Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
141/20.8T9MLD.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOSÉ PIEDADE
Descritores: CRIME DE DIFAMAÇÃO
AGRAVAÇÃO
DIREITO À HONRA
LIBERDADE DE EXPRESSÃO
DIREITO DE CRÍTICA
DIREITOS FUNDAMENTAIS
POLÍTICO
LIMITES
Nº do Documento: RP20240117/141/20.8T9MDL.P1
Data do Acordão: 01/17/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: JULGADO IMPROCEDENTE O RECURSO INTERPOSTO PELO MINISTÉRIO PÚBLICO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – O direito à honra e a liberdade de expressão encontram-se em iguais patamares, ambos têm igual valor no nosso Ordenamento Jurídico ─ face à comum fonte Constitucional de onde emanam, respectivamente, art.ºs 26 (na componente “bom nome e reputação”) e 37 (“todos têm o direito de exprimir e divulgar livremente o seu pensamento“).
II – Mesmo no campo da “luta política” a liberdade de expressão tem limites, nem tudo sendo permitido. E esses limites têm de se situar na necessidade ou desnecessidade da utilização das expressões em causa para a finalidade da crítica política expressa no texto (neste caso) escrito.

[Sumário da responsabilidade do Relator]
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. Nº 141/20.8T9MLD.P1
Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro, Aveiro - Juízo Inst. Criminal - Juiz 2

Acordam, em Conferência, os Juízes desta 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:

No Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro, Aveiro - Juízo Inst. Criminal - Juiz 2, processo supra referido, foi pelo M.ºP.º proferida acusação contra, AA, imputando-lhe a prática de um crime de violação de correspondência, p.e.p. pelo art.º194, n.º 3, do C.P. e 4 crimes de difamação agravada, p.e.p. pelos art.ºs 180, n.º 1, 183.°, n.º 1, alínea a) e 184.°, do C.P.
Efectuada Instrução a pedido do arguido, foi proferida Decisão Instrutória de não pronúncia, com o seguinte teor (na parte que interessa):
“(…) Começando pelo crime de violação de correspondência ou de telecomunicações, e socorrendo-nos do enquadramento teórico supra exposto, mormente no que respeita ao portador do bem jurídico, importa salientar que em sede de instrução foi inquirida a testemunha BB, que exerceu funções, como psicólogo, na Escola Profissional ... (EP...).
BB afiançou que foi um dos destinatários do email/comunicação enviada pelo aqui assistente, CC, a todos os elementos (cerca de 50) da Escola em 2017 (o decorre também do documento junto à queixa apresentada – cfr. fls. 20-21). Referiu que o arguido AA teve acesso a essa comunicação através dos elementos da Escola que estavam contra a alienação da mesma (e de eventuais despedimentos de que se falava), tendo sido, nesse contexto, o próprio depoente a voluntariamente dar conhecimento ao mesmo (através de remessa de email) para o mesmo a pudesse usar.
Também o arguido, ouvido em sede de instrução, garantiu que teve acesso a essa comunicação por várias vias: pela publicação do assistente em 29.07.2017 no Facebook; por email enviado por funcionários da Escola Profissional (que foram destinatários dessa comunicação) e em suporte físico (impressão).
Mais afirmou que para si, na sua convicção, não tinha dúvidas que a mencionada comunicação era pública e não privada.
Ora, constatando-se que o arguido teve acesso ao email de 29.07.2017 enviado pelo assistente aos colaboradores da EP... através de um destinatário dessa comunicação (e funcionário da Escola Profissional ...), que lhe remeteu o mesmo voluntariamente, permitindo que o arguido dele tivesse conhecimento, crê-se faltar legitimidade ao remetente (aqui assistente) para se opor à dita divulgação.
Ou seja, a partir da entrega, o destinatário do email pode consentir na tomada de conhecimento por terceiro, mesmo contra a vontade do remetente.
Assim, uma vez lida a mensagem de email, esta fica na disponibilidade do destinatário, que a poderá livremente mostrar a quem entender e consentir no seu uso. O conteúdo do email pode continuar a existir no suporte digital do computador/telemóvel enquanto não for apagada, ou seja, se for “guardada”, continuando a lei a proteger a mensagem/comunicação assim “guardada”, por via da tutela do direito à reserva da vida privada do titular do computador/telemóvel, quanto aos dados contidos no seu próprio sistema informático, contra intromissões de terceiros.
Trata-se, contudo, de um direito disponível, não impedindo nenhuma norma ou princípio da ordem jurídica cada um de expor ou partilhar com outrem factos da sua vida privada (sendo que, no caso em apreço, o conteúdo da comunicação não se relaciona sequer com a esfera privada do remetente).
Recuperando, uma vez mais, as palavras de Manuel da Costa Andrade, in Comentário Conimbricense do Código Penal, tomo I, pág. 755, a «partir da entrega, o destinatário pode consentir na abertura ou tomada de conhecimento por terceiro, mesmo contra a vontade do remetente». E «segundo entendimento consensual dos autores e tribunais alemães, será assim mesmo que o remetente tenha aposto na carta a indicação de pessoal ou confidencial».
