Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
14391/23.1T8PRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOÃO VENADE
Descritores: PROCEDIMENTO CAUTELAR COMUM
GARANTIA BANCÁRIA À PRIMEIRA SOLICITAÇÃO
Nº do Documento: RP2024011114391/23.1T8PRT.P1
Data do Acordão: 01/11/2024
Votação: MAIORIA COM 1 VOT VENC
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: A automaticidade da garantia à primeira solicitação pode ser relativizada em caso de fraude manifesta ou de abuso evidente por parte do beneficiário.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 14391/23.1T8PRT.P1

Sumário.
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1). Relatório.
A..., Lda., com sede na Rua ..., ..., Braga, propôs contra
B..., Unipessoal, Lda., com sede na Estrada ..., ..., Cascais,
C..., S. A., com sede na Avenida ..., n.º ..., 3.º, escritórios ... a ..., ... e ..., Porto,
Procedimento cautelar comum, pedindo que se ordene:
. à 2.º requerida que, até ao trânsito em julgado da decisão a proferir na ação principal de que este procedimento cautelar é dependente, não pague à 1.º requerida nenhuma quantia por conta da Garantia Bancária n.º ..., no valor de 128 269,20 EUR;
. à 1.ª requerida que se abstenha de praticar qualquer ato com vista ao acionamento ou ao pedido de pagamento de quaisquer quantias junto da 2.º requerida relativas à sobredita garantia bancária.
O sustento de tais pedidos radica no seguinte:
. celebrou com a 1.ª requerida, em 27/04/2022, um contrato que tem por objeto a realização dos trabalhos necessários ao desenvolvimento, construção, instalação e funcionamento de um Parque Fotovoltaico;
. para garantia do bom cumprimento das obrigações dele resultantes, a pedido da requerente, foi prestada em benefício da 1.ª requerida uma garantia bancária, emitida pela 2.ª requerida, no valor de 128.269,20 EUR, conforme Garantia Bancária n.º ...;
. a 1.ª Requerida acionou, em 08/08/2023, a dita garantia bancária;
. tal execução foi abusiva já que a resolução do contrato, acima indicado, ocorrida em 01/08/2023, também o foi;
. concretiza, mencionando que um eventual incumprimento de um outro contrato não tem relevo para o objeto da garantia bancária e que não incumpriu prazos de execução da obra por sua responsabilidade;
não é a primeira vez que a 1.ª Requerida se tenta financiar mediante o acionamento de garantias bancárias, incluindo a dos presentes autos;
. ocorriam negociações para cessação, por mútuo acordo, do contrato de empreitada;
. a 1.ª requerida deve à requerente mais de 205 000 EUR a título de trabalhos prestados e não pagos.
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Citadas as requeridas, deduziu oposição a 1.ª (B...…), manifestando que o procedimento cautelar deve ser improcedente.
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Foi proferido despacho julgando manifestamente improcedente os pedidos formulados pela requerente. Esta, inconformada, interpõe recurso, formulando as seguintes conclusões:
«1. Não se conforma a Recorrente com a sentença proferida pelo Tribunal a quo que indeferiu a providência cautelar rogada, a concretizar: uma providência cautelar inibitória que impedisse a execução da garantia bancária prestada pela 2.ª Requerida a favor da 1.ª Requerida.
2. O Tribunal a quo indeferiu a providência cautelar requerido sem ter produzido a prova rogada pelas partes, a concretizar: as declarações de parte e a inquirição das testemunhas.
3. Fê-lo por considerar que o decretamento da providência cautelar requerida está dependente da apresentação de prova pronta, líquida, irrefutável de uma violação flagrante e inequívoca das regras da boa-fé, que integre uma atuação manifestamente fraudulenta ou importe a violação de interesses de ordem pública (fumus boni juris) e que só a prova documental pré-constituída pode, eventualmente, constituir tal prova.
4. Concluindo o Tribunal a quo que, in casu, inexiste a aludida prova.
5. Todavia, consideramos, com o devido respeito, que o entendimento perfilhado pelo Tribunal a quo não é correto, pois a prova pronta, líquida, irrefutável de uma violação flagrante e inequívoca das regras da boa-fé, que integre uma atuação manifestamente fraudulenta ou importe a violação de interesses de ordem pública (fumus boni juris) pode ser obtida com recurso a qualquer um dos meios de prova admitidos para as providências cautelares não especificadas, mormente, a prova testemunhal.
