Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
| Processo: |
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| Nº Convencional: | JTRP000 | ||
| Relator: | MARIA DO ROSÁRIO MARTINS | ||
| Descritores: | ESCUSA DE JUIZ AMIZADE ENTRE MAGISTRADOS E ADVOGADOS MOTIVO SÉRIO E GRAVE | ||
| Nº do Documento: | RP202512122464/23.5T9PRT-A.P1 | ||
| Data do Acordão: | 12/12/2025 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | RECURSO PENAL (CONFERÊNCIA) | ||
| Decisão: | INDEFERIDO O PEDIDO DE ESCUSA | ||
| Indicações Eventuais: | 1. ª SECÇÃO CRIMINAL | ||
| Área Temática: | . | ||
| Sumário: | I - A relação de amizade entre o juiz natural e um mandatário de uma das partes não constitui necessariamente fundamento de escusa. II - A relação de amizade entre magistrados e advogados não é, por si só, suficiente para preencher os requisitos do motivo “sério e grave”. (Sumário da responsabilidade da Relatora) | ||
| Reclamações: | |||
| Decisão Texto Integral: | Processo 2464/23.5T9PRT-A.P1 Comarca de Aveiro Juízo de Competência Genérica de Espinho - ... Acordam, em conferência, os Juízes Desembargadores da 1ª secção do Tribunal da Relação do Porto: I- A Sra. Juíza AA veio requerer escusa para intervir no processo 2464/235T9PRT que se encontra na fase de instrução. *** II- Fundamentos do Incidente de escusa (despacho que se transcreve integralmente) “Constato apenas agora que a Il. Mandatária do assistente é minha amiga pessoal, sendo que com ela convivo há largos anos. Muito embora tal relacionamento em nada colida com a minha atividade profissional, pode o mesmo, por terceiros, ser visto como uma circunstância que afete a imparcialidade das minhas decisões, pelo que, nos termos do disposto no artigo 43º, 4, do CPP, peço escusa de intervir nos presentes autos. Uma vez que não se trata de ato urgente, dou sem efeito a diligência agendada, estando o presente pedido em tempo, uma vez que não foi designado ainda debate instrutório (artigo 44º, 1, do mesmo diploma). Autue o presente pedido por apenso, com cópia do despacho de arquivamento, RAI, despacho de indeferimento do RAI, Acórdão do TRP e presente despacho.” *** III- Notificados os sujeitos processuais nada disseram. *** IV- Foram colhidos os vistos e realizada a conferência. *** IV- Apreciação do pedido §1. Com interesse para a apreciação do pedido importa ter presente os seguintes elementos factuais/ocorrências processuais que constam dos autos: 1) Em 03.12.2024 a Sra. Juíza subscritora do presente incidente rejeitou o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente BB por inadmissibilidade legal. 2) Interposto recurso pelo assistente BB por acórdão proferido por esta Relação (relatado pela relatora do presente acórdão) o mesmo foi julgado parcialmente procedente e, em consequência, decidiu-se: i) Revogar a decisão recorrida na parte em que rejeita o requerimento de abertura de instrução por inadmissibilidade legal em relação ao arguido CC e determinar que o Tribunal a quo substitua a decisão recorrida por outra que declare aberta a instrução em relação a este arguido, proceda às diligências que entenda necessárias e decida se o arguido CC deve ou não ser pronunciado de acordo com a pretensão do assistente; ii) Manter a decisão recorrida de rejeição do requerimento de abertura de instrução por inadmissibilidade legal em relação à arguida A..., Lda. 3) Na sequência do acórdão aludido em 2) a Sra. juíza subscritora do presente incidente de escusa proferiu os seguintes despachos: i) Datado de 22.09.2025: “Em obediência ao superiormente decidido, profere-se o seguinte despacho: Requerimento de Instrução que antecede: O tribunal é competente, em razão da matéria e do território. O requerente tem legitimidade e interesse em agir, encontrando-se legalmente representado. A fase de instrução é legalmente admissível. Por tempestivo, recebo o/s requerimento/s que antecede/m e declaro aberta a fase de instrução. Cumpra o disposto no art.º 287º/5, do CPP. Dispõe o artigo 287.º, 2 do CPP, sob a epígrafe, “Requerimento para abertura da instrução”: O requerimento não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos atos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros, se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto nas alíneas b) e d) do n.