Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1662/22.3T8PVZ.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ANABELA MORAIS
Descritores: CONTRATO DE FORNECIMENTO DE ELECTRICIDADE
MERCADO IBÉRICO DE ELECTRICIDADE (MIBEL)
PREÇO FIXO
Nº do Documento: RP202310231662/22.3T8PVZ.P1
Data do Acordão: 10/23/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: RECURSO PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 5. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Com o mecanismo para a fixação dos preços no Mercado Ibérico de Eletricidade (MIBEL), previsto no Decreto-Lei n.º 33/2022, de 14 de Maio (MIBEL), o preço final a pagar pelo consumidor com contrato de fornecimento de electricidade, com preço indexado ao mercado diário, é inferior ao preço que seria cobrado sem o funcionamento desse mecanismo ibérico.
II - Aos contratos de fornecimento de energia eléctrica, com preço fixo, celebrados antes de 26 de Abril de 2022 , não é aplicável o custo do valor do ajuste de mercado, decorrente do regime previsto no Decreto- Lei n.º 33/2022, de 14 de Maio para a fixação dos preços no Mercado Ibérico de Eletricidade (MIBEL) uma vez que na contratação dos preços então fixados não foi tomado em consideração os efeitos da aplicação do mecanismo ibérico.
IV - Renovados, após 26 de Abril, tais contratos de fornecimento de energia eléctrica, com preço fixo, os consumidores finais titulares desses contratos deixam de beneficiar da isenção conferida pelo nº 2 do artigo 7º do Decreto- Lei n.º 33/2022, de 14 de Maio, o mesmo sucedendo com os consumidores que tenham aceitado, após 6 de Abril de 2022, a alteração do preço fixo para preço indexado ao mercado diário.
V - Aceite a alteração do regime de preço fixo para preço indexado ao mercado, o consumidor final deixa de beneficiar da isenção conferida pelo nº2 do artigo 7º do Decreto-Lei n.º 33/2022 pois, o preço final a pagar com contrato indexado ao mercado diário é inferior ao preço que seria cobrado sem o funcionamento do mecanismo ibérico.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº1662/22.3T8PVZ.P1.



Acordam as Juízas da 5.ª Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto, sendo

Relatora: Anabela Morais;
1.º Adjunta: Desembargadora Eugénia Maria Moura Marinho da Cunha e
2º Adjunta: Desembargadora Maria Fernanda Fernandes de Almeida.




Sumário:
………………………………………
………………………………………
………………………………………



I - Relatório
A... SUCURSAL EM PORTUGAL intentou a presente acção declarativa com processo comum contra B..., SA, peticionando a condenação da Ré a pagar-lhe a quantia de €933.922,98, acrescida de juros vencidos e vincendos.
Para fundamentar a sua pretensão alegou, em síntese, que:
i. por acordo escrito datado de 09/09/2021, a requerente celebrou com a requerida um contrato de fornecimento de energia (que incluía dois pontos de entrega CPE) cuja duração era de 12 meses, sendo automática e sucessivamente renovável por iguais períodos, caso não existisse, por escrito e com 30 dias de antecedência, oposição à renovação;
ii. por força desse acordo, obrigou-se a autora a fornecer energia elétrica à ré, mediante o pagamento do respectivo preço contratualizado, sendo a facturação correspondente emitida com periodicidade mensal;
iii. emitidas facturas correspondentes à quantidade de energia consumida e vencidas, a requerida não pagou, apesar de interpelada para tal.
Citada, a Ré B... CONGELADOS S.A., contestou.
Alegou, em síntese, que:
i. o contrato de fornecimento de energia eléctrica, não doméstico, foi celebrado pelo prazo de 24 (vinte e quatro) meses, e não de 12 (doze) meses, tendo ficado convencionado que a Ré pagaria um preço de energia (€/kW) fixo;
ii. chegou ao conhecimento da Ré em 02/06/2022, que a Autora, com fundamento no Decreto-Lei n.º33/2022, de 14 de Maio, alterou o tarifário a aplicar ao contrato em vigor para a “Tarifa Bassic Index”, tendo omitido que poderia eventualmente estar sujeita a uma sobretaxa, mercê de um mecanismo de ajustamento temporário, contemplado pelo mesmo decreto, em clara violação, desde logo, do dever de informação e protecção dos clientes previsto no artigo 8.º do Regulamento das Relações Comerciais dos Sectores Eléctrico e do Gás e no artigo 4.º da Lei dos Serviços Públicos Essenciais, que impende sobre a Autora que “na fase pós-celebração do contrato (o momento da execução do contrato) [exige] ao prestador do serviço que informe o utente acerca das alterações contratuais que se venham a verificar.”;
iii. nas facturas seguintes, a Autora procedeu, inopinadamente, ao cálculo e cobrança do custo da liquidação do valor do mencionado ajuste de mercado, estando a Ré isenta do referido pagamento, por força do nº 2 do artigo 7.º do Decreto-Lei n.º 33/2022, de 14/05.
