declarado extinto o procedimento criminal, “por falta de uma condição legal de procedibilidade, de falta de queixa”. I.2. Recurso da decisão Inconformado, o Ministério Público interpôs recurso da decisão, tendo extraído da sua motivação as seguintes conclusões (transcrição): 1. O Tribunal a quo decidiu declarar extinto o procedimento criminal e determinar o consequente arquivamento dos autos, contra todos os arguidos, relativamente ao crime de burla que lhes foi imputado, por entender que o Ministério Público carecia de legitimidade para promover o processo e deduzir acusação pública. 2. A sentença recorrida incorreu numa violação do disposto no artigo 114.º e no n.º 3 do art. 115.º do Código Penal, por erro na sua interpretação e aplicação, o que se invoca para todos os efeitos legais, impugnando-se a Sentença, que se requer seja revogada nos termos do disposto no art. 401.º/1-b e 412.º/2/als. a) e b) do Código de Processo Penal. 3. O assistente não indicou o arguido BB como denunciado na sua queixa-crime (tempestiva), mas afirmou, em declarações complementares que lhe foram tomadas pela PSP, a pedido do Ministério Público (com a finalidade exclusiva de conhecer a participação desse arguido) que a seu ver aquele também era “vendedor” e “proprietário”, declarando, por fim, que continuava a desejar procedimento criminal (fls. 219). 4. Nessas declarações, demonstrou que conhecia funções comerciais do sobredito arguido e que para si esse senhor era vendedor e proprietário do estabelecimento, como o era o casal conjuntamente, apesar de, em rigor, o vendedor do veículo ter sido ser uma sociedade comercial e nenhum dos membros do casal; na audiência de julgamento, disse que o arguido vendia os carros naquele stand, mas que tudo passava por AA, no que reforçou a sua perceção empírica do papel que cada um assumia na sociedade. 5. Saber quem era o vendedor para efeitos da autoria do crime de burla era um facto que revestia natureza jurídica, sendo certo que o assistente revelou não saber distinguir as funções de um comercial de um gerente de facto ou de uma pessoa coletiva. 6. Não nos parece que o Assistente deva ser prejudicado por uma imprecisão na sua linguagem, nem que lhe deva ver negada tutela jurídica por uma perceção pouco rigorosa da realidade do ponto de vista jurídico. 7. É legítimo interpretar que a não inclusão de um gerente de facto pelo ofendido na sua queixa-crime se deveu ao facto ter confiado que cumpria o dever de identificar os agentes do crime na medida possível, mencionando a representante legal registada na sociedade (artigo 243.º/1-c, ex vi artigo 246.º/3 do Código de Processo Penal). 8. Quando o assistente foi confrontado pela PSP, a pedido do Ministério Público, com a participação do dito arguido, descreveu a sua atuação e declarou que continuava a desejar procedimento criminal (auto de fls. 219), desse modo dando cumprimento pleno ao artigo 114.º do Código Penal (vd. ac TRC de 8.9.2019, proc. 142/08.4GDSCD.C1.) 9. Parece-nos formalista exigir uma declaração de conteúdo diverso e, no limite, tal poderá significar a imposição de discurso próprio do jargão jurídico a leigos que o desconhecem e não têm de conhecer. 10. A gerência de facto e a responsabilidade das pessoas que atuam em nome das pessoas coletivas e no seu interesse coletivo, ocupando posição de liderança, é uma matéria jurídica, que decorre do disposto no artigo 11.º e 12.º do Código Penal, 11. Neste caso, o ofendido exerceu tempestiva e validamente o seu direito de queixa, no momento inicial de queixa tal como no decurso do inquérito, sendo que o artigo 114.º do Código Penal não limita a extensão do direito de queixa ao prazo de seis meses. 12. A razão de ser da norma do artigo 115.º do Código de Processo Penal prende-se com a prevenção de instrumentalização do processo penal pelos ofendidos, para fins subjetivos, que extravasam a finalidade das penas e do exercício da ação penal (TRC de 11.3.2023 (processo 232/20.5T9SRT.C1,). 13. A norma não visa certamente punir a incúria jurídica dos ofendidos nem premiar gerentes de sociedades que ocultam o poder que ocupam nas mesmas, defraudando as finalidades do registo comercial. 14. Não se vê que interesse poderia ter o assistente em ocultar deliberadamente um comparticipante na sua queixa (BB ou outro) se aquilo que pedia era que fosse instaurado procedimento criminal contra os autores de uma burla, de que foi vítima, pela compra um veículo de € 13.800, tendo negociado com pessoas que até ao momento desconhecia. 15. Certamente que o artigo 115.º/3 do Código de Processo Penal não abrange situações de falta de menção de um gerente de facto quando o ofendido reafirma o desejo de procedimento criminal no momento em que é inquirido sobre a participação do mesmo. 16. Outra interpretação dos arts 114.º e 115.º/3 do CPP, com o devido respeito, seria premiar a atuação de quem oculta a sua real posição numa sociedade comercial, com o propósito (logrado) de se exonerar da responsabilidade pelos seus atos, incluindo a criminal. 17. Não pode o ofendido ser defraudado na sua tutela e direitos com base em atos de registo comercial (e a ausência deles) quando os mesmos dependem exclusivamente da própria sociedade e das pessoas singulares que pretendem responsabilizar. 18. O Tribunal incorreu em erro na interpretação e aplicação do artigo 114.º do Código de Processo Penal porquanto a extensão do direito de queixa do assistente contra o arguido BB deveria ter sido considerada tempestiva e válida. 19. Por consequência, não deveria o Tribunal ter aplicado o artigo 115.º/ 3 do Código de Processo Penal, porque não existiu um não exercício tempestivo do direito de queixa relativamente a um dos comparticipantes. 20. O Tribunal, ao invés, deveria, no nosso entendimento, ter julgado improcedente a nulidade insanável de falta de legitimidade do Ministério Público para o exercício da ação penal, o que se requer, e consequentemente, ter apreciado a responsabilidade criminal dos arguidos nos termos em que foram acusados, proferindo uma sentença que conhecesse do mérito, decidindo sobre a matéria de facto e de direito, como se requer. Termos em que, sempre com o devido suprimento de V. Exas, requer-se seja dado provimento ao presente recurso, revogando a douta Sentença recorrida e substituindo-a por outra, que julgue improcedente a nulidade insanável de falta de legitimidade do Ministério Público para o exercício da ação penal e determine o prosseguimento dos autos com o reenvio ao tribunal de primeira instância, para que conheça do mérito da causa, apreciando a prova produzida em julgamento e proferindo sentença sobre a matéria de facto e de direito. I.3. Respostas ao recurso O assistente não respondeu ao recurso. Os três arguidos responderam ao recurso no sentido da sua improcedência, em termos sintetizados nestas conclusões (transcrição): Arguida “A..., Sociedade Unipessoal, Lda.”: 1.º A sentença produzida não deve merecer qualquer censura. 2.º Tendo a Arguida recorrida sido acusada do crime de burla em comparticipação, e constante dos autos que o Assistente Denunciante optou por não deduzir queixa contra um dos comparticipantes, no prazo legal, esta falta de queixa beneficia os demais comparticipantes, “in casu” a ora Recorrida. 3.º Reitera-se que, a quando da apresentação da queixa inicial, bem sabia o Assistente que, eventualmente, todos os depois acusados eram comparticipantes do crime denunciado (burla), mas optou, inicialmente, por participar criminalmente somente conta dois deles, sendo um destes a ora Recorrida. 4.º E quando fez contra o terceiro comparticipante, BB, que conhecia desde o início, há muito que se extinguira tal direito, pelo que, bem andou o Julgador em extinguir o procedimento criminal contra a ora Recorrida, absolvendo-a do crime de que vinha acusada. 4.º Deste modo, não se vislumbra qualquer errónea aplicação do direito na sentença recorrida, já que a sua fundamentação é clara, e assertiva. 5.º Não violou a decisão recorrida quaisquer preceitos legais, nomeadamente os artigos 114º e 115, n.º 3 do Código Penal, Termos em que, julgando Vossas Excelências, improcedente o recurso, mantendo a douta sentença recorrida, farão a habitual JUSTIÇA. Arguida AA: 1. A arguida AA vinha acusada da prática em coautoria material, de um crime de burla, na forma consumada, previsto e punido pelo art. 217.º, n.º 1 do Código Penal, e a arguida A..., Sociedade Unipessoal, Lda. de um crime de burla, previsto e punido pelo mesmo normativo – cfr. art. 11.º, n.º 2, al. a) do Código Penal. 2. O assistente apresentou queixa crime em 21.01.2019 apenas contra as arguidas – AA e A..., Sociedade Unipessoal Lda, nunca fazendo referência na queixa ao arguido BB, quer quanto à sua participação nos factos, quer enquanto testemunha dos factos. 