Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
207/19.7GAPVZ.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: PAULO COSTA
Descritores: INDÍCIOS INDIRECTOS DA PROVA
SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA
Nº do Documento: RP20250326207/19.7GAPVZ.P1
Data do Acordão: 03/26/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL (CONFERÊNCIA)
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO AO RECURSO INTERPOSTO PELA ASSISTENTE.
Indicações Eventuais: 1. ª SECÇÃO CRIMINAL
Área Temática: .
Sumário: I - O tribunal considerou que, apesar dos vários indícios indiretos que ligavam o arguido ao furto, a prova não era suficiente para ultrapassar a dúvida razoável.
Parte dos indícios como a descoberta de bens iguais aos furtados na garagem do arguido, a ausência de sinais de arrombamento, o facto de o arguido ter conhecimento técnico dos produtos furtados e de ter deixado de atender telefonemas após o furto são considerados indícios relevantes, mas desconsiderou a relação tensa entre assistente e o arguido e suas dificuldades financeiras, a bancada de trabalho específica e o facto da mesma sempre ter possuído prateleira, o minifrigorífico igual e com o mesmo autocolante, objetos que estavam na véspera do furto no armazém e que o arguido disse tê-los removidos meses antes, a possibilidade de transportar os objetos furtados por uma só pessoa, repartindo os moldes, a presença da viatura carrinha e atrelado específico no local e data da ocorrência do crime, a ausência de explicação cabal para o facto de ali se encontrar a viatura e atrelado no fim de semana do desaparecimento dos objetos quando, no dizer do arguido, já havia cessado a relação laboral e entregado as chaves ao responsável, pelo que tudo aponta para que o autor do furto dos objetos tenha sido o arguido.
II - Os alegados contra-indícios são mais frágeis porquanto contrários às regras da experiência analisadas no contexto global dos factos diretos e indiretos apurados, pelo que não tem aplicação o princípio in dubio pro reo.
III - Dentro das penas de substituição não privativas da liberdade, apenas a pena de prisão suspensa na sua execução, mediante a ameaça sobre o arguido de cumprimento da prisão efetiva, com condições, pode ter o pretendido efeito de afastar o arguido da criminalidade [cfr. artigo 50.º, n.º 1 do Código Penal].
IV - Justifica-se suspender a execução daquela pena de prisão por um período de 5 (cinco) anos, conforme o disposto no artigo 50.º, n.º 5 do Código Penal, mediante a condição de pagamento da indemnização a que venha a ser condenado.
V - O montante fixado deverá ser pago em 05 fases correspondentes a cada ano da suspensão e até ao término de cada um dos anos, a que deverão acrescer os juros vencidos e vincendos.

(Sumário da responsabilidade do relator).
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. Nº 207/19.7GAPVZ.P1

Tribunal de origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto – Juízo Local Criminal ...

Relator Paulo Costa

1º Adjunto Pedro M. Menezes

2º Adjunto Castela Rio

Acordam, em conferência, na 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto

I. Relatório

No âmbito do Processo Comum Singular em epígrafe id. a correr termos no Juízo Local Criminal ... por sentença foi decidido:

« Nestes termos, julga-se a acusação pública improcedente e, em consequência, decide-se:

a) Absolver o arguido AA, pela prática, em autoria material, de 1 (um) crime de furto qualificado, p. e p. pelo art. 204.º, n.º 1, alínea a) por referência ao art. 202.º, alínea a), ambos do CP;

Mais decide-se quanto à instância cível:

b) Julgar o pedido de indemnização civil formulado pela demandante A..., Lda. totalmente improcedente e, em consequência, absolver o demandado AA da instância cível.


*

Sem custas criminais, - art. 513.º, n.º 1, a contrario sensu do CPP. »

*

Inconformado o A..., LDA, ASSISTENTE interpôs recurso, solicitando a revogação da decisão proferida e a sua substituição por outra que condene o arguido, concluindo (transcrição):

« CONCLUSÕES:

1. O tribunal recorrido, por sentença proferida a 19 de junho de 2024, decidiu, na parte criminal: Absolver o arguido AA, pela prática, em autoria material, de 1 (um) crime de furto qualificado, p. e p. pelo artigo 204.º, n.º1, alínea a) por referência ao artigo 202.º, alínea a), ambos do CP.

2. A Assistente/Reclamante considera que foram incorretamente dados como não provados os factos número I, II e III, elencados na sentença recorrida, em virtude de ter havido produção de prova suficiente, em audiência de julgamento, para os considerar como provados, como infra iremos ver.

3. Desde logo, atenta a prova testemunha produzida e examinada em sede de audiência de julgamento, a qual se encontra devidamente identificada ao longo das motivações de recurso, e que, por uma questão de brevidade e economia processual, se dão aqui como integralmente reproduzidas para todos os devidos efeitos legais, entendemos que se deveria ter dado como provada a factualidade supra descrita.

4. Em Primeiro lugar, quanto facto dado como não provado na sentença sob o número, com base na prova testemunhal produzida em sede de audiência de discussão e julgamento foi possível concluir de facto que foi o Arguido, que entre as 18h30 do dia 5 de julho de 2019 (sexta- feira) e as 9h00 do dia 8 de julho de 2019 (segunda-feira), que deslocou ao armazém da Assistente e trouxe consigo os objetos descritos na acusação.

5. O que não se pode aceitar, uma vez que, contrariamente ao que se fez constar da motivação da sentença, não existe apenas uma circunstância (a bancada de trabalho e mini- frigorifico furtados se encontrarem na garagem do arguido) que deva ser tomada em conta para se concluir ou não pela autoria do crime.

6. Existem várias outras circunstâncias/ índicos da prática do crime pelo Arguido, que resultam da da prova constante dos autos e da prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento nas passagens supra transcritas. Que são os seguintes:

- foram furtados vários bens do armazém da Assistente entre as 18:30 h do dia 05 de julho de 2019 (sexta-feira) e as 09:00 horas de 08 de julho (segunda-feira);

- o último dia que o arguido trabalhou para a assistente foi no dia 05 de julho de 2019 (sexta- feira);

- no fim de semana em que ocorreu o furto o veículo automóvel com o reboque atrelado do Arguido foram vistos no estacionamento do armazém da Assistente;

- contrariamente a outras alturas, na data em causa o arguido não possuía qualquer justificação ou fundamento para se deslocar ao armazém ou se encontrar no seu estacionamento por já lá não trabalhar;

- nem possuía qualquer justificação ou fundamento para se deslocar com o reboque atrelado;

- o arguido possuía as chaves do armazém da Assistente;

- não existiam sinais de arrobamento;

- os bens podem ser transportados no reboque do arguido;

- parte dos bens furtados rerem sido encontrados na casa de residência do arguido dias após o furto,;

- o arguidos não apresenta qualquer justificação válida e credível para o facto dos bens se encontrarem na sua casa de residência, tendo apenas declarado que os foi buscar ao armazém da Assistente entre maio e junho o que é contrariado pela prova testemunhal produzia em sede de audiência de discussão e julgamento, que afirmam que os bens se encontravam no armazém no final do dia 05 de julho.

- Arguido e o legal representante da assistente encontravam-se desavindos;

- o Arguido possuía conhecimentos técnicos adequados e interesse particular nos bens furtados do armazém da Assistente,

7. Com efeito, se olharmos minuciosamente para a prova produzida, teremos sempre de concluir que o foi o Arguido o autor do Furto.

8. Tal como resulta do depoimento da Testemunha BB, o Arguido foi visto no fim-de-semana do assaltado no estacionamento do Armazém da Assistente, pelo que é certo que o Arguido esteve no armazém do Assistente, no sábado dia 6 de julho, não havendo outra razão para o facto de o carro do Arguido ter sido visto junto ao armazém da Assistente.

9. Aliás, foi visto o carro do aqui Arguido com um atrelado e questionado- se o porquê de o Arguido ter levado o seu atrelado naquele sábado para perto do armazém do Assistente, se não fosse para transportar os bens que a Assistente teria no seu armazém, sendo que a tal raciocínio também chegaria um homem médio perante a situação descrita, nomeadamente, das circunstâncias descritas no presente caso, o lugar em causa, e o envolvimento do arguido com o representante da Empresa, como infra melhor se explanará.

10. Para além do mais, o Arguido tinha na sua posse as chaves do armazém, o que fora confirmado pelo depoimento da Testemunha CC.

11. Apesar de o arguido ter dito ao trabalhador CC, testemunha nos autos, duas semanas antes da ocorrência do furto que tinha perdido as chaves, deste depoimento não podemos retirar a conclusão de que o arguido teria perdido efetivamente as chaves. Apenas poderemos esclarecer que o arguido já estaria a planear o furto, tendo informado que teria perdido as chaves.

12. Mais se diz, que o arguido apenas comunicou o desaparecimento das chaves a um trabalhador, invés do Representante legal da Empresa, sendo que esta a conclusão também se retira do depoimento da Testemunha CC.

13. Além disso, não obstante o arguido ter declarado perder as chaves a esta testemunha, em sede de audiência de discussão e julgamento referiu ter entregue as chaves ao legal representante da Assistente, o que não foi por este confirmado.

14. Acresce-se ainda, que não houve sinais de arrombamento nem desarrumação na porta do armazém do Assistente segundo o depoimento da Testemunha DD, sabendo o autor do crime exatamente o que procurar e como.

15. A par disto, foram encontrados bens dados como furtados nos autos na casa do arguido, identificados juntos aos autos no Auto de Busca e Apreensão, nomeadamente uma bancada de trabalho e um mini frigorífico com um autolocante da marca “Zedtech, seno que o mini- frigorífico encontrado na casa do Arguido teria esse mesmo autocolante.

16. Repara-se ainda que estes bens aos dias 5 de julho de 2019 (sexta-feira), no final do dia estavam no armazém, e no dia 8 de julho de 2019 (segunda-feira), pela manhã já não estariam lá, mas na casa do arguido, o que foi confirmado através do depoimento da Testemunha EE e ainda do depoimento da testemunha CC.

17. Constando das declarações do arguido, prestadas de forma a camuflar o crime praticado, por o auto de busca e apreensão do dia 8 de julho de 2019 constarem tais bens na sua residência, que foi buscar os mencionados bens do armazém para a sua residência entre maio e junho – o que efetivamente demostra a falsidade deste depoimento contrariado unanimemente pela prova testemunhal produzida em sede de audiência de discussão e julgamento.

18. Ao contrário do que o Tribunal a quo, que considerou que a testemunha CC, não confirmou que era a sua bancada de trabalho encontrada na casa do arguido, salvo o devido respeito, não é essa a conclusão que poderemos retirar do depoimento ora transcrito.

19. Com o depoimento da Testemunha CC esclarecemos apenas que a bancada encontrada na casa do Arguido era igual à bancada de trabalho onde a testemunha CC trabalhava. Apesar de a testemunha ter esclarecido que a sua bancada não teria uma prateleira como a bancada retratada nas folhas 22 dos autos, não se pode chegar à conclusão com este depoimento, que a bancada seria outra porque a Testemunha CC foi clara e evidente quando disse que a sua bancada era única e que correspondia à que estava na casa do Arguido.

20. Já, que no diz respeito, ao frigorífico, o mesmo sucede. O Tribunal a quo, salvo o devido respeito, fez uma incorreta valoração da prova. O mesmo frigorífico que se encontrava no armazém da Assistente na sexta-feira, 5 de julho de 2019, fora o mesmo que foi encontrado na casa do Arguido, na segunda-feira, 8 de julho de 2019, tendo sido este facto confirmado com vários depoimentos, como o depoimento da testemunha DD, e ainda com o depoimento da Testemunha FF.

21. Com estes depoimentos, apenas ficamos duplamente esclarecidos que se tratava do mesmo frigorífico que fora encontrado na casa do arguido, até porque o mini-frigorifico, tinha uma característica o autocolante da Empresa “B...”. E, notemos naquele depoimento que o mini- frigorifico que estava no armazém da Assistente teria o mesmo autocolante da Empresa “B...” que o mini-frigorifico encontrado na casa do Arguido. Mais uma vez, um homem médio, tendo em conta todo o enredo, não poderia concluir outra coisa, se não o frigorífico encontrado na casa do Arguido for o mesmo que estava na sexta-feira, antes da ocorrência do furto, no armazém da Assistente.

22. De seguida, o Auto de Busca e Apreensão ocorreu exatamente na segunda-feira dia 8 de julho de 2019, dia em que o representante legal da empresa teve conhecimento do furto. Perante isto, questionamos se não foi o Arguido o autor do furto, como se poderá explicar que os mesmos bens que estavam no armazém da assistente na sexta-feira, 5 de julho, apareceram no dia 8 de julho, segunda-feira na casa do arguido, se não fosse o mesmo a transportá-los para sua casa nesse fim de semana. Como se poderá explicar o porquê de o carro do arguido, junto do seu atrelado ser visto, naquele fim de semana, junto ao armazém da Assistente. E, mais se afirma, como se poderá explicar o frigorífico encontrado na casa do arguido ter o mesmo autocolante que o frigorífico que estava na empresa dia 5 de julho de 2019, na sexta-feira antes da ocorrência do furto.

23. Não se podem julgar puras coincidências, são puros factos que à luz de os princípios-jurídicos penais da avaliação da prova, juntamente, com avaliação de um homem médio, colocado a apreciar estes factos, chegasse à mesma conclusão: O Arguido foi o autor do furto.

24. Pelo que, com o devido respeito, entendemos ter sido produzida prova suficiente para que o Tribunal a quo, desse este mesmo facto como provado e, ao não o ter feito, julgou incorretamente esse concreto ponto de facto, ao dá-lo como não provado. (Cfr. artigo 412.º, n.º3, alíneas a) e b) do Código de Processo Penal).

25. Quanto aos factos dados como não provados na sentença sob os número II e III, o Tribunal a quo, salvo devido respeito, não fez uma avaliação correta da prova produzida, mesmo que indireta, considerando, erroneamente, estes factos como não provado.

26. De facto, vigora, neste âmbito, o princípio da livre apreciação da prova, consagrado no artigo 127.º do Código de Processo Penal, segundo o qual Salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”.

27. Contudo, temos nos autos prova suficiente, que o arguido teria o propósito, uma intenção de retirar os referidos bens, a sua desavença com o arguido, como a sua má condição-económica no momento.

28. Pelo que, deveria o Tribunal a Quo, focar-se na questão central, da apreciação da prova, mesmo que a prova não fosse direta, sempre seria indireta. Sempre teria o Tribunal, a quo deveria avaliar a prova de forma indireta, aliada sempre às regras da experiência comum, não podendo ser ignoradas.

29. Desde lodo, desde a venda da quota do Arguido ao Representante Legal da Assistente, que o ambiente entre ambos ficou estremecido, o que ficou comprovado pelo depoimento da testemunha AA e mais uma vez pelo depoimento da testemunha CC.

30. Ambos os depoimentos confirmam o mau ambiente que cruzava a relação entre o Arguido e o Assistente, sendo que desde a venda da quota do arguido para o representante legal da Assistente, a relação estreitou-se muito devido à contrariedade de opiniões, entre o arguido e o representante legal da Assistente. Pelo que sempre, tendo em conta a experiência comum, seria de esperar que o Arguido possuísse sentimentos raivosos contra o representante legal da Assistente, querendo prejudicá-lo.

31. A par disto, à época o Arguido, também estaria a passar por um período de financeiro debilitado, tendo algumas dívidas, a que devia fazer face, como comprovado pela Testemunha AA.

32. Sendo que com aquele depoimento podemos esclarecer que o Sr. AA, aqui Arguido, precisaria de dinheiro para fazer face a dívidas, sendo que com a venda de KAYAK e moldes de KAYAK, sempre lhe poderia ajudar a desfazer-se dessas dívidas. Desta forma, sempre teria o Arguido, razão, propósito de se apropriar daqueles bens para fazer face à sua situação financeira.

33. Ademais, sempre o Arguido teria a intenção de recuperar a titularidade da empresa para o seu seio familiar, já que tempo depois sempre a Assistente se viu obrigada a vender a empresa, tendo sido a sua única proposta apresentada pelo cunhado do Arguido, o que foi apresentado pela Testemunha AA através do seu depoimento.

34. Com aquele depoimento, concluímos de facto que sempre teria sido intenção do Arguido que o seu negócio voltasse para o seu seio familiar. Pelo que se apropriar de bens de grande valor, que o Arguido bem sabia o valor desses bens e o que eles representavam para o bom funcionamento da Assistente.

35. Ademais, saberia o Arguido que sem aqueles bens prontos para a venda, a Empresa não teria como sobreviver, pelo que não teria material para a venda e nem os moldes dos barcos em causa nos autos para voltar a produzir os barcos.

36. Atentemos ainda ao depoimento do Sr. CC que referiu que sem um molde homologado não era fácil de ser produzido.

37. Para além do conhecimento do tempo demorado na produção dos barcos, mais saberia o Arguido os barcos mais importantes da Empresa porque já tinha sido sócio-gerente, trabalhou na empresa até à Segunda-Feira, dia 8 de julho de 2019, como também era conhecido no mundo dos Kayaks, conclusão que se retira mais uma vez do depoimento da Testemunha, CC.