Mesmo que se entenda que portador do bem jurídico será sempre remetente e destinatário, duvidoso será, nos termos em que se encontra prevista a punição do n.º 3 do artigo 194.º do Código Penal, entender que o terceiro que teve permissão para aceder ao conteúdo não o pode divulgar (mesmo que tal comunicação em nada se relacione com factos da intimidade da vida privada dos intervenientes).
Crê-se que tanto basta para soçobrar a imputação feita.
De qualquer modo, não se pode ainda olvidar que o assistente, no mesmo dia 29.07.2017 publicou no Facebook um texto com um conteúdo idêntico (embora não igual na forma como se inicia e acaba) ao exarado no email enviado aos colaboradores da EP..., o que, quanto a nós, coloca também em crise o alegado carácter privado da própria comunicação, ou, pelo menos, levanta séria dúvida sobre esse mesmo ponto e ainda, concomitantemente, sobre a alegada intenção dolosa do arguido.
Na verdade, só merece a tutela da incriminação as comunicações privadas e não já as públicas ou as de difusão, como parece ser o caso, já que o assistente pretendia dar a conhecer a um universo não determinado de pessoas que passou a integrar “a lista do Partido ..., como candidato independente, à Câmara Municipal ...”.
Pelo exposto, concluímos não estarem preenchidos os elementos do tipo objetivo do ilícito em apreço – já que a divulgação em causa não dependia da autorização do aqui assistente CC (por ter sido consentido por, pelo menos, um dos destinatários da mensagem, a tomada de conhecimento e uso da mesma pelo arguido) – nem se indiciam suficientemente os elementos do tipo subjectivo do ilícito (considerando o concreto teor da comunicação em causa e a aludida publicação feita pelo assistente, no mesmo dia, no facebook).
Passemos, então, aos quatro crimes de difamação agravada imputados pelo Ministério Público ao arguido, realçando-se, em primeiro lugar, que o cerne da determinação dos elementos objectivos se tem sempre de fazer pelo recurso a um horizonte de contextualização.
Em sede de instrução, o arguido explicou a razão pela qual apresentou a carta em causa, afirmando que se trata de uma questão política e que tinha como objectivo demover algumas pessoas de votarem favoravelmente uma intenção que se mostrava maioritária (de alienar a Escola Profissional). Mencionou que a referida carta aberta é uma leitura política que deveria ser conhecida por todos, mas não imputou qualquer acto, nem foi sua intenção ofender a honra e a consideração de qualquer pessoa. Mais referiu que se limitou a falar nos resultados negativos acumulados e que se quisesse ser alarmista ou parcial teria mencionado os resultados operacionais (que eram bem mais negativos).
Vejamos.
As expressões constantes da «carta aberta» a que alude a acusação pública, podem considerar-se ofensivas da honra dos assistentes à luz do disposto no art. 180º/1 do Código Penal? Sendo-o, encontram as mesmas justificação no plano da cláusula de exclusão de punibilidade prevista no art. 180º/2 do Código Penal?
Diz-se aí:
«(…) A Escola Profissional ... E.M., Lda. vai sair da esfera municipal sem que saibamos as reais razões da venda. Começou por se basear numa alteração do modelo de financiamento da Escola (que afinal não teve alteração nenhuma desde 2014), agora ficámos a saber que afinal é por causa da Covid-19. Mas o que me leva a escrever-vos não é o passado, é mesmo o futuro. Um futuro bem próximo. É que no sábado, pela boca do Presidente da Câmara, ficámos a saber que “não há dinheiro”, que “já há propostas de financiamento da banca” e que “vão-se os anéis e ficam os dedos, venderemos o que for necessário” e ainda “poderemos até nem lançar mais nenhuma empreitada até ao final do mandato”. Confesso-vos que não fiquei surpreendido. Até porque a vitimização já vinha sendo ensaiada desde Abril de 2018, quando o buraco debaixo do Pavilhão ... e a derrocada na Avenida ... apareceram. E foi sem surpresa porque há muito se percebeu a gestão financeira do Município. Na economia sempre se recorreu a financiamentos, sempre se projectou investimento imediato antevendo receita futura, porque é no presente que a população retira partido da obra realizada deixando, normalmente, obra paga à geração seguinte e tirando partido da obra paga pela geração anterior. Aqui aconteceu o oposto desde 2013, executou-se investimento em valores que baixaram aos 38% do orçamento anualmente - numa média a 6 anos inferior a 50% - e ainda assim, neste mesmo período, esfumaram-se dos cofres municipais quase 3 milhões de euros em resultados negativos acumulados. (…)».