3. Contudo, das suas declarações na PSP e da prova produzida em audiência sempre incluiu o arguido BB na participação dos factos, como bem referiu o Douto Tribunal na sentença: “No auto de inquirição do Assistente, a 10/11/2020, é referido: “Conhece BB, à data dos factos proprietário do “B...”, companheiro/marido de AA e foi este quem lhe vendeu a viatura; Foi com o referido casal que negociou a compra da viatura, tendo sinalizado em numerário com a quantia de 800,00€ a aquisição da referida viatura; Foi por aconselhamento do casal que o levou a adquirir a viatura, tendo sido informado que se tratava de uma viatura com bom preço e em perfeitas condições de circulação. Nunca em momento algum foi informado que se tratava de viatura sinistrada, sem airbags e com o chassi empenado. Mais declara que a viatura apresentada não era a que melhor lhe convinha, contudo e dadas as explicações, acabou por a adquirir em 27-03-2018 com matrícula estrangeira, acabando por estar à espera da legalização/ matrículas. Foi-lhe atribuído a matrícula ..-UM-...”.De acordo com o Assistente, no seu depoimento, em sede de audiência de julgamento, este confirmou que quem vendia os carros naquele stand era BB, mas que tudo passava por AA, referindo a participação de ambos nos atos em causa. Ora, esta versão apresentada não é, todavia, coincidente com a versão que resulta da queixa crime. Nessa queixa crime que apresentou, CC não refere, em qualquer momento, o nome de BB, nem sequer o indica no rol de testemunhas, referindo apenas, como responsável individual, a aí segunda denunciada, AA, afastando por completo a intervenção do Arguido nos factos em causa. Tal atuação por parte do Assistente não pode ser entendida de outra forma se não como uma escolha, de não o incluir na queixa crime, uma vez que sabia que BB era “companheiro/marido de AA”, que o identificou como sendo “proprietário do B...” e que que foi ele “quem lhe vendeu a viatura”. De todas as declarações prestadas pelo Assistente não resulta que este considerasse que BB era um mero vendedor, um colaborador, um trabalhador, tendo-o, antes, identificado como “proprietário”, declarando que foi por aconselhamento do casal que adquiriu a viatura. Todavia, na queixa crime, apenas imputa tal facto a AA. (…)”. 4. Ora, é mais do que evidente que o assistente tanto tinha conhecimento da identificação do arguido BB, como da sua participação nos factos e ainda que este não se apresentava à frente do stand como mero colaborador, como era o caso da testemunha DD – indicada como testemunha pelo assistente precisamente por ser uma mera colaboradora e disso ter o assistente conhecimento. 5. No entanto, pese embora pudesse identificar o arguido BB, o assistente não apresentou queixa contra aquele, em 21.01.2019. 6. E quando o fez, fê-lo extemporaneamente. 7. Daí o artigo 114º do CP não se aplicar ao caso em concreto, não podendo o assistente beneficiar da extensão do direito aí previsto. 8. Pois este artigo só se aplica quando o titular do direito de queixa não consegue identificar outros comparticipantes. 9. Relativamente à arguida AA, o não exercício tempestivo da queixa por parte do queixoso/assistente em relação ao arguido BB, aproveita à arguida, sua comparticipante. 10. Assim, também a arguida AA não pode ser perseguida criminalmente sem a existência atempada de queixa, nos termos do disposto no artigo 115º, nº 3 do CP. 11. Face ao exposto, carece o MP de legitimidade para a promoção do procedimento criminal contra os arguidos. 12. Motivo pelo qual, a douta sentença deve ser mantida na íntegra, negando-se assim provimento ao recurso. Mas vossas excelências farão, como sempre, o que melhor for de justiça! Arguido BB: I - Nos autos está em causa um crime de natureza semi-pública e na queixa-crime apresentada, o ofendido apenas afirmou a intenção de procedimento criminal contra AA e a empresa A... Lda e não identificou o Arguido BB. II – O primeiro momento em que o Assistente manifestou intenção de procedimento criminal contra BB foi quando aderiu à acusação pública em 27/06/2023, ou seja, após a dedução daquela. III – Impõe-se desde logo considerar, e por tal motivo, que andou muito bem a sentença recorrida a declarar extinto o procedimento criminal contra o arguido BB, relativamente ao crime de burla que lhe vinha imputado, por faltar ao Ministério Público a necessária legitimidade para promover o processo e para dedução acusação pública. Sem prescindir, IV - O artigo 114.º do Código Penal permite estender a queixa a outros comparticipantes, mas apenas aqueles cuja identificação ou existência desconhecia no momento da queixa inicial. V – No caso, resulta do inquérito, quer do depoimento do Assistente em audiência de julgamento que o Assistente sabia ab initio da identificação e da existência do Arguido BB como participante dos atos em causa. VI – O Tribunal a quo fez assim uma interpretação e aplicação exemplar do artigo 114º do CP ao concluir pela falta de legitimidade do Ministério Público para a promoção do procedimento criminal contra o Arguido BB. Nestes termos e nos mais de Direito, sempre com o mui douto suprimento de V. Exas., deverá o recurso interposto pelo Ministério Público improceder na sua totalidade, confirmando-se a sentença recorrida na íntegra. Assim se fazendo a costumada JUSTIÇA! I.4. Parecer do ministério público Subidos os autos a este Tribunal da Relação, em sede de parecer a que alude o art.º 416.°, do CPP, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto aderiu à argumentação recursória e pugnou pela procedência do recurso. I.5. Respostas ao parecer Cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2, do CPP, o assistente veio aderir aos fundamentos recursórios do Ministério Público. Nenhum dos arguidos apresentou resposta. I.6. Foram colhidos os Vistos e realizada a conferência. II. FUNDAMENTAÇÃO II.1. Delimitação do objeto do recurso O recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente, que estabelecem os limites da cognição do tribunal superior, sem prejuízo das matérias de conhecimento oficioso, como os vícios previstos no art.º 410.º, n.º 2, do CPP (cf. art.ºs 412.º, n.º 1, e 417.º, n.º 3, ambos do CPP). Passamos a delimitar o thema decidendum: - Saber se a queixa-crime apresentada pelo ofendido deve ter-se por estendida ao arguido BB, por aplicação do disposto no art.º 114.º, do CP. II.2. Decisão Recorrida A sentença recorrida tem o seguinte teor (transcrição integral): I. Relatório Para julgamento em processo comum, com intervenção do tribunal singular, o Ministério Público deduziu acusação contra A..., Sociedade Unipessoal, Lda., com sede na Rua ..., Póvoa de Varzim, com o NIPC ...; AA, divorciada, nascida a ../../1973, em ..., filha de EE e de FF, residente na Rua ..., Urbanização ..., ..., ..., Palmela, titular do C.C. nº ..., BB, divorciado, nascido a ../../1977, em Vila Nova de Famalicão, filho de GG e de HH, residente na Rua ...., Setúbal, titular do C.C. nº ..., Imputando aos arguidos AA e BB, em coautoria material, um crime de burla, na forma consumada, previsto e punido pelo art. 217.º, n.º 1 do Código Penal, e a A..., Sociedade Unipessoal, Lda. um crime de burla, previsto e punido pelo mesmo normativo – cfr. art. 11.º, n.º 2, al. a) do Código Penal. A 27/06/2023, ref. 36052308, CC, Assistente, aderiu à acusação deduzida pelo Ministério Público e formulou um pedido de indemnização cível, peticionando a condenação de AA, A..., Sociedade Unipessoal, Lda. e BB a pagar a quantia, nunca inferior € 16.125,98 (dezasseis mil, cento e vinte e cinco euros e noventa e oito cêntimos), a título de danos patrimoniais e compensação por danos não patrimoniais, acrescido de juros de mora à taxa legal em vigor, sobre o montante indemnizatório peticionado, que se vencem desde a data da citação até ao integral e efetivo pagamento. A Acusação foi recebida por despacho de 22/11/2023, ref. 453865322. A Arguida A..., Sociedade Unipessoal, Lda. apresentou contestação, oferecendo o merecimento dos autos. Foi realizado julgamento com observância do formalismo legal. Nulidade por falta de legitimidade para prosseguir com a Acusação por parte do Ministério Público Em sede de audiência de julgamento, a 10/12/2024, pelo Arguido BB, foi invocada uma nulidade insanável, prevista no art. 119.º, n.º 1, al. b), porquanto a queixa apenas foi apresentada contra AA e A..., Sociedade Unipessoal, Lda., não contra si, pelo que o Ministério Público carecia de legitimidade para prosseguir com a acusação. Para tanto alega que o Assistente desde sempre teve conhecimento da alegada autoria do Arguido, mas que optou por não apresentar a mesma, não sendo aplicável o art. 114.