38. De facto, o Arguido sempre trabalhou na empresa, sempre soube os bens que a empresa tinha, e sempre teve as chaves da empresa. Apenas na segunda-feira após o furto é que apenas disse que não voltaria para empresa, sem sequer abordar o representar legal da Empresa.

39. Assim sendo, e por tudo o exposto, é do nosso entendimento que deveriam ter sido dados como provados os factos sob o número I, II e III da sentença ora recorrida, uma vez que foi produzida prova e mais prova, em audiência de julgamento, que permita provar que foi efetivamente o arguido a efetuar o furto, sempre que saberia os bens, o local onde se situavam os bens e, o mais importante, teria o motivo de se apropriar os bens, seja para fazer face às suas dívidas, seja para conseguir o recuperar o seu negócio, obrigando o representante legal da Assistente a vendê-la.

40. Pelo que, se requer que tais factos sejam dados como provados, quer no que respeito ao Autor da prática do crime, quer no que dizer respeito ao propósito concretizado de fazer seu os referidos bens, bem sabendo o local, e que lhe não pertenciam, assim como que atuou de modo consciente, voluntário, livre e bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

41. Face ao exporto, o Tribunal recorrido deveria ter dado como provados os factos número I, II e II da matéria de facto não provado, e ao não o ter feito, face à prova produzida nos presentes autos, designadamente testemunhal e documental, acima transcrita e que aqui, por uma questão de economia processual, se dá por integralmente reproduzida para todos os devidos efeitos legais, julgou incorretamente estes concretos pontos ao dá-los como não provados (Cfr. artigo 412.º, n.º3, alínea a) e b) do Código de Processo Penal), violando, entre outros, o princípio da livre apreciação da prova, consagrado no artigo 127.º do Código de Processo Penal.

42. Sempre se dirá que a função do Tribunal recorrido era apreciar a prova e não aderir à prova.

43. Nas presunções de facto os factos não podem ser analisados em rede de malha larga. Exige-se uma fina filigrana de análise dos factos e da prova, algo que faltou na motivação do Tribunal a quo.

44. O Tribunal a quo deveria ter efetuado, salvo o devido respeito, um melhor raciocínio lógico, que

se afere através da existência de factos relevantes que não foram trazidos pelo Tribunal a quo, como os agora apresentado.

45. Aliás, a associação que a prova indiciária permite entre elementos de prova objetivos e regras objetivas da experiência leva alguns autores a afirmarem a sua superioridade perante outros tipos de provas, nomeadamente a prova direta testemunhal, onde também intervém um elemento que ultrapassa a racionalidade e que será mais perigoso de determinar, qual seja a credibilidade do testemunho.

46. Certo, é que ara que a prova indireta, circunstancial ou indiciária possa ser tomada em consideração exigem-se alguns requisitos: pluralidade de factos-base ou indícios; precisão de tais indícios estejam acreditados por prova de carácter direto; que sejam periféricos do facto a provar ou interrelacionados com esse facto; racionalidade da inferência; expressão, na motivação do tribunal de instância, de como se chegou à inferência ; não se admitir que a demonstração do facto indício que é a base da inferência seja também ele feito através de prova indiciária.

47. In casu, consideramos que há uma quantidade de indícios ou indicadores graves, isto é, sérios, importantes, fortes ou intensos; precisos, ou seja, certos e distintos ou exatos; e todos concordantes, quer dizer, coincidentes ou direcionados segundo resultado comum e consequente: o de que os factos se passaram como a acusação, nessa parte, os descrevia e, portanto, se deram como assentes. É aquilo que dos depoimentos testemunhais e dos outros meios de prova a que fizemos referência, pelo que todos factos ditos na acusação deveriam ter de ser dados como provados, sendo que dúvidas não restam quanto à titularidade do crime!

48. Pelo exposto, o Tribunal recorrido não fez, nessa medida, a interpretação e a aplicação mais correta e adequada da prova produzida– o que se impõe que este Tribunal Superior faça a devida Justiça em conformidade com o supramencionado.»

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O M.P. respondeu ao recurso, pugnando pela sua procedência, afirmando:” A prova documental e testemunhal produzida, sendo circunstancial, apontou, a nosso ver, sem margem para dúvidas de que foi o arguido, para além de qualquer dúvida, o autor do furto.”

(…)

Todas as provas conjugadas com entre si convergiram no “facto consequência”: de que foi o arguido o autor da prática dos factos. A dúvida acerca da autoria verdadeiramente não deveria ter existido e como é sabido, só uma dúvida razoável e inultrapassável qualificaria para um in dúbio pro reo, que constitui o brocado latino do princípio constitucional de natureza processual da presunção da inocência.

Os indícios foram graves, porque resistiram às objeções, e, ademais, foram amplamente persuasivos e concordantes entre si. Em suma, deve proceder a invocação de erro de julgamento.”


*

Neste Tribunal da Relação do Porto, a Exmª. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer onde pugnou pela procedência do recurso, subscrevendo a resposta do M.P. a quo, acrescentando “Por isso, apreciando-se a prova directa e indirecta produzida, deveria ter-se concluído que foi o arguido o autor do crime de furto dado como provado.”


*

Cumpridas as notificações a que alude o art. 417.º, n.º 2, do CPPenal, o arguido respondeu:

“a. Ora, salvo o devido respeito, não se verifica qualquer contradição relevante sobre o facto de, no dizer das testemunhas, nenhuma destas confirmou ter visto o arguido naqueles dias, nas imediações sequer da empresa,

b. Desses depoimentos cujos extratos interessantes foram transcritos nestas alegações dúvidas inexistem de que os indícios recolhidos no caso dos autos não se afiguram suficientes para cabal convicção do tribunal da autoria de tal furto pelo arguido,

c. Depoimentos que deram como provado que o peso e dimensões dos moldes e caiaques seriam impossíveis de transportar por uma só pessoa num tão curto espaço de tempo como, no máximo, um fim de semana;

d. Considerou, a M.ª Juiz a quo, – suportada em tese jurisprudencial que cita na douta decisão – que, não existindo um ónus de prova que recaia sobre os intervenientes processuais e devendo o tribunal investigar autonomamente a verdade, deverá este não desfavorecer o arguido sempre que não logre a prova do facto; isto porque o princípio in dubio pro reo, uma das vertentes que o princípio constitucional da presunção de inocência (art. 32.º, n.º 2, 1.ª parte, da CRP) contempla, impõe uma orientação vinculativa dirigida ao juiz no caso da persistência de uma dúvida sobre os factos: em tal situação, o tribunal tem de decidir pro reo.

e. A douta sentença recorrida sublinhou que o armazém da assistente se situava numa zona movimentada, com uma bomba de gasolina na suas proximidades, assim como um stand de automóveis ao lado, não tendo sido visualizado naquele fim de semana qualquer movimento ou a presença do arguido no local.

f. Entende, o Recorrente (ou, talvez melhor o signatário) não ser compatível a tese forçada da assistente e do Ministério Público com a factualidade constantes dos autos e da Douta Sentença, respeitando, embora, os seus entendimentos mas numa boa aplicação do Direito, o arguido deverá manter- se absolvido.”


*

Realizado o exame preliminar, e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência, nada obstando ao conhecimento do recurso.

*

Tendo presente que o arguido foi acusado e pronunciado pelo art. 204º, n º 1 al. a) por referência ao art. 202º, al. a) do Código Penal e que o valor dos objetos se situa no âmbito do art. 202º, al. b) do Cód. Penal foi cumprido o disposto no art. 358º, n º 3 do CPP, em face da alteração não substancial dos factos descritos na acusação e pronúncia.

II. Apreciando e decidindo:

Questões a decidir no recurso

É pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação que apresenta que se delimita o objeto do recurso, devendo a análise a realizar pelo Tribunal ad quem circunscrever-se às questões aí suscitadas, sem prejuízo do dever de se pronunciar sobre aquelas que são de conhecimento oficioso[1].

As questões que o recorrente coloca à apreciação deste Tribunal de recurso são as seguintes:

-Erro de julgamento.

-Errada valoração da prova, invocando contradições e eventual erro notório na apreciação da prova;

-Condenação pela prática do crime de furto qualificado e pedido cível.


*

Para análise das questões que importa apreciar releva desde logo a factualidade subjacente à decisão e razões da sua fixação, sendo do seguinte teor o elenco dos factos provados e não provados e respetiva motivação constantes da sentença recorrida (transcrição):

II. Dos Factos

? A) Factos Provados

? 1. O arguido e GG constituíram a sociedade A..., Lda., a qual se dedica, entre outros, à construção de embarcações de recreio e de desporto, reparação e manutenção de embarcações, importação e exportação das mesmas, aos 28 de Agosto de 2018, figurando ambos como sócios daquela, sendo que, aos 18 de Janeiro de 2019, o arguido transmitiu a sua quota na referida sociedade a GG e a HH, esposa daquele, passando, a partir dessa altura, a trabalhar para a referida sociedade como técnico de formação, tendo sido celebrado um contrato de trabalho a termo certo por três meses.

? 2. Decorrido tal período de três meses, o arguido continuou, no entanto, a trabalhar para a referida sociedade, como prestador de serviços, exercendo as suas funções no armazém da referida sociedade, sito na Rua ..., ..., em ..., na ..., possuindo a chave da porta do referido armazém até data não concretamente apurada.

? 3. Por motivos não concretamente determinados, entre as 18h30 do dia 5 de Julho de 2019 (sexta-feira) e as 09h00 do dia 8 de Julho de 2019 (segunda feira), um indivíduo de identidade não concretamente apurada dirigiu-se ao interior do armazém suprarreferido e dali retirou, e trouxe consigo para local não concretamente apurado, os seguintes produtos:

- um molde ZKI (deck + casco) + gola, no valor de € 3.000,00 (três mil euros);

- um molde ZKI (deck XL), no valor de € 500,00 (quinhentos euros);

- um molde Carrera K1 (deck + casco), no valor entre € 2.500,00 (dois mil e quinhentos euros) a € 3.000,00 (três mil euros);

- um molde Carrera K2 (deck + casco), no valor entre € 2.500,00 (dois mil e quinhentos euros) a € 3.000,00 (três mil euros);

- um molde Canoa, no valor de € 2.500,00 (dois mil e quinhentos euros);

- dois kayak, ZKI, em fase de pintura, no valor de € 2.000,00 (dois mil euros);

- um molde Canoa C1, modelo W (deck + casco), no valor de € 2.500,00 (dois mil e quinhentos euros);

- um molde Canoa C2, AO5 (deck + casco), no valor de € 3.500,00 (três mil e quinhentos euros);

- um molde Goofy (deck + casco), no valor de € 3.000,00 (três mil euros);

- um molde V5314 (deck + casco), no valor de € 3.000,00 (três mil euros);

- uma máquina polidora Makita, no valor de € 300,00 (trezentos euros);

- uma ferramenta laminadora, no valor de € 20,00 (vinte euros);

- uma bancada de trabalho, no valor de € 250,00 (duzentos e cinquenta euros);

- um mini-frigorifico, de cor branca, com um autocolante a dizer B..., de valor não concretamente apurado, mas inferior a uma unidade de conta;

- um kayak ZKI, Proelite, branco e preto, no valor de € 1.800,00 (mil e oitocentos euros);

- um kayak ZKI, Proelite, branco e preto, no valor de € 1.800,00 (mil e oitocentos euros);

- um kayak ZKI Sport, branco e vermelho, no valor de € 1.300,00 (mil e trezentos euros);

- um kayak KI, branco no valor de € 1.800,00 (mil e oitocentos euros).

4. No dia 8 de Julho de 2019 o arguido já não compareceu no seu local de trabalho, como fazia diariamente.

? 5. No dia 9 de Julho de 2019, foi encontrado, no interior da garagem da residência do arguido, uma bancada de trabalho e um mini-frigorifico idênticos aos referidos em 3.

Mais se apurou que:

? 6. Não foram recuperados nenhum dos produtos descritos em 3.).

Do pedido de indemnização civil:

? 7. Em virtude do acontecimento referido em 3.), a assistente não conseguiu proceder à entrega de caiaques no prazo acordado na encomenda.
Mais se apurou quanto ao arguido:

? 8. O arguido reside em habitação própria com a esposa e a filha mais nova.

? 9. O arguido tem duas filhas de 28 e 29 anos.

? 10. É prestador de serviços de reparação de materiais e fibra, auferindo, em média, € 2.500,00 por mês.

? 11. É treinador de canoagem não auferindo rendimentos de tal atividade.

? 12. A esposa do arguido é auxiliar de educação auferindo mensalmente o valor de € 800,00.

? 13. Suporta a prestação mensal de € 539,00, relativamente ao crédito à habitação.

? 14. Despende mensalmente, e em média, cerca de € 150,00 em água, luz e gás.

? 15. Suporta a quantia mensal de € 200,00 para cumprimento de acordo prestacional celebrado com a Segurança Social.

? 16. O arguido tem o 9.º ano de escolaridade.

17. Tem inscrita a seu favor a propriedade de dois veículos automóveis:

i. de marca Renault, modelo ..., com a matrícula ..-GZ-..;

ii. de marca Fiat, modelo ..., com a matrícula ..-..-MR.

18. O arguido não tem antecedentes criminais.


*


? B) Factos Não Provados

I I. O indivíduo referido em 3.) corresponde ao arguido.

II II. Ao atuar pela forma descrita, teve o arguido o propósito concretizado de fazer seu os referidos bens, bem sabendo que os mesmos, bem como o local de onde os retirou, não lhe pertenciam e que atuava contra a vontade do seu legítimo dono.

III III. Atuou de modo livre, voluntário e consciente, bem sabendo ser a sua conduta proibida e punida por lei.


*


III. Motivação da Matéria de Facto

Como dispõe o art. 374.º, n.º 2, do CPP, na elaboração da sentença o tribunal deverá conter a indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal. A apreciação da prova obedece aos parâmetros dos artigos 124.º e ss. do CPP, nomeadamente quanto à valoração dos meios probatórios produzidos nos autos.

No caso, temos que, da prova produzida, não resultou qualquer elemento de prova direta que permita imputar ao arguido a autoria do furto concretamente considerado.

Desde logo, os factos provados descritos sob os n.ºs 1 e 2 resultam da confissão do arguido que os reputou como verdadeiros, conjugando-se com a certidão permanente da assistente de fls. 143 a 145 e o contrato de trabalho de fls. 100 a 102, declaração de fls. 103, acordo parassocial de fls. 94 a 99 e declaração de situação de desemprego de fls. 104, cujo teor saiu incólume em sede de audiência de julgamento.

Na verdade, no que se reporta ao episódio ocorrido entre as 18h30 de 05 de julho de 2019 (sexta-feira) e as 09h00 do dia 8 de julho de 2019, apenas foi possível concluir com segurança que, efetivamente, ocorreu um assalto no armazém da sociedade assistente, não existindo sinais de arrombamento, tendo sido retirados diversos moldes de caiaques, caiaques, ferramentas, uma bancada de trabalho e um mini frigorífico.

Neste sentido, atente-se aos depoimentos conjugados de GG, sócio gerente da sociedade assistente e de CC, trabalhador da assistente e que foi o primeiro a chegar ao local no dia 08 de julho de 2019 (Segunda-feira), de manhã, dando conta do sucedido e da ausência de diversos bens, elencando-os de forma escorreita e credível. Complementarmente, ainda que de forma não tão circunstanciada, estribou-se do depoimento das testemunhas EE e DD, estagiários à data na sociedade assistente, confirmando que efetivamente ocorreu um assalto.

Da conjugação dos sobreditos depoimentos fundou-se a convicção do tribunal quanto à natureza, quantidade, especificidades e valor dos bens que foram furtados.

Acresce ainda a tal convicção a prova documental constante dos autos, nomeadamente a relação de bens de fls. 11 e o relatório fotográfico de fls. 48 a 59.

Do mesmo modo, quanto às circunstâncias de tempo e lugar do mencionado assalto, o tribunal valorou o auto de denúncia de fls. 4 a 6, cujo teor saiu incólume em sede de audiência de julgamento.

Porém, conforme já aflorado, nenhum outro elemento de prova direta permitiu concluir pela intervenção do arguido no assalto em causa nos autos.

Perante este cenário probatório, a questão com que se depara o tribunal é a de saber se existem outros elementos de prova – necessariamente indireta – que permitam alcançar, para além de qualquer dúvida, uma conclusão quanto à autoria do crime de furto em análise nestes autos.

Vejamos.

Desde logo, o tribunal atendeu aos autos de busca e apreensão de fls. 13 a 19, tendo sido confirmado o seu teor pela testemunha II, militar da GNR à data dos factos, que procedeu à sua elaboração.

De tal busca resultou que foram encontrados na garagem do arguido, em 09-07-2019, cerca de dois ou três dias do fim de semana em causa nos autos, uma bancada de trabalho e um mini-frigorífico idênticos àqueles que desapareceram das instalações da assistente. Será tal circunstância suficiente para concluir pela autoria do crime aqui em apreço?

Ora, a este propósito, a jurisprudência dos tribunais superiores tem sido, a nosso ver, clara.

A título exemplificativo vejamos.