iv. Concluiu a ré que o recorte contratual do negócio celebrado entre ambas as partes (contrato de fornecimento a preços fixos), a sua anterioridade a 26/04/2022 e o facto de não ter havido qualquer renovação, prorrogação ou alteração dos preços até 20/05/2022, impedia (e impede) que lhe fosse imputado o custo da liquidação do valor do ajuste de mercado.
*
Em 9/2/2023, foi proferido o seguinte despacho:
Notifique a. para, em 10 dias, se pronunciar sobre a matéria da contestação - alegada errada inclusão nas facturas do valor do “ajuste de mercado” -, devendo explicitar que valores, incluídos em cada uma das facturas cujo pagamento reclama, se reportam ao valor de ajuste de mercado”.
*
A autora respondeu por requerimento apresentado em 17/2/2023 – referência 44761020.
*
Dispensada a realização de audiência prévia e proferida decisão de mérito, foi a acção julgada parcialmente procedente e condenada “a R. B... SA a pagar à A. Eni Plenitude Iberia, SL Sucursal em Portugal as quantias de:
1.- em relação à factura ...31 a quantia em falta de 130.331,68 euros (cento e trinta mil trezentos e trinta e um euros e sessenta e oito cêntimos);
2 - em relação à factura ...61 a quantia de 166.024, 21 euros (cento e sessenta e seis mil vinte e quatro euros e vinte e um cêntimos).
3- juros de mora contabilizados desde as seguintes datas e nos termos definidos na sentença, aplicando-se quaisquer taxas que, de futuro, venham a alterar a taxa relativa aos juros de mora comerciais em relação aos montantes de capital ainda em dívida:
3.1. em relação à factura ...00, sobre o valor de 84.447,48 euros (oitenta e quatro mil quatrocentos e quarenta e sete euros e quarenta e oito cêntimos) desde 08/10/2022 até 24/11/2022, à taxa de 7%;
3.2. em relação à factura ...84, sobre o valor de 85.576,59 euros (oitenta e cinco mil quinhentos e setenta e seis euros e cinquenta e nove cêntimos) desde 06/11/2022 até 24/11/2022, à taxa de 7%;
3.3. em relação à factura ...84, sobre o valor de 24.402,17 euros (vinte e quatro mil quatrocentos e dois euros e dezassete cêntimos) desde 15/11/2022 até 24/11/2022, à taxa de 7%;
3.4. em relação à factura ...31, sobre o valor de 190.389,45 euros (cento e noventa mil trezentos e oitenta e nove euros e quarenta e cinco cêntimos) e desde 18/10/2022 até 24/11/2022, à taxa de 7%, e desde essa data sobre o valor de 130.331,68 euros até integral pagamento, à taxa de 7% em 2022 e de 9,5% em 2023;
3.5. em relação à factura ...61, sobre o valor de 166.024, 21 euros (cento e sessenta e seis mil e vinte e quatro euros e vinte e um cêntimos) desde 15/11/2022 até integral pagamento, à taxa de 7% em 2022 e de 9,5% em 2023.
b) absolve a R. quanto ao mais peticionado.
Custas da acção por A. e R., na proporção do respectivo decaimento (art. 527º do C. P. Civil).
Notifique e registe, ainda que apenas electronicamente”.
*
*
*
Inconformada com esta decisão, dela veio a Autora/Recorrente interpor o presente recurso de apelação formulando, no final das suas alegações, as seguintes conclusões:
1. Com o presente recurso, e ao contrário do decidido na douta decisão recorrida, pretende-se ver reconhecida a incidência de pagamento de MAT por parte da apelada.