º 3 do artigo 283.º. Assim, deverá a Il. Mandatária do requerente, em cinco dias, vir aos autos indicar a razão de ciência da testemunha e a que factos deve ser ouvida, sob pena de não o fazendo a diligência ser considerada prescindida - artigo 287º, 2, do CPP. DN. Indefiro a tomada de declarações ao assistente porquanto se trataria de um ato inútil, na medida em que a sua versão dos factos se encontra plasmada no requerimento instrutório. Se, ainda assim persistir na sua audição e tratando-se de ato obrigatório, deverá dizê-lo, em cinco dias, caso em que será ouvido em sede de debate instrutório (considerando-se que prescinde do prazo a que alude o art.º 297º, 1, do CPP, tendo em conta o disposto no art.º 107º, 1, do mesmo diploma legal). No mesmo prazo deverá o arguido vir aos autos esclarecer se pretende prestar declarações ou se opta pelo silêncio, direito que lhe assiste. Nada dizendo nesse prazo, entende-se que não pretende prestar declarações” ii) Datado de 07.10.2025: “Para inquirição de testemunha/s e assistente, de forma presencial ou através de videoconferência, designo o próximo dia 5 de novembro às 11H30. DN.” iii) Em 29.10.2025 a Sra. Juiza subscritora do presente incidente proferiu o despacho acima transcrito no ponto II. * §2. De acordo com o disposto no artigo 43º, n.º 1 do C.P.P. “a intervenção do juiz do processo pode ser escusada quando existir risco de ser considerada suspeita, por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade”. Esta imparcialidade do juiz perante os interesses em disputa no processo penal constitui uma garantia essencial da independência do tribunal e do processo equitativo. No plano subjectivo, a existência do risco que constitui o pressuposto material para se admitir a escusa de intervenção no processo, afere-se pela existência fundada de uma qualquer relação de interesse pessoal (económico ou afectivo) entre o juiz e o objecto do processo ou os seus sujeitos processuais, ao ponto de, por causa dela, existir um perigo de o julgamento da causa ser influenciado por esse interesse, em prejuízo da objectividade e isenção. No plano objectivo, independentemente da inexistência de uma qualquer relação de interesse que ligue o juiz à causa, interessará apurar se, em face dos factos relevantes, um observador médio, informado e razoável poderá ser levado a suspeitar da imparcialidade do juiz (seja o sujeito do processo com interesse no desfecho da causa ou, apenas, qualquer membro da comunidade sem qualquer ligação afectiva com a causa). O princípio do juiz natural só é de remover em situações-limite, ou seja, “unicamente e apenas quando outros princípios ou regras, porventura de maior dignidade, o ponham em causa, como sucede, por exemplo, quando o juiz natural não oferece garantias de imparcialidade” (cfr. Ac. do STJ de 05.04.2000, relatado pelo Sr. Conselheiro Leal Henriques, publicado na CJSTJ, Ano VIII, Tomo I, pág. 244). Na ponderação acerca da existência de motivo sério e grave “do qual ou no qual resulte inequivocamente um estado de forte verosimilhança (desconfiança) sobre a imparcialidade do juiz, … tem de haver uma especial exigência quanto à objectiva gravidade da invocada causa de escusa, recusa ou suspeição”, para evitar que, por via do uso indevido dessa faculdade, venha a ser injustificadamente afastado o princípio constitucional do juiz natural (veja-se Ac. do STJ de 05.07.2007, relatado por Simas Santos, acessível em www.dgsi.pt). Como se escreveu no acórdão do TC n.º 59/2024, de 18.01.2024 (acessível em tribunalconstitucional.pt) “Na caracterização do que deve entender-se por «motivo, sério e grave, adequado a gerar a desconfiança» sobre a imparcialidade dos Juízes Conselheiros, a recente jurisprudência do Tribunal Constitucional vem evidenciando assim um grau de exigência similar ao que pode observar-se na jurisprudência de outros Tribunais superiores, tendo presente, por um lado, que o deferimento de uma escusa (ou recusa) «têm como consequência a modificação de regras essenciais do processo, máxime do princípio do juiz natural» (Mouraz Lopes, Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, 2.