No Acórdão do TRE de 19-02-2013, processo n.º 425/09.6GEPTM.E1, decidiu-se que «em processo penal não basta que a hipótese colocada pela acusação seja provável ou mesmo a mais provável, pois o princípio da culpa e da presunção da inocência exigem que o tribunal de julgamento decida para além de toda dúvida com base em meios de prova efetivamente produzidos (ainda que indiretamente, ou seja, versando sobre factos indiciários ou indiretos, demostrados e relevantes, à luz de regras ou máximas da experiência que o permitam).»

Por sua vez, no Acórdão do STJ de 08-11-2018, processo n.º 202/14.2GAPCR.G2.S1, entendeu-se que «a mera circunstância de o arguido ter na sua posse 3 dos objetos subtraídos (sem indícios de ter tentado vender alguns desses objetos) não permite por si só formular um juízo seguro e com uma probabilidade próxima da certeza sobre a autoria do furto.»

Do mesmo modo, no Acórdão do TRG de 28-01-2019, do mesmo processo n.º 202/14.2GAPCR.G2, havia-se decidido que «à luz das regras da experiência, não basta para imputar a um arguido a autoria de um crime de furto, a única circunstância de terem sido encontrados, cerca de um mês após um furto, na sua posse, três dos objetos furtados, mesmo que, confrontado com tal posse, se mantenha em silêncio no julgamento

Já no Acórdão do TRC de 20-09-2017, processo n.º 174/08.2GASPS.C1, «a circunstância de cerca de um ano e quatro meses após a subtração terem sido encontrados na posse do arguido parte dos objetos subtraídos é, per se, insuficiente para determinar uma conexão causal que confira consistente concordância entre a factualidade demonstrada por via de prova direta e os factos indiretamente provados, não permitindo, pois, confirmar que aquele foi o autor da conduta

Também no Acórdão do TRP de 11-01-2012, processo n.º 136/06.4GAMCD.P1, decidiu-se que «a presença de objetos furtados na posse do arguido apesar de indicar, como muito provável, que o arguido tenha sido autor do furto, não deixa de ser razoável a dúvida de que tenha sido outro o autor do crime e que os objetos possam ter vindo, posteriormente, a entrar na posse do arguido: a autoria do furto não é mais do que uma das várias hipóteses possíveis a qual, para além de ser a mais prejudicial para o arguido, carece da segurança exigida pela observância do princípio in dubio pro reo.

Na avaliação das provas quanto à culpabilidade do arguido não podem ter qualquer relevância, mesmo a título acessório, os seus antecedentes criminais ou a imagem que tem junto das autoridades policiais. A autoria de outros crimes não pode criar, na mente do julgador, algum preconceito contrário ao princípio in dubio pro reo.

O direito do arguido ao silêncio impõe que essa circunstância não pode ser valorada contra si, como indício de culpabilidade: do silêncio do arguido não pode concluir-se que é ele o autor do furto porque “quem não deve não teme”, ou porque não apresentou qualquer justificação para o facto de ter na sua posse os objetos furtados.» [todos os citados Acórdãos estão disponíveis em www.dgsi.pt].

Com efeito, atento tal entendimento jurisprudencial que ao qual aderimos, não configura tal circunstância uma certeza cabal de que o desaparecimento de tais bens deveu-se à conduta do arguido, não podendo, por si só, considerar-se o autor do referido furto.

Por outro lado, para além do posicionamento jurisprudencial explanado, importa salientar dois aspetos fulcrais quanto a tal questão e que resultaram da prova produzida.

Assim, a testemunha CC, trabalhador da assistente e colega do arguido, esclareceu que, efetivamente, foi a sua bancada de trabalho que despareceu no fim de semana supramencionado. No entanto, quando confrontado com a reportagem fotográfica de fls. 22 foi perentório em esclarecer o tribunal que a mesa encontrada na residência do arguido, pese embora fosse idêntica à sua bancada de trabalho, não era exatamente igual, porquanto a sua não tinha uma «prateleira em baixo», contrariamente ao que se verificava na bancada existente em casa do arguido.

No mesmo sentido fluiu o depoimento de EE, estagiário da assistente naquele período e durante sensivelmente um mês, quando confrontado com a imagem de fls. 22 referiu ser parecida, mas não tinha a certeza se se tratava da mesma bancada.

Diga-se que, pese embora a testemunha DD, também ele estagiário da assistente naquele período e durante sensivelmente um mês, tenha referido tratar-se da mesma bancada, a verdade é que atenta a segurança resultante do depoimento de CC, realçando a diferença existente entre tais bancadas, conjugando-se com a coerência do seu depoimento e devido distanciamento demonstrado, bem como o facto de CC ser, efetivamente, a pessoa que trabalhava em tal bancada, privilegiou-se o seu conhecimento em detrimento de DD que apenas teve um mês a estagiar no armazém e referiu já não ter presente alguns pormenores do caso concreto, sendo certo que apenas estagiou um mês naquele local há já cinco anos.

Já no que concerne ao mini-frigorífico igualmente encontrado na residência do arguido, à exceção uma vez mais da testemunha DD, nenhuma outra testemunha conseguiu afirmar se se tratava do mesmo frigorífico, pelo que, na mesma senda supra explanada, atento o seu conhecimento inseguro de factos ocorridos há cerca de cinco anos, o tribunal também não formou uma convicção segura quanto a tal questão.

Importa, neste particular, esclarecer a versão do arguido, tendo o mesmo referido que tais bens eram seus. Isto é, a bancada de trabalho era a que usava para trabalhar e não pertencia à sociedade assistente, assim como o frigorífico, tinha sido oferecido pelo seu sogro há mais de vinte anos e também era um bem pessoal e não tinha sido transmitido com a venda da sua quota na sociedade assistente.

Ora, como resulta das regras da experiência comum, e foi igualmente corroborado pelo depoimento da testemunha AA, contabilista da assistente, admite como possível existirem, não raras vezes, nas sociedades comerciais bens pessoais dos seus sócios e/ou trabalhadores, esclarecendo que, pese embora do inventário fossem relacionadas várias bancadas de trabalho, admitiu como possível alguma das bancadas e outros bens serem efetivamente propriedade dos seus sócios e/ou colaboradores.

Isto posto, no que concerne à bancada de trabalho não resultou cabalmente da prova produzida que aquela que se encontrava na residência do arguido correspondesse efetivamente àquela que foi furtada das instalações da assistente.

Por sua vez, quanto ao mini-frigorífico em causa, além de não ser igualmente clarividente que se trata do mesmo eletrodoméstico, também não resultou suficientemente esclarecida a propriedade do bem, isto é, se efetivamente pertencia à sociedade assistente ou não.

Contudo, mesmo que assim não se entendesse, ressalvando a jurisprudência supratranscrita, e à qual aderimos, o simples facto de tais bens serem encontrados na residência do arguido poucos dias depois do desaparecimento dos mesmos, não é, por si só, suficientemente evidente de que o arguido é o autor de tal furto.

No entanto, importa atender aos restantes bens furtados.

Efetivamente, resultou provado que não haviaosinais de arrombamento nas instalações da assistente, nem se encontravam «remexidas» os produtos no seu interior.

Tal poderá evidenciar, por um lado, que quem entrou no interior das instalações da arguida usou uma chave para abrir a porta de acesso, justificando, assim, a ausência de qualquer arrombamento.

Ora, da prova produzida, estribou-se que além do legal representante da assistente GG, também CC e o arguido tinham chaves de acesso ao armazém.

Contudo, decorreu do depoimento de CC que cerca de duas semanas antes do furto em causa nos autos, o arguido lhe comunicou que tinha perdido as suas chaves, passando, a partir daí a ser CC a abrir a porta do armazém. Por sua vez, o arguido referiu que havia entregue as suas chaves, o que não foi confirmado por GG.

Mais, na segunda-feira em que CC se apercebeu do desaparecimento dos materiais contactou telefonicamente o arguido, comunicando-lhe o sucedido, tendo o mesmo respondido que não ia trabalhar naquele dia e que não iria mais trabalhar na assistente, desligando a chamada, não atendendo qualquer outra posterior, nem de CC, nem de GG.

Desde tal episódio que o arguido e GG se encontram desavindos, ressaltando das declarações deste último que a relação entre ambos terá deteriorado após a venda da quota do arguido àquele, passando a ser um trabalhador da empresa que inicialmente fora constituída por si, algo que o arguido nunca aceitou, o que, diga-se, poderia ter confluído para a motivação do arguido, em tese, para furtar os produtos.

Por fim, note-se, que o material furtado, nomeadamente moldes, caiaques e canoas, configura um material específico, para um nicho de mercado concreto, como a canoagem, necessitando de um conhecimento técnico adequado e um interesse particular em tais produtos, que, em abstrato, se poderá dizer que o arguido teria.

Todavia, contrariamente a todos estes indícios, importa salientar, o depoimento da testemunha JJ, ex-funcionário do arguido há mais sete anos, que esclareceu que efetivamente no sábado, dia 07 de julho de 2019 viu o carro do arguido e o atrelado que o mesmo tinha à porta do armazém.

No entanto, ressalvou que para além de não ter visto o arguido naquele dia, «era comum ver lá o carro do AA aos sábados» (sic).

Saliente-se, ainda, tal como foi consentâneo entre toda a prova testemunhal produzida, os moldes de caiaque, para além das suas dimensões, cerca de seis metros de comprimento, são de um peso bruto bastante elevado, no mínimo 50kg, sendo impossível ser transportado por uma só pessoa atentas as suas dimensões.

Ademais, e de forma espontânea, explanou CC que é muito difícil transportar moldes e que o próprio, aquando de uma mudança de instalações da assistente, «demorou meses» a transportar todos os moldes ali existentes, sendo perentório «uma pessoa era impossível ter feito aquilo numa noite» (sic).

Acresce que, tal como esclareceram as testemunhas KK e JJ, o armazém da assistente situa-se numa zona movimentada, com uma bomba de gasolina nas suas proximidades, assim como um stand de automóveis ao lado, não tendo sido visualizado naquele fim de semana qualquer movimento ou a presença do arguido no local.

Ainda, refira-se que os produtos furtados nuca foram encontrados, nem foram vistos em provas de canoagem, ou à venda, tendo inclusivamente sido confirmado pela testemunha LL, amigo do arguido e ligado àquele desporto, que era facilmente identificável em prova um caiaque idêntico aos furtados, o que nunca visualizara.

Com efeito, temos que, em processo penal, o recurso à prova indireta não só não consiste numa operação ilícita (desde que se atenha em determinados parâmetros), como é necessária e fundamental sob pena de absoluta iniquidade perante casos de flagrante violação da lei.

Com efeito, é para nós indubitável que «o conhecimento do facto principal pode ser alcançado por perceção ou dedução com base noutros factos (prova direta e prova indireta respetivamente)».

A prova direta traz ao conhecimento da entidade incumbida de decidir a perceção de um facto principal. Já na prova indireta, o conhecimento do facto «probando» resulta de uma proposição que, por silogismo, cria uma outra levando a uma conclusão lógica, esta sim, atinente ao tema da prova.

A prova indireta é, à partida admissível, por força do princípio de que toda a prova relevante deve ser admissível salvo proibição legal, isto é, «esta admissibilidade de prova consagra a regra da atipicidade, um dos pontos nos quais se alicerça a admissibilidade da prova indiciária».

Desde modo, poderá dizer-se que «a prova indireta tem como base factos irrelevantes dos quais, por raciocínio lógico, se pode inferir a existência de factos relevantes. (…) No fundo, o indício opera como uma premissa, uma inferência, que tem como conclusão um enunciado que acrescenta algo sobre o facto primário» sendo «essencial um passo lógico (fundado numa regra de experiência) entre o objeto da prova e o facto juridicamente relevante para se concluir algo relevante no processo».

Ora, em especial no âmbito do processo penal, importa ter noção que «se não se considerasse a prova resultante das presunções, poderia, no fundo, mais não se fazer do que denegar justiça, contudo tal importa uma conjugação sensível, cuidadosa e complexa com o estabelecimento de uma prova “para além de toda a dúvida razoável” e que é imposto pelo princípio da presunção de inocência».

Dito isto, importa ainda sublinhar que «nada na Constituição expressamente afasta a possibilidade de recorrer à prova indiciária no processo penal», desde que «o indício, ou facto base, [seja] validamente produzido ou admitido». No entanto, «a prova indiciária não é admitida sem que a jurisprudência lhe imponha alguns condicionantes» (cf. PATRICIA SILVA PEREIRA, «Prova Indiciária no âmbito do Processo Penal», Almedina, 2016, págs. 38, 39, 41, 44, 48 e 49).

Assim, na esteira do Acórdão do STJ de 12-09-2007, processo n.º 07P4588, in www.dgsi.pt, «a prova indiciária é suficiente para determinar a participação no facto punível se da sentença constarem os factos-base (requisito de ordem formal) e se os indícios estiverem completamente demonstrados por prova direta (requisito de ordem material), os quais devem ser de natureza inequivocamente acusatória, plurais, contemporâneos do facto a provar e, sendo vários, estar interrelacionados de modo a que reforcem o juízo de inferência» (em similar sentido, vd. Acórdão do STJ de 09-02-2012, proc. 233/08.1PBGDM.P3.S1, in www.dgsi.pt).

Por último, entende Santos Cabral («Prova Indiciária e as novas formas de criminalidade», Julgar n.º 17): «As regras da experiência ou regras de vida como ensinamentos empíricos que simples facto de viver nos concede em relação ao comportamento humano e que se obtém mediante uma generalização de diversos casos concretos tendem a repetir-se ou reproduzir-se logo que sucedem os mesmos factos que serviram de suporte efectuar a generalização. Estas considerações facilitam a lógica de raciocínio judicial porquanto se baseia na provável semelhança das condutas humanas realizadas em circunstâncias semelhantes a menos que outra coisa resulte no caso concreto que se analisa ou porque se demonstre a existência de algo que aponte em sentido contrário ou porque a experiência ou perspicácia indicam uma conclusão contrária.» (sublinhado nosso).

Para que o juízo de inferência resulte em verdade convincente é necessário que a base indiciária, plenamente reconhecida por prova direta: a) seja constituída por uma pluralidade de indícios, embora excecionalmente possa admitir-se um só se o seu significado for determinante, b) que não percam força creditória pela presença de outros possíveis contraindícios que neutralizem a sua eficácia probatória, c) e que a argumentação sobre que assente a conclusão probatória resulte inteiramente razoável face a critérios lógicos do discernimento humano («Livre apreciação da prova e prova indireta», Curso de Temas de Direito Penal e de Processo Penal, Centro de Estudos Judiciários no âmbito da Formação Contínua, em Maio de 2013»).

Ora, revisitados estes ensinamentos da doutrina e da jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, é nosso entender que os indícios recolhidos no caso dos autos não se afiguram suficientes para cabal convicção do tribunal da autoria de tal furto pelo arguido, não sendo inequívocos, uma vez que, pese embora estejamos perante uma pluralidade de indícios concludentes, a verdade é que existem outras circunstâncias (nomeadamente, e entre as quais, o peso e dimensões dos moldes e caiaques impossíveis de transportar por uma só pessoa num tão curto espaço de tempo como, no máximo, um fim de semana; o facto de o carro e atrelado do arguido ser visto com frequência ao sábado naquelas instalações, não sendo uma circunstância única da do fim de fim de semana do assalto; pese embora o local movimentado ninguém tenha visualizado o arguido naquele período) que se afiguram contraditórias com os demais indícios, configurando, inclusive, contraindícios que permitam concluir de forma lógica e consonante com as regras da experiência comum pela imputação dos factos ao arguido como autor dos mesmos.

Isto posto, na dúvida quanto a verificação das circunstâncias de facto relevantes para a condenação ou absolvição do acusado, o juiz há-de “presumir” a situação de facto que conduza a uma decisão mais favorável àquele, subjacente ao princípio da presunção de inocência e do in dúbio pro reo.

Por fim, relativamente aos factos do pedido de indemnização civil, o tribunal atendeu às declarações do legal representante da assistente, GG, que se afiguraram credíveis.

No tocante à situação pessoal e socioeconómica do arguido, o tribunal atendeu aos respetivos esclarecimentos, não havendo motivos para deles não se fazer fé, bem como às pesquisas efetuadas na base de dados da Segurança Social e do Registo Automóvel.

Finalmente, foi tido em consideração o CRC junto aos autos.“

Decidindo.

O erro de julgamento capaz de conduzir à modificação da matéria de facto pelo Tribunal de recurso, nos termos dos artigos 412º, nº 3 e 431º, alínea b), ambos do Código de Processo Penal, reporta-se às seguintes situações:

1. o Tribunal “a quo” dar como provado um facto com base no depoimento de uma testemunha e a mesma nada declarou sobre o facto;

2. ausência de qualquer prova sobre o facto dado por provado;

3. prova de um facto com base em depoimento de testemunha sem razão de ciência da mesma que permita a prova do mesmo;

4. prova de um facto com base em provas insuficientes ou não bastantes para prova desse mesmo facto, nomeadamente com violação das regras de prova;

5. e todas as demais situações em que do texto da decisão e da prova concretamente elencada na mesma e questionada especificadamente no recurso e resulta da audição do registo áudio, se permite concluir, fora do contexto da livre convicção, que o tribunal errou, de forma flagrante, no julgamento da matéria de facto em função das provas produzidas.

