Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
| Processo: |
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| Nº Convencional: | JTRP000 | ||
| Relator: | JORGE SEABRA | ||
| Descritores: | VALOR EXTRA PROCESSUAL DAS PROVAS | ||
| Nº do Documento: | RP2020061514954/17.4T8PRT-A.P1 | ||
| Data do Acordão: | 06/15/2020 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
| Decisão: | CONFIRMADA | ||
| Indicações Eventuais: | 5ª SECÇÃO | ||
| Área Temática: | . | ||
| Sumário: | I - A Lei Fundamental não consagra um direito ilimitado das partes à prova, podendo, pois, o legislador ordinário estabelecer restrições ao nível da admissibilidade dos meios de prova, desde que essas restrições ou limitações se mostrem justificadas à luz de uma equilibrada e lógica ponderação dos vários interesses conflituantes em presença e não desproporcionadas. II - São quatro os requisitos exigidos pelos n.ºs 1 e 2 do artigo 421º, do Código de Processo Civil para a subsistência do valor extraprocessual das provas produzidas num primeiro processo, a saber: a)- que seja a mesma, em ambos os processos, a parte contra quem foram produzidas; b)- audiência contraditória da parte contrária; c)- o regime de produção dessas provas no primeiro processo oferecer às partes garantias pelo menos iguais (não inferiores) às do segundo processo; d)- não ter sido anulada a parte do processo relativa à produção da prova que se pretende invocar. III - Se falhar o requisito referido em c)-, os meios de prova só valem no segundo processo como princípio de prova. Se falhar algum dos demais requisitos, não podem tais provas ser objecto de qualquer aproveitamento no segundo processo. | ||
| Reclamações: | |||
| Decisão Texto Integral: | Processo n.º 14.594/17.4T8PRT-A.P1 * Relator: Jorge Miguel SeabraComarca do Porto – Juízo Central Cível – J1 1º Juiz Adjunto: Des. Pedro Damião e Cunha 2º Juiz Adjunto: Desª Fátima Andrade * .........................................................Sumário (elaborado pelo Relator): ......................................................... ......................................................... * * 1. B… propôs a presente acção declarativa de responsabilidade civil (contratual) contra “ C… “, “ D… e Associados – Sociedade de Advogados, RL “, D… e E…, pedindo, a final, a título principal, a condenação da 1ª Ré no pagamento da quantia de €175.000,00 (a título de prejuízos por si sofridos) e da 2ª Ré no pagamento do valor que não se mostre abrangido pelo capital seguro ou correspondente à franquia que eventualmente tenha sido convencionada.Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto: I. RELATÓRIO: A título subsidiário, peticionou que a 2ª Ré seja condenada a liquidar a referida quantia, ou, ainda, os 3º e 4º Réus, solidariamente, a pagar a mesma, no caso de a 1ª ou a 2ª Ré a não virem a satisfazer. Em sede de petição inicial, além de outros meios de prova logo oferecidos, protestou o Autor juntar aos autos transcrição do depoimento da 4ª Ré (E…), depoimento esse prestado pela mesma, na qualidade de testemunha, no decurso da audiência de julgamento que teve lugar nos autos de acção declarativa com o n.º 1525/15.9T8PVZ, acção que correu termos entre o aqui Autor, B…, e a ali Ré F…. (vide artigos 37º a 49º da petição inicial) * 2. Prosseguindo os autos, mediante articulado de 30.10.2019, veio o Autor requerer a junção aos autos da “ transcrição do depoimento e gravação em formato áudio, tal como protestou fazer na PI “ (ou seja, a transcrição integral do depoimento da testemunha E… prestado no decurso da citada audiência de julgamento, como antes referido).* 3. Cumprido o contraditório, veio a ser proferido despacho que indeferiu a junção da aludida transcrição, considerando-a inadmissível à luz do preceituado no artigo 421º, do CPC.* 4. Inconformado, veio o Autor recorrer deste despacho, oferecendo alegações e deduzindo, a final, as seguintesCONCLUSÕES A. Na petição inicial, o Recorrente protestou juntar um documento, correspondente à transcrição de depoimento de testemunha prestado no âmbito do proc. nº 1525/15.9T8PVZ, na Instância Central, 2a Secção Cível, J1 – Póvoa de Varzim, da Comarca do Porto (cfr. Art. 47º da PI). B. Por requerimento com a referência n.