6. Assim, a sentença proferida deve ser revogada, prosseguindo os autos para produção da prova requerida pelas partes, a concretizar: declarações de parte das Requerente e 1.ª Requerida e inquirição testemunhal.».
Termina, pedindo a revogação da sentença, prosseguindo os autos a sua normal tramitação para produção da prova requerida pelas partes.
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A 1.ª requerida contra-alegou, pugnando pela rejeição do recurso por incumprimento do disposto no artigo 639.º, do C. P. C. e pela sua improcedência.
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A questão a decidir é determinar se há factos alegados suficiente para que, provados, possam vir a inviabilizar a pretensão da 1.ª requerida em ser paga de garantia á primeira solicitação prestada pela recorrente.
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2.2). Do mérito do recurso.
Uma vez que na decisão recorrida se decidiu pela manifesta improcedência, compreensivelmente, não foram elencados factos assentes, pelo que se irá analisar o que foi alegado pela requerente e concluir se, ainda que provados os factos assim aduzidos, os mesmos não conduziriam à procedência do procedimento cautelar.
A decisão recorrida analisa, correta e exaustivamente, as características de uma garantia bancaria à primeira solicitação, caracterização que a recorrente também não questiona, pelo que não há necessidade de o repetir – garantia bancária em que, à dita solicitação, o garante procede ao pagamento sem necessidade de fundamentação do pedido, desde que nos limites do garantido -; tal regra comporta algum tipo de exceção que se vem reconduzindo a casos de fraude manifesta ou de abuso evidente por parte do beneficiário.[1]
O que importa é então determinar se os factos alegados permitiriam, de entre alguns requisitos apertados (já mencionados na decisão recorrida), impedir a 1.ª requerida de receber o dinheiro da garantia que a recorrente prestou a seu favor.
Esta garantia, do que percebemos, foi acionada pelo valor de 70.128 EUR, como retiramos da carta junta com a oposição como documento n.º 11, já que, no que se nos afigura, nenhuma das partes menciona expressamente este valor nos seus articulados. Tal valor, de acordo com a 1.ª requerida, resultará da diferença entre o que já pagou (118.450 EUR) e aquilo que foi efetivamente prestado pela requerente (48.322 EUR).
Vejamos então.
A recorrente alega que:
. celebrou com a 1.ª requerida, em 27/04/2022, um contrato que tem por objeto a realização dos trabalhos necessários ao desenvolvimento, construção, instalação e funcionamento de um parque fotovoltaico, assumindo a qualidade de empreiteira;
. a 1.ª Requerida endereçou-lhe, em 01/08/2023, uma comunicação pela qual veio resolver o contrato de empreitada com efeitos a 09/08/2023, fundando a resolução no incumprimento, pela empreiteira/recorrente, de prazos e obras que deveriam ter sido realizadas, bem como incumprimento de pagamento contrato de fornecimento de bens com sub-empreiteira;
. essa resolução é infundada por:
a). quanto àquela última questão (incumprimento de contrato com fornecedor), a 1.ª requerida não pode sustentar a resolução de um contrato com base na celebração e eventuais vicissitudes relativos a um outro contrato que não o que sustenta a prestação da garantia, não aceitando que tenha ocorrido motivo justificado para a cessação contratual.
Estamos aqui no campo de definir se a resolução do contrato pela aqui 1.º requerida se pode sustentar nesta argumentação, ou seja, se foi lícita.
Ora, não se nos afigura descabido entender que a dona de obra, encontrando um empreiteiro que está em incumprimento para com o fornecedor de materiais a serem incorporados na obra, possa entender que, essa situação, em conjugação com outras, reforça uma eventual perda de interesse na manutenção do contrato (o dono da obra pode recear que os atrasos que já existam se possam manter ou agravar por o empreiteiro já estar com dificuldades em obter novos fornecimentos devido a pagamentos em atraso, por exemplo).
Por isso é que, no contrato celebrado entre a requerente 1.ª requerida, se prevê que a garantia também protege reclamações de falta de pagamento de empresas sub-contratadas pela requerente – cláusula 7.1 iii, página 15 desse mesmo contrato -, isto sem prejuízo de poder discutir-se se está em causa uma sub-empreitada.
Note-se que a requerente não alega que não se está perante um contrato de sub-empreitada mas apenas que esse contrato não tem a ver com a garantia ou que a eventual falta de pagamento a essa empresa é alheia à 1.ª requerida; mas não deixa de afirmar que se está perante um contrato que celebrou com D..., S. A., de fornecimento de equipamentos para a obra em causa pelo que sempre existirá essa ligação com a obra.