Tendo presente as alegações de recurso no seu confronto com a decisão a quo, está sobretudo em causa a credibilidade ou não conferida à versão de uns e outros, ou seja está sobretudo colocada em causa a valoração que o tribunal fez da prova, situação que nos situa não no erro de julgamento analisado ao abrigo do art. 412º do CPP mas sobretudo na apreciação da prova que o tribunal fez e isto sem prejuízo de se poder constatar a existência de algum dos vícios do art. 410º do CPP.

Dos eventuais vicio da contradição e erro notório.

Nos termos do art.º 410.º, n.º 2, do C.P.P. «Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum: a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; c) Erro notório na apreciação da prova».

Assim e como decorre expressamente da letra da lei, qualquer um dos elencados vícios tem de dimanar da complexidade global da própria decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, sem recurso, portanto, a quaisquer elementos que à dita decisão sejam exógenos, designadamente declarações ou depoimentos exarados no processo durante o inquérito ou a instrução, ou até mesmo no julgamento, salientando-se também que as regras da experiência comum “não são senão as máximas da experiência que todo o homem de formação média conhece” [Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, pág. 338/339], isto é, qualquer um dos referidos vícios tem de existir «internamente, dentro da própria sentença ou acórdão» [Germano Marques da Silva, op. cit., pág. 340].

No caso específico do vício decisório prevenido na al. a), a indicada insuficiência determina a formação incorreta de um juízo porque a conclusão ultrapassa as premissas. A matéria de facto (não os meios de prova que a sustêm) é insuficiente para fundamentar a solução de direito correta, legal e justa, estando, pois, associado à insuficiência da matéria de facto para a decisão, o que não se confunde com insuficiência de prova.

No segundo caso, o da “contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão”, vício previsto no artigo 410.º, n.º 2, al. b), este consiste na incompatibilidade, de inviável ultrapassagem através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação e a decisão. Tal vício ocorre quando um mesmo facto, obviamente com interesse para a decisão da causa, seja julgado como provado e não provado simultaneamente e logicamente anulando-se, ou quando se considerem como provados factos incompatíveis entre si, de modo a que apenas um deles pode prevalecer, ou quando for de concluir que a fundamentação conduz a uma decisão contrária àquela que foi tomada.

Por fim, o invocado “erro notório na apreciação da prova”, prevenido no inciso da al. c), ocorre quando um homem, medianamente sagaz, perante o teor da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente intui e percebe que o tribunal violou as regras da experiência ou que efetuou uma apreciação notoriamente errada, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou inverosímeis.

Ora, analisado o texto da decisão e somente o texto da mesma, todo ele parece mostrar-se coerente quer no que tange aos factos dados como provados e não provados quer no que tange à fundamentação e sua relação com os factos e à decisão resultante, sem prejuízo do que se dirá infra a propósito do erro notório na apreciação da prova.

Tendo presente o disposto no art.412º, n º 3 do CPP em face dos concretos pontos da matéria de facto que considerou erradamente valorados, as concretas provas que indicou, importará verificar se impõem decisão diversa da recorrida, na medida em que se for possível versão diferente da pretendida pelo recorrente e essa versão, a do tribunal, tiver substrato na prova produzida e nas regras da experiência comum será esta a que prevalecerá em abono do principio da livre apreciação da prova realizada pelo tribunal.

A propósito importa transcrever nesta decisão parte de acórdão proferido nesta instância pela Exmª Srª Drª. Lígia Trovão, nos autos de processo nº 2885/17.2JAPRT.P1 e que se subscreve por inteiro, a propósito das competências desta instância em sede de apreciação de recurso:

“ O recorrente para impugnar a matéria de facto em sede de erro de julgamento tem de especificar os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, indicar as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida (ex: quando o recorrente se socorra da prova documental tem que concretizar qual o concreto documento que demonstra o erro da decisão; quando se socorra de prova gravada tem que indicar o depoimento (ou depoimentos) em questão (por identificação da pessoa ou pessoas em causa), tem de mencionar a passagem ou passagens da gravação desse depoimento que demonstra erro em que incorreu a decisão e tem, conforme decorre no nº 4 atrás transcrito, que localizar esse excerto de depoimento no suporte que contém a gravação da prova, por referência ao tempo da gravação([2])) e, no caso de ser requerida a audiência (não sucede no caso presente), as provas que devem ser renovadas, nos termos do art. 412º nºs 1, 3 alíneas a) a c) e 4 do CPP devendo, em simultâneo, esclarecer o porquê da discordância, como e qual a razão por que é os meios probatórios por si especificados contrariam/infirmam a conclusão factual do Tribunal de 1ª instância, fazendo uso de um raciocínio lógico e de exame crítico com o mesmo grau de exigência que se impõe ao tribunal na fundamentação das suas decisões([3]) e enunciar qual a decisão que, em seu entender, deve ter lugar relativamente às questões de facto impugnadas, pois são essas que devem ser prima facie apreciadas pelo Tribunal de recurso (que não deixará, no entanto, de tomar em consideração, para além desses específicos trechos, também outros produzidos em audiência, nos termos do nº 6 do art. 412º do CPP, conforme resulta do disposto no art. 412º nº 4 do CPP, “sob pena do recorrente escolher a passagem que mais lhe convém e omitir tudo o mais que não lhe interessa, assim se defraudando a verdade material”([4])).

Ou seja, depois de indicar os concretos pontos de facto sobre os quais incide a discordância, impõe-se ao recorrente nos termos do citado art. 412º nº 3 b) do CPP, que indique concretamente em que documentos e/ou trechos/passagens das declarações e/ou dos depoimentos das testemunhas, ouvidos em audiência de julgamento, baseia a sua impugnação.

No caso destes autos, tendo sido documentados através de gravação áudio as declarações e depoimentos prestados oralmente na audiência de julgamento (cfr. arts. 363º e 364º do CPP) e por reporte ao ónus de especificação da prova pessoal gravada imposto ao recorrente, haverá que ter presente o decidido pelo AUJ do STJ nº 3/2012 de 18/04/2012, relatado por Raúl Borges, publicado no D.R. nº 77, I Série, segundo o qual “Visando o recurso a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, com reapreciação da prova gravada, basta, para efeitos do disposto no artigo 412º nº 3, alínea b), do CPP, a referência às concretas passagens/ excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas, na ausência de consignação na acta do início e termo das declarações”.

Sobre este concreto ónus de especificação (art. 412º nº 3 b) do CPP), escreveu-se a dado passo no recente Ac. da R.P. de 25/09/2024([5]) que “…não é uma qualquer divergência que pode levar o Tribunal ad quem a decidir pela alteração do julgado em sede de matéria de facto. Quando, no artigo 412º/3/b) do Cód. de Processo Penal se alude às «concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida», deve distinguir-se essa situação daquelas em que as provas em causa, sem imporem decisão diversa, admitiriam decisão diversa da recorrida na base de um outro juízo sobre a sua fidedignidade.

Assim, para que a impugnação possa proceder, as provas que o recorrente invoque, e a apreciação que sobre as mesmas se faça recair, em confronto com as valoradas pelo tribunal a quo ou com a valoração que esse tribunal efectuou, devem não apenas revelar que os factos foram incorrectamente julgados, como antes devem determinar a convicção de que se impunha decisão diversa da recorrida em sede do elenco dos factos provados e não provados.

Notar–se–á que a remissão para o verbo impor, especificamente estipulada no art. 412º/3/b) do Cód. de Processo Penal, consubstancia a exigência de verificação de uma obrigação impreterível, de um imperativo, de um dever mandatório inquebrável e sem alternativas. Assim, não basta estar demonstrada a possibilidade de existir uma solução em termos de matéria de facto alternativa à fixada pelo tribunal a quo. Na verdade, é raro o julgamento onde não estão em confronto duas, ou mais, versões dos factos (arguido/assistente ou arguido/Ministério Público ou mesmo arguido/arguido), qualquer delas sustentada, em abstracto, em prova produzida, seja com base em declarações do arguido, seja com fundamento em prova testemunhal, seja alicerçada em outros elementos probatórios.

Por isso, haver prova produzida em sentido contrário, ou diverso, ao acolhido e considerado relevante pelo Tribunal a quo não só é vulgar, como é insuficiente para, só por si, alterar a decisão em sede de matéria de facto.

O que aqui se mostra necessário é que o recorrente demonstre que a prova produzida no julgamento só poderia ter conduzido, em sede de elenco de matéria de facto provada e não provada, à solução por si (recorrente) defendida, e não àquela consignada pelo Tribunal“.

Convém no entanto assinalar que a apreciação a efetuar pelo Tribunal de recurso (alargada à prova produzida em audiência, se documentada), contém-se nos limites assinalados pelo recorrente em face do ónus de especificação que lhe é imposto nos termos do citado art. 412º nºs 3 e 4 do CPP, não visando a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, agora com base na audição das gravações, como se o primeiro julgamento realizado pelo Tribunal de 1ª Instância não tivesse existido, antes constituindo um mero remédio para obviar a eventuais erros ou incorreções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, na perspetiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente([6]).

Por sua vez o Tribunal de recurso, só poderá alterar a decisão sobre a matéria de facto, fora do contexto da livre convicção, se constatar que o Tribunal de 1ª instância errou, de forma flagrante, no julgamento da matéria de facto em função das provas produzidas ou, nas palavras do Ac. da R.E. de 25/09/2012([7]), se verificar que “a decisão sobre a matéria de facto não tem qualquer fundamento nos elementos de prova constantes do processo ou está profundamente desapoiada face às provas recolhidas “, ou ainda nas palavras do recente Ac. da R.L. de 06/02/2024([8]), “A forma de descortinar o erro de julgamento não passa pela mera alegação da discordância, antes tem que passar pela demonstração inequívoca – nos mesmos moldes de fundamentação que se exige ao julgador - de que o Tribunal desdizeu as exigidas regras da experiência e afrontou princípios basilares do direito probatório “. Deste modo, “I - Se a decisão factual do tribunal recorrido se baseia numa livre convicção objectivada numa fundamentação compreensível e naquela optou por uma das soluções permitidas pela razão e pelas regras de experiência comum, a fonte de tal convicção – obtida com o benefício da imediação e da oralidade – apenas pode ser afastada se ficar demonstrado ser inadmissível a sua utilização pelas mesmas regras da lógica e da experiência comum. II - Torna-se necessário que demonstre que a convicção obtida pelo tribunal recorrido é uma impossibilidade lógica, uma impossibilidade probatória, uma violação de regras de experiência comum, uma patentemente errada utilização de presunções naturais, ou seja, que demonstre não só a possível incorrecção decisória mas o absoluto da imperatividade de uma diferente convicção “([9]).

Concluindo, ao Tribunal da Relação só pode pedir-se que efetue um controlo do julgamento, e não que repita ou reproduza o julgamento. Os seus poderes de decisão de facto estão direcionados para a (sindicância da) sentença de facto, e sempre de acordo com a impugnação do recorrente([10]).

A garantia do duplo grau de jurisdição não subverte o princípio da livre apreciação da prova pelo juiz.

Este princípio da livre apreciação da prova está consagrado no art. 127º do CPP nos seguintes termos «... a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente».

E embora este Tribunal da Relação tenha poderes de intromissão em aspetos fácticos (arts. 428º e 431º/b) do CPP), não pode sindicar a valoração das provas feitas pelo tribunal em termos de o criticar por ter dado prevalência a uma em detrimento de outra, salvo se houver erros de julgamento e as provas produzidas impuserem outras conclusões de facto([11]).

Os erros de julgamento capazes de conduzir à modificação da matéria de facto pelo tribunal de recurso (cfr. arts. 428º e 431º do CPP) consistem no seguinte: dar-se como provado um facto com base no depoimento de uma testemunha que nada disse sobre o assunto; dar-se como provado um facto sem que tenha sido produzida qualquer prova sobre o mesmo; dar-se como provado um facto com base no depoimento de testemunha, sem razão de ciência da mesma que permita a referida prova; dar-se como provado um facto com base em prova que se valorou com violação das regras sobre a sua força legal([12]); dar-se como provado um facto com base em depoimento ou declaração, em que a testemunha, o arguido ou o declarante não afirmaram aquilo que na fundamentação se diz que afirmaram([13]); dar-se como provado um facto com base num documento do qual não consta o que se deu como provado; dar-se como provado ou não provado um facto com base em presunção judicial erradamente aplicada([14]).
Por último, refira-se que a decisão de facto só deve ser alterada quando seja evidente que as provas a que se faz referência na fundamentação não conduzem à decisão impugnada (cfr. art. 431º b) do CPP).

(…)”

Relativamente a um eventual erro notório na apreciação da prova, importa considerar que é um vicio endógeno da sentença, que se encontra previstos no art. 410º-2-c), isto é, têm que resultar do próprio texto da decisão recorrida, por si só, ou conjugada com as regras do conhecimento e da experiência comum ou das máximas do conhecimento especializado.

Nada tem a ver com lapsos materiais da sentença, que são corrigíveis a todo o tempo, inclusive no tribunal de recurso (v. art. 380º).

O «erro notório na apreciação da prova, basicamente existe, quando se dá como provado (ou não provada) uma realidade que, à luz do conhecimento e das regras da experiência geral (presunções naturais) ou das máximas do conhecimento especializado, manifestamente, na apreciação do comum dos observadores, não podia ter acontecido (ou tinha de ter acontecido). É um vício do raciocínio na apreciação das provas, evidenciado pela simples leitura da decisão. Erro tão crasso que salta aos olhos do leitor médio, sem necessidade de qualquer especial exercício mental. As provas revelam claramente um sentido e a decisão recorrida extraiu ilação contrária, logicamente impossível, incluindo na matéria fáctica ou excluindo dela, algum facto essencial com o qual ou sem o qual, o julgado não faz sentido. Constitui «erro notório na apreciação da prova», por exemplo, a violação de regras sobre prova vinculada, ou o erro sobre factos históricos de conhecimento geral, ou a ofensa de leis da natureza ou da lógica ou de conhecimentos criminológicos e vitimológicos comuns (neste sentido, Simas Santos e Leal-Henriques, in, CPP anotado, notas ao artigo e P.P. Albuquerque, in, Comentário do C.P.P., notas ao artigo).

Portanto, se os factos descritos na sentença e considerados provados e não provados, se apresentam, aos olhos de um observador dotado de mediana inteligência e experiência da vida, contraditórios ou de verificação impossível, no contexto daquela descrição, e a respetiva análise crítica alcançada pelo juiz não obedece a claros princípios de racionalidade, então haverá erro notório na apreciação da prova. Igualmente haverá se violar regras de prova vinculada. Na invocação deste vicio da sentença, importa que o recorrente desmonte o erro de forma a evidenciar a sua notoriedade, sem invocação de elementos exteriores. O vicio é puramente de raciocínio do Juiz e puramente endógeno da sentença. Obviamente, nada tem a ver com eventual desconformidade entre a decisão de facto do julgador e aquela que teria sido proferida pelo recorrente. Se a sentença é clara, encontrando-se todas as premissas concatenadas e concordantes entre si, sem vislumbre de contradições ou discrepâncias ou ilegalidades probatórias, assente num raciocínio lógico corretamente explanado, então não há erro notório na apreciação da prova.

O conceito de erro notório na apreciação das provas tem de ser interpretado como o tem sido o conceito de facto notório em processo civil, ou seja, como o facto de que todos se apercebem directamente, ou que, observados pela generalidade dos cidadãos, adquire carácter notório. (Ac. STJ de 06.04.94, in, CJ-II-86).

Posto isto, torna-se evidente que nenhum erro desta natureza existe na decisão a quo.

A decisão mostra-se perfeitamente coerente na interligação das suas diferentes partes e devidamente sustentada como fundamentado.

O que o Recorrente põe em causa é a forma como foi formada a convicção do Tribunal, a qual passa sempre por uma ponderação da prova na sua globalidade.

Esta convicção não se confunde com a impressão, ideia ou juízo pessoal, profundamente arbitrário uma vez que tem por base as convicções de cada um, os pré-conceitos, as experiências e estruturas cognitivas individuais.

Mas vejamos de perto.

Afirma a recorrente assistente em súmula.

O tribunal errou ao considerar como não provados três factos essenciais para a condenação do arguido por furto. Sustenta-se na análise de prova testemunhal e documental, apontando inconsistências no depoimento do arguido e fortalecendo a ligação entre este e os bens furtados, incluindo a posse de chaves e a presença do seu veículo com reboque no local do crime. Considera que a prova indireta, analisada conjuntamente, comprova a culpa do arguido, contrariando a interpretação do tribunal a quo. Finalmente, defende ainda que a desavença entre o arguido e o representante da empresa, bem como a situação financeira difícil do primeiro terão motivado o furto.

Pretende-se a reavalie a prova produzida e considere como provados os factos que não o foram pela 1ª instância, nomeadamente os seguintes factos:

I - O arguido foi quem levou os objetos do armazém da assistente

II - O arguido agiu com a intenção de se apropriar dos bens, sabendo que não lhe pertenciam.

III - O arguido agiu de forma livre e consciente, sabendo que a sua conduta era punível por lei.

Para efeito considera que o tribunal a quo desconsiderou indícios importantes como:

•O arguido ter sido visto no local do crime com um reboque.

•O arguido ter as chaves do armazém.