º 24066790, o Recorrente juntou aos autos o aludido documento e respetiva gravação áudio conforme havia protestado fazer. C. A junção do aludido não foi admitida - o que o Recorrente não aceita. D. Na PI, alegou o Recorrente que a forma como os Recorridos efetuaram e redigiram o documento de partilha, o erro de alegarem na escritura que a quantia de 411.808,23€ devida a título de tornas seria paga em forma de pensão vitalícia, a não previsão da consequente hipoteca legal de todos os imóveis, a falta de informação de que todo o seu património ficaria hipotecado, o facto de não terem garantido a redução da hipoteca aos bens necessários e todo o aconselhamento dos Mandatários à data, para resolução da questão jurídica vertida, determinou a hipoteca de todo o património imobiliário que o Recorrente recebeu por partilhas iniciando-se desde esta data um moroso e infindável caminho para tentar levantar as hipotecas registadas com inerentes prejuízos. E. Mais alegou que, iniciado o julgamento no âmbito do Proc. n.º 1525/15.9T8PVZ, na Póvoa de Varzim (art. 47º da PI), foram ouvidos o Autor e a aludida F… de forma a que a Mma. Juíz percebesse se se tratava de um montante devido a título de tornas ou de pensão vitalícia; e, que iniciada a inquirição da primeira testemunha, nestes autos 4ª Ré e aqui Recorrida, a Mma. Juiz manifestou, de forma clara, a sua estupefação e incompreensão com a redação dada na escritura de que o montante devido a título de tornas seria pago na forma de pensão vitalícia, dizendo expressamente que se tratava de um erro, o que a 4ª Ré reconheceu e admitiu no seu depoimento; F. Para fundamentar tais factos o Recorrente indicou e juntou diversa prova documental e protestou juntar a aludida transcrição. G. Todos os documentos foram admitidos, à exceção do mencionado documento – o que não se concebe!!! H. A regra contida no aludido art. 421º do CPC refere-se unicamente aos “depoimentos” e “arbitramentos”, e não a qualquer meio de prova, pois quanto a esta, a parte terá sempre a possibilidade de exibir, na nova ação, o documento ou documentos que lhe interessa apresentar ou certidão deles – A. dos Reis, CPC Anotado, 3º-344 e Rodrigues Bastos, Notas ao CPC, 3º-95. I. Com interesse para a boa decisão nestes autos importa, com o devido respeito, antes de mais, balizar o alcance dos princípios da eficácia processual e do princípio da prova. J. O Recorrente não pretendeu, com a junção do documento rejeitado pelo Tribunal a quo que, por um lado, os factos alegados na outra ação sejam considerados nestes autos pela eficácia do caso julgado - que aliás nem existiu, nem pretendeu, que a transcrição do depoimento da Recorrida aqui 4ª Ré, a que corresponde o documento junto, valha nestes como confissão da própria com eficácia. K. A junção de documentos no processo pode, entre outros, ter origem no oferecimento espontâneo pelas partes (art. 423º CPC). L. O presente recurso tem por objeto uma decisão de rejeição de meio de prova, em causa está um despacho interlocutório suscetível de imediata impugnação autónoma (cfr. artº 644º,nº2, alínea d), do CPC). M. A prova integra a atividade que se destina à formação da convicção do juiz em sede de julgamento dos factos necessitados de prova, porque controvertidos (cfr. artº 410º, do CPC, e tendo presente o disposto no artº 5º, nº1 do CPC), atividade que, como é consabido, recai sobre a parte onerada, tal como o dispõe o artº 342º, do Código Civil, e sob pena de, não a logrando efetuar/produzir, inevitável é que não possa o facto – que lhe aproveita – ser julgado provado (cfr. artºs 341º a 344º, e 346 º, todos do Código Civil , e artº 516 do CPC). N. O art. 413º do CPC refere que “O tribunal deve tomar em consideração todas as provas produzidas, tenham ou não emanado da parte que devia produzi-las, sem prejuízo das disposições que declarem irrelevante a alegação de um facto, quando não seja feita por certo interessado” (negrito nosso). O. A propósito, refere José Alberto dos Reis, que ao Juiz é-lhe