º do Código Penal. Pelo Assistente foi defendido que o Arguido em causa era apenas um mero colaborador, tendo sido na sequência da investigação que se apurou que seria um gerente de facto. Pelo exposto, entende que a invocada nulidade deverá improceder. A 13/12/2024, ref. 466794650, o Ministério Público promoveu que se indeferisse a arguição de nulidade decorrente de falta de legitimidade do Ministério Público para exercer a ação penal contra qualquer um dos arguidos, incluindo o arguido BB, porquanto o Assistente apresentou tempestivamente uma queixa-crime contra a sociedade comercial que lhe vendeu o veículo e contra a sua sócia-gerente, vindo ambas a ser constituídas arguidas no decurso da investigação, mas que não tinha o ofendido / assistente obrigação de saber que o outro vendedor (que conhecia por BB e veio a ser identificado na investigação) era igualmente gerente (de facto) da sociedade e por conseguinte, não tinha qualquer obrigação de o identificar na queixa. De acordo com o Ministério Público, quando confrontado pelo Ministério Público com a participação de BB (despacho de fls. 253, de 13/09/2020), descreveu a sua atuação e declarou que continuava a desejar procedimento criminal (auto de fls. 219). Alega o Ministério Público que não podem os ofendidos que exercem tempestiva e validamente os direitos de queixa ser defraudados na sua tutela e direitos com base em atos de registo comercial (ou a ausência deles) que dependem exclusivamente da sociedade que pretendem responsabilizar. Defende, assim, que, caso sejam identificados outros autores, nomeadamente gerentes de facto, a legitimidade do Ministério Público mantém-se por força do artigo 114.º do Código de Processo Penal, sendo que, nestes autos, o Assistente confirmou o desejo de procedimento criminal quando foi reinquirido acerca da participação do arguido BB e isso deve bastar para contra ele prosseguir (e relativamente aos demais). Tendo sido cumprido o contraditório, cumpre apreciar e decidir. Nos termos do n.º 3 do 217.º, do Código Penal, o procedimento criminal pelo crime em apreço depende de queixa, revelando a natureza semi pública do mesmo. Conforme se pode ler no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 06/03/2024, R: Paula Guerreiro, Proc. n.º 1079/20.4PBAVR.P1, disponível em www.dgsi.pt, “I - A omissão do exercício do direito de queixa previsto no art. 113 do CP representa a falta de um pressuposto processual que impede a prolação de decisão sobre o mérito da causa, impondo-se o arquivamento. II - O prosseguimento dos autos sem que o direito de queixa tivesse sido eficazmente exercido nos autos, pelo respetivo titular, constitui nulidade insanável nos termos do disposto no art. 119 al b) do CPP, por violação do disposto no art. 48 do CPP, que impõe como restrições entre outras a do art. 49 do mesmo diploma. III - A declaração desta nulidade implica a invalidade de todo o processado, incluindo da acusação e da sentença condenatória.”. Quanto a esta questão, é necessário ter em consideração aquilo que se escreve no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 07/07/2021, R: Paula Natércia Rocha, Proc. n.º 60/18.8GALNH.P1, “I - O princípio da oficialidade do processo, segundo o qual, a promoção processual dos crimes é tarefa estadual, a realizar oficiosamente e, portanto, em completa independência da vontade e da atuação dos particulares, concretiza-se, no nosso ordenamento processual penal – logo por imperativo constitucional (artigo 219.º, n.º 1, da Constituição) –, na atribuição ao Ministério Público da iniciativa e da prossecução processuais. II - Contudo, o princípio da oficialidade da promoção processual sofre as limitações e exceções decorrentes da existência dos crimes semipúblicos e dos crimes particulares. III - Nos crimes semipúblicos o Ministério Público só pode iniciar a investigação após a apresentação de queixa. É exatamente o que prescreve o art.º 49.º, n.º 1, do Cód. Proc. Penal. IV - A queixa é um pressuposto processual (pressuposto positivo da punição), “cujo conteúdo contende com o próprio direito substantivo, na medida em que a sua teleologia e as intenções político-criminais que lhe presidem têm ainda a ver com condições de efetivação da punição, que nesta mesma encontram o seu fundamento e a sua razão de ser” (cf. Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências cit., 19.º capítulo, I, §1059, p. 663 V - A função da queixa é tripla: de um ponto de vista político-criminal torna-se aconselhável que o procedimento penal respetivo só tenha lugar se e quando tal corresponder ao interesse e à vontade do titular do direito de queixa; visa evitar que o processo penal, prosseguido sem ou contra a vontade do ofendido, possa, em certas hipóteses, representar uma inconveniente intromissão na esfera das relações pessoais que entre ele e os outros participantes processuais intercedem; finalmente, pode servir a função de específica proteção da vítima (ofendido) do crime.”. Desta forma, no caso em apreço, inexistindo o exercício de direito de queixa contra o Arguido BB, tal implicaria que o Ministério Público careceria de legitimidade para prosseguir com a acusação. Nos presentes autos, a 21/01/2019, CC apresentou queixa crime contra AA e A..., Sociedade Unipessoal, Lda., pelo crime de burla, previsto e punido pelo art. 217.º, n.º 1 do Código Penal. Todavia, defende o Assistente e o Ministério Público que a participação do Arguido, enquanto gerente de facto, era desconhecida por parte do Assistente. De resto, relativamente à investigação do Ministério Público, é possível perceber que, no despacho de 13/11/2019, ref. 409257851, resulta “Solicite à PSP que averigue e informe sobre todos os elementos de identificação e residência de um indivíduo de nome BB, que em 2018 trabalhava no “B...”, sito na Rua ..., na Póvoa de Varzim, pertencente à sociedade “A..., Sociedade Unipessoal, Lda.”.” Já do despacho de 13/09/2020, ref. 415230382, resulta que “Após remeta os autos à PSP solicitando a tomada de declarações complementares ao Assistente CC – cfr. fls. 128 – a fim de esclarecer o seguinte: - se conhece o BB, que à data dos factos trabalhava no “B...”; - se ele teve alguma participação nos factos denunciados e qual, designadamente se também negociou com ele, e em que termos, a compra e venda da viatura em questão, ou se tal negócio apenas foi entre si e a AA; - o que em concreto que lhe foi dito, e por quem, que o convenceu a comprar o dito veículo; (…)” Nessa sequência, no auto de inquirição do Assistente, a 10/11/2020, é referido: “Conhece BB, à data dos factos proprietário do “B...”, companheiro/marido de AA e foi este quem lhe vendeu a viatura; Foi com o referido casal que negociou a compra da viatura, tendo sinalizado em numerário com a quantia de 800,00€ a aquisição da referida viatura; Foi por aconselhamento do casal que o levou a adquirir a viatura, tendo sido informado que se tratava de uma viatura com bom preço e em perfeitas condições de circulação. Nunca em momento algum foi informado que se tratava de viatura sinistrada, sem airbags e com o chassi empenado. Mais declara que a viatura apresentada não era a que melhor lhe convinha, contudo e dadas as explicações, acabou por a adquirir em 27-03-2018 com matrícula estrangeira, acabando por estar à espera da legalização/ matrículas. Foi-lhe atribuído a matrícula ..-UM-...”. De acordo com o Assistente, no seu depoimento, em sede de audiência de julgamento, este confirmou que quem vendia os carros naquele stand era BB, mas que tudo passava por AA, referindo a participação de ambos nos atos em causa. Ora, esta versão apresentada não é, todavia, coincidente com a versão que resulta da queixa crime. Nessa queixa crime que apresentou, CC não refere, em qualquer momento, o nome de BB, nem sequer o indica no rol de testemunhas, referindo apenas, como responsável individual, a aí segunda denunciada, AA, afastando por completo a intervenção do Arguido nos factos em causa. Tal atuação por parte do Assistente não pode ser entendida de outra forma se não como uma escolha, de não o incluir na queixa crime, uma vez que sabia que BB era “companheiro/marido de AA”, que o identificou como sendo “proprietário do B...” e que que foi ele “quem lhe vendeu a viatura”. De todas as declarações prestadas pelo Assistente não resulta que este considerasse que BB era um mero vendedor, um colaborador, um trabalhador, tendo-o, antes, identificado como “proprietário”, declarando que foi por aconselhamento do casal que adquiriu a viatura. Todavia, na queixa crime, apenas imputa tal facto a AA. Pelo exposto, é nosso entendimento que, efetivamente, à data da queixa crime, o Assistente tinha consciência da atuação de BB e da sua participação nos factos denunciados, mas optou por não deduzir contra ele queixa pelos factos aqui em causa. A 10/11/2020, quando manifestou a vontade de prosseguir com o procedimento criminal, já se encontrava ultrapassado o prazo previsto no art. 115.