•Não haver sinais de arrombamento no local.

•Alguns dos bens furtados terem sido encontrados na casa do arguido.

•As declarações falsas do arguido.

Para a argumentação de que o arguido tinha na sua posse as chaves do armazém da assistente, a prova que sustenta a posse das chaves pelo arguido inclui o facto de:

•O arguido, juntamente com o representante legal da assistente e CC, tinha chaves de acesso ao armazém.

•Embora CC tenha afirmado que o arguido lhe comunicou ter perdido as chaves cerca de duas semanas antes do furto, tal comunicação pode ter sido uma manobra de despiste por parte do arguido, que estaria a planear o furto.

•O arguido comunicou a perda das chaves a um funcionário (CC) e não ao representante legal da empresa, considerando estranho que, dado o valor dos bens no armazém, o arguido não tenha comunicado a perda das chaves ao representante legal para que este tomasse as devidas precauções.

•O próprio arguido apresentou duas versões contraditórias sobre as chaves: primeiro, disse que as perdeu e depois alegou que as entregou ao representante legal, o que não foi confirmado por este. Esta contradição sugere que o arguido estava a tentar ocultar que tinha as chaves.

•Não houve sinais de arrombamento no armazém, o que sugere que quem entrou tinha uma chave.

•CC confirmou que o arguido tinha as chaves, mesmo tendo dito que este lhe tinha comunicado que as perdeu.

•O facto de o arguido ter as chaves, aliado à ausência de arrombamento e à presença do seu veículo com reboque no local na data do desaparecimento dos objetos, aponta para a sua autoria no furto.

Conclui que, apesar da alegação de perda das chaves, a prova produzida indica que o arguido tinha, de facto, as chaves do armazém no fim de semana em que ocorreu o furto.

O segundo argumento diz respeito à presença do arguido no local do crime que considera suportada por diversas provas e circunstâncias, que, em conjunto, levam à conclusão de que foi ele o autor do furto.

Essas provas incluem:

•Testemunho de JJ: A testemunha afirmou ter visto o carro do arguido, um Fiat de cor ..., uma carrinha fechada, no estacionamento do armazém da assistente durante o fim de semana do furto. Embora a testemunha não tenha visto o arguido diretamente, confirmou ter visto o seu carro com um reboque atrelado no local.

•Veículo com reboque: A presença do veículo do arguido com um reboque atrelado é um indício forte, pois, segundo o recorrente, "um sujeito só circula no seu carro com reboque atrelado quando tem efetivamente necessidade de fazer uso do atrelado para transportar objetos de dimensões consideráveis".

Esta observação sugere que o arguido tinha a intenção de transportar os bens furtados, que eram volumosos.

•Dia e hora da deslocação: O arguido foi visto no local no fim de semana em que ocorreu o furto, entre as 18h30 de sexta-feira, 5 de julho de 2019 e as 9h00 de segunda-feira, 8 de julho de 2019.

Terceiro argumento sustenta-se no facto que, após ter deixado de trabalhar para a assistente no dia 5 de julho, o arguido não tinha qualquer razão para se deslocar ao armazém naquele fim de semana, o que torna a sua presença no local suspeita.

Para o efeito sustenta-se:

•Contradição da testemunha: Apesar de JJ ter ressalvado que era comum ver o carro do arguido aos sábados, o recorrente argumenta que após o dia 5 de julho o arguido deixou de ter qualquer motivo para lá se deslocar.

•Localização do armazém: O facto do carro do arguido com o reboque ter sido visto no estacionamento do armazém da assistente, no fim de semana do furto, é considerado um forte indicador da sua presença no local.

A combinação destes elementos, nomeadamente o testemunho de que o carro do arguido foi visto no local com um reboque, juntamente com a ausência de justificação para a sua presença, aponta fortemente para a sua participação no crime.

É também salientado que um homem médio, perante estas circunstâncias, concluiria que o arguido esteve no armazém da assistente no sábado, dia 6 de julho.

No quarto argumento o arguido, numa tentativa de justificar a posse de certos bens encontrados na residência do arguido, apresentou declarações que se consideram falsas e contraditórias.

As justificações do arguido incluem:

•Os bens (uma bancada de trabalho e um mini-frigorífico) encontrados na sua casa não foram furtados, mas são seus.

•Sempre usou essa bancada para arranjar bicicletas na sua casa.

• Retirou a bancada e o mini-frigorífico do armazém da assistente entre maio e junho, antes da data do furto, que ocorreu no fim de semana de 5 de julho de 2019.

O recorrente argumenta que estas justificações são contraditórias e falsas, apresentando os seguintes contra-argumentos:

•Contradição com a prova testemunhal: Testemunhas como CC e MM afirmaram que o mini-frigorífico e a bancada estavam no armazém da assistente no dia 5 de julho, contradizendo a versão do arguido de que já os tinha retirado antes.

•O mini-frigorífico tinha um autocolante da empresa "B...", o que sugere que era o mesmo frigorífico que estava no armazém. Sendo questionável a probabilidade de existirem dois mini-frigoríficos iguais com o mesmo autocolante.

•A bancada de trabalho encontrada na casa do arguido era igual à utilizada por CC no armazém. Embora CC tenha referido que a sua bancada não tinha uma prateleira como a encontrada, o recorrente argumenta que a bancada era única e diferente das demais e que o arguido poderia ter adicionado a prateleira posteriormente.

•O recorrente enfatiza que o arguido não apresentou nenhuma justificação válida para como os bens foram levados, saíram do armazém e foram parar à sua casa.

Donde conclui o recorrente que as justificações apresentadas pelo arguido são meras tentativas de ocultar a verdade e de dissimular os atos praticados, não apresentando qualquer credibilidade face à restante prova produzida.

Em síntese aponta várias contradições e falhas no raciocínio da sentença do tribunal a quo, argumentando que este não avaliou corretamente a prova produzida e que chegou a conclusões erradas.

As principais contradições e falhas apontadas são:

•Posse das chaves do armazém:

O tribunal a quo considerou não provado que o arguido tinha as chaves do armazém no dia do furto, baseando-se na alegação de que o arguido tinha dito a CC que as tinha perdido, ignorando o facto de o próprio arguido ter apresentado duas versões contraditórias sobre as chaves: uma em que as perdeu e outra em que as entregou ao representante legal.

O tribunal desconsiderou o facto de não haver sinais de arrombamento, o que sugere que quem entrou no armazém tinha uma chave.

E que mesmo que o arguido tivesse dito a CC que perdeu as chaves, isso não significa que as tenha efetivamente perdido, podendo ter sido uma manobra para disfarçar o furto.

•Presença do arguido no local do crime:

O tribunal parece ter desvalorizado o testemunho de JJ, que viu o carro do arguido com um reboque atrelado no estacionamento do armazém no fim de semana do furto.

O recorrente destaca que, após o dia 5 de julho, o arguido não tinha nenhuma razão para se deslocar ao armazém, tornando a sua presença naquele local suspeita.

O tribunal não considerou a relevância do facto de o carro do arguido ter sido visto com um reboque, sugerindo que ele tinha a intenção de transportar objetos de grandes dimensões, como os que foram furtados.

•Justificação da posse dos bens:

O tribunal parece ter aceitado a justificação do arguido de que a bancada de trabalho e o mini-frigorífico encontrados na sua casa eram seus, ignorando a prova testemunhal que indicava que estes bens estavam no armazém no dia 5 de julho.

O tribunal também não deu importância ao facto de o mini-frigorífico ter um autocolante da empresa "B...", sugerindo que era o mesmo que estava no armazém.

O tribunal também não considerou o facto de que a bancada encontrada era idêntica à que era utilizada por um dos trabalhadores no armazém.

A alegação do arguido de que já tinha retirado os bens do armazém antes do furto é contrariada pela prova testemunhal.

•Peso e transporte dos bens:

O tribunal considerou que os moldes de caiaque eram demasiado pesados para serem transportados por uma só pessoa, desvalorizando o depoimento de CC que confirmou que os moldes podem ser divididos e transportados por uma só pessoa.

O tribunal a quo não considerou a possibilidade de o arguido ter atuado com a ajuda de terceiros.

O tribunal a quo não fez uma avaliação correta da prova, focando-se apenas em alguns aspetos e ignorando outros indícios também importantes, como a desavença entre o arguido e o representante legal da assistente e a situação financeira do arguido, não considerou a falta de justificação do arguido para a posse dos bens e para a sua presença no local do crime, não analisando a prova de forma indireta, aliada às regras da experiência comum, afirmando que há uma quantidade de indícios "graves, precisos e concordantes" que apontam para a autoria do crime por parte do arguido.

Argumentação do tribunal a quo.

A avaliação da prova apresentada no processo considerou tanto provas diretas como indiretas, com diferentes níveis de força probatória.

Provas diretas:

•A confissão do arguido relativamente aos factos descritos sob os números 1 e 2 do processo.

•Foram também consideradas certidões, contratos de trabalho, declarações e acordos.

•Os depoimentos de GG (sócio gerente da empresa), CC (trabalhador da empresa) e dos estagiários EE e DD confirmaram a ocorrência do assalto e o desaparecimento de bens. O depoimento de CC foi considerado o mais credível, já que ele foi o primeiro a chegar ao local e a descrever o que aconteceu.

•A prova documental, como a relação de bens e o relatório fotográfico, corroborou a natureza, quantidade e valor dos bens furtados.

•O auto de denúncia também foi valorizado para as circunstâncias de tempo e lugar do assalto.

•O auto de busca e apreensão, confirmado pelo militar da GNR II, indicou que foram encontrados objetos na garagem do arguido.

Provas indiretas:

A principal prova indireta é a descoberta de uma bancada de trabalho e um mini-frigorífico na garagem do arguido, semelhantes aos que foram furtados.

No entanto, a comparação feita por testemunhas revelou diferenças entre a bancada encontrada e a que foi furtada. O tribunal não conseguiu concluir com certeza se os bens encontrados eram os mesmos que foram furtados.

•A ausência de sinais de arrombamento sugeriu que quem entrou no armazém usou uma chave. Tanto o arguido como CC e GG tinham chaves, mas o arguido alegou ter perdido as suas.

•O facto de o arguido ter deixado de atender telefonemas e ter informado que não voltaria a trabalhar na empresa, após ser notificado do assalto.

Todavia, este comportamento tendo sido considerado um indício que, à primeira vista, poderia sugerir que o arguido estaria envolvido no furto. No entanto, não foi suficiente para provar a sua culpa para além de qualquer dúvida razoável, especialmente quando avaliado em conjunto com outros indícios e contraindícios.

Este indício foi analisado em conjunto com outros elementos, como a descoberta de bens semelhantes aos furtados na garagem do arguido e a ausência de sinais de arrombamento nas instalações. O tribunal teve em consideração o contexto geral e não apenas este ato isolado.

Considerou que este comportamento do arguido, por si só, não constitui prova suficiente para imputar a autoria do furto. A jurisprudência tem reiteradamente enfatizado que a mera posse de objetos furtados ou comportamentos que possam parecer suspeitos não são suficientes para uma condenação.

O tribunal também considerou outros fatores que enfraqueceram este indício, como a diferença entre a bancada de trabalho encontrada na casa do arguido e a que foi furtada, a incerteza sobre se o mini-frigorífico encontrado era o mesmo que foi furtado e a dificuldade de transportar os bens furtados por uma só pessoa.

Foi também considerado que a relação entre o arguido e o representante legal da empresa se tinha deteriorado depois da venda da sua quota na empresa. Apesar desta possível motivação, o tribunal não considerou este fator como prova de culpa referindo que a relação entre o arguido e GG, o representante legal da empresa, se deteriorou após a venda da quota do arguido a GG. O arguido passou de sócio da empresa a empregado, o que ele não terá aceitado.

Esta deterioração da relação poderia ter levado o arguido a querer furtar os produtos.

Apesar desta possível motivação, o tribunal não considerou este fator como prova da autoria do crime alicerçado na ideia de que a lei exige que a culpa seja comprovada com prova direta ou com prova indireta que não deixe margem para dúvidas razoáveis.

O tribunal aplicou o princípio in dubio pro reo, que significa que, na dúvida, a decisão deve ser a favor do arguido.

•O facto de o material furtado ser específico e de o arguido ter conhecimento técnico e interesse nele também foi considerado referindo como um indício indireto, mas não como prova direta da sua culpabilidade.

Para o efeito considerou o tribunal reconheceu que o material furtado, como moldes, caiaques e canoas, era específico para um nicho de mercado (canoagem) e que o arguido possuía conhecimento técnico e interesse nesses produtos. Este facto foi considerado um indício que, à primeira vista, poderia sugerir que o arguido teria mais probabilidade de ser o autor do furto. No entanto, este indício, isoladamente ou em conjunto com outros, não constituiu prova direta da autoria do crime.

Tal como outros indícios, este foi analisado dentro do contexto geral do caso. O tribunal avaliou este indício em conjunto com outros elementos, como a descoberta de objetos semelhantes na garagem do arguido, a ausência de sinais de arrombamento, o facto de o arguido ter deixado de atender telefonemas e de ter informado que não voltaria a trabalhar na empresa, e a deterioração da relação com o representante legal.

O tribunal considerou que, apesar do conhecimento técnico e interesse do arguido no material furtado, este indício não era suficiente para provar a sua culpa para além de qualquer dúvida razoável, sustentando-se nos Contra-indícios como:

- a diferença na bancada de trabalho,

- a incerteza sobre se o mini-frigorífico encontrado era o mesmo que foi furtado, - a dificuldade de transportar os objetos furtados por uma só pessoa, e

- o facto de os objetos furtados nunca terem sido encontrados ou postos à venda.

•A testemunha JJ afirmou ter visto o carro e atrelado do arguido perto do armazém no sábado anterior ao furto, mas isso era comum.

•A prova testemunhal de CC e de outros revelou que os bens furtados (moldes de caiaques) seriam muito difíceis de transportar por uma só pessoa e que tal transporte demoraria meses a ser feito. Além disso, o armazém encontrava-se numa zona movimentada, e ninguém viu movimentações suspeitas no fim de semana do furto.

•Os produtos furtados nunca foram encontrados ou visualizados em provas de canoagem.

A avaliação da força das provas indiretas foi feita à luz da jurisprudência, que estabelece que a mera posse de objetos furtados não é suficiente para comprovar a autoria do crime. Além disso, a presença de contraindícios, como as dificuldades no transporte dos materiais furtados e o facto de ninguém ter visto o arguido no local, enfraqueceram a força probatória dos indícios.

O tribunal concluiu que as provas indiretas, apesar de serem várias, não foram suficientes para provar a autoria do crime "para além de qualquer dúvida razoável". Na dúvida, prevalece o princípio in dubio pro reo.

Em resumo, as provas diretas estabeleceram a ocorrência do furto e os bens furtados.

As provas indiretas ligaram o arguido aos bens e à localização, mas, consideradas em conjunto, não permitiram uma conclusão inequívoca sobre a sua autoria do crime.

Assim, os indícios indiretos apresentados contra o arguido eram a descoberta de uma bancada de trabalho e um mini-frigorífico na garagem do arguido, semelhantes aos que foram furtados. No entanto, foi salientado que a bancada encontrada não era exatamente igual à que foi furtada e não houve confirmação segura de que o mini-frigorífico fosse o mesmo.

A ausência de sinais de arrombamento nas instalações da empresa, o que sugeriu que quem entrou no armazém teria usado uma chave. Tanto o arguido como CC e GG tinham chaves de acesso ao armazém, embora o arguido tenha alegado ter perdido as suas.

O facto de o arguido ter deixado de atender telefonemas e ter informado que não voltaria a trabalhar na empresa, após ser notificado do assalto, também foi considerado como um indício.

O facto de o material furtado (moldes, caiaques e canoas) ser específico para um nicho de mercado e de o arguido ter conhecimento técnico e interesse nesses produtos foi também um indício indireto.

A testemunha JJ afirmou ter visto o carro e atrelado do arguido perto do armazém no sábado anterior ao furto, mas ressalvou que era comum ver o carro do arguido lá aos sábados.

Foi notado que os moldes de caiaque, devido às suas dimensões e peso, seriam muito difíceis de transportar por uma só pessoa num curto espaço de tempo, como um fim de semana, e que o transporte demorou meses numa mudança anterior.

O armazém estava localizado numa zona movimentada, e ninguém viu movimentações suspeitas no fim de semana do furto.

Os produtos furtados nunca foram encontrados ou vistos à venda.

É importante ressaltar que, embora houvesse vários indícios apontando para o arguido, o tribunal concluiu que estes não eram suficientes para provar a autoria do crime "para além de qualquer dúvida razoável", especialmente considerando a jurisprudência que afirma que a mera posse de objetos furtados não é prova suficiente da autoria. A existência de contraindícios, como a dificuldade de transportar os objetos e a ausência de testemunhas, enfraqueceram a força probatória dos indícios.

Decidindo.

O tribunal ad quem ouviu a prova no seu todo e analisou a documentação.

Partindo dos indícios existentes contra o arguido, vejamos se os contraindícios apresentados pelo tribunal anulam ou os enfraquecem ao ponto de justificar a absolvição do arguido com base no princípio do in dúbio pro reo.

Vejamos.