atribuído o poder de recusar ou mandar retirar do processo os documentos impertinentes ou desnecessários, evitando-se que o processo se transforme, numa espécie de “barril de lixo” em que as partes possam despejar todas as excrescências e resíduos que lhes apraza acumular, sendo que, acrescenta, por documentos impertinentes ou desnecessários devem considerar-se, respetivamente, “os que dizem respeito a factos estranhos à matéria da causa”, e “os relativos a factos da causa, mas que não importa apurar para o julgamento da acção”, in Código de Processo Civil, Vol. IV, Coimbra Editora, 1987, pág. 58. P. Devem ser objeto de prova os factos pertinentes, ou seja, os que interessem à solução do pleito (Cfr. João de Castro Mendes, in Direito Processual Civil, Vol. III, aafdl, 1982, pág. 187.3), e, de entre eles, aqueles que tenham sido articulados pelas partes, ou , excepcionalmente, os que alude o nº 2, do artº 5º, do CPC . Q. Dito isto, importa ter presente: o momento da apresentação – art. 423º CPC; a audiência contraditória da parte contrária – art. 415º CPC e - a pertinência/interesse/importância para o objetivo visado pelo Recorrente – art. 130º do CPC. R. Acresce que, o direito à prova emana da necessidade de se garantir ao cidadão a adequada participação no processo e de assegurar a capacidade de influenciar o conteúdo da decisão, constituindo o direito fundamental à prova uma das dimensões em que aquele se concretiza. - Acórdão do Tribunal Constitucional de 11/11/2008, relatado por Carlos Fernando Cadilha, disponível in www.dgsi.pt S. As partes têm direito a utilizarem a prova em seu benefício e como sustentação dos interesses e das pretensões que apresentarem em tribunal. T. Em suma, o direito fundamental à prova implica que as partes tenham liberdade para demonstrar quaisquer factos, mesmo que não possuam o respetivo ónus da prova, desde que entendam que a sua comprovação diminuirá os seus riscos processuais - neste sentido, Acórdão da Relação de Coimbra de 21/04/2015, in www.dgsi.pt U. Assim sendo, porque a junção do documento é tempestiva por anunciada para momento posterior ao da entrada em Juízo da PI, a parte contrária foi ouvida e o documento em causa não é intrinsecamente irrelevante e inidóneo para prova dos factos alegados pelo Recorrente na PI, por se referir a factos concretos e não a um mero facto(s) conclusivo(s) e/ou juízo de valor, aliás de extrema relevância pra o thema decidendum a fixar, e sem prejuízo da sua junção desprovida de valor extraprocessual das provas; V. Ou seja a prova de que, naquele dia, naquele julgamento, se passaram aqueles factos, é uma alegação de factos, como quaisquer outros factos. Não se trata de considerar factos dados como assentes noutro processo, porque estes factos nem aí foram alegados (nunca se alegou na outra ação a existência do erro), e W. Quando se refere que na ação que com o n..º 1525/15.9T8PVZ, a 4ª Ré aceitou e admitiu no seu depoimento ter existido um erro e que Sra. Juiz disse que se tratava de um erro dos Advogados, erro que a 4ª Ré aceitou existir, não se está a pedir que seja aceite o valor extraprocessual duma prova (até porque esses factos nunca poderiam ser dados como provados porque não foram sequer alegados e não era esse o objeto da outra demanda ) mas apenas a relatar o que aconteceu, o que determinou que nesse momento o Autor tomasse consciência da existência do erro e dos anos que iria perder em pendencias judiciais para conseguir levantar a hipoteca, aceitando por isso fazer a transação; X. Deve o documento junto com o requerimento de 30.10.2019 ser admitido nos autos, revogando-se a decisão a quo que decidiu não admitir a sua junção com o motivo do Autor não poder prevalecer do instituto do valor extraprocessual das provas relativamente ao aludido depoimento. (…) Termos em que deve ser revogada a decisão que não admitiu a junção do documento apresentado com o requerimento de 30.10.2019 e, em consequência, ser ordenada a admissibilidade da sua junção aos autos. * 5. Os Recorridos contra-alegaram, pugnando pela improcedência do recurso.* 6. Observados os vistos legais, cumpre decidir.