º do Código Penal. Além disso, diga-se, nessa altura apenas declarou que “Continua a desejar procedimento criminal contra os denunciados”. Assim, apenas a 27/06/2023, quando aderiu à acusação pública, manifestou verdadeiramente a intenção de que fosse exercida ação penal contra o arguido BB. Cumpre, todavia, aferir se, no caso em apreço, tem aplicação o disposto no art. 114.º do Código Penal, nos termos do qual, “A apresentação da queixa contra um dos comparticipantes no crime torna o procedimento criminal extensivo aos restantes.”. Conforme se pode ler no Acórdão do Tribunal do Relação de Guimarães de 26/09/2016, R: Fernando Chaves, Proc. n.º 90/14.9GAMGD.G1, disponível em www.dgsi.pt, “I) A norma do artigo 114.º do Código Penal permite ao titular do direito de queixa alargar a mesma aos demais comparticipantes, cuja identificação ou existência desconhecia, independentemente de já ter decorrido o prazo de seis meses previsto no n.º 1 do 115.º. II) Porém, já não tem aplicação quando o queixoso sabia quem eram os autores dos factos de que foi vítima e tinha possibilidade de os identificar, na totalidade ou por mera indicação ao processo, mas para os quais, em qualquer caso, sempre poderia manifestar, desde logo, a intenção de procedimento criminal. III) Nesses casos, o queixoso já não pode beneficiar da possibilidade de extensão do direito de queixa posto que a mesma radica no seu desconhecimento em relação à existência ou identificação dos outros comparticipantes. IV) Se o titular do direito de queixa tem pleno conhecimento que outras pessoas intervieram nos factos e tem a possibilidade de os identificar, então tem o dever de, desse modo, os referenciar no processo, cabendo-lhe, no prazo estabelecido no n.º 1 do artigo 115.º do Código Penal, contra eles deduzir a respectiva queixa, sob pena de extinção desse direito.”. Assim sendo, e porquanto o queixoso tinha conhecimento de quem tinha intervindo nos factos, o Ministério Público não tinha legitimidade para acusar BB pelo crime de burla na forma consumada, previsto e punido pelo art. 217.º, n.º 1 do Código Penal, estando em falta um pressuposto de procedibilidade, que obsta ao conhecimento do mérito da causa. Pelo exposto, importa declarar extinto o procedimento criminal contra o arguido BB, relativamente ao crime de burla que lhe é imputado, por faltar ao Ministério Público a necessária legitimidade para promover o processo e para dedução acusação pública, com o consequente arquivamento dos autos, e, consequentemente, julgar extinto o pedido de indemnização civil formulado pelo demandante e assistente contra o referido Arguido /demandado BB, por impossibilidade superveniente da lide, nos termos do art. 277.º, al. e) do Código de Processo Civil. Cumpre, agora, ter em consideração o disposto no n.º 3 do art. 115.º do Código Penal. Nos termos do n.º 3 do art. 115.º do Código Penal, “O não exercício tempestivo do direito de queixa relativamente a um dos comparticipantes no crime aproveita aos restantes, nos casos em que também estes não puderem ser perseguidos sem queixa.”. Assim, o efeito jurídico do não exercício do direito de queixa relativamente a um dos comparticipantes corresponde à extinção do procedimento quanto aos restantes, uma vez que o que essencialmente está em causa é a perseguição do crime praticado e não apenas a satisfação dos ditos interesses de natureza pessoal. A omissão de queixa contra BB aproveita, desta forma, à Arguida AA, contra quem foi deduzida acusação em coautoria material. Pelo exposto, importa declarar extinto o procedimento criminal contra a Arguida AA, relativamente ao crime de burla que lhe é imputado, por faltar ao Ministério Público a necessária legitimidade para promover o processo e para dedução acusação pública, com o consequente arquivamento dos autos, consequentemente, julgar extinto o pedido de indemnização civil formulado pelo demandante e assistente contra a referida Arguida /demandada AA, por impossibilidade superveniente da lide, nos termos do art. 277.º, al. e) do Código de Processo Civil. Relativamente à pessoa coletiva, conforme se pode ler no n.º 7 do art. 11.º do Código Penal, “A responsabilidade das pessoas coletivas e entidades equiparadas não exclui a responsabilidade individual dos respetivos agentes nem depende da responsabilização destes.”. Todavia, conforme resulta do n.º 2 do art. 11.º do Código Penal, as pessoas coletivas e entidades equiparadas, com exceção do Estado, de pessoas coletivas no exercício de prerrogativas de poder público e de organizações de direito internacional público, são responsáveis pelos crimes previstos nos artigos 144.º-B, 150.º, 152.º-A, 152.º-B, 156.º, 159.º e 160.º, nos artigos 163.º a 166.º sendo a vítima menor, e nos artigos 168.º, 169.º, 171.º a 177.º, 203.º a 206.º, 209.º a 223.º, 225.º, 226.º, 231.º, 232.º, 240.º, 256.º, 258.º, 262.º a 283.º, 285.º, 299.º, 335.º, 348.º, 353.º, 359.º, 363.º, 367.º, 368.º-A e 372.º a 377.º, quando cometidos em seu nome ou por sua conta e no seu interesse direto ou indireto por pessoas que nelas ocupem uma posição de liderança; ou por quem aja em seu nome ou por sua conta e no seu interesse direto ou indireto, sob a autoridade das pessoas referidas na alínea anterior, em virtude de uma violação dos deveres de vigilância ou controlo que lhes incumbem. A responsabilidade criminal das pessoas coletivas não exclui a responsabilidade individual dos agentes, sendo a responsabilidade da pessoa coletiva autónoma da da pessoa individual e, consequentemente, as causas de extinção da responsabilidade criminal verificadas separadamente (ALBUQUERQUE, Paulo Pinto de, Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 4.ª edição atualizada, 2021, Universidade Católica Editora, pág. 143). A comparticipação define-se por corresponder a uma realização típica por uma pluralidade de agentes. Neste caso, a atuação imputada à pessoa coletiva, pese embora não seja um caso clássico de comparticipação, também tem por base a realização típica por uma pluralidade de agentes, estando a atuação da pessoa coletiva a par da atuação das pessoas singulares. Desta forma, será de aplicar o mesmo raciocínio à pessoa coletiva, A..., Sociedade Unipessoal, Lda., que foi aplicado quanto a AA. Assim, a ratio da norma em causa, de prevalecer um juízo de prossecução do crime, e não um juízo de oportunidade, também deverá estabelecer-se quanto à pessoa coletiva. A omissão de queixa contra BB aproveita, desta forma, à Arguida A..., Sociedade Unipessoal, Lda., contra quem também foi deduzida acusação. Pelo exposto, importa declarar extinto o procedimento criminal contra a Arguida A..., Sociedade Unipessoal, Lda., relativamente ao crime de burla que lhe é imputado, por faltar ao Ministério Público a necessária legitimidade para promover o processo e para dedução acusação pública, com o consequente arquivamento dos autos, consequentemente, julgar extinto o pedido de indemnização civil formulado pelo demandante e assistente contra a referida Arguida /demandada AA, por impossibilidade superveniente da lide, nos termos do art. 277.º, al. e) do Código de Processo Civil. Custas Sem custas relativamente aos Arguidos, atenta à extinção do procedimento criminal. Nos termos da al. n) do n.º 1 do art. 4.º do Regulamento das Custas Processuais, resulta que estão isentos de custas o demandante e o arguido demandado, no pedido de indemnização civil apresentado em processo penal, quando o respetivo valor seja inferior a 20 UC. No caso dos presentes autos, o Pedido de Indemnização Cível formulado tinha um valor superior a 20 UC. Pelo exposto, relativamente ao Pedido de Indemnização Cível, são devidas custas, a cargo do Demandante, nos termos do art. 527.º do Código de Processo Civil. Decisão Tudo visto e ponderado, atentas as disposições legais citadas e as considerações expendidas, decide-se extinguir o procedimento criminal quanto a A..., Sociedade Unipessoal, Lda., AA e BB, por falta de uma condição legal de procedibilidade, de falta de queixa. Sem custas, quanto aos Arguidos. Custas do Pedido de Indemnização Cível formulado, pelo Demandante, nos termos do art. 527.º do Código de Processo Civil. * Notifique e deposite (art. 372.º, n.º 5 do Código de Processo Penal).II.3. Ocorrências processuais relevantes i). Em 21.01.2019, foi apresentada a seguinte queixa-crime: CC, casado, portador do Cartão de Cidadão n.º ... válido até 06.03.2028, contribuinte fiscal n.