Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
106973/15.5YIPRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOÃO PROENÇA
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
CONCESSIONÁRIA DE SERVIÇO PÚBLICO DE FORNECIMENTO DE ÁGUA
CUSTOS DOS RAMAIS DE LIGAÇÃO
Nº do Documento: RP20170110106973/15.5YIPRT.P1
Data do Acordão: 01/10/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO (LIVRO DE REGISTO Nº 747, FLS. 194-198)
Área Temática: .
Sumário: As questões emergentes de contratos celebrados entre uma empresa concessionária de serviço público de fornecimento de água ao domicílio e os respectivos fornecedores finais (quanto ao pagamento do custo dos ramais de ligação de edifício particular à rede pública) compete aos tribunais tributários.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n. 106973/15.5YIPRT.P1– Apelação

Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

B…, S.A., com sede na Rua …, .., Santa Maria da Feira, deduziu contra C…, residente na Rua … n°…, …, requerimento de injunção, reclamando o pagamento da quantia de € 590,79, acrescido de juros de mora no valor de €17,07, outras quantias no valor de €22,00 e taxa de justiça paga. Alega, para tanto, que por encomenda da requerida e nos termos do contrato celebrado, a A. forneceu-lhe a água e /ou prestou os serviços mencionados na factura que identifica, que foi enviada para a morada da requerida e não foi paga.
Notificada, a R. deduziu oposição, alegando a ineptidão da p.i., a prescrição e impugnando que deva à A. qualquer quantia.
Tendo os autos sido distribuídos ao Tribunal da Comarca de Aveiro - St. Maria da Feira - Inst. Local - Secção Cível - J2, para correr termos como acção especial para cumprimento de obrigações pecuniárias, a A. pronunciou-se quanto às excepções aduzidas, alegando que no caso não se trata da cobrança de prestação de serviços de água ou saneamento, mas da construção de ramais de água e saneamento.
Seguidamente, ordenou a Mma. Juíza que fossem as partes notificadas para, querendo, se pronunciarem quanto à excepção de incompetência material desse tribunal, tendo a A. se pronunciado no sentido da sua não verificação, após o que proferiu decisão, declarando aquele Tribunal materialmente incompetente para conhecer do pedido formulado pela Autora e, consequentemente, absolvendo a Ré da instância, aduzindo, para tal, entre o mais:
"O que a Autora pretende no confronto da Réu é a sua condenação no pagamento da factura correspondente ao valor dos serviços prestados na construção dos ramais de água e saneamento. O litígio não se insere estritamente nas relações entre a concessionária e o utilizador, em que aquela pede a este o pagamento de quantia devida por fornecimento de água a que estava obrigado por força de contrato de fornecimento, mas antes está em causa o não pagamento pelo R, de factura emitida relativa à cobrança de valores relativos à construção dos ramais de água e saneamento. "
(…)
"A A., concessionária daquele serviço público essencial, pretende exigir da R. o pagamento do serviço público (construção dos ramais) que lhe prestou A causa de pedir reconduz-se a uma relação jurídica administrativa, pois que a A., pretende obter o pagamento de serviço que efectua no quadro da sua actividade de concessionária de serviço público, no qual age no exercício de poderes administrativos.
A A. ao fixar, liquidar e cobrar tarifas ou taxas aos particulares no quadro da sua actividade de concessionária está a agir no exercício de poderes administrativos. Estamos pois perante uma relação jurídica administrativa, que cai na precisão do artigo 1, n°1, do ETAF e no artigo 4, n°1, f), do ETAF, pois que estamos perante contrato outorgado por concessionário de serviço público, no âmbito da concessão, a respeito do qual existem normas de direito público que regulam aspectos específicos do seu regime substantivo.- cfr. neste sentido Ac. TRG, de 04.04.2013 e Ac. TCentral Administrativo Norte de 28.06.2013, com extensa fundamentação a propósito na natureza das quantias reclamadas pela administração no cumprimento das suas atribuições legais em matéria de saneamento, ambos disponíveis em www.dgsi.pt.