* O objecto do recurso é definido pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso - artigos 635º, n.ºs 3 e 4 e 639º, n.ºs 1 e 2, do novo Código de Processo Civil, na redacção emergente da Lei n.º 41/2013 de 26.06 [doravante designado apenas por CPC].II. DELIMITAÇÃO do OBJECTO do RECURSO: No seguimento desta orientação a única questão a dirimir consiste em saber se o despacho de rejeição do meio de prova ora em causa (transcrição de depoimento prestado em outro processo judicial e respectiva gravação áudio) deve ser revogado, sendo, outrossim, de admitir, como peticiona o Recorrente, o aludido meio de prova, enquanto prova por documento. * Os factos que relevam à decisão são os que constam do relatório que antecede.III. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO: * Definida a questão a dirimir, cumpre dela julgar.IV. FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA: Segundo o disposto no artigo 341º, do Código Civil (CC), “ As provas têm por função a demonstração da realidade dos factos.“ A doutrina tem vindo a salientar que o conceito de prova pode ser entendido como actividade, como meio, ou como resultado. No primeiro sentido tem-se em vista a actividade das partes tendente a convencer o julgador sobre a realidade dos factos, sendo certo que cada parte tem, como é consabido, o ónus de demonstrar os factos que integram a hipótese normativa de que depende a procedência da sua pretensão ou da excepção. No segundo sentido tem-se em vista o conjunto de meios ou elementos concretos apresentados pelas partes com vista à demonstração da realidade dos aludidos factos. Por último, a prova enquanto resultado corresponde ao seu fim último, qual seja a criação, no espírito do julgador, da convicção subjectiva quanto à sua ocorrência, ainda que não esteja em causa, como é natural, a obtenção de uma inalcançável certeza absoluta, mas apenas um grau de convicção suficiente para as exigências da vida. [1] A prova ou o direito à prova, ou seja, o direito de, através dos meios de prova previstos na lei, lograr o autor a demonstração dos factos que servem de base à sua pretensão ou de o réu lograr a demonstração da inexistência desses factos ou a verificação dos factos capazes de obstarem ao julgamento do mérito da acção (excepções dilatórias) ou dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos da pretensão (excepções peremptórias), constitui, pois, uma vertente do direito à acção e do direito de defesa, direitos estes que colhem protecção a nível constitucional (princípio do acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva – artigo 20º da Constituição da República) e a nível infraconstitucional no Código de Processo Civil, através do princípio da acção e do contraditório (artigo 3º, n.ºs 1, 2 e 3, do CPC). Com efeito, como é doutrina reiteradamente confirmada pelo Tribunal Constitucional, um processo equitativo e leal deve assegurar a cada uma das partes, em condições de igualdade, o poder de expor as suas razões de facto e de direito perante o tribunal chamado a dirimir do litígio e, ainda, nas mesmas condições, o poder de exercerem uma influência efectiva no desenvolvimento do processo, o que supõe, no que ora releva, ao nível da prova, que o legislador deve assegurar a possibilidade de as partes apresentarem as suas provas, de controlarem as provas do adversário e de tomarem posição sobre o resultado de umas e outras. [2] No entanto, como vem advertindo a mesma doutrina constitucional, o direito à prova não implica necessariamente a admissibilidade de todos os meios de prova permitidos em direito em qualquer tipo de processo e independentemente do objecto do litígio e não exclui em absoluto a introdução de limitações quantitativas ou qualitativas na produção de certos meios de prova, designadamente o estabelecimento de prazos para o seu oferecimento, ou, ainda, o estabelecimento de condições específicas para a admissibilidade de certos meios de prova; Ponto é que essas limitações introduzidas pelo legislador, dentro da ampla liberdade de conformação do processo atribuído pelo texto constitucional ao poder