º ...residente na Rua ..., ..., ..., Póvoa do Varzim; Vem participar criminalmente, contra: A..., SOCIEDADE UNIPESSOAL LDA. Pessoa colectiva, com o NIPC ..., com sede na Rua ..., ..., Póvoa de Varzim; E AA, sócia gerente da primeira denunciada, com domicílio na Rua ..., ..., ..., Pela prática de factos suscetíveis de integrar, entre outros, um crime de burla, p. e p. pelos artigos 217° do Código Penal, O que faz, nos termos e com os seguintes fundamentos: 1.º A primeira denunciada é uma sociedade comercial, conforme documento 1 que ora se junta e se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais, cujo objecto social, se concretiza no "Comércio por grosso e a retalho de veículos automóveis ligeiros (até 3500kg), novos ou usados, para transporte de passageiros, para transporte de mercadorias, mistos e veículos todo-o- terreno". 2.° Em março de 2017, em data que não consegue concretizar, o denunciante deslocou-se ao B..., local onde os denunciados exerciam o comércio de veículos automóveis, com o propósito de adquirir uma viatura. 3.º Uma vez no Stand, a segunda denunciada exibiu ao denunciante um veículo, da marca C..., Modelo ..., com matrícula ..-UM-.., fazendo-lhe crer, que aquela era uma oportunidade única, de negócio. 4.° Apresentou-lhe todas as características e extras que aquela viatura possuía, chegando a fornecer, inclusive, o papel que constava no tablier do carro, com a enumeração das mesmas e com o valor de venda - 13.800,00 € (treze mil e oitocentos euros), conforme documentos 2 junto em anexo e que se reproduz para todos e os devidos efeitos legais. 5.° O denunciante que tinha necessidade urgente em adquirir uma viatura familiar, foi então convencido, de que era um bom negócio, e em 27 de março de 2018 concretizou a compra do veiculo da marca C..., referida em 3.° - cfr. documento 3 que se anexa e se reproduz para todos os efeitos. 6.° Para aquisição deste veículo, no montante de 13.800,00 € (treze mil e oitocentos euros), o denunciante pagou em numerário a quantia de 800,00 € (oitocentos euros) e teve de contrair um crédito, para os restantes 13.000,00€ (treze mil euros) - conforme se constata pelo documento 3/1 que se anexa e se reproduz para todos os efeitos legais. 7.º Juntamente com a documentação relativa à aquisição do veículo, foi - lhe entregue a Carta de Garantia, acreditando que estaria tudo em conformidade, conforme documento 4, que se junta e se reproduz, para todos os efeitos legais. Sucede que: 8.° Logo após a aquisição, volvidos nem cinco meses da data da compra, o denunciante reparou na existência de problemas mecânicos (injectores), que comunicou, aos denunciados. 9.º E perante tal anomalia, foi dada ordem de reparação, junto da oficina, com quem os denunciados, tinham parceria. 10.° Que para procederem à reparação, teve o denunciante, que ficar sem o veículo automóvel, pelo prazo de uma semana, sem outro, para o substituir. 11.° Ainda assim, e apesar dos constrangimentos causados, foi o veículo para reparação na oficina D..., LDA, e entregue posteriormente, acompanhado do relatório, ora junto como documento 5 que se dá por integralmente reproduzido. 12.°No entanto, não se vislumbrou qualquer melhoria, pelo que, entendeu, por mera cautela, o denunciante, que deveria levar o veículo à Marca, para diagnóstico e pesquisa de avarias, tendo desde logo, comunicado a sua intenção aos denunciados, e contado com anuência daqueles. 13.° O que aconteceu em 27 de setembro de 2018, tendo o denunciante suportado o custo de 43,73 € (quarenta e três euros e setenta e três cêntimos), tal como consta no documento 6, que se junta e se reproduz para todos os efeitos legais. 14.° Nesse diagnóstico, detectou a marca, e ao contrário do que constava na folha das características, junta como documento 2, que o veículo, C... ..., adquirido pelo denunciante, aos denunciados, não_p_ossuía, algumas dessas características garantidas, nomeadamente o airbag de condutor e o airbag de passageiro. 15.° Características em falta, que foram intencionalmente ocultadas ao comprador, aqui denunciante. 16.° Pois se soubesse que a viatura não possuía essas características, jamais a teriam comprado. 17.° Além disso, tomou o denunciante, igualmente conhecimento, que a viatura por ele adquirida é acidentada e consequenteemnte tem o chassi empenado. 18.° E tal como se constata, no documento da C..., S.A junto como documento 6 e que se reproduz, a "viatura encontra-se com falhas de segurança para o condutor e passageiros". 19.°Sendo certo que, a ocorrência do tal acidente, ocorreu em 24-06 2016, em data, bastante anterior à compra do veículo, pelo aqui, denunciante, conforme documento 7 que se junta em anexo e que se reproduz para todos os efeitos legais. 20.° Pois que, desde a compra e até à data, não sofreu o veículo supra referido, qualquer sinistro, conforme se constata pelo documento 8 que se reproduz para todos e os devidos legais efeitos. 21.° Desde então, tem o denunciante confrontado os denunciados, inicialmente, junto e diretamente no Stand, que fora entretanto e estranhamente, encerrado tal como se comprova pelo documento 9. 22.° E posteriormente, por contacto telefónico, sem lograrem uma resposta para resolução do problema, apesar das várias propostas apresentadas, desde troca, devolução, etc. 23.° Até que, nem aos contactos respondiam os denunciados, o que levou o denunciante a procurar apoio jurídico, para resolução desta questão. 24.° E mesmo através do envio de cartas por advogado, fossem elas registadas com Aviso de Recepção ou registadas simples, foram sempre devolvidas, tal como se comprova pelos documentos 10, que se juntam e se reproduzem para todos os efeitos legais. 25.° Tendo obtido como resposta, e logo a seguir à devolução das missivas, um contacto telefónico para a mulher do denunciante, feito pela mãe da segunda denunciada, a qual ordenou, em tom exaltado: "que nao si' atrevessem a voltar a incomodar a filha". 26.° O que demonstra, que as mesmas só não foram recebidas porque nao quiseram receber, pois sabiam muito bem, o assunto que seria abordado. 27.° Como sabiam e sempre souberam das anomalias que o veículo apresenta, sem nunca manifestarem interesse em revolverem os problemas denunciados, fugindo assim às suas responsabilidades. 28.° Tendo inclusive, encerrado o stand, após estes acontecimentos e abrindo noutro ponto longínquo, do país. 29.° O que por si só, demonstra má-fé, por parte dos denunciados, que apenas pretenderam obter um enriquecimento ilegítimo, bem sabendo que o veículo era acidentado, apresentava falhas graves de segurança e em consequência disso, bem sabiam que o seu valor comercial nunca poderia ser do valor, pelo qual o venderam. 30.° Demonstrando, com o seu comportamento, que já sabiam de antemão de todos estes problemas, e mesmo assim negaram-se a resolver, não se importando sequer com o seu bom-nome, a reputação que eventualmente teriam no mercado, como é apanágio de toda e qualquer empresa, séria e responsável. 31.°Tanto mais que, bem sabem, que o denunciante, está em situação económica bastante difícil, tal como o supra exposto, bem como, tendo que suportar o valor do IUC que são cerca de 150,00 (cento e cinquenta euros), a inspecção periódica, na qual a viatura não será aprovada, e terá de ser sujeita a inspecção B, o que implica o arranjo da viatura em montantes que se prevêem avultadíssimos e que o denunciante não tem como suportar e mesmo que tivesse, seria de todo uma injustiça fazê-lo. 32.° Caso tal não aconteça a viatura, terá de ficar imobilizada, como efectivamente está, o que mesmo assim implica custos, e cujo efeito pretendido, com a sua aquisição, não está a ser realizado. 33.º Para aquisição da viatura foi contraído um empréstimo, pelo período de 10 anos (120 meses), estando a pagar a quantia mensal de aproximadamente, 185 € (cento e oitenta e cinco euros), ao dia 5 de cada mês, sem poder usufruir da viatura, que se encontra imobilizada. Do exposto, se conclui indubitavelmente, que os denunciados se tornaram autores materiais de pelo menos um crime de Burla, previsto e punido pelo art.° 217.° do Código Penal Pelo que se Requer, que seja instaurado contra os denunciados o competente procedimento criminal e sejam aqueles constituídos arguidos. Mais, Requer e uma vez que pretende deduzir oportunamente pedido de indemnização cível, ser notificado do douto Despacho de Acusação ou não o havendo do Despacho de Pronúncia, nos termos do disposto no art.° 77.° n.° 2 do Código do Processo Penal. Valor: € 14.000,00 (catorze mil euros) Junta: 10 documentos e procuração. PROVA TESTEMUNHAL: 1.° II, residente na Rua ..., ..., ..., Povoa de Varzim. 2.° JJ, residente na Rua ..., ..., ..., ... ... 3.° DD, residente na Rua ..., ..., .... 4.° KK, residente na Rua ..., ..., .... 5.° LL, residente na Rua ..., ..., ..., ..., Vila do Conde. 