Por isso, desde logo não se consegue concluir, pela alegação, que a atuação da 1.ª Ré tenha sido abusiva ao incluir como fundamento que a requerente estava com dificuldades no pagamento a uma empresa que estava a fornecer material para obra da qual é a dona.
Por outro lado, como mencionamos, a questão estará sempre relacionada com a licitude da resolução do contrato pela dona da obra/1.ª requerida, o que não pode servir para inutilizar a possibilidade de ser acionada a garantia em causa, como se menciona na decisão recorrida. Esta garantia é prestada para que seja acionada quando solicitada e não quando esteja comprovado que o pedido está sustentado num entendimento legalmente correto; só se for patente que a empresa beneficiária da garantia estiver a usar de má-fé ou está a abusar do seu direito, de modo a que iria ocorrer uma situação que chocaria o ordenamento jurídico, é que o pedido deve ser impedido de ser acionado.
Neste caso, mesmo que se demonstrasse que a requerente não estava a incumprir o contrato que celebrou com a empresa fornecedora de materiais, tal não significaria que a 1.ª requerida estava a usar de má-fé ou a abusar do seu direito (direito que, se demonstrada a ilicitude da resolução, não teria); poderia significar que não tinha razão nessa sua argumentação mas essa eventual falta de razão tem que ser apreciada a posteriori a ser acionada a garantia e não como meio de impedir esse mesmo acionamento sob pena de deixar de ser à 1.ª solicitação e passar a ser a uma solicitação fundamentada e comprovada nos seus requisitos.
Como refere Miguel Brito Bastos, in A recusa lícita da prestação pelo garante na garantia autónoma, Estudos em Homenagem ao prof. Doutor Sérvulo Correia, III, páginas 540 e 541, «não significa isto que, sempre que, na relação de valuta, o ordenante puder opor qualquer exceção ao beneficiário, a solicitação por este do pagamento ao garante seja abusiva – o que equivaleria a acabar com a independência da obrigação de garantia face à obrigação de valuta -, sendo antes necessário que a perturbação da relação de valuta seja consideravelmente grave para que a solicitação consubstancie uma violação da boa-fé ou dos bons costumes. Pense-se assim em situações nas quais, não se excluindo a anulação do contrato de base do âmbito dos riscos assumidos pelo garante, esse contrato é anulado por dolo ou coação do beneficiário ou nas situações em que, declarando séria e definitivamente, que não pretende cumprir as suas obrigações da relação de valuta, o beneficiário solicita ao garante a execução da garantia.».
Assim, ainda que se possa entender que não há óbice legal a que se produza prova testemunhal sobre o que é alegado por quem visa impedir que se acione a garantia (uma vez que não há norma legal que proíba qualquer espécie de prova neste tipo de casos, nem consta no contrato cláusula que preveja tal impossibilidade, conforme artigo 345.º, n.º 1, do C. C.)[2], não é essa a questão que, para nós, está em causa na análise deste circunstancialismo mas sim que, mesmo que provada, não seria tal factualidade suficiente para que a garantia não pudesse ser acionada.
Vejamos os outros argumentos da recorrente:
a). os atrasos que ocorrem na execução da obra têm causa alheia à sua atuação, nomeadamente derivando de uma atuação da 1.ª requerida que implicou que aqueles existissem.
O contrato prevê que o dono da obra (1.ª requerida) determinaria o início da mesma (notice to proceed) até 31/05 ou 30/06 de 2022 – cláusula 3.5, página 8 do mesmo -.
Assim, desde logo, a data que a requerente indica como sendo aquela que, o mais tardar, seria a de início das obras (31/05/2022, conforme alega no artigo 17.º, do requerimento inicial) não é exata pois o próprio contrato prevê que poderia iniciar-se um mês mais tarde. Assim, iniciando-se, alegadamente, a obra em 03/08/2022, estamos a ter em atenção o início da obra cerca de um mês depois da data máxima de início prevista no contrato.
Ora, o atraso que foi imputado à requerente foi de 353 dias (artigo 66.º, da oposição da 1.ª requerida), alegação que a requerente não questiona (insurge-se sim contra a imputabilidade que lhe é feita da responsabilidade do mesmo).
Por isso, mesmo que se apurasse que a obra tinha de se iniciar em 31/05/2022 e que só em 03/08/2022 tal sucedeu, estariam em causa cerca de sessenta dias de atraso da responsabilidade da 1.ª requerida, restando cerca de 290 dias de atraso por explicar.