legislativo, não se revelem arbitrárias ou desproporcionadas. [3] Neste sentido, como refere C. LOPES do REGO [4], o texto constitucional não impõe um determinado modelo de processo, reconhecendo-se, ao invés, ao legislador uma ampla liberdade de conformação concreta do processo e do seu regime em geral, podendo, pois, a esse nível, nomeadamente em sede de prova e sua admissibilidade, o legislador consagrar restrições ou limitações, desde que as mesmas não se revelem arbitrárias ou excessivas, ou seja, no fundo, que as opções legislativas restritivas revelem uma ponderação equilibrada, proporcionada e lógica dos interesses conflituantes que se mostram presentes em qualquer processo, nomeadamente, no processo judicial onde existe, por natureza, um dissídio e, obviamente, interesses de sinal contrário que importa compatibilizar nos melhores termos possíveis. Tendo isto presente como enquadramento prévio, a questão essencial no âmbito do presente recurso reconduz-se, como se definiu ab initio, à admissibilidade processual da transcrição do depoimento testemunhal prestado pela aqui 4ª Ré (E…) no âmbito de outro processo (processo n.º 1525/15.9T8PVZ, que correu termos pela Instância Central Cível da Póvoa do Varzim) em que eram partes o aqui Autor, B…, e a ali Ré F…. Vejamos. Segundo o disposto no artigo 362º, do CC, “ Prova documental é a que resulta de documento; diz-se documento qualquer objecto elaborado pelo homem com o fim de reproduzir ou representar uma pessoa, coisa ou facto.“ Neste sentido amplo, mais ligado ao direito substantivo do que ao direito processual, considera-se documento todo o objecto material elaborado pelo homem, capaz de reproduzir ou representar um facto, uma coisa ou até uma pessoa. Ainda neste sentido amplo de documento, cabem, além dos escritos declarativos, os objectos materiais de outra natureza (como as fotografias, as películas cinematográficas, as plantas, os desenhos, os esboços, os projectos, os anteprojectos e outros elementos semelhantes) capazes de configurarem por outra forma um facto, uma coisa ou uma pessoa. Portanto, na definição legal cabem, não só os documentos escritos (os que contêm uma declaração de ciência ou de vontade) – documento escrito e declarativo – como os não escritos. Pode, com efeito, o documento (no sentido amplo de objecto elaborado pelo homem) revestir um conteúdo representativo não escrito por acto material próprio ou de outrem ou por predisposição das condições de natureza mecânica necessárias a essa formação. É o caso das reproduções fotográficas ou cinematográficas, dos registos fonográficos e, de um modo geral, de quaisquer reproduções mecânicas de factos ou coisas (artigo 368º, do CC), assim como dos documentos electrónicos não susceptíveis de representação como representação escrita. [5] No que se refere aos documentos em sentido restrito, enquanto escritos declarativos elaborados pelo homem, os documentos podem, quanto ao seu conteúdo, ser narrativos (quando contêm uma simples declaração de ciência, limitando-se a narrar um facto, por via de regra exterior ao documento, ou a descrever uma coisa ou situação – é o caso do atestados, das circulares, das facturas, do laudo pericial, da transcrição de um depoimento, etc.) ou constitutivos (quando incorporam em si mesmos uma declaração de vontade destinada a introduzir uma qualquer alteração na esfera jurídica das pessoas – é o caso típico da sentença, de uma escritura de compra e venda, de um documento particular de promessa de compra e venda, de um cheque, etc.). Casos há em que o mesmo documento escrito é narrativo e constitutivo, pois que contém uma declaração que é, em simultâneo, uma declaração de ciência e uma declaração de vontade (será o caso do documento escrito de perfilhação). [6] No entanto, neste contexto, como bem adverte A. VARELA, op. cit., pág. 507, “ Seja qual for a sua natureza, importa não confundir a declaração (o acto de narrar ou de descrever; a emissão da declaração-de-valer) com o documento, que é o objecto ou o invólucro material em que o acto fica corporizado. O documento é sempre o continente, o objecto material (por