Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
17/11.0TVPRT-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: LEONEL SERÔDIO
Descritores: ARTICULADO SUPERVENIENTE
Nº do Documento: RP2014061217/11.0TVPRT-A.P1
Data do Acordão: 06/12/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: Na actual lei adjectiva civil, apenas é admissível o articulado superveniente como meio de alegar factos essenciais, tanto mais que os factos complementares ou concretizadores dos factos essenciais podem ser sempre julgados provados desde que resultem da instrução da causa.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Apelação n.º 17/11.0TVPRT-A.P1
Relator – Leonel Serôdio (353)
Adjuntos - Amaral Ferreira
- Deolinda Varão

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

Na acção declarativa com processo ordinário, de responsabilidade civil emergente de acidente de viação, que B… move contra a COMPANHIA DE SEGUROS C…, S.A. e que corre termos na 2ª Vara Cível do Porto, sob o n.º 17/11.0TVPRT, pedindo a condenação da Ré no pagamento na quantia de € 552.507,48, veio a Ré interpor recurso do despacho que rejeitou liminarmente o articulado superveniente por ela apresentado.

Termina a sua alegação, com as seguintes conclusões que se transcrevem:

“1. A aqui recorrente não se conforma com o despacho proferido a fls. que rejeitou o articulado superveniente por si apresentado com a referência 14679351.
2. Salvo o devido respeito por opinião diversa, entende a aqui recorrente que a factualidade aduzida no indicado articulado se reveste da maior importância para a decisão final a proferir nos presentes autos, sendo susceptível de impedir, pelo menos em parte, o efeito jurídico dos factos articulados pelo autor e que servem de causa de pedir na acção.
3. Com efeito, os factos em questão não assumem apenas um cariz de “mera impugnação”, como vem sustentado pelo Tribunal a quo, revestindo antes a natureza de factos que impedem o efeito jurídico daqueles que foram alegados pelo autor.
4. Na verdade, autor pode até estar totalmente incapacitado para o exercício da sua profissão habitual e, ainda assim, manter-se profissionalmente activo - como parece ser o caso – e a desenvolver uma outra actividade profissional dentro da sua área de preparação técnico profissional, embora com limitações moderadas.
5. A rejeição do articulado superveniente apresentado pela ora recorrente impede que fique espelhada no processo a real situação física e profissional do autor, com todas as consequências daí inerentes.
6. Em face do exposto, entende a aqui recorrente que só a inclusão na douta B.I. da factualidade alegada no articulado superveniente de fls. …, permitirá ao Tribunal aproximar-se mais da verdade material, alcançando assim a justa composição do litígio, que é o fim último de todo o processo.
7. Assim, deverá ser revogado o douto despacho de fls. … e, em sua substituição, proferido outro que admita o articulado superveniente apresentado pela recorrida, com as necessárias consequências legais.
8. O despacho recorrido violou o disposto no artigo 588.º n. 3 al. b) do C.P.C.”

Não foram apresentadas contra-alegações.

Fundamentação

A questão a decidir é a de saber se havia ou não fundamento para indeferir liminarmente o articulado superveniente apresentado pela Ré.

Factualidade a considerar:

A R apresentou um articulado superveniente, cuja cópia consta de fls. 129 a 131 destes autos, no qual alegou que, em 27.02.2013 e 05.06.2013 tomou conhecimento de que:
“- Em consequência do sinistro dos autos, o autor ficou a padecer de sequelas que lhe determinam um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica fixada em 12 pontos;
- Tais sequelas permitem ao autor e são compatíveis com o exercício de outras profissões – que não a de motorista de pesados – da sua área de preparação técnico profissional, tais como a de motorista de ligeiros, com esforços acrescidos ligeiros a moderados;
- que o autor, actualmente, se mantém profissionalmente activo, ajudando em oficinas, sendo uma das suas funções a de conduzir veículos ligeiros.”

O A, para além do mais, formula um pedido no valor de € 461.347,77, por perda de capacidade de ganho.

Sobre esta problemática foi alegado pelo A e questiona-se na B.I, para além do mais o seguinte:

20º “O Autor ficou com incapacidade permanente total (100%) para o exercício da sua profissão”.
… 67º - e ficou impossibilitado de fazer fosse o que fosse, estando dependente de 3ª pessoa?
73º - Só consegue caminhar durante não mais de 5/10 minutos?
76 - Sente-se desgostoso e infeliz com a impossibilidade de continuar a trabalhar e a desenvolver uma actividade empresarial?

O despacho recorrido, cuja cópia consta de fls. 133 e 134, atentas as regras de repartição do ónus da prova e por entender que a factualidade alegada pela Ré configura matéria de impugnação motivada, não interessando, como tal, à boa decisão da causa, indeferiu o articulado superveniente.