Não se deteta, por isso, que seja abusivo acionar uma garantia quando, por este motivo, não resultam explicados tantos dias de atraso.
Um outro alegado motivo justificativo do atraso é que a 1.ª requerida não teria iniciado os trabalhos de limpeza do terreno em tempo (artigo 18.º, do requerimento inicial). No entanto, a requerente não alega e, apor isso, não define, quais são os trabalhos que não pôde fazer e que já deveria ter realizado e que foram contabilizados pela 1.ª requerida no valor que acionou na garantia – 70.128 EUR –.
Ou seja, a requerente não alega em que medida a falta de realização de trabalhos de limpeza implicou que, apesar de ter conseguido realizar obra (algo que não merece contestação da 1.º requerida), a alegada falta de realização atempada de outros trabalhos se deveu à precedente falta de limpeza de terreno, fazendo com que, o valor que se pede com o acionar da garantia, se revele abusivo.
Teria de alegar-se que determinados trabalhos (eventualmente já pagos pela 1.ª requerida), não puderam ser realizados por causa da falta de limpeza do terreno para depois se aferir se haveria alguma desproporcionalidade na reação da 1.ª requerida ao acionar a garantia.
Sem esta alegação (que não se trata de uma alegação imperfeita mas antes de uma alegação completa mas insuficiente para o fim desejado – não há omissão de factos no que se alega, o que sucede é que a alegação teria de ser mais abrangente), não é possível concluir que a 1.º requerida excedeu manifestamente o seu direito de acionar a garantia; no máximo, poderia concluir-se que teria algum tipo de responsabilidade no atraso na execução da obra mas sem se poder quantificar esse grau de responsabilidade, inviabilizando-se desse modo a conclusão de que se está perante um comportamento abusivo.
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Alega igualmente a requerente que a 1.ª requerida pagava com atraso o valor das faturas que a requerente lhe emitia; mas, uma vez mais, não se retira da alegação que, desse eventual atraso, possa existir um comportamento reprovável da ora recorrida.
Se existiam tais atrasos, teria que se ligar a sua ocorrência com a causalidade que implicaria a existência de atrasos na execução de trabalhos pela requerente, o que não é mínima e suficientemente concretizado (alegar-se que a 1.ª requerida não tem credibilidade bancária e que não pôde haver recurso a antecipação de pagamento de faturas em nada é concretizador da referida causalidade).
Os alegados factos de que a 1.ª requerida já acionou uma outra garantia, tendo depois desistido ou ainda que quebrou negociações, são, na nossa opinião, aqui sim, irrelevantes para os autos até porque (como alegado pela requerente no artigo 24.º, do requerimento inicial), acabou a garantia por não ser acionada pelo que nada há a apreciar sobre consequências a nível de execução do contrato.
Se não houve acordo entre as partes, não resultando que a 1.ª requerida estivesse obrigada a celebrá-lo nem se alegando que se tenha comprometido, a celebrá-lo, não há matéria que possa levar a concluir que, por exemplo, atuou em venire contra factum proprium ou que de algum modo tenha criado a expectativa de que não ia acionar a garantia.
Quanto aos alegados créditos da requerente sobre a 1.ª requerida, os mesmos, não podem, na nossa opinião, fazer com que esta esteja impedida de acionar a garantia. Como já dissemos, esta funciona à primeira solicitação e se eventualmente a requerente é, ela própria, credora de quem aciona a garantia, terá de o discutir a posteriori e não como fundamento para inviabilizar a garantia.
Note-se que esta matéria dos créditos recíprocos está impugnada e é, por isso questionável factualmente (por exemplo, a questão do valor da cláusula penal de 52.118 EUR que a 1.ª requerida deve por só ter dado a ordem para início em agosto de 2022 quando deveria ter sido dada em maio do mesmo ano, matéria que já vimos que não é como alegado pela ora recorrente) pelo que só se fosse patente, desde logo pela alegação, que a provar-se o que se afirma, então o comportamento da aqui recorrida era ostensivamente violador das regras de boa-fé, é que se poderia equacionar a produção de prova.