via de regra, mas não necessariamente, o papel), no qual a declaração se corporiza. A declaração é o conteúdo, o acto de natureza espiritual que se depreende do documento. “ (sublinhado nosso) Serve isto para dizer – ainda que seja o óbvio – que o documento, tenha ele a natureza que tiver, ao contrário do que preconiza o Recorrente, não é admitido no processo pelo juiz apenas e só como um estrito invólucro material mas apenas, como é evidente, em função do seu conteúdo, ou seja, em função do facto, da coisa ou da pessoa que o mesmo pretende reproduzir ou representar, sendo certo que só assim será possível aquilatar da sua pertinência para a demonstração dos factos em discussão nos autos, ou seja, para a demonstração dos “ fundamentos da acção ou da defesa “ e, em última instância, para determinar da sua admissibilidade ou não no processo – cfr. artigo 341º, do CC, e artigo 423º, n.º 1, do CPC. Em suma, o documento vale e é o que for o seu conteúdo, sendo este o factor nuclear à sua eventual admissão no processo, não sendo possível, com o devido respeito, outra leitura ou interpretação do documento enquanto meio de prova, ou seja, enquanto instrumento de demonstração da realidade de um determinado facto, como se consigna no artigo 341º, do CC. Ora, neste enquadramento, com o devido respeito, é patente que através da arrogada admissibilidade nos autos do documento escrito ora em causa (transcrição do depoimento prestado em outro processo por uma testemunha no dito processo e ora Ré nestes autos), o Autor não pretende, ao contrário do que ora insinua no recurso, demonstrar “ apenas “ o facto histórico de que no dia X a testemunha Y disse A, B ou C, mas, bem pelo contrário, pretende, como aliás emerge de forma clara da sua petição inicial, aproveitar o dito depoimento da testemunha E… (prestado em sede de audiência de julgamento que teve lugar no processo n.º 1525/15.9T8PVZ e ora constante do documento em causa e do respectivo suporte em áudio), em conjunto, naturalmente, com a demais prova que venha a ser produzida no processo, para demonstrar a base factual/legal da sua pretensão, qual seja o alegado erro técnico-jurídico cometido pelos então seus Mandatários Forenses, designadamente a ora 4ª Ré, o 3º Réu (pessoas singulares), enquanto Advogados da sociedade 2ª Ré, fundamento este em que estriba a sua pretensão indemnizatória formulada nos autos. Significa isto que não está em causa no despacho recorrido, ao contrário do que desfasadamente sustenta o Recorrente, uma qualquer questão atinente a um eventual caso julgado do decidido a nível factual no aludido processo neste outro processo, ou a prova do alegado erro técnico-jurídico com base apenas em tal depoimento, mas sim, como acertadamente se acentua no despacho ora sob análise, o aproveitamento para efeitos probatórios (isto é, para a formação da convicção subjectiva do julgador) de um meio de prova – depoimento testemunhal da ali testemunha E… - que foi produzido no aludido processo que correu termos pela Instância Central Cível da Póvoa do Varzim entre o aqui Autor e a ali Ré F…. Por conseguinte, a questão que, em face da pretensão deduzida pelo Recorrente quanto à admissibilidade da junção da transcrição de tal depoimento a estes autos, tem de ser colocada pelo julgador – como foi -, não, como preconiza o Recorrente, em sede de admissibilidade de prova documental (sendo, pois, irrelevante, como referem os Recorridos nas suas contra-alegações, esgrimir-se das condições de admissibilidade de tal meio de prova e da sua verificação no caso dos autos), mas antes, de forma distinta, em sede de valor extraprocessual das provas e do regime que emerge do preceituado no artigo 421º, do CPC, pois que, repete-se, o que se trata no caso dos autos é de, forma ínvia, mas ostensiva, através do “ invólucro material “ de um documento escrito, pretender-se usar neste processo, como meio de prova dos fundamentos da presente acção de responsabilidade civil, um depoimento testemunhal produzido em outro processo. Aqui chegados e colocada, assim, a questão nos seus devidos termos (ultrapassadas as aparências…), a apelação não pode deixar de improceder, pois que, de facto, não ocorrem os pressupostos erigidos pelo citado artigo 421º do CPC para a admissão neste processo de tal meio de prova (depoimento testemunhal) prestado em outro e prévio processo. Se não, vejamos. O citado artigo 421º, n.