Cumpre também dizer que sendo a honra, em sentido geral, um direito fundamental protegido, como vimos, desde logo pela Constituição da República Portuguesa, mas também pelo art. 70º do Código Civil, pelo art. 17º do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos (PIDCP) e pelo art. 8º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH), neste caso enquanto dimensão da reserva da vida privada, não constitui um valor absoluto.
Há na verdade outros valores, potencialmente com a mesma dignidade, com que o direito fundamental à honra tem que conviver e em face dos quais, em função das especificidades de cada caso, poderá ter que, em alguma medida, ceder.
É o caso da clássica liberdade de expressão, protegida pelo art. 37º da Constituição da República Portuguesa, pelo art. 19º do PIDCP e pelo art. 10º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
Fosse a tutela da honra algo de absoluto e não haveria espaço algum para a crítica, como não haveria espaço sequer para que a comunicação social, por exemplo, desempenhasse a sua função de «cão de guarda» da democracia, posto que nunca poderia publicar notícias desagradáveis para os visados, por mais verdadeiros que fossem os factos relatados e por maior interesse público que houvesse na sua divulgação.
Esta convivência, que por vezes assume contornos conflituantes, entre direitos e valores fundamentais, é própria de uma sociedade democrática, como aí estão para o evidenciar as restrições expressamente admitidas pelo art. 18º da Constituição da República Portuguesa e ainda pelo art. 8º/2 da CEDH.
Uma das notas características de uma sociedade democrática é justamente a da abertura à crítica, mesmo quando esta é contundente e agressiva.
De resto, como resulta evidente, a liberdade de expressão, enquanto garantia fundamental, colhe o seu pleno e genuíno sentido justamente em casos de crítica contundente e agressiva, pois para observações elogiosas ou críticas mais ou menos inócuas nenhuma necessidade haveria de convocar a dita liberdade.
É, pois, também a esta luz que deve compreender-se o alcance geral da incriminação prevista no art. 180º do Código Penal e os espaços de não punibilidade (ou porventura de justificação da conduta) para que aponta o nº 2 da norma, quando prescreve que «a conduta não é punível quando: a) a imputação for feita para realizar interesses legítimos; e b) o agente provar a verdade da mesma imputação ou tiver tido fundamento sério para, em boa fé, a reputar verdadeira».
Tendo, assim, por base estas premissas, concluímos pela atipicidade da conduta descrita na acusação pública e, no limite, pela sua não punibilidade por via da verificação da causa de justificação prevista no art. 180º/2 do Código Penal.
Expliquemos.
O arguido apresentou a carta em causa, na qualidade de vereador da Câmara Municipal ..., ao Presidente da Assembleia Municipal ... (para que a mesma fosse publicitada por todos os membros eleitos e inerentes de tal órgão) por, nas palavras utilizadas na própria queixa apresentada pelos ora assistentes divergir «da solução adoptada pelo Município no que respeita à “Escola Profissional ..., Lda”», assumindo «a perspectiva de que a solução eleita pelo executivo prejudica o erário municipal e que haveria alternativas mais vantajosas para o bem comum» (cfr. fls. 2 a 4 do processo 97/20.7T9MLD, em apenso).
Com efeito, o conteúdo da carta expressa uma clara oposição às opções políticas do executivo camarário.
Diz-se que «(…)foi sem surpresa porque há muito se percebeu a gestão financeira do Município. Na economia sempre se recorreu a financiamentos, sempre se projectou investimento imediato antevendo receita futura, porque é no presente que a população retira partido da obra realizada deixando, normalmente, obra paga à geração seguinte e tirando partido da obra paga pela geração anterior. Aqui aconteceu o oposto desde 2013, executou-se investimento em valores que baixaram aos 38% do orçamento anualmente - numa média a 6 anos inferior a 50% - e ainda assim, neste mesmo período, esfumaram-se dos cofres municipais quase 3 milhões de euros em resultados negativos acumulados. (…)».
Ou seja, pode extrair-se da carta apresentada pelo arguido que o mesmo pretendia (conforme também referiu nas suas declarações prestadas na presente fase de instrução) expor (e criticar frontalmente) uma gestão financeira que para si (na sua ótica) não foi acertada.
Conforme se decidiu na Relação do Porto, no acórdão de 19/04/2017, relatado por Pedro Vaz Pato, os crimes de difamação e injúria supõem a imputação de factos ou a formulação de juízos sobre uma pessoa, não a formulação de juízos sobre factos, actuações, obras, prestações ou realizações. Estes juízos, que são cobertos pela liberdade de expressão e crítica, não configuram elemento constitutivo de algum desses dois tipos de crime.
É, cremos, o que se passa no caso em apreço.
Salienta-se o contexto político em causa e o local onde a carta foi apresentada.
Por outro lado, o arguido explicou a sua intenção política de tentar demover membros que ainda poderiam estar em dúvida quanto ao sentido de voto, no que respeita à questão da alienação da Escola Profissional.
É certo que o arguido utilizou a expressão «esfumaram-se dos cofres municipais quase 3 milhões de euros em resultados negativos acumulados» (o negrito é nosso).