Relativamente às diferenças na bancada de trabalho: foi encontrada uma bancada de trabalho na garagem do arguido semelhante à que foi furtada: A testemunha CC que, além do arguido, era utilizador da bancada desaparecida, depôs no sentido de que a bancada em causa encontrada na garagem do arguido não era exatamente igual à que estava na armazém, apenas no que diz respeito ao facto de que a mesma não tinha uma "prateleira em baixo". Este depoimento foi considerado mais credível do que os de outros estagiários que afirmaram que era a mesma. Ou seja, os estagiários afirmaram que era a mesma prateleira.

Todos os depoimentos foram no sentido de que não existia mais nenhuma no armazém igual àquela que havia desaparecido. CC afirmou que era em tudo igual à que existia no armazém com exceção da prateleira que afirmou que podia ali ter sido colocada pelo arguido. O tribunal desconsiderou este particular aspeto.

Mas mais, analisando de perto os documentos juntos aos autos, donde se destacam as fotografias do material existente antes do seu furto de fls. 48 e ss, chegamos à conclusão que a bancada em causa era exatamente a mesma que foi encontrada na garagem do arguido.

De facto, ela tinha uma prateleira, veja-se ainda fls. 53, 55, 56, tal como a que foi encontrada na garagem do arguido. Quem estava equivocado a este respeito era CC e não as demais testemunhas.

Por esta razão falece este contraindício e que se soma aos demais indícios.

Quanto à incerteza sobre o mini-frigorífico: Nenhuma testemunha, exceto DD, conseguiu confirmar que o mini-frigorífico encontrado na casa do arguido era o mesmo que foi furtado da empresa. Esta testemunha não teve dúvidas de que era o mesmo frigorífico e se acrescentarmos o facto de que um dos elementos identificadores do frigorífico era a existência de um particular autocolante, o mesmo que estava colocado no frigorifico que se encontrava no armazém na 6ª feira anterior ao furto e detetado depois na casa do arguido, podemos considerar que o frigorifico encontrado juntamente com a prateleira em casa do arguido era o mesmo que se encontrava uns dias antes no armazém donde foi retirado.

A acrescer não pode olvidar-se que o arguido afirmou que os aqueles dois objetos eram seus, o que se pode aceitar, e haviam sido removidos entre maio e junho do armazém.

Este tribunal não tem dúvidas que neste particular aspeto o arguido não falou a verdade, uma vez que toda a prova testemunhal produzida referiu que estes objetos se encontravam sem margem para dúvidas no armazém na véspera do furto. Assim sendo, só podem ter sido retirados pelo arguido naquele fim de semana que coincidiu com o desaparecimento dos demais bens.

Embora o tribunal a quo considerasse o depoimento de DD menos seguro devido à sua eventual falta de memória, ouvido o seu depoimento, constata-se que a alegada falta de memória não foi seletiva ou titubeante, foi normal atendendo à data da prática dos factos, ao tempo e funções que a testemunha desempenhava no armazém. Era estagiário, sendo compreensível que não soubesse quantos Kayacs e moldes foram furtados.

A este propósito excerto de MANUEL CAVALEIRO DE FERREIRA sobre «falibilidade do testemunho»

«Na apreciação dos depoimentos não interessam, na maioria das vezes, pormenores dispares mas só os factos relevantes para fundamentação da decisão» emergentes de efectuada «comparação duma multiplicidade de depoimentos [que] pode consentir uma reconstituição suficientemente completa dos factos, e por isso é aconselhável a produção copiosa [de] prova testemunhal, para facilidade desse confronto», por ser o testemunho «uma narração de factos conhecidos através dos sentidos» perpassando pelos sucessivos aspectos da «fidelidade da percepção» versus «deficiência da percepção» e da «exactidão da memória» versus «falhas ou lacunas de memória» e da «exactidão da narração» versus «inexactidões do testemunho» porque «a veracidade do testemunho [«…dominado pela intenção de relatar veridicamente os factos» excludente da hipótese «venialidade»] pode ser infirmada por erros, deficiências ou inexactidões de maior ou menor amplitude consoante a sua capacidade concreta para reproduzir em declaração os factos (Peters, Strafprozess, 1952, págs.292 e segs.)» que «enxertam-se nas diferentes fases em que se decompõe o testemunho» in MANUEL CAVALEIRO DE FERREIRA, Curso de Processo Penal, III, reimpressão do original de Abril de 1956 efetuada em 1981 pela Universidade Católica Portuguesa autorizada pelo Autor, pgs 340-343.

Portanto, versão do arguido não colhe quando afirma que retirou aqueles bens meses antes da data do furto, isto porque mesmo sendo seus ainda lá continuou a trabalhar até inícios de julho. Como a bancada desaparecida era por si utilizada como instrumento de trabalho, não é crível que a tivesse removido mais cedo.

Alega o tribunal a dificuldade no transporte dos bens. Os moldes de caiaque, que estavam entre os bens furtados, são objetos de grandes dimensões e peso (cerca de seis metros de comprimento e pelo menos 50kg). CC testemunhou que transportar esses moldes é muito difícil e que, numa mudança anterior da empresa, demorou meses a fazê-lo, afirmando que "uma pessoa era impossível ter feito aquilo numa noite".

Ora, a testemunha referia-se à mudança de todo o recheio da empresa, aqui se incluindo toda a maquinaria, bancadas e outras ferramentas e bens e não só a moldes, canoas ou kayacs.

Esqueceu o tribunal de considerar o que a própria testemunha referiu quanto à divisão dos moldes e que neste caso era perfeitamente possível que uma só pessoa pudesse deslocar parte dos moldes, enfatizando que os de moldes de cima seriam facilmente transportáveis por uma pessoa, sendo mais difícil os de baixo atendendo aos seu maior peso.

Portanto, quer para as canoas, quer para os Kayacs, que pesaram não mais de 15 Kgs, quer para os moldes que eram divisíveis não haveria dificuldade de transporte por uma só pessoa o que contradiz a ideia de que o arguido não teria conseguido realizar o furto sozinho durante um fim de semana.

De todo o modo, não podemos descartar a hipótese de o ter feito com auxílio de terceiras pessoas, mas não precisaria dada a divisão dos moldes, tanto mais que também seria possível arrastar os mais pesados para o atrelado, como se pode constatar pelas fotografias.

Em face do exposto, o alegado contraindício não se mostra assim tão forte, pelo contrário, para abalar os demais indícios.

Quanto à localização movimentada do armazém.

O armazém da empresa está situado numa zona movimentada, com uma bomba de gasolina e um stand de automóveis nas proximidades. Apesar disso ninguém relatou ter visto o arguido ou qualquer movimentação suspeita no local durante o fim de semana do furto.

Não se vê o alcance deste contraindício.

A prova produzida dá conta da presença do veículo e atrelado do arguido junto ao armazém e que essa presença era habitual enquanto o arguido ali trabalhava daí que fosse expectável que ninguém suspeitasse de nada de anormal ou até que uma eventual movimentação de moldes fosse anormal se fosse o arguido a realizá-la, porquanto visto como funcionário da empresa e ex dono da mesma.

A testemunha JJ confirmou ter visto o carro e atrelado do arguido junto ao armazém no fim de semana do furto. Não tendo sido visto, mas encontrando-se a sua viatura ali pode concluir-se que o arguido esteve no armazém no fim do semana do desaparecimento dos objetos. A versão apresentada pelo arguido de que se encontrava em Viana nesse dia não colhe dada a assertividade com que a testemunha assevera que viu a viatura e atrelado no fim do semana do desaparecimento dos objetos juntamente com a existência dos demais indícios, nomeadamente a deteção da prateleira e minifrigorífico na garagem do arguido. Por sua vez, tendo ali se deslocado com a sua viatura com atrelado não é crível que não tivesse as chaves do armazém, tanto mais este não tinha quaisquer indícios de arrombamento na 2ª feira seguinte.

Isto remete-nos para a alegada perda de chaves e falta de confirmação. O arguido era um dos que tinham acesso ao armazém através de chaves, CC afirmou que o arguido lhe comunicou ter perdido as suas chaves cerca de duas semanas antes do furto. Por sua vez, o arguido alegou ter entregue as suas chaves ao ex-sócio, o que não foi confirmado por GG, pelo contrário.

Tendo presente a credibilidade conferida pelo tribunal a quo à testemunha CC, devemos acreditar que aquela comunicação lhe foi feita, tanto mais que o mesmo referiu que passou ele a abrir a porta do armazém, mas isto não quer dizer que o arguido as tivesse perdido. De todo o modo, existe uma contradição quando o arguido afirma que entregou as chaves a GG, o qual afirmou tal nunca ter acontecido e, acreditando no testemunho de CC, o mesmo lhe ter dito que as perdeu.

A acrescer o facto de se constatar que na segunda feira, dia em que foi descoberto o furto, a porta do armazém encontrava-se fechada, trancada e foi aberta normalmente pelo Sr. CC.

Ora, o facto de a porta estar trancada conforme, entre outros, depoimento de NN sugere que o furto não foi um incidente aleatório ou um ato de vandalismo aberto, mas sim algo que envolveu alguém que tinha conhecimento da rotina da empresa e que tinha acesso às chaves.

Atendendo á natureza substancial dos objetos furtados, não se vê que que interesse teria um ladrão vulgar em furtar moldes de Kayacs específicos, já que todos os produzidos com base nesses moldes seriam facilmente identificáveis por aquele concreto meio desportivo.

A acrescer temos a questão do atrelado usado pelo arguido acoplando a uma carrinha fechada tipo funerária, da marca Fiat. Ninguém, de facto, se desloca de atrelado a não ser que precise de o utilizar para transportar algo.

Mais, vendo de perto imagens do atrelado em questão, constata-se que não se trata de um atrelado qualquer. Veja-se fotografias de fls. 22, 24 e 25. Trata-se de um atrelado específico para transporte de canoas, Kaycs. Conforme testemunha de CC tal atrelado poderia transportar entre Kaycs e moldes cerca de dez objetos, sendo que o arguido ainda tinha ao seu dispor a carrinha, para o restante material. Se fossem só barcos tinha até capacidade para cerca de 15.

Portanto o arguido tinha condições materiais para fazer transportar os objetos desaparecidos.

Relativamente ao argumento de que os produtos furtados, como moldes, caiaques e canoas, nunca foram encontrados, nem foram vistos à venda ou em provas de canoagem.

Os depoimentos convergiram de que seria fácil identificar um caiaque idêntico aos furtados, assim como Kaycs produzidos a partir dos moldes furtados, o que nunca aconteceu.

E exatamente por esta razão seria arriscado ao autor do furto comercializá-los.

Mas isto não pode funcionar como contraindício. Sabemos que os bens desapareceram do armazém sem autorização da sua proprietária.

O facto de não terem sido comercializados após o furto, não afasta por si só a autoria do factos por parte do arguido, pois a sua retirada poderá não terá tido nada a haver com objetivos de futura venda dos mesmos, já que atendendo às relações tensas que existiam entre o assistente e arguido que haviam sido sócios da empresa e na qual o arguido tinha tido um papel importante na sua gestão, passando depois a mero prestador de serviços depois de ceder a sua posição na empresa, e ainda o facto de na semana anterior ao desaparecimento ter havido uma conversa do sócio da empresa dando -lhe conta que a persistir a ausência de vendas poderia vir a prescindir dos seus serviços, o desaparecimento daqueles moldes teria como teve implicações sérias na atividade comercial da empresa que já não podia produzir Kaycs por não ter os moldes, ao ponto de ter contribuído para o decréscimo da faturação e dificuldades económicas e consequente venda da mesma a um familiar do próprio arguido, pelo que não pode ser descartado que tenha sido esse o objetivo do arguido, descapitalizando-a.

Embora a jurisprudência invocada estabeleça que a mera posse de objetos furtados não é suficiente para comprovar a autoria do crime, repare-se estamos a falar da mera posse sem mais.

A jurisprudência citada é clara ao afirmar que a mera posse de objetos furtados, mesmo que pouco tempo depois do furto, não é suficiente para comprovar a autoria do crime. Esta posição é reiterada em vários acórdãos, que enfatizam que a posse, por si só, não permite formular um juízo seguro sobre a autoria do furto. A mera posse dos objetos, sem outros indícios fortes, não permite concluir que o arguido seja o autor do furto.

Posto isto, pode constatar-se que os contra indícios invocados pela tribunal a quo falecem uns, soçobram outros, ficam periclitantes outros em face do acima exposto, pelo que os indícios da autoria dos factos por parte do arguido são mais fortes, para além de qualquer dúvida.

A prova indireta é admissível e muitas vezes necessária em processos penais.

Contudo, é necessário que os indícios sejam inequívocos, plurais, contemporâneos do facto a provar e interrelacionados, de forma a reforçar o juízo de inferência.

A prova indireta, baseada em factos irrelevantes dos quais se infere a existência de factos relevantes, precisa de uma ligação lógica entre o objeto da prova e o facto jurídico relevante.

A jurisprudência impõe algumas condicionantes à admissibilidade da prova indiciária.

Os indícios devem ser demonstrados por prova direta e devem ser de natureza acusatória, plurais e interligados.

Enfatiza que a análise dos indícios deve ser feita à luz das regras da experiência e do senso comum. Estas regras ajudam a avaliar a probabilidade de certas conclusões com base no comportamento humano em situações semelhantes. No entanto, as regras da experiência podem ser contrariadas por outros factos.

E conforme recente acórdão proferido em Processo 1502/16.2JABRG.P1, do qual é relatora a Exmª Srª juíza Desembargadora Amélia Carolina Teixeira e que se reproduz: É certo que, tal como alega o recorrente, não houve prova direta de que foi o autor dos crimes em causa.

Todavia, como é amplamente reconhecido, a circunstância de o Tribunal a quo, recorrer a prova indireta para alcançar a certeza jurídica quanto à ocorrência de um determinado facto, não constitui método proibido por lei. O artigo 126º do Código de Processo Penal permite expressamente que o tribunal se baseie em inferências lógicas e fundadas para estabelecer os factos provados. Com efeito, porque ligado ao referido princípio da livre apreciação da prova e não a uma qualquer presunção “de iure ou iuris tantum”, inadmissível em direito penal, é perfeitamente aceitável recorrer às denominadas “presunções naturais” (não jurídicas), ligadas ao “princípio da normalidade ou da regra geral” e às máximas da vida e regras da experiência (cfr. Figueiredo Dias, em «Ónus de alegar e provar em processo penal?», citado por Lourenço Martins, em «Droga e Direito, 1994, página 111).

Estamos no domínio da prova da culpabilidade assente predominantemente na chamada prova indiciária[15], em que o meio de prova não incide na demonstração direta do facto-objeto (o facto descrito no tipo legal) mas sim na demonstração dos factos-indiciantes, dos quais se pode inferir o facto-objeto.

Como se decidiu no Acórdão do S.T.J. de 23.02.2011, proferido no processo nº 41/08.2GAMTR.P1.S2 (relatado pelo Ex.mo Conselheiro Santos Cabral): «Nada impedirá, porém, que devidamente valorada a prova indiciária a mesma por si, na conjunção dos indícios permita fundamentar a condenação».

E como de forma modelar e muito clara ali também se consignou (transcrição parcial do sumário do citado aresto, que deve merecer leitura integral):

«(…) XIX - A forma como se explana aquela prova fundando a convicção do julgador tem de estar bem patente o que se torna ainda mais evidente no caso da prova indiciária pois que aqui, e para alem do funcionamento de factores ligados a um segmento de subjectividade que estão inerente aos principio da imediação e oralidade, está, também, presente um factor objectivo, de rigor lógico que se consubstancia na existência daquela relação de normalidade, de causa para efeito, entre o indicio e a presunção que dele se extrai.

XX - Como tal a enunciação da prova indiciária como fundamento da convicção do juiz tem de se expressar no catalogar dos factos base ou indícios que se considere provados e que vão servir de fundamento á dedução ou inferência e, ainda, que na sentença se explicite o raciocínio através do qual e partindo de tais indícios se concluiu pela verificação do facto punível e da participação do arguido no mesmo. Esta explicitação ainda que sintética é essencial para avaliar da racionalidade da inferência.

XXI - Na prova indiciária devem estar presentes condições relativas aos factos indiciadores; à combinação ou síntese dos indícios; à indiciária combinação das inferências indiciárias; e à conclusão das mesmas.

XXII - Assim:

- 1) Os indícios devem estar comprovados e é relevante que esta comprovação resulte de prova directa, o que não obsta a que a prova possa ser composta, utilizando-se, para o efeito, provas diretas imperfeitas ou seja insuficientes para produzir cada uma em separado prova plena.

- 2) Os factos indiciadores devem ser objeto de análise crítica dirigida à sua verificação, precisão e avaliação o que permitirá a sua interpretação como graves, média ou ligeiras.

- 3) Os indícios devem também ser independentes e, consequentemente, não devem considerar-se como diferentes os que constituam momentos, ou partes sucessivas, de um mesmo facto.

- 4) Quando não se fundamentem em leis naturais que não admitem excepção os indícios devem ser vários.

- 5) Os indícios devem ser concordantes, ou seja, devem conjugar-se entre si, de maneira a produzir um todo coerente e natural, no qual cada facto indiciário tome a sua respetiva colocação quanto ao tempo, ao lugar e demais circunstâncias.