6.° MM, residente na Rua ..., ..., ..., ..., Vila do Conde. ii). Em 09.05.2019, o ofendido CC prestou estas declarações no inquérito: Confirma na íntegra o teor da Participação, por tal corresponder à verdade, nada tem a alterar ou a acrescentar. Continua a desejar procedimento criminal contra os denunciados. iii). Em 11.11.2019 foi proferido despacho a admitir CC como assistente. iv). Em 13.11.2019, em sede de inquérito, o Ministério Público proferiu este despacho: Solicite à PSP que averigue e informe sobre todos os elementos de identificação e residência de um indivíduo de nome BB, que em 2018 trabalhava no “B...”, sito na Rua ..., na Póvoa de Varzim, pertencente à sociedade “AA, Sociedade Unipessoal, Lda.”. v). Em 13.09.2020 o Ministério Público proferiu este outro despacho: Após remeta os autos à PSP solicitando a tomada de declarações complementares ao Assistente CC – cfr. fls. 128 – a fim de esclarecer o seguinte: - se conhece o BB, que à data dos factos trabalhava no “B...”; - se ele teve alguma participação nos factos denunciados e qual, designadamente se também negociou com ele, e em que termos, a compra e venda da viatura em questão, ou se tal negócio apenas foi entre si e a AA; - o que em concreto que lhe foi dito, e por quem, que o convenceu a comprar o dito veículo; - se conhece o anterior proprietário do mesmo ou o NN, id. a fls. 193, que também consta como proprietário da viatura em causa. vi). Em 10.11.2020 o assistente prestou declarações complementares com o seguinte teor: Conhece BB, à data dos factos proprietário do " B...", companheiro/marido de AA e foi este quem lhe vendeu a viatura; Foi com o referido casal que negociou a compra da viatura, tendo sinalizado em numerário com a quantia de 800,00€ a aquisição da referida viatura; Foi por aconselhamento do casal que o levou a adquirir a viatura, tendo sido informado que se tratava de uma viatura com bom preço e em perfeitas condições de circulação. Nunca em momento algum foi informado que se tratava de viatura sinistrada, sem airbags e com o chassi empenado. Mais declara que a viatura apresentada não era a que melhor lhe convinha, contudo e dadas as explicações, acabou por a adquirir em 27-03-2018 com matrícula estrangeira, acabando por estar cerca de dois meses à espera da legalização/matrículas. Foi-lhe atribuído a matrícula ..-UM-... Não conhece o anterior proprietário da viatura, nem conhece NN. Declara ainda se sujeitou a viatura a avaliação junto da C... - Zona Industrial ... - Vila do Conde tido sido informado que os serviços competentes não conseguem fazer uma avaliação pois trata-se de uma viatura importada e sinistrada, conforme Doc. de fls. 18 e 19. Declara ainda fez uma pesquisa em sites especializados, contudo tratando-se de viatura estrangeira, não é possível apurar um valor à data e nas condições em que foi adquirida. Continua a desejar procedimento criminal contra os denunciados. vii). Em 09.06.2023, o Ministério Público acusou, “nos termos do art. 283º do C.P.P., e para julgamento em Processo Comum com intervenção de Tribunal Singular”: 1- “A..., Sociedade Unipessoal, Lda.” (…); 2- AA (…); e 3- BB (…); Porquanto: A sociedade arguida “A..., Sociedade Unipessoal, Lda.” é uma sociedade comercial por quotas registada desde Maio de 2017 na Conservatória do Registo Comercial e que tem por objecto social o comércio por grosso e a retalho de veículos automóveis ligeiros (até 3500 kg), novos ou usados, para transporte de passageiros, para transporte de mercadorias, mistos e veículos todo-o-terreno. A arguida AA é, desde aquela data, a única sócia e gerente da sociedade arguida, exercendo a sua gestão e administração e sendo responsável pelas decisões que vem tomando em representação da empresa. Porém, esta actividade da arguida AA sempre foi exercida em conjunto com o arguido BB, seu ex-marido, que, apesar de nunca ter sido sócio ou gerente da sociedade arguida, sempre actuou como tal, exercendo, de facto, a gerência efectiva daquela, tomando ambos os arguidos em conjunto todas as decisões respeitantes à vida da empresa. A sociedade arguida exerceu a sua atividade num stand denominado “B...”, sito no local da sua sede, onde, em data não concretamente apurada mas anterior a Março de 2018, através dos arguidos AA e BB, seus representantes, adquiriu a NN, por intermédio de OO e pela quantia de € 11.500, um veículo automóvel da marca Seat, Modelo ..., do ano de 2012, usado e com matrícula francesa. Esta viatura havia sido acidentada em 24-6-2016, tinha o chassi empenado e apresentava falhas de segurança para o condutor e passageiro, designadamente avaria no cinto de segurança do passageiro, falta de airbags do condutor e do passageiro e problemas mecânicos nos injectores. No entanto, e apesar de saberem do estado em que se encontrava a viatura, os arguidos resolveram colocá-la à venda pela quantia de € 13.800 como se estivesse em perfeitas condições de circulação, pelo que a puseram em exibição naquele stand da sociedade arguida e colocaram-lhe no tablier um papel impresso do stand com a identificação da viatura, o preço de venda e os extras que alegadamente possuía, designadamente airbag do condutor e do passageiro, conforme documento de fls. 13 que aqui se dá por integralmente reproduzido. Em inícios ou meados daquele mês de Março de 2018, os arguidos AA e BB foram contactados, naquele stand, pelo ofendido CC, que pretendia adquirir uma viatura. Então aqueles arguidos mostraram ao ofendido o referido veículo dizendo-lhe que estava em bom estado de conservação e em perfeitas condições de circulação e que era uma oportunidade única de negócio, indicando-lhe todas as características e extras que constavam do papel que tinham colocado no respetivo tablier e que lhe entregaram, garantindo-lhe que a viatura tinha todas as características e extras que ali enumeraram, incluindo os airbags do condutor e do passageiro. Porque confiou no que lhe foi transmitido pelos arguidos sobre o estado e as características daquele veículo, o ofendido achou a sua aquisição um bom negócio, pelo que resolveu adquiri-lo pelo preço proposto de € 13.800. Para o efeito o ofendido recorreu ao crédito para consumo e, no dia 19 de Março de 2018, celebrou com a Instituição Financeira de Crédito E..., por intermédio da sociedade arguida, o contrato de financiamento nº ..., cuja cópia se encontra a fls. 87 a 97, nos termos do qual, para a aquisição daquela viatura, foi-lhe concedido o financiamento no valor de € 13.000,00, que foi pago à sociedade arguida, ficando o ofendido de pagar tal montante à E..., acrescido dos respectivos juros e demais acréscimos, em 120 prestações mensais no valor de € 184,71 cada uma. E, no dia 27 de Março de 2018, a sociedade arguida, por intermédio dos arguidos AA e BB, entregou o ofendido a dita viatura, à qual foi atribuída a matrícula portuguesa ..-UM-... Mais lhe entregaram a declaração de circulação, a proposta de compra e venda com as condições de pagamento e a carta de garantia cujas cópias se encontram a fls. 14 a 16, recebendo dele, nessa altura, o montante restante de € 800 em dinheiro. As condições que os arguidos alegaram sobre as características e estado da referida viatura foi factor determinante para a concretização do negócio, fazendo o ofendido sentir-se seguro quanto ao bom estado de funcionamento e a segurança da viatura. Porém, àquela data, o mencionado veículo não tinha airbags nem do condutor nem do passageiro, conforme erradamente os arguidos fizeram constar da folha impressa com as características extras do mesmo, tendo previamente alterado as instalações elétricas da viatura de forma a fazê-la aceitar que tinha airbag do passageiro. Por outro lado, e ao contrário do que deram a entender ao ofendido, essa viatura tinha sido acidentada em 24 de Junho de 2016, como resulta do relatório auto DNA da mesma, e, para além dos problemas mecânicos nos injetores, tinha também o chassi empenado. O ofendido só adquiriu o dito veículo por estar convencido de que o mesmo tinha os airbags do condutor e do passageiro, nunca tinha sido acidentada e estava em bom estado, pois que se soubesse que não tinha aqueles airbags, que já tina sido acidentada, que tinha o chassi empenado e problemas mecânicos nos injectores, como veio a verificar após a compra, não o tinha adquirido por aquele preço. Embora não concretamente apurada, a diferença de valor entre a viatura da marca Seat, Modelo ..., de matrícula ..