Inconformada com o decidido, interpôs a A. recurso, cujas alegações terminam com as seguintes conclusões:
I - Na douta sentença em apreço o Tribunal a quo absolveu a ré da instância, tendo o Tribunal julgado ser materialmente incompetente para decidir, por considerar, em suma, que se trata de uma relação jurídica administrativa, que cabe na esfera de competência material dos Tribunais Administrativos e Fiscais, por força das previsões do artigo 1.º, n.° 1 e 4.º, n.° 1, alínea f), do ETAF;
II. - Fundamentando, essencialmente, essa decisão no seguinte raciocínio: "A A. ao fixar, liquidar e cobrar tarifas ou taxas aos particulares no quadro da sua actividade de concessionária está a agir no exercício de poderes administrativos. Estamos pois perante uma relação jurídica administrativa, que cai na precisão do artigo 1.º, n.º 1, do ETAF e no artigo 4.º, n° 1, f), do ETAF..."
III. -A apelante não pode, salvo o devido respeito, concordar com esse raciocínio e com a essa subsunção dos factos ao direito.
IV. - Não aceita a conclusão "... ao fixar, liquidar e cobrar tarifas ou taxas aos particulares no quadro da sua actividade de concessionária está a agir no exercício de poderes administrativos.".
V. - Na verdade, não é a concessionária que fixa os valores a cobrar, mas um Regulamento Municipal e um Contrato de Concessão, com força equivalente a Lei, os quais aliás, diga-se, não foram em momento algum colocados em causa ou "atacados".
VI. - A apelante limita-se a, no cumprimentos dessas normas e do contrato de concessão, celebrar com os particulares contratos de índole estritamente privada e sinalagmática, em que uma entidade privada se obriga a prestar determinados serviços a outro privado, mediante o pagamento de um determinado preço, previamente estabelecido.
VII. É certo que esses serviços são de carácter público e essencial, sendo, por isso devidamente regulados, quer por Leis Quadro quer por Regulamentos Municipais e Contratos de Concessão.
VII. Porém, essa imposição, que visa realmente proteger o interesse público, não tem qualquer relação ou dependência com a apelante, a qual se limita a explorar, enquanto concessionária e entidade de direito privado, a rede de água e saneamento do concelho de Santa Maria da Feira, continuando o poder de tutela e fiscalização a competir exclusivamente ao município.
IX. A competência do Tribunal para julgar um determinado litígio deverá aferir-se em função da relação jurídica objecto do litígio, tal como a configura o autor, atendendo à causa de pedir e ao pedido e no momento em que a acção é proposta.
X. - No caso concreto a autora limita-se a pedir o pagamento de parte de factura correspondente ao valor dos serviços prestados na construção do ramal de saneamento, na sequência do contrato celebrado com a ré e a pedido desta.
XI. - É este contrato, sinalagmático e celebrado entre privados, e as facturas emitidas na sua execução, que estão na origem dos autos, configurando a causa de pedir uma simples cobrança de dívida, por uma empresa privada, contra um privado.
XII. - O que os autos revelam é uma acção interposta por uma pessoa colectiva de direito privado contra uma pessoa singular, não sendo, nem representando directamente qualquer entidade do Estado ou equiparada, nem exercendo qualquer poder público ou Ius Imperium.
XIII.- No caso em apreço não está em causa a interpretação ou execução de qualquer contrato público, ou privado sujeito pelas partes a normativos de direito público, mas antes um mero contrato de prestação de serviços e fornecimento de bens, celebrado entre duas entidades de direito privado e ao abrigo exclusivo desse direito privado.
XIV.- Deveria, assim, o Tribunal a quo haver feito prosseguir os autos para julgamento, produzindo-se prova e conhecendo-se a final do pedido.
XV.- Ao assim não entender, o Tribunal a quo não aplicou correctamente o direito aos factos apurados, tendo, entre outros, violado o disposto nos artigos 1 e 4 do ETAF e 64°, 96 a 99°, 576°, n.° 2,577° e 578, todos do Código de Processo Civil, 227°, n.° 1, 334° e 762°, n.° 2, do Código Civil
XVI. Razão pela qual deve ser revogada a douta sentença e substituída por douto Acórdão que atenda ao exposto e ordene o prosseguimento dos autos para julgamento.
XVII. Decidindo em conformidade, V.Exa.s farão, como sempre, inteira e sã JUSTIÇA!
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Não houve contra-alegações.
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
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Sendo o objecto do recurso definido pelas conclusões das alegações, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (art.ºs 5.º, 635.º n.º 3 e 639.º n.ºs 1 e 3, do N.C.P.Civil), a única questão que decorre das conclusões formuladas pela recorrente e a decidir no presente recurso resume-se a saber se o tribunal comum é competente, em razão da matéria, para conhecer dos pedidos formulados pela autora.
Os factos a considerar são os que resultam do relatório supra, para que ora se remete.