Ora, já vimos a falibilidade da questão da cláusula penal; e quanto aos valor dos trabalhos que a requerente alega que efetuou – 325.004,01 EUR -, estando em dívida 206.554,21 EUR, acrescido de 130.103,65 EUR, a título de lucros cessantes e um outro eventual valor pelos danos resultantes da resolução ilícita, tudo acaba por redundar, na nossa opinião, em:
. estarem a discutirem-se créditos que não estão garantidos pelo que a requerente pode(ria) usar outros meios – exceção de não pagamento, resolução do contrato, pedidos de indemnização – que salvaguardassem a sua posição mas não inviabilizar uma garantia que foi prestada, com o seu acordo, que prescinde da necessidade da demonstração judicial do valor que se pede;
. considerar que tal alegação de créditos não é sólida, mesmo no que respeita aos trabalhos que foram prestados e muito menos quanto a eventuais lucros que se deixaram de auferir (sem concretização de valor) e não atinge montantes que façam crer numa atitude clamorosamente abusiva da 1.ª requerida – no fundo, em termos de trabalhos executados, seria uma diferença entre 206.554,21 EUR (que a requerente entende que são devidos pela 1.ª requerida) e 70.128 EUR (que a 1.º requerida entende que são devidos pela requerente), o que não atinge um intervalo, mesmo que provado, que se possa considerar claramente revelador de uma atuação lesiva da boa-fé pela aqui recorrida.
Quanto aos outros valores, são, neste momento, hipótese não concretizadas e que não podem servir de bloqueio ao acionar da garantia sobe pena de se estar a discutir matéria que o tipo de garantia prestada procurou evitar que se pudesse discutir.
Por fim, não se deteta que se esteja a violar os termos da garantia pois:
. a recorrente realça que a garantia não envolve o valor de cláusulas penais, conforme ponto 1 da mesma – documento n.º 2, junto com o requerimento inicial -; mas, como já dissemos, o que a requerente pede não é o valor de cláusulas penais mas sim a diferença entre o que foi executado pela requerente, e o que foi pago pela 1.ª requerida;
. a mesma garantia exige que se apresente um relatório que fundamente o pedido [(ponto 5, c)], o que foi efetuado – documento n.º 9, junto com a oposição -; a requerente não alega que não foi apresentado o relatório, apenas que não sabe se o foi pelo que nunca se poderia dar como provado, pela sua alegação, que o relatório não foi apresentado.
Quanto à falta de participação da requerente nesse relatório, a mesma não é exigida pelo teor da garantia.
Deste modo, pensamos que o procedimento cautelar, que visa obstar ao pagamento do valor a título de garantia não deveria ter obtido procedência, como não obteve, motivo pelo qual se confirma a decisão recorrida.
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3). Pelo exposto, julga-se totalmente improcedente o presente recurso e, em consequência, confirma-se a decisão recorrida.
Sem custas por a recorrente beneficiar de apoio judiciário.
Registe e notifique.

Porto, 2024/01/11.
João Venade
Paulo Duarte Teixeira (com o seguinte voto de vencido que se transcreve: «O acórdão do processo nº 4392/23.0T8PRT, do qual fomos relatores, diz respeito a duas das mesmas partes, e a uma garantia semelhante. Ambos as decisões expressamente concordam que a prova apresentada nesta situação não pode ser limitada à prova documental. Se assim é, só poderia existir manifesta improcedência se os factos alegados, caso fossem provados, nunca pudessem desencadear o efeito requerido. In casu, face aos factos alegados pela requerente, nomeadamente, nos arts. 17 a 21, 25, 27, 29 a 36 e 41, do requerimento inicial, não posso concluir por essa improcedência e, muito menos, que esta seja manifesta e insusceptível de qualquer convite à correcção».
Judite Pires
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[1] Ac. da R. P. de 11/07/2018, processo n.º 10935/14.8T8PRT.P1, relatado pela colega aqui 2.ª adjunta: - Apesar da automaticidade reconhecida à denominada garantia à primeira solicitação, essa automaticidade não é absoluta, antes consentindo exceções que justificam a recusa do pagamento exigido, podendo/devendo o banco recusar-se a pagar a garantia, em caso de fraude manifesta ou de abuso evidente por parte do beneficiário.
[2] Veja-se o Autor citado, na mesma obra, páginas 548 e seguintes, no sentido de se opor à referida limitação probatória, colocando a tónica na evidência da atuação abusiva no plano jurídico, referindo que «se a pertinência da execução da garantia se revelar um caso difícil, a recusa da prestação pelo garante não será admissível, ainda que no fim a pertinência da solicitação venha a ser rejeitada. As situações jurídicas controvertidas serão assim deixadas para o processo de repetição do que tiver sido indevidamente prestado. É certo que a clareza da aplicação de uma norma a um caso concreto depende dos factos que se dão como provados. Para esse efeito, estarão contudo disponíveis, …, todos os meios de prova admissíveis.».