Mas, impõe-se referir que a palavra esfumar (que, afinal, está no cerne de toda a controvérsia) foi usada em referência aos referidos resultados negativos acumulados e não somente com referência ao dissipar desse valor “sem deixar rasto”, como se refere na queixa apresentada. Tampouco se pode dizer que daquela frase decorre, sem mais, a imputação aos assistentes de “acções passíveis de coloração criminosa” (conforme é aludido na queixa) ou que os mesmos “se tinham apropriado de dinheiros públicos” (como refere a acusação pública).
Neste quadro, e podendo até reputar-se de grosseiras ou excessivas as palavras escolhidas, considerando o contexto em que foram usadas, e no exercício de crítica atinente a suposta lesão causada por essas mesmas condutas aos interesses (comunitários) que incumbia ao arguido nas suas funções políticas zelar, não se lhes pode atribuir um cariz gratuito, infundado, deliberadamente direccionado para a ofensa à honra dos assistentes, muito menos um intuito subjacente vexatório ou humilhante.
Neste mesmo sentido, embora a propósito de situação distinta, concluiu a Relação de Lisboa no acórdão de 11/12/2019, relatado por Abrunhosa de Carvalho, do qual se destaca o seguinte excerto:
«Uma expressão degradante só assume o carácter de «difamação» quando nela não avulta em primeiro plano a discussão objectiva das questões mas antes o enxovalho das pessoas. Para além da crítica polémica e extremada tem de se visar o rebaixamento das pessoas. Só poderá falar-se de «difamação» quando o juízo de valor ou a crítica perdem todo o contacto com a obra, a prestação ou o problema que os motiva ou com a discussão das questões de interesse comunitário. E, em vez disso, passam a obedecer apenas ao propósito de rebaixamento de uma pessoa. Atingindo-a no sentimento de auto-estima ou ferindo-a na sua dignidade pessoal e consideração social».
É tudo o que não ocorre no caso em apreço, como cremos ter ficado patente na apreciação supra.
O texto em causa critica politicamente o executivo camarário e fá-lo, não de forma gratuita e para achincalhar e humilhar os assistentes (que, aliás, ali não estão sequer identificados), mas, tudo indica, como forma de tentar fazer notar, na luta política, outra visão/caminho para determinadas decisões a tomar.
Escreve-se bem a propósito no acórdão da Relação do Porto de 19/04/2017, supra citado, que «se bem que ninguém goste que lhe verberem comportamentos, atitudes ou mesmo simples intenções, ou fustigue a sua personalidade ou carácter, o incómodo daí resultante e susceptibilidade do visado não bastam para que se considere desde logo atingido o núcleo essencial de qualidades morais que devem existir para que a pessoa se tenha como socialmente realizada. Ora, o direito não pode intervir sempre que a linguagem utilizada incomoda ou fere susceptibilidades do visado. Só o pode fazer quando é atingido o núcleo essencial de qualidades morais que devem existir para que a pessoa tenha apreço por si própria e não se sinta desprezada pelos outros.».
Conforme começamos por dizer, numa sociedade democrática, tem que saber viver-se com a crítica sob pena de, a pretexto da tutela da honra, por vezes a camuflar uma sensibilidade exacerbada, se minar a liberdade de expressão e ir, desse modo, dizimando a já débil sociedade civil, cujo sentido crítico se mostra fundamental à preservação dos valores caros à comunidade.
Uma última nota se impõe fazer.
É jurisprudência constante (cfr. a título exemplificativo os Acs. da Relação de Évora de 01-07-2014, processo n.º 53/11.6TAEZ.E2; da Relação de Coimbra de 08-11-2017, processo n.º 1020/14.3T9CBR.C1; da Relação de Guimarães de 13-07-2020, processo n.º 377/18.1T9BCL.G1) a afirmação de que no campo da luta e discurso político ou em questões de interesse geral “pouco espaço há para as restrições à liberdade de expressão”.
Se no geral prevalece como direito maior a liberdade de expressão pela sua essencialidade democrática, no campo da luta politica e questões de “interesse geral” a tutela da honra é residual.
Com efeito, a temática do conflito entre a liberdade de expressão e de opinião e o direito à honra e reputação tem sido frequentemente objeto de decisões por parte do TEDH, dando sistematicamente prevalência à primeira e frisando que a liberdade de expressão constitui um dos fundamentos essenciais de uma sociedade democrática e vale não somente para as “informações” ou “ideias” favoráveis, inofensivas ou indiferentes, mas também para aquelas que ofendem, chocam ou inquietam. Como resulta do parágrafo 2º do artigo 10º da CEDH, a liberdade de expressão está sujeita a exceções que devem ser interpretadas restritivamente, devendo a necessidade de qualquer restrição ser demonstrada de maneira convincente, o que in casu não sucede.