2. Com efeito, a isenção prevista no n.º2 do artigo n.º7 do DL33/2022 é para contratos que se mantêm em situação de taxa fixa, e assim se mantêm em nome de uma estabilidade e expectativas legítimas dos consumidores.
3. E já não para contratos que ao abrigo do princípio da liberdade contratual as partes acertaram proceder à alteração da tarifa fixa.
4. Para tal, não concorre o argumento utlizado na sentença recorrida de que a não ser assim estaria atingida uma forma de contornar a lei e bastaria a operadora alterar a tarifa de fixa para indexada para aplicação automática do MAT.
5. Não é verdade, já que se a alteração for na decorrência da anuência e de uma plataforma consensual entre as partes o MAT aplica-se.
6. Aliás, na senda e espírito do que prevê o n.º5 desse artigo 7º em que as alterações contratuais relativamente aos preços permitem sujeitar os contratos celebrados antes de 22/04/2022 ao MAT.
7. No caso que nos ocupa, está provado que a apelada anuiu na alteração de tarifário para preço indexado, logo não poderá em nosso entender libertar-se do pagamento do MAT.
8. A lei pretendeu dividir claramente, entre as situações em que os contratos “nasceram” e se mantiveram em regime de tarifa fixa, caso em que valem por inteiro os argumentos aduzidos na sentença, e contratos que durante o seu período de vigência foram alvo de alterações contratuais consensuais entre as partes, e em que essas alterações relativamente aos preços implicam já uma sujeição a pagamento do MAT.
9. É o que flui claramente dos n.º2 e 5 do artigo 7 do já amplamente mencionado DL 33/2022.
10. A Ré, ora apelada, B..., S.A por escrito e como consta dos autos (no articulado eventual resposta) apresenta uma sua “conta corrente” plenamente condizente com a da apelante nos valores pendentes quanto às faturas aqui em causa e valores em débito, aceitando-os e solicitando um plano de pagamento.
11. Os documentos particulares fazem prova plena quanto às declarações atribuídas ao seu autor, sem prejuízo da arguição e prova da falsidade do documento, que como vimos não foi feita pela apelada. – artigo 376º do CC.
12. O tribunal não poderia ter deixado de, ao contrário do que fez, aprisionar-se no óbvio, deixar de dar como assentes os factos provados nos documentos juntos, na medida em que são contrários aos interesses da apelada invocados em sede judicial, realidade que não fez, valorando assim erradamente a prova ao seu dispor, aliás, com regras próprias de valoração da prova sediadas na lei substantiva civil.
13. Foram entre outras violadas as seguintes normas n.º2 e 5º do artigo 7º do DL 33/2022 e artigo 376º do Código Civil”.
*
*
*
A apresentou contra-alegações pugnando pela improcedência do recurso.
*
Por despacho de 22 de Junho de 2023, foi proferido despacho de admissão do recurso.
*
Cumpridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
*
II – Objecto do recurso
Nos termos dos artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1 do CPC, a delimitação objectiva do recurso emerge do teor das conclusões do recorrente, enquanto constituam corolário lógico-jurídico correspectivo da fundamentação expressa na alegação, sem embargo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer ex officio que sejam relevantes para conhecimento do objecto do recurso.
De outra via, como meio impugnatório de decisões judiciais, o recurso visa tão só suscitar a reapreciação do decidido, não comportando a criação de decisão sobre matéria nova não submetida à apreciação do tribunal a quo.
Por outro lado, ainda, o recurso não é uma reapreciação ‘ex novo’ do litígio, mas uma ponderação sobre a decisão que dirimiu esse litígio (se padece de vícios procedimentais, se procedeu a incorrecta fixação dos factos, se fez incorrecta determinação ou aplicação do direito aplicável).