- 6) As inferências devem ser convergentes ou seja não podem conduzir a conclusões diversas.

- 7) Por igual forma deve estar afastada a existência de contra indícios pois que tal existência cria uma situação de desarmonia que faz perder a clareza e poder de convicção ao quadro global da prova indiciária.»

Transpondo estes princípios para o caso em análise, não restam dúvidas de que os indícios afirmados na decisão recorrida acrescidos do abalo sofrido nos alegados contraindícios, que passaram a indícios, são precisos, convergentes, graves e suscetíveis de fundamentar uma inferência lógica que aponta para a autoria do arguido no crime imputado.

A conjugação dos elementos supra mencionados permite concluir, com segurança, que foi o arguido quem praticou os factos ilícitos.

Isto porque não se verificam, de forma concomitante, circunstâncias de facto que possam pôr em causa o resultado alcançado, nem são admissíveis hipóteses consistentes que coloquem essa conclusão em dúvida, sendo certo que tal presunção não colide com o princípio in dubio pro reo.

Com efeito, com base nas regras da experiência, é lógico concluir que da conjugação de todos os elementos probatórios recolhidos e supra explicitados permite inferências suficientemente seguras no sentido de que a matéria de facto dada como não provada passe a provada. Não se vislumbra qualquer contraindício suficientemente seguro que justifique e, menos ainda imponha, a solução encontrada pelo tribunal a quo chegou, pelo que o mesmo incorreu num erro de julgamento na apreciação que fez da prova, violando as regras da experiência comum.

A invocação do princípio in dubio pro reo e do disposto no artigo 32.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, não tem sustentação na prova.

O princípio in dubio pro reo, enquanto emanação do princípio constitucional da presunção da inocência (artigo 32º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa), aplica-se exclusivamente em sede de julgamento da matéria de facto. Este princípio opera apenas na ausência de uma convicção para além da dúvida razoável sobre a ocorrência dos factos relevantes para a decisão da causa. Trata-se de um princípio lógico de prova (cfr. Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal, Vol. I, Universidade Católica Portuguesa, 2013, pág. 93) que atua no domínio da questão-de-facto (cfr. J. Figueiredo Dias, Clássicos Jurídicos, Direito Processual Penal, pág. 215).

Como resulta do supra explanado, embora o tribunal a quo tivesse ficado com dúvidas alicerçado em contraindícios, que afinal não se verificam ou se mostram muito ténues, esta instância não ficou na dúvida quanto à autoria dos factos, não se tendo confrontado com qualquer dúvida irresolúvel, insuperável ou inultrapassável, pelo contrário.
O tribunal a quo errou na ponderação indícios/ contra indícios efetuando uma errada valoração da prova.
Neste caso específico, o tribunal considerou que, apesar dos vários indícios indiretos que ligavam o arguido ao furto, a prova não era suficiente para ultrapassar a dúvida razoável.

Parte dos indícios como a descoberta de bens iguais aos furtados na garagem do arguido, a ausência de sinais de arrombamento, o facto de o arguido ter conhecimento técnico dos produtos furtados e de ter deixado de atender telefonemas após o furto são considerados indícios relevantes, mas desconsiderou a relação tensa entre assistente e o arguido e suas dificuldades financeiras, a bancada de trabalho específica e o facto da mesma sempre ter possuído prateleira, o minifrigorífico igual e com o mesmo autocolante, objetos que estavam na véspera do furto no armazém e que o arguido disse tê-los removidos meses antes, a possibilidade de transportar os objetos furtados por uma só pessoa, repartindo os moldes, a presença da viatura carrinha e atrelado específico no local e data da ocorrência do crime, a ausência de explicação cabal para o facto de ali se encontrar a viatura e atrelado no fim de semana do desaparecimento dos objetos quando, no dizer do arguido, já havia cessado a relação laboral e entregado as chaves ao responsável, tudo aponta para que o autor do furto dos objetos tenha sido o arguido. Os alegados contra-indícios são afinal mais frágeis porquanto contrários às regras da experiência analisadas no contexto global dos factos diretos e indiretos apurados, pelo que não tem aplicação o princípio in dubio pro reo, pelo contrário, legitimam a alteração da matéria fáctica de não provado para provado, levando-nos a concluir que havia prova suficiente para condenar o arguido "para além de qualquer dúvida razoável". A dúvida, neste caso, em que se sustentou o tribunal a quo e que favoreceu o arguido, em face dos indícios não deveria ter prevalecido.

Por conseguinte, procede nesta parte o recurso interposto pelo assistente, alterando a matéria de facto, considerando como provado que:

I- O arguido foi quem levou os objetos do armazém da assistente, alterando o ponto 3 dos factos provados substituindo “ um indivíduo de identidade não concretamente apurada” por “o arguido”.

II - O arguido agiu com a intenção de se apropriar dos bens, sabendo que não lhe pertenciam, passando a ponto 19.

III - O arguido agiu de forma livre e consciente, sabendo que a sua conduta era punível por lei, passando a ponto 20.

IV- Eliminar os termos “idênticos aos” do ponto 5.

Do enquadramento jurídico.

Socorremo-nos da análise jurídica efetuada pelo tribunal a quo, a qual se mostra correta.

Vem o arguido acusado de um crime de furto qualificado, p. e p., pelo art. 203.º, n.º 1, 204.º, n.º 1, alíneas a), por referência ao art. 202.º, alínea a), todos do Código Penal.

O citado preceito consigna que «Quem, com ilegítima intenção de apropriação para si ou para outra pessoa, subtrair coisa móvel ou animal alheios, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.»

Acrescentando o art. 204.º, n.º 1, do CP «Quem furtar coisa móvel ou animal alheios:
a) De valor elevado; (…) é punido com pena de prisão até cinco anos ou com multa até 600dias.

O art. 204º, n º 2 estabelece «Quem furtar coisa móvel ou animal alheios:
a) De valor consideravelmente elevado; (…) é punido com pena de prisão de dois a oito anos.

E, ainda, o art. 202.º, n.º 1, alínea a), do CP «Para efeito do disposto nos artigos seguintes considera-se: a) Valor elevado: aquele que exceder 50 unidades de conta avaliadas no momento da prática do facto». Sendo que uma unidade de conta corresponde ao valor de € 102,00 (art. 121.º da Lei n.º 82/2023, de 29/12 e DL n.º 34/2008, de 26-02).

O bem jurídico tutelado pelo crime de furto é primordialmente a propriedade, incluindo a posse e a detenção legítimas.

O conceito penal de «propriedade» inclui o poder de disposição sobre a coisa, com fruição das utilidades da mesma. Desta forma defende-se o furto como uma agressão ilegítima ao estado atual das relações, ainda que provisórias, dos homens com os bens materiais da vida na sua exteriorização material. É esta pretensão de que a ordenação material dos bens está corretamente estabelecida que faz com que o furto se veja como uma alteração ilegítima e insustentável daquela ordenação pré-estabelecida e, por isso, suscetível de censura jurídico-penal (neste sentido, Faria Costa, «Comentário Código Conimbricense do Código Penal», anotação art. 203.º, p. 29-30).

O poder de disposição sobre a coisa tem natureza fáctica, sendo delimitada de acordo com as disposições sociais vigentes. Tal poder tem duas componentes: a possibilidade de domínio e a vontade de domínio sobre a coisa. O domínio exerce-se numa relação temporal (permanente ou intermitente) e especial (próxima ou longínqua) com a coisa.

Por outro lado, o poder de disposição supõe uma vontade natural e potencial de domínio sobre a coisa.

O tipo objetivo do crime de furto consiste na subtração de coisa móvel alheia, isto é, exige uma apropriação e sobretudo uma subtração de coisa (neste sentido vide Paulo Pinto Albuquerque, «Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos dos Homens», 4.ª Ed. Atualizada, Universidade Católica Editora, p. 859 e Ac. TRP processo n.º 7067/15.5T9VNG.P1, de 27-04-2022, disponível em www.dgsi.pt ).

Note-se que, o conceito de «coisa móvel» para efeitos penais é diferente da noção civilística. Assim, é coisa móvel toda a coisa (corpórea ou incorpórea) que tem existência física autónoma quantificável e pode ser fruída e utilizada por uma pessoa.

Por seu turno, o caráter «alheio» da coisa é determinado pelas regras de direito civil, sendo que não é alheia a coisa que não pertence a ninguém ou, pertencendo a alguém, foi por essa pessoa abandonada.

Quanto ao tipo subjetivo ilícito, o crime de furto delimita-se conceitualmente pela «ilegítima intenção de apropriação», admitindo qualquer modalidade de dolo prevista no art. 14.º do CP.

O crime de furto é um crime de dano (quanto ao grau de lesão do bem jurídico protegido), de resultado (quanto à forma de consumação do ataque ao objeto da ação), sendo um resultado cortado na medida em que a circunstância de a «intenção de apropriação» não ter de se concretizar numa efetiva apropriação, apenas tem de se verificar a existência dessa intenção (neste sentido vide Paulo Pinto Albuquerque, ob. cit., p. 859 e 862).

Tendo presente as considerações jurídicas tecidas e revertendo ao caso concreto, importa apurar se os factos dados como provados preenchem os elementos do tipo de ilícito de furto qualificado.

Assim, temos que se demonstrou a factualidade imputada ao arguido pela acusação, quer no que se reporta à componente objetiva, quer no que tange à componente subjetiva do crime em causa.

O arguido entre as 18h30 do dia 5 de Julho de 2019 (sexta-feira) e as 09h00 do dia 8 de Julho de 2019 (segunda feira), dirigiu-se ao interior do armazém suprarreferido e dali retirou, e trouxe consigo para local não concretamente apurado, os seguintes produtos:

- um molde ZKI (deck + casco) + gola, no valor de € 3.000,00 (três mil euros);

- um molde ZKI (deck XL), no valor de € 500,00 (quinhentos euros);

- um molde Carrera K1 (deck + casco), no valor entre € 2.500,00 (dois mil e quinhentos euros) a € 3.000,00 (três mil euros);

- um molde Carrera K2 (deck + casco), no valor entre € 2.500,00 (dois mil e quinhentos euros) a € 3.000,00 (três mil euros);

- um molde Canoa, no valor de € 2.500,00 (dois mil e quinhentos euros);

- dois kayak, ZKI, em fase de pintura, no valor de € 2.000,00 (dois mil euros);

- um molde Canoa C1, modelo W (deck + casco), no valor de € 2.500,00 (dois mil e quinhentos euros);

- um molde Canoa C2, AO5 (deck + casco), no valor de € 3.500,00 (três mil e quinhentos euros

- um molde Goofy (deck + casco), no valor de € 3.000,00 (três mil euros);

- um molde V5314 (deck + casco), no valor de € 3.000,00 (três mil euros);

- uma máquina polidora Makita, no valor de € 300,00 (trezentos euros);

- uma ferramenta laminadora, no valor de € 20,00 (vinte euros);

- uma bancada de trabalho, no valor de € 250,00 (duzentos e cinquenta euros);

- um mini-frigorifico, de cor branca, com um autocolante a dizer B..., de valor não concretamente apurado, mas inferior a uma unidade de conta;

- um kayak ZKI, Proelite, branco e preto, no valor de € 1.800,00 (mil e oitocentos euros);

- um kayak ZKI, Proelite, branco e preto, no valor de € 1.800,00 (mil e oitocentos euros);

- um kayak ZKI Sport, branco e vermelho, no valor de € 1.300,00 (mil e trezentos euros);

- um kayak KI, branco no valor de € 1.800,00 (mil e oitocentos euros).

O valor total dos objetos furtados é de €32.020,00, o que significa que estamos perante uma situação de valor consideravelmente elevado, porquanto excede as 200 unidades de conta(€20,400,00).

Ao atuar pela forma descrita, teve o arguido o propósito concretizado de fazer seu os referidos bens, bem sabendo que os mesmos, bem como o local de onde os retirou, não lhe pertenciam e que atuava contra a vontade do seu legítimo dono.

Admitindo, todavia, que do leque dos objetos retirados a bancada e o minifrigorífico fossem sua propriedade.

Atuou de modo livre, voluntário e consciente, bem sabendo ser a sua conduta proibida e punida por lei.

Tendo presente que o arguido foi acusado e pronunciado pelo art. 204º, n º 1 al. a) por referência ao art. 202º, al. a) do Código Penal e que o valor dos objetos se situa no âmbito do art. 202º, al. b) do Cód. Penal foi cumprido o disposto no art. 358º, n º 3 do CPP, em face da alteração não substancial dos factos descritos na acusação e pronúncia.

Tendo presente que o arguido foi acusado e pronunciado pelo art. 204º, n º 1 al. a) por referência ao art. 202º, al. a) do Código Penal e que o valor dos objetos se situa no âmbito do art. 202º, al. b) do Cód. Penal foi cumprido o disposto no art. 358º, n º 3 do CPP, em face da alteração não substancial dos factos descritos na acusação e pronúncia.

Arguido e assistente pronunciaram-se.

O valor atribuído aos bens nos factos provados já era conhecido do arguido quer na acusação quer na pronúncia e está sustentado na motivação da decisão a quo. O arguido não apresentou prova contrária nem solicitou diligências de prova suplementares na fase de julgamento a respeito apesar de ter alegado que eram valores exorbitantes, pelo que se mostra intempestiva qualquer outra diligência de prova ora requerida e a realizar nesta fase de recurso.

Ora, tendo presente o facto de estarmos perante um furto de valor elevado, porquanto excede as 200 unidades de conta, há de facto e apenas uma alteração do enquadramento jurídico e não dos factos porque esses mantêm-se tal como descritos, incluindo o valor, na acusação e na pronuncia, pelo que estamos perante uma alteração não substancial dos factos, art. 358º, n º 3 do CPP

O que leva a que, haja uma agravação na moldura abstrata da pena de furto qualificado, previsto com pena de prisão de dois anos a oito anos.

O arguido sempre soube que o valor dos bens furtados ultrapassava as 200 unidades de conta.

Assim sendo, deve agora o presente recurso ser apreciado de acordo com uma nova moldura penal, isto é, tendo em consideração uma moldura penal entre os dois a oito anos.

Perante os factos supra descritos não temos dúvidas que o arguido cometeu o crime de furto qualificado previsto e punido pelo artigo 204º, n º 2, al.a) por referência ao artigo 202º, al. b), ambos do Código Penal.

Da medida da pena.

Da Consequência Jurídica do Crime

Da Escolha da Pena.

A todo o crime corresponde uma reação penal, pela qual a comunidade expressa o seu juízo de desvalor sobre os factos e a conduta realizada pelo arguido.

In casu, o crime de furto qualificado, p. e p. pelos artigos pelo artigo 204º, n º 2, al. a) por referência ao artigo 202º, al. b), ambos do Código Penal é punido com pena de prisão de dois a oito anos.

Uma vez que inexiste alternância entre prisão e multa não se impõeproceder à escolha da pena que concretamente irá ser aplicada ínsito no artigo 70° do Código Penal, de acordo com o qual, “se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”.

A escolha da pena deve obedecer, nos termos do artigo 40º do Código Penal, à finalidade de prevenção geral positiva ou de integração, enquanto proteção de bens jurídicos, e à finalidade de prevenção especial de socialização referida à reintegração do agente na comunidade, o que significa que será necessário avaliar as circunstâncias de cada situação concreta, a fim de avaliar a suficiência e adequação de cada uma das espécies de pena face a estas finalidades.

Necessidade, proporcionalidade e adequação são os princípios orientadores que devem presidir à determinação da pena aplicável à violação de um bem jurídico fundamental.

As finalidades da punição reconduzem-se, nos termos do art. 40.º, do Cód. Penal, à proteção de bens jurídicos (prevenção geral), e à reintegração do agente na sociedade (prevenção especial).

Estabelece n.º 1 do artigo 71º do Código Penal que a “determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção”, sendo que, em caso algum, a pena pode ultrapassar a medida da culpa, nos termos do artigo 40º, n.º 2 do mesmo código.

Assim sendo, na determinação da exata medida da pena, ter-se-á que atender à formula básica interpretativa deste normativos, segundo a qual temos de partir da sua moldura abstratamente prevista, funcionando a culpa do agente como o limite máximo e inultrapassável da pena aplicável, representando esta um juízo de censura à conduta desvaliosa do agente manifestada no facto praticado.

As necessidades de prevenção geral de integração, fornecem-nos, por sua vez, uma submoldura, a qual tem por limite máximo a medida ótima de tutela dos bens jurídico-penais violados e por limite mínimo a pena abaixo da qual as expectativas comunitárias na validade do direito sofrem abalo, limite mínimo esse “constituído pelo ponto comunitariamente suportável da medida da tutela dos bens jurídicos” (neste sentido Figueiredo Dias, in «Direito Penal II - Parte Geral», lições ao 5.º ano da FDUC, pág. 279 e ss.).

Por último, as exigências de prevenção especial de socialização dão-nos, dentro desta submoldura, a medida exata da pena concreta aplicável ao agente.

Na ponderação da medida concreta da pena deverá o juiz atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra o agente (artigo 71º, n.º 2 do Código Penal).