-UM-.., sem acidentes, sem avarias e sem falhas de segurança, com ambos os airbags do condutor e do passageiro, para a mesma viatura mas acidentada, com o chassi empenado, com falhas de segurança e sem os airbags do condutor e do passageiro, é de pelo menos € 4.472,28, valor que o ofendido terá que despender com a colocação daqueles airbags e acerto do chassi, conforme orçamento de fls. 242 que aqui também se dá por integralmente reproduzido. Ao agirem da forma descrita, fazendo crer ao ofendido que a referida viatura possuía qualidade superior à que realmente tinha, visaram os arguidos AA e BB prejudicar o ofendido e obter para a sociedade arguida enriquecimento ilegítimo, através de engano sobre factos que astuciosamente provocaram, determinando com tal conduta que o ofendido adquirisse a viatura, que, se fosse conhecedor das suas reais características e do seu real estado de conservação, não teria adquirido, sofrendo, por isso, um prejuízo de valor não inferior a € 4.472,28. Os arguidos AA e BB agiram deliberada, livre e conscientemente, conjuntamente e em conjugação de esforços, em nome e no interesse da sociedade arguida e na qualidade de seus representantes, e em execução de um plano por eles previamente elaborado, bem sabendo que as suas condutas violavam preceitos legais. Praticaram, assim, os arguidos AA e BB, em co-autoria material, um crime de burla, na forma consumada, p.p. pelo art. 217/1 do C.P. Cometeu também a sociedade arguida “A..., Sociedade Unipessoal, Lda.” um crime de burla p.p. pelo mesmo normativo – cfr. art. 11/2/a do C.P. viii). Em 27.06.2023 o assistente aderiu à acusação deduzida pelo Ministério Público e formulou pedido de indemnização civil contra os três arguidos acusados. II.4. Análise dos fundamentos do recurso §1. O recorrente discorda da decisão de declarar extinto o procedimento criminal contra os três arguidos, por falta de queixa contra um dos (com)participantes dentro do prazo legal – beneficiando os restantes dessa omissão – e, consequentemente, falta de legitimidade do Ministério Público para os acusar. Entende que tal decisão assenta numa errada interpretação dos art.ºs 114.º e 115.º, n.º 3, do CP, pois o ofendido não tinha de saber a qualidade jurídica em que o arguido BB atuou, nem o dever de distinguir as funções de um comercial das de um gerente de facto de uma pessoa coletiva, não devendo ser prejudicado por essa incerteza. Quando confrontado com a (com)participação de BB, o ofendido reafirmou o seu desejo de prosseguir com o procedimento criminal. §2. Vejamos. O direito penal estrutura-se em torno do facto criminoso – facto típico, ilícito e culposo – que fundamenta a responsabilidade penal. Quando um crime é cometido em comparticipação – i.e. com a colaboração de várias pessoas na execução do mesmo facto, mediante acordo prévio – mantém-se a unidade material da ação, ainda que existam diversos (co)autores. A essa unidade do facto criminoso interliga-se o princípio da igualdade entre os (com)participantes, de raiz constitucional (art.º 13.º, da Lei fundamental), o qual impõe que, tendo várias pessoas contribuído para o mesmo resultado criminoso, ou todas respondem criminalmente por ele ou nenhuma pode ser responsabilizada, não podendo algum(ns) dos coautores do mesmo facto ficar(em) impune(s) por razões estranhas à justiça do caso. §3. Nos crimes semi-públicos (e também particulares) o Estado confere prevalência aos interesses particulares do ofendido (de natureza material, social, familiar, reserva da intimidade, etc…) face ao interesse público da realização da justiça, subordinando o procedimento criminal à iniciativa daquele. Na situação em apreço, a queixa e a acusação deduzida pelo Ministério Público referem-se ao crime de burla, p. e p. pelo art.º 217.º, n.º 1, do CP, de natureza semi-pública, por a instauração do respetivo procedimento criminal estar dependente de queixa (n.º 3 do mesmo artigo e 49.º do CPP). Como ensina Figueiredo Dias, “[q]ueixa é o requerimento (…), feito segundo a forma e no prazo prescritos, através do qual o titular do respectivo direito (em regra o ofendido) exprime a sua vontade de que se verifique procedimento criminal por um crime cometido contra ele (…) (in Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas – Editorial Notícias, 1993, §1063, p. 665). Distingue-se da mera denúncia, por esta apenas visar comunicar a suspeita da prática de crime, podendo ser apresentada por qualquer pessoa, sem estar sujeita a forma ou prazos. A jurisprudência e a doutrina têm entendido, de modo uniforme, que a queixa pode assumir “toda e qualquer forma que dê a perceber a intenção inequívoca de que tenha lugar procedimento criminal por um certo facto” (ob. cit. §1086, p. 675), não se exigindo a qualificação jurídica dos factos, nem a descrição completa ou exaustiva do episódio criminoso, nem, tão pouco, a identificação precisa ou a pessoalização dos seus agentes (quando o ofendido não disponha de elementos bastantes para o efeito). Basta que dela se extraia a vontade de que tenha lugar procedimento criminal contra os eventuais agentes responsáveis pelo substrato fáctico descrito, ainda que de forma incompleta. Em termos processuais, a queixa constitui-se como um simples pressuposto da abertura do processo criminal. Uma vez exercido o direito de queixa, o Estado retoma o monopólio da investigação sem quaisquer condicionantes, devendo o Ministério Público realizar todas as diligências necessárias à descoberta da verdade. Por outras palavras, o direito de queixa, tendo fundamento na tutela dos interesses do ofendido, que pode decidir mobilizar, ou não, o sistema penal, não permite condicionar a investigação, designadamente sobre quem pode ou será perseguido. §4. Sucede que nos casos de comparticipação, através da faculdade da apresentação da queixa ou do seu não exercício tempestivo, o ofendido pode, em teoria, escolher quem quer ver perseguido criminalmente pelo mesmo facto. Tal resultado apresentar-se-ia como arbitrário, porque destruidor da unidade do facto criminoso e violador do direito à igualdade de tratamento dos comparticipantes. Com efeito, o ofendido deve poder escolher os factos (no sentido do episódio criminoso) a perseguir criminalmente, mas não já, de entre os comparticipantes que nele intervieram, os sujeitos que hão de ser punidos. Com referem Manuel Simas Santos e Manuel Leal-Henriques, “Seria uma solução que se reputa de todo desrazoável e que, em certa medida, faria reviver ou relembrar a instituição primitiva da vingança privada. “Que a lei possa escolher as pessoas, objectivamente, em função de certas qualidades, parece evidente; que o possa fazer o ofendido é solução que parece ser de todo em todo de repudiar” (BMJ 151-68).” (in Código Penal Anotado, Rei dos Livros, 4ª ed. 2015, Vol. II, p. 567). Consciente desta tensão entre a indivisibilidade do facto criminoso e a titularidade do direito de queixa, o legislador introduziu mecanismos normativos que, justamente, impedem a fragmentação injustificada da responsabilização dos coautores, por força do exercício do direito de queixa ou da falta dele, designadamente nos art.ºs. 114.º e 115.º, n.º 3, do CP. §5. O art.º 114.º, do CP, sob a epígrafe “extensão dos efeitos da queixa”, dispõe que “[a] apresentação da queixa contra um dos comparticipantes no crime torna o procedimento criminal extensivo aos restantes”. Pode acontecer que, no decurso da investigação do facto criminoso narrado na queixa, sejam identificados (co)autores que não se encontravam pessoalizados ou sequer vagamente mencionados na queixa apresentada, por desconhecimento do ofendido ou por falta de elementos que lhe permitissem, com a necessária segurança, reconhecer a relevância criminal da sua conduta. Quando tal suceda, a queixa apresentada contra um coautor estende-se, por força da lei, aos restantes cuja identificação e/ou atuação relevante emergiu da investigação. Tal norma, além de dispensar que o ofendido dirija nova queixa ou estenda a inicial a estes coautores assim identificados, permite ao Ministério Público acusar todos os comparticipantes, ainda que o ofendido não tenha mencionado algum(ns) dele(s) na queixa. §6. O art.º 115.º, n.º 3, do CP, sob a epígrafe “extinção do direito de queixa”, estabelece que [o] não exercício tempestivo do direito de queixa relativamente a um dos comparticipantes no crime aproveita aos restantes, nos casos em que também estes não puderem ser perseguidos sem queixa. Se o ofendido, apesar de estar seguro da identificação e relevância jurídico-penal da atuação de algum dos comparticipantes, deixar expirar o prazo de 6 meses (contados da data em que tiver tido conhecimento do facto e dos seus autores - art.º 115.º, n.