A competência em razão da matéria é um pressuposto processual, constituindo condição necessária para que o tribunal se possa pronunciar sobre o mérito da causa, julgando da procedência ou improcedência do pedido formulado pelo autor. Representa a medida de jurisdição de cada tribunal para conhecer de determinado litígio e é aferida em função dos termos em que a acção é proposta, ou seja, em função da relação jurídica subjacente ao litígio, tal como o autor a configura, não importando para tal saber se, em substância, ao autor assiste ou não o direito que se arroga.
Como é sabido, o momento a atender para fixar a competência do Tribunal é o da propositura da acção, sendo irrelevantes as modificações de facto que ocorram posteriormente, a não ser nos casos especialmente previstos na lei, conforme dispõe o artigo 38.º, nº 1 da Lei da Organização do Sistema Judiciário (LOSJ), aprovada pela Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto.
A Constituição da República (CRP), no seu art. 211º, n° 1 estabelece a regra de que os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais, delimitando o seu art. 212°, n° 3, a jurisdição administrativa pelo objectivo de dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais.
A atribuição da competência aos tribunais da jurisdição comum, como jurisdição residual que é (artigos 211.º, n.º 1, da CRP e 40º, n.º 1, da LOSJ), depende da inexistência de norma específica atributiva de competência a outra ordem jurisdicional.
Ora, à data em que foi instaurada a presente acção, vigorava o Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF) aprovado pela Lei n° 13/2002, de 19/02, e sucessivas alterações até à Lei n.º 20/2012, de 14 de Maio, cujo artigo 4°, n° 1, prevê a competência dos tribunais de jurisdição administrativa e fiscal para litígios que tenham por objecto:
(…)
f) Questões relativas à interpretação, validade e execução de contratos de objecto passível de acto administrativo, de contratos especificamente a respeito dos quais existam normas de direito público que regulem aspectos específicos do respectivo regime substantivo, ou de contratos em que pelo menos uma das partes seja uma entidade pública ou um concessionário que actue no âmbito da concessão e que as partes tenham expressamente submetido a um regime substantivo de direito público;
A questão de saber se os litígios que compreendem questões jurídicas respeitantes ao pagamento de encargos fixos e consumos de água fornecidos por empresa concessionária da exploração e gestão dos serviços públicos municipais de abastecimento de água e de saneamento de município, por força de contrato celebrado com este, cabem ou não no âmbito de competência material da jurisdição administrativa, nos termos do citado normativo, é uma vexata questio que divide a jurisprudência. Podendo encontrar-se, em sentido negativo, ou seja, da atribuição da competência aos tribunais comuns, os Acs. do Tribunal da Relação de Guimarães de 23/10/2012, Proc.º n. 103543/08.8YIPRT, do Tribunal de Conflitos de 21.01.2014, processo n.º 044/13 e da Relação do Porto de 07.11.2013, Processo 2338/12.5TBPRD-A.P1, de 06.02.2014, Processo 65542/12.0YIPRT.P1, de 29.05.2014, Processo 167178/12.0YIPRT-A.P1, de 04.05.2015, Processo 302768/11.0YIPRT.P1, e de 21.05.2015, processo n.° 65775/12, todos em www.dgsi.pt, com fundamentação semelhante à argumentação expendida nas doutas alegações da recorrente.
Com o devido respeito de que tal argumentação é merecedora, crê-se, porém ser largamente maioritária e mais recente, designadamente na jurisprudência dos tribunais administrativos e do Tribunal dos Conflitos, a posição contrária, que atribui competência aos tribunais tributários, acolhida na douta decisão recorrida, bem como a que melhor enquadra a natureza jurídica das relações emergentes de contratos celebrados entre uma empresa concessionária do serviço público de fornecimento de água ao domicílio e os respectivos utilizadores finais. Nesse sentido, os acs. do STA de 28/10/2015, proc.º 0125/14, e de 04/11/2015, proc.º 0177/14, e especificamente para a questão versada nestes autos, do pagamento do custo dos ramais de ligação do edifício particular à rede pública, os acórdãos do Tribunal Central Administrativo Norte de 28/06/2013, 02708/11.6BEPRT, e de 24/10/2014, 00749/11.2BEPRT; e ainda os seguintes acs. do Tribunal dos Conflitos, todos citados pelo voto de vencido do Desembargador Pedro Martins no Ac. desta Relação do Porto de 02/06/2016, proc.º 85565/15.6YIPRT, acessível em outrosacordaostrp.com:
- 25/06/2013, 033/13;
- 26/09/2013, 030/13;
- 05/11/2013, 039/13;
- 18/12/2013, 038/13;
- 18/12/2013, 053/13;
- 29/01/2014, 45/13
- 13/02/2014, 41/13 (texto integral acessível em www.dgsi.pt);
- 27/03/2014, 54/13;
- 27/03/2014, 1/14;
- 15/05/2014, 031/13;
- 05/06/2014, 023/14
- 19/06/2014, 022/14;
- 26/06/2014, 021/14;
- 30/10/2014, 047/14;
- 13/11/2014, 041/14;
- 13/11/2014, 043/14;
- 13/11/2014, 044/14;
- 25/11/2014, 039/14;
- 25/11/2014, 040/14;
- 25/11/2014, 042/14
- 29/01/2015, 026/14; e de
- 09/07/2015, 07/15.