Pela Ré/Recorrida, com novidade relativamente a tudo o que tinha sido por si alegado, foram suscitadas, na resposta ao recurso, as seguintes questões:
a. pela pré-disposição, generalidade e rigidez das suas cláusulas, o contrato dos autos é um contrato de adesão, caracterizado pelas cláusulas nele inseridas não terem sido negociadas, mas pré-elaboradas unilateralmente, limitando-se os destinatários indeterminados a aderir, não havendo lugar a negociações;
b. exemplo notório do cariz não negociado e pré-formatado do contrato é o teor da cláusula contratual 3.4. que foi instrumentalizada para alterar os preços e concretizar o seu propósito, ou seja, para excepcionar/circundar a isenção do n.º 2 do artigo 7.º do DL n.º 33/2022 e proceder à liquidação do MAT, constituindo fraude à lei os actos que procuram contornar ou circunvir uma proibição legal, tentando chegar ao resultado proibido por via oblíqua, através de uma norma encobridora da ilegalidade;
c. rejeita o carácter consensual das alterações introduzidas no contrato - modificação da tarifa comercial para os CPES referidos para a “Tarifa Bassic Index” -, invocando ter reclamado por missiva de 23/08/2022.
As questões ora suscitadas pela Ré/Recorrida não foram abordadas, na fase dos articulados, nem fazem parte do objecto do recurso fixado pelas conclusões da Recorrente, constituindo questões novas, invocadas, como se referiu, na resposta apresentada em sede de Recurso.
No que tange à modificação da tarifa comercial, prevista no contrato, para a “Tarifa Bassic Index”, consta da matéria de facto considerada assente que:
i) “A R. enviou missiva à A. reclamando no sentido de as condições contratuais acordadas a isentarem da liquidação do valor de ajuste de mercado” – cfr. ponto 12.
ii) A R. aceitou a nova tarifa comunicada pela A. enquanto vigorou o acordo celebrado” – cfr. ponto 16.
Estes factos não foram objecto de impugnação, em sede de recurso.
A reclamação relativamente à modificação da tarifa comercial para a “Tarifa Bassic Index” constitui uma questão nova.
Conforme referido, a natureza do recurso, como meio de impugnação de uma anterior decisão judicial, determina uma importante limitação ao seu objecto decorrente do facto de, em termos gerais, apenas poder incidir sobre questões que tenham sido anteriormente apreciadas, não podendo confrontar-se o tribunal ad quem com questões novas.
A rigidez das cláusulas do contrato e da qualificação jurídica deste como contrato de adesão são questões novas, suscitadas pela Recorrida, em sede de recurso.
A qualificação jurídica de determinado clausulado como cláusulas contratuais gerais depende da verificação cumulativa de três características/requisitos: a pré-formulação, a generalidade e a rigidez (ou imutabilidade), significando esta última que o clausulado é adoptado em bloco por quem o subscreva ou aceite, sem possibilidade de alteração do seu conteúdo, ficando comprometida, assim, a liberdade contratual do destinatário, relegado para a posição de ter de aceitar o clausulado predisposto (mero aderente) ou, em alternativa, não celebrar o contrato.
A rigidez formal (ou de elaboração do texto) não significa necessariamente a verificação de rigidez material. Nada foi alegado na fase dos articulados, quanto à circunstância de as cláusulas que integram o contrato terem sido pré-definidas pela Autora e não negociadas e quanto à admissão, pela Ré, do clausulado predisposto, sem possibilidade de ser negociado; questões que não foram igualmente suscitadas nas conclusões apresentadas pela Recorrente.
Assim, mostra-se precludido o conhecimento de tais questões.
No que tange à clausula 3.4 do contrato, à sua instrumentalização para alterar os preços e concretizar o seu propósito de excepcionar/circundar a isenção do n.º 2 do artigo 7.º do DL n.º 33/2022 e proceder à liquidação do MAT, bem como à existência de fraude à lei na actuação da Autora, embora a Ré não o faça expressamente, do teor das contra-alegações, poder-se-á entender que pretende suscitar a questão da nulidade dessa cláusula e da nulidade da actuação da Autora ao abrigo do instituto da fraude à lei.
O traço característico da fraude à lei é reportado a situações em que se verificam comportamentos formalmente lícitos, mas indirecta ou obliquamente conducentes a resultados proibidos por lei, acabando, por isso, por ter o mesmo valor negativo da directa violação da lei. A nulidade de cláusula contratual geral é de conhecimento oficioso, pelo que o Tribunal não está impedido de conhecer dessa questão, ainda que nova.
Todavia, entre os factos considerados assentes – e não impugnados pela Recorrente – consta “A R. aceitou a nova tarifa comunicada pela Autora enquanto vigorou o acordo celebrado”.