ª edição, Almedina, 2022, p. 510) e, por outro, que a «abertura do leque da escusa (ou recusa) sem critério exigente, além de torpedear o princípio constitucional do juiz natural e de limitar o poder e o direito judicatório do mesmo, acabaria por fazer implodir o sistema judiciário com as sucessivas escusas (ou recusas)» (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 1 de março de 2023, Proc. n.º 122/13.8TELSB-BQ.L1-A.S1, acessível em www.dgsi.pt).” * §3. No caso em apreço, as razões invocadas localizam-se, estritamente, no referido plano objectivo de eventual suspeição, por parte de terceiros, da imparcialidade da Sra. Juiza. Assim, importa saber se as circunstâncias invocadas pela Sra. Juiza requerente – amiga pessoal da mandatária do assistente, com quem convive há largos anos – são susceptíveis de criar uma suspeita objectiva sobre a sua imparcialidade. Ora, não nos parece que o fundamento invocado, aos olhos do homem médio, seja apto para gerar, sem mais, um juízo de desconfiança sobre a imparcialidade da Sra. Juiza. Pelo contrário, se atentarmos às decisões proferidas pela Sra. Juiza desde que o processo lhe foi distribuído e até à presente data, podemos concluir que a invocada relação de amizade não pode, pois, levar a duvidar da sua imparcialidade por parte de terceiros. Na verdade, essa circunstância para além de não ter sido impeditiva da Sra. Juiza rejeitar o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente, também não a inibiu de indeferir a tomada de declarações ao assistente na sequência do acórdão proferido por esta Relação. De notar que a própria Sra. Juiza admitiu que essa relação de amizade não colide com a sua actividade profissional, o que significa que as decisões já por ela proferidas no processo não estão sequer associadas a um eventual excesso de zelo para a mesma demonstrar que a relação de amizade não teve influência. Dito de outro modo. A invocada relação de amizade não interferiu nem vai interferir na sua capacidade de decisão com imparcialidade. Donde, entendemos que o referido observador médio, informado e razoável, não tenderá a desconfiar da imparcialidade da intervenção da Sra. Juiza requerente. No mesmo sentido, os tribunais superiores têm vindo a entender, de forma tendencialmente uniforme, que a mera relação de amizade entre o juiz natural e um mandatário de uma das partes não é, por si só, suficiente para preencher os requisitos do “motivo, sério e grave”. Tanto mais que a suspeição deve ser aferida em relação às partes, e não aos respectivos mandatários (veja-se, entre outros, os acórdãos do STJ, de 15.02.2023, relatado por Ana Barata Brito, de 06.04.2023, relatado por Leonor Furtado e de 22.12.2023, relatado por Albettina Pereira, todos disponíveis em dgsi.pt). Na verdade, se a relação de amizade e convívio entre a requerente e a mandatária do assistente fosse fundamento suficiente para estabelecer a existência de um motivo sério e grave, como salienta o TC no já citado acórdão n.º 59/2024, de 18.01.2024 “na ótica da eficiência dos tribunais, a procedência de escusa com este fundamento, revelar-se-ia de difícil acomodação” (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 8 de junho de 2022, Processo 27/16.0GEMMN.E1-A.S1), atendendo a que é normal existirem relações de amizade entre juízes, entre estes e magistrados do Ministério Público e ou advogados, desde logo pelo facto de muitas vezes terem tido formação em comum. Trata-se de relações de amizade cuja coexistência é entendida pelo «auditório de pessoas prudentes», na medida em que diz respeito a pessoas que «intervém no processo a título profissional» (idem) e não a título pessoal, como parte.” Por todo o exposto, não se verifica um motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a imparcialidade da Sra. Juiza requerente. *** V- Pelo exposto, acordam os Juízes que compõem a 1ª Secção deste Tribunal da Relação do Porto em julgar improcedente o pedido de escusa formulado pela Sra. Juiza AA. Sem custas. Notifique. * Porto, 12.12.2025 Maria do Rosário Martins (Relatora) José Quaresma (1º Adjunto) Paula Natércia Rocha (2ª Adjunta) |