Consideraram tais arestos que o contrato de concessão de serviço público é aquele pelo qual o co-contratante se obriga a gerir em nome próprio e sob sua responsabilidade, uma actividade de serviço público durante um determinado período, sendo remunerado pelos resultados financeiros dessa gestão, ou directamente pelo contraente público — art. 407.º, n.º 2, do DL n.º 18/2008, de 29-01, republicado pelo DL n.º 278/2009, de 2-10. O concessionário é a entidade que recebe o encargo de gerir uma atribuição e um instrumento da entidade concedente, que continua dona do serviço (Marcello Caetano, Manual de Direito Administrativo, página 1081 e segs.).E age no exercício de poderes administrativos quando actua dentro das matérias que estão atribuídas ao concedente no exercício de poderes públicos. A norma da al. f) do n.º 1 do art. 4.º supra referenciado, na redacção que lhe foi introduzida pela Lei n.º 107-D/2003, de 31-12, atribui à jurisdição administrativa competência para apreciar questões relativas a (i) contratos administrativos típicos (a respeito dos quais existam normas de direito público que regulam especificamente aspectos de natureza substantiva); (ii) contratos atípicos com objecto passível de acto administrativo (que determinem a produção de efeitos que também poderiam ser determinados através da prática, pela entidade pública contratante, de um acto administrativo unilateral) e de (iii) contratos atípicos com objecto passível de contrato de direito privado que as partes tenham expressa e inequivocamente submetido a um regime substantivo de direito público.
O contrato que integra a causa de pedir invocada pela recorrente enquadra-se no âmbito de serviços de abastecimento de águas, atribuídos às autarquias pelos arts 13.º, n.º 1 e 26.º, n.º 1, da Lei 159/99, de 14-09. A concessão do fornecimento desses serviços foi concedida à autora — pessoa colectiva de direito privado — no âmbito de um contrato de concessão regulado pelo DL n.º 379/93, de 5-11 que, nos termos definidos por este diploma — diploma que tem por objecto o regime de exploração e gestão dos sistemas multimunicipais e municipais de captação, tratamento e distribuição de água para consumo público, de recolha, tratamento e rejeição de efluentes e de recolha e tratamento de resíduos sólidos — está submetida a um regime substantivo de direito público: o conteúdo do contrato vem regulado no art. 11.º, sendo nulos os contratos de concessão que contrariem o nele disposto; em conformidade com o preceituado no art. 15.° a instalação e a cobrança da taxa/preço fixo/quota de serviço são fixadas através de regulamento do serviço de abastecimento de água emanado pela concedente Câmara Municipal.
Daí resultando que no desenvolvimento da actividade invocada pela autora como causa de pedir esta actua nas vestes de autoridade pública, investida de «ius imperium», com vista à realização do interesse público e que o contrato (de concessão) está sujeito a um regime substantivo de direito público. Actuação que é ainda mais evidente quando se trata da questão do pagamento dos encargos decorrentes da obrigatoriedade de ligação dos imóveis à rede pública de saneamento, de acordo com o art. 69 do DL 194/2009 de 20/08, porquanto se trata da imposição do pagamento de obras obrigatórias.
Afigurando-se, pelo exposto, por maioria de razão, de rejeitar a competência material dos tribunais comuns para o presente litígio, como se decidiu na douta decisão recorrida.

Decisão.
Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação interposta, em função do que confirmam a decisão recorrida.
Custas pela apelante.

Porto, 2017/01/10
João Proença
Maria Graça Mira (Revi posição anterior)
Anabela Dias da Silva (dispensei o visto e revi posição anterior)