º 1, do CPC dispõe o seguinte: “ Os depoimentos e perícias produzidos num processo com audiência contraditória da parte podem ser invocados noutro processo contra a mesma parte, sem prejuízo do disposto no n.º 3 do artigo 355º do Código Civil; se porém, o regime de produção da prova do primeiro processo oferecer às partes garantias inferiores às do segundo, os depoimentos e perícias produzidos no primeiro só valem no segundo como princípio de prova. “ Sobre este normativo e as condições do aproveitamento no segundo processo da prova por depoimento (ou por perícia) realizada no primeiro processo, a nossa doutrina é unânime em considerar que têm que ocorrer quatro requisitos cumulativos para tal fim, ou seja, para que seja aproveitável no segundo processo o depoimento prestado no primeiro. Em primeiro lugar (1º), é suposto que seja a mesma, em ambos os processos, a parte contra quem foram produzidos os ditos meios de prova. Em segundo lugar (2º), é suposto que a parte tenha tido a possibilidade no primeiro processo de exercer o contraditório quanto à admissão e produção daquele meio de prova [7]. Em terceiro lugar (3º), é suposto que o regime de produção dessas provas no primeiro processo ofereça às partes garantias pelo menos iguais às do segundo. Em quarto lugar (4º), é suposto, ainda, que não tenha sido anulada a parte do processo relativa à produção da prova que se pretende invocar. Se faltar o terceiro requisito (3º), ou seja, se as garantias oferecidas no primeiro processo forem inferiores às oferecidas no segundo, a prova produzida no primeiro processo pode ser aproveitada e ser feita valer em termos probatórios apenas como princípio de prova, como decorre do n.º 1 do citado artigo 421º. Por seu turno, se falhar algum dos outros requisitos (nomeadamente, a identidade das partes em ambos os processos), “ não podem tais provas ser objecto de qualquer aproveitamento. “ (bold nosso) [8] Por conseguinte, sendo indiscutido no caso vertente que as partes no processo n.º 1525/15.9T8PVZ não são as mesmas que as partes do presente processo (pois que nenhuma das ora RR. foi demandada no dito processo), é seguro dizer-se que não ocorrem os pressupostos erigidos pelo citado artigo 421º, n.º 1, do CPC, para a admissão do meio de prova ora em causa, falhando o primeiro e essencial pressuposto, qual seja a identidade das partes em ambos os processos em causa. Ora, sendo assim, não se vê que o despacho recorrido, ao não admitir o meio de prova ora em causa (documento que contém a transcrição integral do aludido depoimento testemunhal prestado no processo antes referido e o respectivo suporte áudio) por inverificação das condições previstas no n.º 1 do citado artigo 421º, do CPC, possa merecer nesta instância qualquer censura, antes nos merecendo integral concordância e consequente confirmação. E nem diga que o assim decidido coloca em causa o direito à prova por parte do Autor e ora Recorrente. Na verdade, dando de barato que o Autor terá, como é óbvio, de fazer prova dos pressupostos da responsabilidade civil (excepção feita à culpa, pois que esta se presume, nos termos do artigo 799º, n.º 1, do CC), em conformidade com a regra do artigo 342º, n.º 1, do CC, e escusando-nos a repetir o que já antes se referiu quanto à liberdade de conformação do processo por parte do legislador e quanto à circunstância de a Lei Fundamental não impor um ilimitado direito à prova, não se vê, com o devido respeito, que o regime prescrito no citado artigo 421º, n.