Tendo, pois, em conta o princípio geral que acaba de ser formulado, deverão ser neste momento consideradas todas aquelas circunstâncias que, não fazendo parte do tipo legal convocado nem tendo sido já atendidas para efeitos de qualificação, sejam expressivas da culpa do arguido e da medida das necessidades de prevenção.

A este propósito, o Prof. Figueiredo Dias assinala que toda a pena serve finalidades exclusivas de prevenção geral e especial; a pena concreta é limitada, no seu máximo inultrapassável, pela medida da culpa; dentro deste limite máximo ela é determinada no interior de uma moldura de prevenção geral de integração, cujo limite superior é oferecido pelo ponto ótimo de tutela dos bens jurídicos, e cujo limite inferior é constituído pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico; e dentro desta moldura de prevenção geral de integração, a medida da pena é encontrada em função de exigências de prevenção especial, em regra positiva, de integração ou de socialização, excecionalmente negativa ou de intimidação.

Assume, assim, a referida prevenção geral positiva - de reforço da consciência jurídica

comunitária e do sentimento de segurança face à violação da norma ocorrida, o primeiro lugar como finalidade da pena. Como refere Roxin, a prevenção geral positiva implica três efeitos: o ensino pedagógico-socialmente motivado o qual deve provocar a aprendizagem da fidelidade ao direito; o efeito de confiança que se produz quando o cidadão vê que o direito se impõe; e o efeito de satisfação que se apresenta quando o delinquente já foi penalizado de uma forma que a consciência jurídica geral tranquiliza-se perante a infração ao direito e considera solucionado conflito com o autor.

Contra o arguido milita o grau da ilicitude, revelado pelo modus operandi do cometimento do crime, a quantidade e valor dos objetos em causa (€32.020,00), a ligação que o arguido tinha à empresa donde retirou os objetos, a intensidade do dolo, que é direto, a realização do tipo legal foi posta pelo arguido como o fim atingir e por ele representada como uma consequência direta da sua conduta e aceite como tal.

A favor do arguido pondera-se o facto não ter antecedentes criminais e a sua inserção profissional, familair e pessoal na comunidade. Tal inserção deve ser valorada e considerada como atenuante da sua conduta, por necessário à ressocialização que se almeja.

Por outro lado, na situação presente, afigura-se-nos que o arguido não tendo antecedentes criminais, é lícito ao Tribunal efetuar um prognóstico favorável sobre os seus futuros comportamentos.

As exigência de prevenção geral são grandes dada a habitualidade da prática de crimes de furto na nossa sociedade

Assim, tudo ponderado e tendo em conta a moldura abstrata da pena de prisão (de 02 a 08 anos), reputamos como proporcional, justa, adequada e pedagógica a aplicação de uma pena concreta de três anos de prisão.

No caso em apreço, não se mostra possível (atenta a concreta pena aplicada) substituir a pena de prisão por pena de multa nos termos do artigo 45.º, n.º 1 do Código Penal, nem, nos termos do disposto no artigo 58.º, n.º 1 do Código Penal, a substituição da pena de prisão, não superior a 2 anos, pela prestação de trabalho a favor da comunidade (cfr. Artigo 58.º, n.º 5 do Código Penal).

Dentro das penas de substituição não privativas da liberdade, apenas a pena de prisão suspensa na sua execução, mediante a ameaça sobre o arguido de cumprimento da prisão efetiva, com condições pode ter o pretendido efeito de afastar o arguido da criminalidade [cfr. artigo 50.º, n.º 1 do Código Penal].

Cremos, assim, que a censura do facto e sobretudo, a ameaça de prisão, permitem ao Tribunal fazer um juízo de prognose que aquela surtirá efeito no processo de ressocialização do arguido.

Face ao exposto, justifica-se suspender a execução daquela pena de prisão por um período de 5 (cinco) anos, conforme o disposto no artigo 50.º, n.º 5 do Código Penal, mediante a condição de pagamento da indemnização a que venha a ser condenado e nos termos que agora se vão definir, conforme art.º 51.º, n º 1, al. a) do C. Penal.

O montante fixado deverá ser pago em 05 fases correspondentes a cada ano da suspensão e até ao término de cada um dos anos.

Assim, tendo presente o valor dos bens furtados, deverá o arguido pagar em cada um dos cinco anos a quantia de €6.404,00, a que deverão acrescer os juros vencidos e vincendos.

Este montante não se mostra exagerado tendo presente o rendimento mensal que o arguido aufere da ordem dos €2.500.00, tendo já em conta os encargos que suporta e reparte com a sua mulher, configurando uma média mensal da ordem dos €533,66.

Pode o arguido, querendo, optar pelo pagamento da indemnização na sua integralidade. Para o efeito, deverá fazê-lo até ao final do primeiro ano.


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Do Pedido de Indemnização Civil

Socorrendo-nos do que afirma o tribunal a quo a propósito e que ase aproveita, a assistente/demandante A..., Lda. deduziu pedido de indemnização civil peticionado a condenação do arguido/demandado no pagamento da quantia de € 34.000,00, a título de danos patrimoniais pelo furto dos materiais em causa e, ainda, de € 6.000,00, a título de danos morais, acrescido de juros à taxa legal, desde a notificação do demandado até efetivo e integral pagamento

Preconiza o art. 129.º do CP que «a indemnização de perdas e danos emergentes de crime é regulada pela lei civil», remetendo, assim, para o disposto no art. 483.º do Código Civil, onde se regula a responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos.

Por sua vez, consigna art. 71.º do CPP o princípio da adesão, segundo o qual a ação civil de indemnização fundada na prática de um crime deve ser deduzida no respetivo processo penal. Contudo, este princípio não tem natureza absoluta, na medida em que, atenta a parte final do dito normativo, o mesmo comporta exceções, prevendo o art. 72.º do mesmo diploma legal as situações excecionais em que o pedido de indemnização civil pode ser deduzido em separado (não enxertado na ação penal).

Ademais, o pedido de indemnização civil, quando feito no processo penal, circunscreve-se, necessariamente, aos danos exclusivamente resultantes da prática do crime, razão pela qual a causa de pedir do pedido civil é constituída pelos factos que integram o crime, porquanto, estabelece o art. 74.º, n.º 1, do CPP, a pessoa que tem legitimidade para deduzir o pedido de indemnização civil é «a pessoa que sofreu danos ocasionados pelo crime».

Nesta senda, o pedido de indemnização civil deve ser balizado pelos mesmos factos que justificam a responsabilidade criminal do agente (neste sentido, vide Ac. STJ, proc. n.º 957/96.4JAFAR.E3.S1, de 26-11-2014 e Ac. TRC, proc. n.º 190/11.7JAGRD-A.C1, de 29-03-2017).

Atento o disposto no art. 483.º, n.º 1, do Código Civil, «aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação».

Atendendo ao pacificamente entendido pela doutrina tradicional, a responsabilidade civil por factos ilícitos depende da verificação de cinco pressupostos, a saber: i) facto voluntário (ou omissão); ii) ilicitude; iii) culpa; iv) danos; e v) nexo de causalidade.

Por regra, a responsabilidade civil parte de um facto voluntário, o qual se consubstancia num facto controlável pela vontade humana, isto é, um acontecimento gerado por um comportamento determinado pela vontade humana. Exige-se, aqui, que haja um comportamento controlável pela vontade humana, não relevando a intencionalidade do resultado do facto (Almeida Costa, «Direito das Obrigações», 9.ª Ed. Almedina, p. 510-511).

Por seu turno, a ilicitude parte da inexistência de qualquer causa de justificação para a prática do facto, sendo que, no caso concreto, a mesma parte da violação de direitos absolutos das demandantes, nomeadamente o seu direito à integridade moral, física e ao bom nome, constitucionalmente consagrados nos arts. 25.º e 26.º, ambos da Constituição da República Portuguesa.

Em harmonia com o disposto no art. 483.º, n.º 1, do Código Civil, a responsabilidade civil exige culpa, quer a nível do dolo ou da mera culpa, competindo ao lesado demonstrá-la (art. 487.º, n.º 1, do Código Civil). A culpa é apreciada, na falta de outro critério legal, pela diligência de um «bonus pater familiae», isto é, de acordo com a conduta normal do cidadão comum e em face das circunstâncias de cada caso (art. 488.º, n.º 1, do Código Civil). A referência ao «bom pai de família» acentua a questão da ética ou deontologia do bom cidadão perante as circunstâncias em crise, o que vai para além do critério estatístico do homem médio (Pires de Lima e Antunes Varela, «Código Civil Anotado- Vol. II», Coimbra, Coimbra Editora, anotação ao art. 487.º).

No que concerne aos danos, os mesmos correspondem a lesões patrimoniais ou não patrimoniais na esfera jurídica do lesado, que assumem uma expressão económica suscetível de ser ressarcida (art. 562.º do Código Civil). Os danos patrimoniais correspondem a todos os interesses de natureza material ou económica, refletindo-se diretamente no património do lesado, ao contrário dos danos não patrimoniais, que se reportam a valores de ordem espiritual, ideal ou moral.

Por fim, quanto ao nexo de causalidade, a obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão, assim, «quem estiver obrigado a reparar o dano deve reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação», tal como dispõe o art. 562.º do Código Civil.

Nesta senda, a teoria da causalidade adequada, impõe, num primeiro momento, a verificação de um nexo naturalístico (atinente à existência de um facto naturalístico concreto, condicionante de um dano sofrido, para que este seja reparado) e, em segundo lugar, a verificação de um nexo jurídico (que o facto concreto apurado seja, em abstrato e em geral, adequado e apropriado para provocar o dano). Para o nexo de causalidade importa «que o evento danoso seja uma causa provável desse efeito».

Por seu turno, relativamente aos danos não patrimoniais preconiza o art. 496.º, n.º 1, do Código Civil que «na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito».

Com efeito, a indemnização por danos não patrimoniais não consubstancia uma indemnização em sentido próprio, na medida em que não visa repor as coisas no estado em que existiam antes da prática do facto danoso, mas sim proporcionar uma satisfação ou compensação pelo dano sofrido.

Para se fixar o montante indemnizatório por danos não patrimoniais a lei manda recorrer à equidade, art. 4.º, al. a), e 496.º, n.º 4, do Código Civil, fixando-se a indemnização equitativamente «considerando o dano, o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e outras circunstâncias que se justifique ponderar. Está-se aqui perante uma indemnização com natureza não estritamente reparadora, mas também sancionatória” (vide, Ana Prata, «Código Civil Anotado, Volume I», 2.ª Ed. revista e atualizada, 2019, Almedina, p. 682).

Deflui do exposto que a indemnização por danos não patrimoniais deve tentar corresponder a um conforto do lesado, com um alcance significativo e não meramente simbólico, calculado segundo critérios de equidade, considerando a culpa do agente, a sua situação económica e a situação económica do lesado, as especiais circunstâncias do caso, a gravidade do dano, etc., ou seja, todas as regras de boa prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas, de criteriosa ponderação das realidades da vida: a indemnização deve ser proporcional à gravidade do dano, a avaliar objetivamente, e ser fixada de acordo com critérios de boa prudência e ponderação das realidades da vida (Ac. TRC, processo n.º 310/13.7GBPMS.C1 de 17-05-2017, disponível em www.dgsi.pt).

Descendo ao caso concreto, resulta da factualidade dada como provada a imputação ao arguido, da prática dos factos que deram causa aos danos sofridos pela assistente, com exceção dos de natureza não patrimonial que não resultaram provados.

Resultaram provados prejuízos, porquanto os objetos furtados nunca foram recuperados e tendo presente os valores apurados está em causa o montante total de €32.020,00, já excluindo o valor da banca e do minifrigorífico, pelo que o arguido terá de ressarcir a assistente deste valor, pelo qual é condenado.

Os juros à taxa legal são devidos desde a data da notificação da petição.


*

Decisão:

Pelo exposto, o Tribunal da Relação do Porto decide conceder provimento ao recurso crime e parcial provimento ao pedido cível interposto pelo recorrente A..., Ldª e, em consequência, revogar a sentença recorrida.

Consequentemente:

Nestes termos, julga-se a pronúncia procedente e, em consequência, decide-se:
a) Condenar o arguido AA, pela prática, em autoria material, de 1 (um) crime de furto qualificado, p. e p. pelo art. 204.º, n.º 2, alínea a) por referência ao art. 202.º, alínea b), ambos do CP n apena de 03 anos de prisão;
b) Suspender a execução da pena de prisão por cinco anos.
c) Com a condição de pagamento da indemnização fixada em 05 fases correspondentes a cada ano da suspensão e até ao término de cada um dos anos.

Assim, tendo presente o valor dos bens furtados, deverá o arguido pagar em cada um dos cinco anos a quantia de €6.404,00.

A que deverá acrescer os juros vencidos e vincendos.

Pode o arguido, querendo, optar pelo pagamento da indemnização na sua integralidade. Para o efeito, deverá fazê-lo até ao final do primeiro ano.

Mais decide-se quanto à instância cível:

Julgar parcialmente procedente o pedido de indemnização civil formulado pela demandante A..., Lda. e, em consequência, condenar o demandado AA no pagamento do montante de € €32.020,00.

Os juros à taxa legal são devidos pelo demandado e a que se condena desde a data da notificação da petição.


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Sem custas a cargo da recorrente.

Custas criminais, com taxa de justiça que se fixa em 4Ucs a cargo do arguido.


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Custas na parte civil na proporção do decaimento a cargo do demandado e da demandante (art. 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPC, ex vi do art. 523.º do CPP).

*

Após trânsito, remeta boletins à DSIC – art. 374.º, n.º 3, d), do CPP- (artigo 6º, alínea a) da Lei nº 37/2015, de 5 de maio).

*

Notifique – cfr. art. 425º nº 6 do CPP.

Porto, 26 de março de 2025

(Texto elaborado e integralmente revisto pelo relator, sendo as assinaturas autógrafas substituídas pelas eletrónicas apostas no topo esquerdo da primeira

Paulo Costa

Pedro M. Menezes

Castela Rio

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[1] É o que resulta do disposto nos arts. 412.º e 417.º do CPPenal. Neste sentido, entre muitos outros, acórdãos do STJ de 29-01-2015, Proc. n.º 91/14.7YFLSB.S1 - 5.ª Secção, e de 30-06-2016, Proc. n.º 370/13.0PEVFX.L1.S1 - 5.ª Secção.
[2] Cfr. Ac. da R.P. de 24/01/2024, no proc. nº 957/23.3PRPRT.P1, relatado por Paulo Costa, não publicado.
[3] Cfr. Acs. da R.P. de 13/09/2023 no proc. nº 1138/21.6T9AVR.P1, relatado por Pedro Afonso Lucas, não publicado e da R.C. de 12/07/2023 no proc. nº 982/20.6PBFIG.C1, relatado por Luís Teixeira, acedido in www.dgsi.pt
[4] Cfr. Ac. do STJ de 01/07/2010, publicado na C.J., Ano XVIII, Tomo II, pág. 219.
[5] Cfr. proc. nº 135/22.9PCMTS.P1, relatado por Pedro Afonso Lucas, ainda não publicado.
[6] Cfr. Ac. da R.C. de 09/09/2009 no proc. nº 112/08.2GDCBR.C1, relatado por Jorge Raposo, acedido in www.dgsi.pt
[7] Cfr. proc. nº 77/07.8GFSTB.E1, relatado por Gilberto Cunha, acedido in www.dgsi.pt
[8] Cfr. proc. nº 1381/22.0PBBRR.L1-5, relatado por Manuel José Ramos da Fonseca, acedido in www.dgsi.pt
[9] Cfr. Ac. da R.C. de 04/05/2016, no proc. nº 721/13.8TACLD.C1, relatado por Fernando Chaves, acedido in www.dgsi.pt
[10] Cfr. Ac. da R.E. de 07/12/2012, no proc. nº 197/10.1TAMRA.E1, relatado por Ana Barata Brito, acedido in www.dgsi.pt
[11] Ac. da R.E. de 11/09/2024, no proc. nº 1601/21.9PBCBR.C1, relatado por João Abrunhosa, acedido in www.dgsi.pt
[12] Cfr. Ac. da R.P. de 04/02/2016, relatado por Antero Luís, no proc. nº 23/14.2PCOR.L1-9, acedido in www.dgsi.pt
[13] Cfr. Ac. da R.C. de 25/10/2017, relatado por Inácio Monteiro, no proc. nº 444/14.0JACBR.C1, acedido in www.dgsi.pt
[14] Cfr. Ac. da R.L. de 14/07/2022, relatado por João Abrunhosa, no proc. nº 103/22.0PWLSB.L1, não publicado na www.dgsi.pt
[15]Sobre esta matéria podem consultar-se, entre outros com igual relevo, os seguintes Acórdãos do STJ, de 06.10.2010, 23.02.2011 e 9.12.2012, consultáveis em www.dgsi.pt.
E os seguintes textos:
- “Prova indiciária e as novas formas de criminalidade”, Santos Cabral: Revista Julgar, nº 17, pág.13.
- “Prova indiciária (contributos para o seu estudo e desenvolvimento em dez sumários e um apelo premente)”, Euclides Dâmaso, Revista Julgar, nº 2, pág. 203.
Sobre a validade e a força probatória da chamada prova indireta ou indiciária pode ver-se o Acórdão do Tribunal Constitucional nº 521/2018, acessível em www.tribunal constiticional.pt.