Face ao exposto, embora resultem suficientemente indiciados os factos expostos nos primeiros quatro parágrafos da acusação pública (de “No dia 13 de Maio (…)” até “(…) “acessível ao público”), e no sétimo e no oitavo parágrafos da acusação pública (de “No dia 26 de maio (…)” até “(…) resultados negativos acumulados”) não resultam indiciados todos os restantes factos, mormente que: “Ao divulgar o teor de tal e’mail, através de várias páginas do Facebook, o mesmo quis que o mesmo fosse do conhecimento do maior número de pessoas possível, sabendo que CC não tinha autorizado tal divulgação”.
“Ao fazer constar do referido texto as expressões supra mencionadas, o arguido teve o propósito, concretizado, de pôr em causa a actuação de DD, EE, CC e FF, enquanto Presidente, Vice-presidente e Vereadores da Câmara Municipal ..., fazendo crer que os mesmos se tinham apropriado de dinheiros públicos, assim os ofendendo na honra e na consideração que lhes era devida, sendo que o fez por causa do desempenho das referidas funções.
Fazendo-o através de uma «carta aberta» enviada à Presidente da Assembleia Municipal ... e com a menção de que pretendia que a mesma fosse publicitada por todos os membros eleitos e inerentes de tal órgão, o arguido quis que o seu teor fosse do conhecimento de um número elevado pessoas.
O arguido agiu sempre de forma livre e voluntária, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas pela lei penal.”
Em suma:
Por tudo o exposto, e sem necessidade de outras considerações, julgamos ser procedente a defesa apresentada no requerimento de abertura de instrução, não havendo nos autos indícios suficientes da prática pelo arguido dos factos descritos na acusação pública (e na acusação apresentada pelos assistentes ao abrigo do disposto no artigo 284.º do Código de Processo Penal) e, portanto, dos crimes com base neles é imputado, de difamação gravada e de violação de correspondência, sendo improvável uma sua condenação em sede de julgamento.
IV - Decisão
Nestes termos, decide-se julgar procedente o requerimento de abertura de instrução e, consequentemente, não pronunciar para julgamento AA, pelos factos descritos na acusação pública (e na acusação apresentada pelos assistentes) e crimes ali imputados”.
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Desta decisão recorreu o M.ºP.º, formulando as seguintes conclusões:
“1.º Por despacho de fls. 123 a 126, o Ministério Público e para o que neste âmbito interessa, acusou o arguido AA, como autor material, da prática de 4 (quatro) crimes de difamação agravada, previstos e punidos pelas disposições conjugadas dos artigos 180 °, n.°l, 183.°, n.°l, alínea a) e 184.° do Código Penal, por referência ao artigo 132.°,
n.°2, alínea 1), todos do Código Penal.
2.ºPor decisão instrutor a proferida no dia 02-02-2023, a Mma Juiz de Instrução Criminal decidiu não pronunciar o arguido AA, que acima transcrevemos parcialmente, e que aqui se ce igual modo se dá por integralmente reproduzida.
3.°Nos termos do art.286°. n° 1, do Cód. Proc. Penal, a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.
4º.Chamando à colação o ait.308.° do mesmo diploma legal, se tiverem sido recolhidos indícios suficientes4 de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou do uma medida de segurança, o juiz pronuncia (n° 1), sendo que é correspondentemente aplicável os n°s 2, 3 e 4 do artigo 283° do CPP (n° 2).
5.°Nesta fase de instrução, pese embora não se possa confundir com um novo inquérito ou com uma antecipação de um julgamento, vale o mesmo conceito de indícios suficientes da referida fase dc inquérito, sendo que o juízo de certeza apenas se fará em julgamento.
6.°A acusação foi alicerçada na prova documental e testemunhal produzida no inquérito, indicada na acusação proferida e enfatizada acima nas alegações de recurso, que terão permitido pugnar pela indiciação suficiente da factualidade aí inserta no que aos crimes de difamação dizem respeita
7.°Com efeito, pratica o crime constante do artigo 180° do Código Penal:
"1 — Quem, dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou consideração, ou reproduzir uma tal imputação ou juízo, é punido com pena de prisão até seis meses ou com pena de multa até 240 dics.
2 — A conduta não) é punível quando:
a) A imputação foi feita para realizar interesses legítimos: e
b) O agente provar a verdade da mesma imputação ou tiver tido fundamento sério para, em boa fé, a reputa, verdadeira.
3 — Sem prejuízo do disposto nas alíneas b), c) e d) do n.° 2 do artigo 31°, o disposto no número anterior não st aplica quando se tratar da imputação de facto relativo à intimidade da vida privada e familiar.
4 — A boa fé referida na alínea b) do n.° 2 exclui-se quando o agente não tiver cumprido o dever de informação, que as circunstâncias do caso impunham, sobre a verdade da imputação ".