º 1, do CPC, corresponda a uma qualquer limitação ou restrição arbitrária ou desproporcionada daquele direito. De facto, subjacente a tal normativo e ao regime ali consignado pelo legislador está, além do mais, o princípio de nenhuma prova deve ser admitida no processo sem que à parte contrária seja dada a possibilidade de a contraditar, de forma plena e efectiva, seja quanto à sua admissibilidade, seja quanto à sua própria produção, enquanto expressão do direito constitucional à defesa e do princípio geral do contraditório, consagrado também no domínio do processo civil, como já antes se referiu. Nesta perspectiva, como facilmente se percebe, admitir processualmente nestes autos o dito depoimento (em forma escrita ou em áudio) seria confrontar os aqui RR. com um meio de prova que os mesmos, por não terem sido partes no anterior processo, não puderam minimamente contraditar, seja quanto à sua admissibilidade, seja até quanto à sua produção e respectivos termos. Por outro lado, e como bem salientam os Recorridos nas suas contra-alegações, a admitir-se o depoimento em causa apenas porque o mesmo se mostra incorporado num documento ou num suporte áudio, estaria encontrada a forma de, pura e simplesmente, contornar as condições pressupostas pelo artigo 421º, n.º 1, do CPC para o aproveitamento num segundo processo dos meios de prova produzidos num primeiro processo, com a agravante, já devidamente salientada, de, no caso concreto (em que as partes no segundo processo não são as mesmas do primeiro e, portanto, nele não tiveram qualquer intervenção), a vingar a tese preconizada pelo Recorrente, se confrontar de forma chocante o direito da defesa e o princípio do contraditório dos ora RR. quanto ao meio de prova em causa. Destarte, tudo considerado e ponderado, tem de improceder a apelação interposta, com a consequente confirmação do despacho sob recurso. ** Pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação do Porto em negar provimento à apelação interposta por B…, confirmando, em consequência, o despacho recorrido.V. DECISÃO: ** Custas pelo Recorrente, pois que ficou vencido - artigo 527º, n.ºs 1 e 2 do CPC.** Porto, 15 de junho de 2020Jorge Seabra Pedro Damião e Cunha Fátima Andrade _________________ [1] Vide, neste sentido, por todos, RITA LYNCE de FARIA, in “ Comentário ao Código Civil – Parte Geral ”, I volume, UCE, pág. 810 e A. VARELA, M. BEZERRA, S. NORA, “ Manual de Processo Civil ”, 2ª edição, pág. 434-436. [2] Vide, neste sentido, JORGE MIRANDA, RUI MEDEIROS, “ Constituição Portuguesa Anotada ”, I volume, UCE, 2ª edição revista, pág. 323-324 e, ainda, os Acórdãos do Tribunal Constitucional n.º 1185/96 e 1193/96, ambos disponíveis in www.tribunalconstitucional.pt. [3] Vide, neste sentido, ainda, J. MIRANDA, RUI MEDEIROS, op. cit., pág. 324 e os Acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs 604/95 e 681/06, ambos disponíveis no mesmo sítio oficial. [4] C. LOPES do REGO, “ O direito fundamental do acesso aos tribunais e a reforma do processo civil ”, in “ Estudos em Homenagem a Cunha Rodrigues ”, I volume, 2001, pág. 749 e segs. [5] Vide, neste sentido, por todos, FRANCISCO FERREIRA de ALMEIDA, “ Direito Processual Civil ”, II volume, 2015, pág. 262-263 e FERNANDO PEREIRA RODRIGUES, “ Os Meios de Prova em Processo Civil ”, 2015, pág. 73-74. [6] Sobre a classificação dos documentos quanto ao seu conteúdo, vide, por todos, neste sentido, A. VARELA, op. cit., pág. 506-510 e FRANCISCO FERREIRA de ALMEIDA, op. cit., pág. 263. [7] Neste contexto, como refere FRANCISCO FERREIRA de ALMEIDA, op. cit., pág. 330-331, a lei basta-se com a facultação à parte contrária do ensejo da respectiva exercitação mediante notificação expressa para a produção daquele meio de prova, não se tornando necessária uma sua real intervenção, participação ou assistência na respectiva produção; Basta, portanto, que à parte tenha sido dada a possibilidade de intervir na admissão e na produção da prova em causa. [8] FRANCISCO FERREIRA de ALMEIDA, op. cit., pág. 331. No mesmo sentido, na doutrina, vide, por todos, J. ALBERTO dos REIS, “ CPC Anotado ”, III volume, 4ª edição, 1985, pág. 344-350, A. VARELA, op. cit., pág. 492-494, MIGUEL TEIXEIRA de SOUSA, “ As Partes, o Objecto e a Prova na Acção Declarativa ”, Lex, 1995, pág. 256-257 e J. LEBRE de FREITAS, A. MONTALVÃO MACHADO, RUI PINTO, “ CPC Anotado ”, II volume, 2001, pág. 416-419. (O presente acórdão não segue na sua redacção o Novo Acordo Ortográfico) |