º 1, do CP), para apresentar a queixa contra o mesmo, tal omissão aproveita a todos os coautores, mesmo que a queixa tenha sido apresentada contra alguns deles dentro do prazo. A lei consagra, assim, o chamado princípio da indivisibilidade da queixa, impedindo o Ministério Público (pelo menos) de acusar qualquer um dos comparticipantes, por não ser aceitável uma eventual condenação de apenas alguns dos comparticipantes por opção do ofendido. §7. Estes dois preceitos, pela positiva e pela negativa, asseguram a coerência do sistema e o princípio da igualdade, obstando a que o direito de queixa fragmente a resposta punitiva do facto criminoso. Evita-se, assim, tanto a discricionariedade positiva (perseguir uns e não outros) como a negativa (deixar caducar o direito quanto a uns e manter o procedimento quanto a outros) por parte do ofendido. É que o direito de queixa cumpre apenas uma função processual de condição de procedibilidade, não podendo servir de instrumento de decisão pessoal do ofendido sobre quem deve ser perseguido. §8. À luz do exposto, e partindo-se do pressuposto de que o legislador se exprime de forma adequada e consagrou as soluções mais acertadas (art.º 9.º, n.º 3, do CC), a interpretação conjugada dos art.ºs 114.º e 115.º, n.º 3, do CP, apenas se revela coerente se o segundo preceito for aplicável unicamente aos coautores não mencionados na queixa que o ofendido conhecia ou podia conhecer com segurança jurídico-penal no momento da sua apresentação, por dispor dos elementos necessários para o efeito, e deliberadamente não quis perseguir criminalmente. Quando, segundo o bom senso e a experiência comum, o ofendido possa aceitavelmente duvidar da qualidade jurídica da intervenção de certa pessoa como coautor, não pode falar-se em inércia processual relevante (falta de queixa e/ou de aditamento da mesma) que se sobreponha e impeça o prosseguimento do procedimento criminal por ausência da condição de procedibilidade. §9. In casu, em 21.01.2019 o ofendido apresentou queixa contra a sociedade “A..., Sociedade Unipessoal, Lda.” e contra AA, sua gerente de direito (e de facto, também). Narrou ter sido induzido, mediante artifícios enganosos, à aquisição de um veículo automóvel que não possuía as características que lhe foram asseguradas. O episódio delituoso centra-se, assim, num negócio de compra e venda, em que o ofendido diz ter sido astuciosamente induzido em erro pela atuação da gerente AA, que interveio pessoal e diretamente no processo negocial. No decurso da investigação, o Ministério Público veio a identificar BB como coautor, porquanto, à data dos factos, exercia funções de gerência de facto da sociedade arguida, tendo tido intervenção ativa nas negociações em causa, conjuntamente com AA, num contexto de atuação concertada entre ambos. Em declarações complementares, o ofendido afirmou que: “Conhece BB, à data dos factos proprietário do " B...", companheiro/marido de AA e foi este quem lhe vendeu a viatura; Foi com o referido casal que negociou a compra da viatura, (…); Foi por aconselhamento do casal que o levou a adquirir a viatura, tendo sido informado que se tratava de uma viatura com bom preço e em perfeitas condições de circulação. (…). Continua a desejar procedimento criminal contra os denunciados.”. Aqui chegados é inequívoco que a queixa apresentada contém a descrição essencial do episódio alegadamente criminoso – o negócio da compra e venda do veículo, sustentado em informações inverídicas sobre determinadas características do automóvel, que foram determinantes para a celebração do contrato e o pagamento do preço acordado, o que foi feito de forma astuciosa –. A queixa, tal como foi formulada, exprime claramente a vontade do ofendido no sentido da instauração de procedimento criminal destinado a apurar a responsabilidade penal pelos factos de que se diz vítima, o que tanto basta para desencadear uma investigação criminal. No que respeita à indicação dos presumíveis responsáveis criminais, e sem prejuízo do dever que impende sobre o apresentante da queixa de identificar todos os que sejam por si conhecidos e cuja (com)participação criminal seja clara e inequívoca, a lei não impõe a identificação exaustiva de todos os eventuais comparticipantes, sobretudo quando subsistam dúvidas quanto à natureza e extensão da intervenção de algum deles. Acompanhamos o entendimento do recorrente ao considerar que, em termos de normalidade prática, não é facilmente discernível para um ofendido se quem intervém nas negociações de venda de um automóvel atua na qualidade de proprietário do stand (quando formalmente não o é), de gerente da sociedade vendedora (sem que o seja de direito) ou a qualquer outro título, por exemplo como mero colaborador comercial que age por conta e sob instruções de outrem. Apesar de o ofendido ter declarado que, à data dos factos, BB participou ativamente nas negociações, conjuntamente com AA, e que o percecionava como proprietário do stand, tal circunstância é, por si só, insuficiente para que o ofendido se convencesse, com a segurança necessária, da qualidade funcional com que aquele atuava. Com efeito, os documentos de que dispunha (registo comercial da sociedade) não corroboravam essa impressão subjetiva, nem demonstravam que o arguido detivesse a qualidade de gerente da sociedade titular do stand. Tal ausência de comprovação documental é bastante para sustentar uma dúvida legítima quanto à real natureza e extensão da intervenção de BB, bem como quanto à qualidade funcional em que atuou no contexto dos factos em apreço. Acresce que o ofendido é um particular, sendo razoável supor, à luz das regras da experiência, a ausência de conhecimentos específicos na área da gestão de empresas, tanto mais quando a estrutura societária em causa se apresentava envolta em alguma opacidade. Assim, a mera perceção subjetiva do ofendido – reconduzível a uma simples desconfiança –, ademais contrariada pela informação oficial constante do registo comercial da sociedade, não pode ser tida como suficiente para afirmar que o ofendido tinha, ou devesse ter, consciência da relevância criminal da intervenção de BB enquanto coautor. De resto, como bem assinalam o recorrente e o assistente, não se descortina que o queixoso tivesse qualquer interesse em omitir a identificação deste arguido na queixa-crime, caso dispusesse de elementos seguros para o qualificar como coautor. Exigir que o queixoso, logo no momento da apresentação da queixa, formulasse um juízo técnico-jurídico definitivo sobre a qualidade em que o arguido interveio, sem dispor de elementos formais que o respaldassem, excede manifestamente o grau de exigência legalmente imposto à formulação de uma queixa-crime. Por conseguinte, não se podia exigir ao ofendido que, antes da instrução probatória do inquérito, identificasse BB, com segurança jurídica-penal, como coautor do ilícito. Dito isto, sendo a narração dos factos constante da queixa suficiente para desencadear a investigação e, no decurso desta, sem afastamento do núcleo essencial do episódio criminoso descrito, vindo a apurar-se a intervenção de BB, opera automaticamente o regime imperativo da extensão da queixa previsto no art.º 114.º, do CP, o que dispensa o ofendido de formalizar nova queixa contra este comparticipante identificado no inquérito. Sob outra perspetiva – agora pela negativa –, a omissão na queixa-crime de referência à intervenção de BB não pode ser automática e prejudicialmente interpretada como falta de exercício tempestivo do direito de queixa relativamente a este arguido. Tal omissão encontra justificação razoável numa incerteza legítima do queixoso quanto à qualidade funcional em que aquele atuou, atendendo a que não era gerente de direito da sociedade vendedora. Essa circunstância impediu o ofendido de dispor, desde o início, de elementos firmes que lhe permitissem qualificá-lo como coautor. Deste modo, não se pode concluir que o ofendido se absteve de exercer o direito de queixa contra BB, uma vez que não lhe era exigível o conhecimento sustentado da posição funcional e da relevância penal da sua participação. Em síntese, deve prevalecer a aplicação do disposto no art.º 114.º, do CP, reconhecendo-se a extensão legal da queixa ao arguido BB, identificado como coautor no decurso da investigação, e, consequentemente, a legitimidade do Ministério Público para deduzir acusação contra os três arguidos. §10. Esta interpretação conduz à revogação da sentença proferida, devendo a mesma ser substituída por outra que aprecie o mérito da causa. Termos em que procede o recurso. III. DISPOSITIVO Pelo exposto, acordam os juízes da 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em julgar procedente o recurso interposto pelo Ministério Público e, consequentemente, revogar a sentença recorrida, a qual deverá ser substituída por outra que conheça do mérito da causa. Isento de custas (art.ºs 522.º, n.º 1, do CPP, e 4.º, n.º 1, al. a), do RCP). Notifique e D.N. Porto, 29/10/2025 Madalena Caldeira Raúl Esteves Nuno Pires Salpico |