A agravação encontra se prevista nos artigos 183.° n.° 1 alínea a) e 181° do mesmo diploma legal, nos termos do qual ocorrerá quando a ofensa for praticada através de moios ou em circunstâncias que facilitem a sua divulgação e a pessoa ofendida (caluniada) for uma das que se encontram referidas na alínea 1) do número 2 do artigo 132° e se encontre no exercício das suas funções ou (tenha sido injuriada) por causa delas.
8.°Por sua vez, o tipo subjetivo de ilícito, admite o dolo em qualquer uma das suas modalidades (artigo 14.° do Código Penal), bastando, como vem sendo entendimento da doutrina e jurisprudência, o dolo genérico, não se exigindo o animus difámatório.
9ºPese embora nas sociedades democráticas e abertas, como aquela em que vivemos, o direito à crítica é um dos mais importantes desdobramentos da liberdade de expressão, mediante a situação do caso concreto, tal direito, mesmo no contexto do debate público e político tem os seus limites, como decorre do próprio n.° 3 do mesmo art.37.° da C.R.P, quando estabelece que «as infrações cometidas no exercício destes direitos ficam submetidas aos princípios gerais de direito criminal...».
10.°Ora, a expressão *'(...) e ainda assim, neste mesmo período, esfumaram- se dos cofres municipais quase 3 milhões de euros em resultados negativos acumulados" - sublinhado nosso - inserta numa carta aberta assumidamente formulada pelo arguido, dirigida à Presidente da Assembleia Municipal e por via desta aos demais membros de tal Órgão Autárquico, encerra uma conotação de desaparecimento sem deixar rasto, logo, insusceptível de indagação ou justificação, boa ou má que possa ser politicamente escrutinada.
11.°Tal expressão descrita, necessariamente em tom de imputação de factos que terão levado a tal consequência, tinham como destinatários, na qualidade de membros do executivo da Câmara e responsáveis pela gestão dos dinheiros públicos durante o período em referência, os assistentes, no exercício de funções de autarcas, como Presidente da Câmara, Vice-Presidente da Câmara e Vereadores com pelouro.
12.ºAo escrever e fazer uso de tal dizer, necessariamente pensado e ponderado pelo arguido (desde logo pela forma escrita adotada) através de uma «carta aberta» enviada à Presidente da Assembleia Municipal ..., com a menção de que pretendia que a mesma fosse publicitada por todos os membros eleitos e inerentes de tal órgão, com respaldo nas redes sociais e na comunicação social, o arguido quis que o seu teor fosse do conhecimento de um número elevado pessoas.
13.°Ora, o homem comum, modelo e amostra do pulsar da sociedade e dos seus valores de honra, bom nome e seriedade, não poderá deixar de a entender como desonrosa para os seus destinatários nem deixar de associar tal expressão a critérios de ilicitude, de apropriação ou, pelo menos, de dissipação para destinos legalmente não previstos por parte do executivo camarário em funções durante o período em referência, algo que necessariamente o arguido não podia deixar de prever.
14.°Estamos perante uma expressão, para mais genérica, que encerra a imputação, salvo o devido respeito por opinião contrária, sob a forma de suspeita indemonstrada, de factos ilícitos típicos aos assistentes no exercício das suas funções autárquicas, algo que se reconduz, a um objectivo e injustificado (o que se repercute ao nível do elemento subjectivo), porque desnecessário ataque à sua honra e consideração, pondo naturalmente em causa a sua reputação, seriedade e honorabilidade para o exercício das funções políticas que lhes cabiam.
15.°Tal imputação, apresentada como acessória face à intenção que o arguido alegou como sendo primacial (evitar a alienação da Escola Profissional), é para nós, pela sugestão de carácter que faz dos visados, de forma generalizada e sem concretização, bem mais danosa do que meros adjectivos fortuitos e efémeros dirigidos aos destinatários, desde logo porque relativamente a tal adjectivação a comunidade associa a meros conflitos verbais de circunstância tão comuns no "jogo político".
16.°Na situação descrita nos áudios, opinamos no sentido de que o arguido, também ele político/vereador e com acesso privilegiado a uma maior amplitude de informação factual e técnica existente na órbita do município, em comparação com o comum dos cidadãos, excedeu, porque utilizou de forma manifestamente desnecessária e desproporcionada a expressão em realce, o seu legítimo direito de livre expressão, mesmo em contenda política.
17.°Não vemos que a conduta do arguido se possa sequer enquadrar em nenhuma das alíneas previstas do n.°2 d) artigo 180.°, do Código Penal.
18.°Em face de tudo o que se deixa exposto, pela conjugação da prova testemunhal e documental junta aos autos e ao enquadramento legal por nós pugnado, entendemos existirem indícios suficientes para submeter a julgamento o arguido AA, pela prática de 4 (quatro crimes) de difamação agravada, p. e p. pelos art.° 180°, n.° L 182.°, 183°, n.° 1, al. a), e 184° do Código Penal.