Entretanto realizou-se à audiência de julgamento e respondeu-se à matéria da base instrutória, tendo os artigos da BI acima referidos obtido as seguintes respostas:
Quesito 20 º- Provado;
Quesito 67º - Provado apenas que o Autor, em consequência do referido acidente, ficou com um défice permanente da integridade física, com total impossibilidade (100%) de conduzir veículos pesados e de exercer quaisquer outras atividades profissionais que envolvam esforços de marcha ou com os membros inferiores, apenas podendo desenvolver outras atividades mas com esforços acrescidos, correspondendo a 12 pontos percentuais;
Quesito 73º - provado;
Quesito 76º - provado apenas que o Autor se sente desgostoso e infeliz com o estado em que se encontra - de total impossibilidade de continuar a trabalhar na atividade profissional que exercia e noutra que envolva esforços de marcha ou esforços com os membros inferiores e de desenvolver a atividade empresarial que desenvolvia e com o facto de, para exercer atividades em que esteja sentado e que não impliquem esforços contínuos com os membros inferiores, ter de realizar os referidos esforços acrescidos.

Direito aplicável

Sobre a regulamentação dos articulados supervenientes, o actual art. 588º n.º 1 do CPC (que corresponde com idêntica redacção ao anterior art. 506° n.°1), estabelece que “os factos constitutivos, modificativos ou extintivos do direito que forem supervenientes podem ser deduzidos em articulado posterior ou em novo articulado, pela parte a quem aproveitem, até ao encerramento da discussão”.
O n.º 2 do art. 588º (anterior n.º 2 do art.506º), considera supervenientes “tanto os factos ocorridos posteriormente ao termo dos prazos marcados nos artigos precedentes (prazos normais de apresentação dos articulados) como os factos anteriores de que a parte só tomou conhecimento depois de findarem esses prazos, devendo neste caso produzir-se prova da superveniência”.
A admissibilidade do articulado superveniente, decorre directamente do art. 611º n.º 1 e 2 do CPC (anterior art. 663º nºs 1 e 2) que determina que a sentença tome em consideração todos os factos constitutivos, modificativos ou extintivos produzidos até ao encerramento da discussão, desde que, segundo o direito substantivo aplicável, eles influam na existência ou conteúdo da relação controvertida.
Como escrevem Antunes Varela, J. M. Bezerra e Sampaio e Nora, in "Manual de Processo Civil", Coimbra, 1984, pág. 351, “coerente, com esta directriz, a lei permite que qualquer das partes possa alegar, em articulado superveniente, os factos constitutivos, modificativos ou extintivos do direito do autor que sejam supervenientes.”
O articulado superveniente pode ser liminarmente rejeitado.
Os fundamentos que podem servir de base ao indeferimento liminar (art. 588°, nº 4) são a extemporaneidade do articulado (se foi apresentado para além dos prazos indicados no n.º3) ou a sua impertinência (se os factos alegados não interessam à decisão da causa).
No caso em apreço, a Mmª. Juiz indeferiu liminarmente o articulado deduzido pela Apelante com o segundo fundamento indicado.

A questão passa, pois, por saber se a alegação da Ré no articulado superveniente constitui mera defesa por impugnação ou antes defesa por excepção, sendo os factos alegados modificativos ou extintivos do direito do A.