19.°Ao não pronunciar o arguido pelos crimes ora em equação e salvo o devido respeito por opinião contrária, o Tribunal de Instrução Criminal fez incorreta apreciação dos indícios e incorreta aplicação do direito aplicável, com a consequente violação do disposto nos artigos 3171 e 2, 180.°, n.°s 1 e 2, 182.°, 183.° 184.°, por referência ao artigo 132.°, n.°2, alínea 1), todos do Código Penal e artigos 127°, 283.°, n° 2, e 308.°, do Código de Processo Penal.
20.°Termos em que, salvo o devido respeito por entendimento contrário, o douto despacho recorrido, deverá ser revogado, e substituído por despacho que pronuncie o arguido AA pelos mesmos factos que já constavam da acusação deduzida pelo M.P., na parte que lhe dizem respeito e que acima transcrevemos, e assim, como autor material, da prática de 4 (quatro crimes) de difamação agravada, p. e p. pelos art.° 180°, n 0 1, 183°, n.° 1, al. a), 182.° e 184° do Código Penal”.
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Em resposta ao recurso o arguido defendeu a sua improcedência, e a manutenção da decisão de não pronúncia.
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O Sr. Procurador-Geral Adjunto limitou-se a apôr o seu visto.
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Colhidos os Vistos, efectuada a Conferência, cumpre apreciar e decidir.
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Das conclusões, delimitadoras do respectivo objecto, extrai-se que o M.ºP.º, pretende a revogação da Decisão Instrutória de não pronúncia e a sua substituição por outra que pronuncie o arguido pelos factos e crimes de difamação agravada constantes da acusação pública.
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Dos autos resulta o seguinte:
─ Pelo M.ºP.º foi proferida acusação contra o AA pela prática de um crime de violação de correspondência, e 4 crimes de difamação agravada;
─ Pelo arguido foi pedida a realização de Instrução;
─ Efectuada esta foi proferida Decisão Instrutória de não pronúncia;
─ Pelo M.ºP.º foi interposto recurso, em que, conformando-se com a não pronúncia pela prática do crime de violação de correspondência, pretende a pronúncia pela prática dos 4 crimes de difamação agravada.
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Em causa está ─ factos objectivos considerados suficientemente indiciados ─ uma «carta aberta» enviada pelo AA, enquanto vereador da C.M. ... pela coligação “...”, ao Presidente da Assembleia Municipal ... (a ser publicitada entre todos os membros da Assembleia), onde fez constar o seguinte: “(…) A Escola Profissional ... E.M., Lda. vai sair da esfera municipal sem que saibamos as reais razões da venda. Começou por se basear numa alteração do modelo de financiamento da Escola (que afinal não teve alteração nenhuma desde 2014), agora ficámos a saber que afinal é por causa da Covid-19. Mas o que me leva a escrever-vos não é o passado, é mesmo o futuro. Um futuro bem próximo. É que no sábado, pela boca do Presidente da Câmara, ficámos a saber que “não há dinheiro”, que “já há propostas de financiamento da banca” e que “vão-se os anéis e ficam os dedos, venderemos o que for necessário” e ainda “poderemos até nem lançar mais nenhuma empreitada até ao final do mandato”. Confesso-vos que não fiquei surpreendido. Até porque a vitimização já vinha sendo ensaiada desde Abril de 2018, quando o buraco debaixo do Pavilhão ... e a derrocada na Avenida ... apareceram. E foi sem surpresa porque há muito se percebeu a gestão financeira do Município. Na economia sempre se recorreu a financiamentos, sempre se projectou investimento imediato antevendo receita futura, porque é no presente que a população retira partido da obra realizada deixando, normalmente, obra paga à geração seguinte e tirando partido da obra paga pela geração anterior. Aqui aconteceu o oposto desde 2013, executou-se investimento em valores que baixaram aos 38% do orçamento anualmente - numa média a 6 anos inferior a 50% - e ainda assim, neste mesmo período, esfumaram-se dos cofres municipais quase 3 milhões de euros em resultados negativos acumulados. (…)”.
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Na decisão recorrida considera-se que “o texto em causa critica politicamente o executivo camarário e fá-lo, não de forma gratuita e para achincalhar e humilhar os assistentes (que, aliás, ali não estão sequer identificados), mas, tudo indica, como forma de tentar fazer notar, na luta política, outra visão/caminho para determinadas decisões a tomar”, e que “numa sociedade democrática, tem que saber viver-se com a crítica sob pena de, a pretexto da tutela da honra, por vezes a camuflar uma sensibilidade exacerbada, se minar a liberdade de expressão e ir, desse modo, dizimando a já débil sociedade civil, cujo sentido crítico se mostra fundamental à preservação dos valores caros à comunidade”.
Mais se afirma ser Jurisprudência constante “a afirmação de que no campo da luta e discurso político ou em questões de interesse geral “pouco espaço há para as restrições à liberdade de expressão”, sendo “no campo da luta política”, a tutela da honra “residual”.
Reportando-se ao Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (T.E.D.H.) afirma-se dar este Tribunal “sistematicamente prevalência à primeira e frisando que a liberdade de expressão constitui um dos fundamentos essenciais de uma sociedade democrática e vale não somente para as «informações» ou «ideias» favoráveis, inofensivas ou indiferentes, mas também para aquelas que ofendem, chocam ou inquietam”.
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No recurso, alega-se em síntese que “a expressão *'(...) e ainda assim, neste mesmo período, esfumaram- se dos cofres municipais quase 3 milhões de euros em resultados negativos acumulados" - sublinhado nosso - inserta numa carta aberta assumidamente formulada pelo arguido, dirigida à Presidente da Assembleia Municipal e por via desta aos demais membros de tal Órgão Autárquico, encerra uma conotação de desaparecimento sem deixar rasto, logo, insusceptível de indagação ou justificação, boa ou má que possa ser politicamente escrutinada”.
Considera-se que essa expressão “encerra a imputação sob a forma de suspeita indemonstrada, de factos ilícitos típicos aos assistentes no exercício das suas funções autárquicas, algo que se reconduz, a um objectivo e injustificado (o que se repercute ao nível do elemento subjectivo), porque desnecessário ataque à sua honra e consideração”.
Afirma-se que o arguido excedeu “o seu legítimo direito de livre expressão, mesmo em contenda política”, pelo que a sua conduta “não se pode enquadrar em nenhuma das alíneas do art.º180, n.º 2, al. d), do C.P.”.
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Vejamos:
Estão em causa crimes (4) contra a honra consistentes em o agente imputar a outras pessoas, por escrito, factos ofensivos da sua honra ou consideração (o tipo, na parte que interessa, encontra-se repartido entre os art.ºs 180 e 182, do C.P., o que é esquecido na acusação).
Sendo a honra um conceito abrangente e múltiplo, variável de acordo com as épocas, modos de pensar, e idiossincrasias dos intervenientes (tal como, já em 1763, afirmava Beccaria, a palavra honra “é uma daquelas que serviu de base a extensos e brilhantes ensaios sem contudo lhe fixar um significado estável e permanente”), é fundamental ponderar-se perante o conjunto do texto e o enquadramento e circunstâncias em que foi escrito, a existência, ou não, de efectiva ofensa penalmente punível.
E, a esse respeito, observe-se que ─ ao contrário do que parece ser preconizado na decisão recorrida ─ mesmo no campo da “luta política”, onde parece enquadrar-se o caso, o direito à honra e a liberdade de expressão encontram-se em iguais patamares, ambos têm igual valor no nosso Ordenamento Jurídico ─ face à comum fonte Constitucional de onde emanam, respectivamente, art.ºs 26 (na componente “bom nome e reputação”) e 37 (“todos têm o direito de exprimir e divulgar livremente o seu pensamento”), da C.R.P. .
Ou seja, mesmo no campo dessa “luta política” a liberdade de expressão tem limites, nem tudo sendo permitido. E esses limites têm de se situar na necessidade ou desnecessidade da utilização das expressões em causa para a finalidade da crítica política expressa no texto (neste caso) escrito que esteja sob análise.
Essa responsabilização da actuação dos agentes políticos no âmbito da concorrência eleitoral com os seus congéneres (aqui, ao que parece, ao nível autárquico), mostra-se aliás essencial para a configuração da liberdade de expressão nos nossos regimes de Direito Democráticos (por contraposição aos regimes autocráticos e totalitários que reprimem, pela via jurídica ou extra-jurídica, qualquer tipo de “crítica” ao poder instituído).
Em consonância, no âmbito da Jurisprudência do T.E.D.H., a liberdade de expressão é caracterizada como assente “no pluralismo de ideias e opiniões, livremente expressas”, não integrando a “liberdade” de deturpar a imagem e prejudicar, de forma desnecessária e inaceitável, a honra e consideração do concorrente político (daí que não seja verdade ser a tutela da honra meramente “residual”).
Isto dito, tendo em conta as premissas aqui enunciadas, o texto em causa tem de ser considerado como uma crítica à saída da “esfera Municipal” de uma determinada Escola Profissional e à gestão dos dinheiros da Autarquia.
Visto o seu contexto e a sua linguagem (num tom pretensamente informal e confessional), o escrito em causa não excede os limites do aceitável do ponto de vista ético-social e jurídico-penal.
Não é detectável um objectivo exclusivamente difamatório, ou o propósito de atingir a honra pessoal dos membros da Autarquia, cujos nomes não são sequer mencionados na “carta” dirigida ao Presidente da Assembleia Municipal.
Em conclusão, a decisão de não pronúncia deve ser mantida, improcedendo o recurso.
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Nos termos relatados, decide-se julgar improcedente o recurso, mantendo-se a Decisão Instrutória de não pronúncia.
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Sem custas, por não serem devidas.
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Porto, 17/01/2024
José Piedade
Horácio Correia Pinto
Carla Oliveira