O art. 571º n.º 2 do actual CPC, que corresponde ao anterior 487º n.º 2, estabelece os contornos das modalidades de defesa: a defesa por impugnação e por excepção.
O citado normativo distinguindo defesa por impugnação e defesa por excepção, estipula: “O réu defende-se por impugnação quando contradiz os factos articulados na petição ou quando afirma que estes factos não podem produzir o efeito jurídico pretendido pelo autor; defende-se por excepção quando alega factos que obstem à apreciação do mérito da causa ou que, servindo de causa impeditiva, modificativa ou extintiva do direito invocado pelo autor, determinam a improcedência total ou parcial do pedido.”
Em termos práticos é, por vezes, difícil distinguir a defesa por impugnação, denominada motivada e a defesa por excepção com alegação de factos extintivos e modificativos.
Segundo Manuel de Andrade, in Noções Elementares de Processo Civil, pág.131, “como factos tipicamente impeditivos devem qualificar-se os factos susceptíveis de obstar a que o direito do autor se tenha validamente constituído. (…) Factos extintivos são os que tenham produzido a cessação do direito do autor, depois de já formado validamente” (….).Por último revestem a natureza de factos modificativos quaisquer factos que possam ter alterado os termos daquele direito.”
Atendendo a estas definições dificilmente se consegue enquadrar a factualidade alegada pela Ré na categoria de factos impeditivos, extintivos ou modificativos.
O que é inquestionável é que o articulado superveniente não integra factos essenciais de defesa por excepção peremptória que a Ré deduza.
Por outro lado, como refere a decisão recorrida é incontroverso, nos termos do art. 342º n.º 1 do CC, que é sobre o A que recai o ónus de alegar e provar, os factos constitutivos donde decorrerá o peticionado direito à indemnização por perda de capacidade de ganho.
Ora, segundo a técnica correcta de elaboração da base instrutória, dela apenas deviam constar os factos essenciais e se necessário complementares, atentas as regras de repartição do ónus da prova, ou seja, são eram quesitados, a versão dos factos apresentada por aquele que tinha o ónus da prova. Por isso, só se quesitava a versão do réu quando este se defendia por excepção.
Sem descurar que não é linear saber qual a factualidade relevante para a fixação da indemnização a título de danos futuros, por perda da capacidade de ganho, por razões pragmáticas tornou-se comum levar à base instrutória factos meramente instrumentais, ainda que alegados pela parte não onerada com o ónus da prova, mas, em rigor, essa prática era incorrecta.
De resto e sendo pacifico, que as respostas à base instrutória não têm de ser meramente afirmativas ou negativas, podendo ser restritivas e explicativas, era sempre possível o tribunal plasmar nas respostas da factualidade essencial constante dos quesitos, a realidade dos factos que se apurasse na audiência de julgamento sem estar limitado aos concretos pontos de facto levados à base instrutória.
Actualmente a situação é ainda mais clara dado que as partes apenas tem de alegar os factos essenciais e o tribunal pode mesmo oficiosamente considerar os factos complementares ou concretizadores que resultem da discussão da causa (art. 5º do actual CPC).
Assim sendo, actualmente é inequívoco que apenas é admissível o articulado superveniente como meio de alegar factos essenciais, de resto, ainda no anterior CPC, decidiu o acórdão do STJ de 24.10.1995, in CJ/STJ, tomo 3, pág. 78, que o articulado superveniente deve ser rejeitado quando não respeite a facto essencial para a decisão do mérito da causa.
Este entendimento decorre, desde logo, de os factos complementares ou concretizadores dos factos essenciais, poderem ser sempre julgados provados desde que resultem da instrução da causa, no anterior CPC, desde que a parte a quem aproveitava o requeresse e actualmente mesmo oficiosamente
No caso, as questões de saber se as sequelas e o grau de incapacidade que a Ré alega que o A ficou a padecer são inferiores às alegadas na petição estão contidas nas perguntas formuladas nos artigos 20ºe 76º da base instrutória.
O mesmo se verifica quanto as questões das sequelas com que o autor ficou a padecer serem compatíveis com o exercício de outras profissões, com esforços acrescidos ligeiros a moderados e se se mantém profissionalmente activo que estão também incluídas na factualidade constante dos artigos 67ºe 76º.
Por isso e ao contrário do que sustenta a Apelante a rejeição do articulado superveniente não a impedia de produzir prova sobre a factualidade que alegava e que caso a mesma se provasse, viesse a constar da factualidade julgada provada, como efectivamente ocorreu, em parte, como se comprova pelas respostas aos referidos quesitos acima transcritos.
É, pois, de concluir que a factualidade alegada pela Ré no articulado superveniente indeferido não era factualidade essencial ou sequer complementar de defesa por excepção por ela arguida na contestação e, por isso, não integra a previsão do n.º1 art. 588 do CPC.
Por outro lado, a factualidade alegada pela Ré enquanto diferente versão dos factos constitutivos alegados pelo A, podia, como foi, ser objecto da instrução da causa e se provada ser inserida na factualidade julgada provada.
No caso, o cumprimento do formalismo legal não impediu o tribunal recorrido de apurar a realidade dos factos e de julgar provados factos ainda que não directamente levados à base instrutória, de forma a que a decisão da matéria de facto reflectisse a verdade material, dando como provada parte da factualidade que a Apelante tinha alegado no articulado superveniente e pretendia fosse aditada à base instrutória.
Não, há, pois, fundamento para se revogar o despacho recorrido que não admitiu articulado superveniente.
De resto mesmo que fosse admissível o articulado superveniente a sua finalidade era apenas possibilitar a que a factualidade nele constante fosse objecto de produção de prova na audiência de julgamento, que já decorreu no actual CPC, que eliminou a base instrutória.
Ora, no caso, está demonstrado que a Ré/ Apelante não foi privada de produzir prova sobre a factualidade que nela constava, tendo inclusive parte dela sido julgada provada e, por isso, a revogação da decisão recorrida, com a consequente reabertura da audiência de julgamento para se produzir prova sobre essa factualidade, traduziria uma pura perda de tempo, dado que essa prova já foi produzida e consta dos autos, estando gravados os depoimentos prestados.

Decisão

Pelo exposto, julga-se a apelação improcedente e confirma-se a decisão recorrida.
Custas pela Apelante.

Porto, 12-06-2014
Leonel Serôdio
Amaral Ferreira
Deolinda Varão