A lei não proíbe a alteração do regime de preço fixo, estipulado nos contratos celebrados em data anterior a 26 de Abril de 2022. Aceite pelo consumidor a alteração do regime do preço, a lei não impede a sujeição de tais consumidores com contratos celebrados até 26 de Abril de 2022, ao custo do ajustamento – cfr. artigo 7º, nº5, do Decreto-Lei 33/2022.
Da matéria de facto considerada assente consta que a Ré aceitou a alteração da nova tarifa comunicada pela Ré. Assim, assente que a alteração do “preço fixo” para preço indexado mereceu a aceitação da Ré, para a Decisão a proferir nos presentes autos, não se mostra relevante a questão da validade da cláusula 3.4 ou da validade da cláusula 3.5, inseridas no contrato.
Pelo exposto, não se procederá ao conhecimento das questões suscitadas pela Ré/Recorrida por se tratarem de questões novas e, no que respeita à cláusula 3.4 e à cláusula 3.5, por não assumir pertinência para a Decisão a proferir nos presentes autos, considerando que da factualidade assente consta que “A Ré aceitou a nova tarifa comunicada pela Autora enquanto vigorou o acordo celebrado”.
Assim, perante as conclusões da alegação da Recorrente há que apreciar as seguintes questões:
1- Violação do disposto no artigo 376º do Código Civil;
2- À Ré pode ser cobrado o valor do “mecanismo de ajustamento temporário”, exigido pela Autora.
*


III. Fundamentação de facto

III.1 - Questão prévia: correcção do ponto 16 da matéria de facto considerada assente.
Na decisão recorrida consta, sob o ponto 16 dos factos considerados assentes, que “A R. aceitou a nova tarifa comunicada pela R. enquanto vigorou o acordo celebrado”.
Dúvidas não se suscitam que a comunicação da nova tarifa foi feita pela Autora, no âmbito do contrato celebrado entre si e a Ré.
Trata-se de manifesto erro de escrita que se corrige ao abrigo do disposto no artigo 614º, nº1, do CPC, passando a ler-se, no referido ponto 16 da matéria de facto considerada assente: “A R. aceitou a nova tarifa comunicada pela A. enquanto vigorou o acordo celebrado”.
*
II.3 Na decisão recorrida foram considerados assentes os seguintes factos:
1 - A A. dedica-se à actividade de comercialização de gás e electricidade, incluindo a importação e a exportação; engenharia e realização de instalações eléctricas e de gás, abrangendo o design e a construção de hardware e software.
2 - Por acordo escrito datado de 09/09/2021 a A. celebrou com a R. um contrato de fornecimento de energia, (que incluía dois pontos de entrega CPE) cuja duração dos mesmos era de 12 meses sendo automática e sucessivamente renovável por iguais períodos dos temporais, se nenhuma das partes fosse notificada, por escrito, com 30 dias de antecedência relativamente à data da sua cessação, da oposição da sua renovação.
3 - Ao abrigo desse acordo, obrigou-se a A. a fornecer energia eléctrica à R. mediante o pagamento do respectivo preço contratualizado, sendo a facturação correspondente emitida com uma periodicidade mensal.
4 - Nesse âmbito de atividade e do mencionado contrato a que corresponde o produto “MT – Semanal com Feriados BASSIC INDEX, ponto de entrega CPE: ...5DE, foram emitidas as seguintes facturas correspondentes à quantidade de energia consumida:
a) factura n.º ...00, datada de 12/09/2022, com vencimento em 07/10/2022, no valor de 190.988,33 euros, correspondente ao período de facturação de 09/07/2022 a 08/08/2022, que inclui o valor de 85.902,68 euros de ajuste de mercado.
b) Factura n.º ...84, datada de 11/10/2022, com vencimento em 05/11/2022, no valor de 126.843,41 euros correspondente ao período de facturação de 08/09/2022 a 07/10/2022, que inclui o valor de 41.266,82 euros de ajuste de mercado.
c) Factura n.º ...84, datada de 20/10/2022, com vencimento em 14/11/2022, no valor de 33.322,53 euros correspondente ao período de faturação de 08/10/2022 a 16/10/2022, que inclui o valor de 8.920,36 euros de ajuste de mercado.
5 - Da factura ...00 a R. efectuou o pagamento parcial da mesma, encontra-se pendente de pagamento a quantia de 170.350,16 euros.
6 - Nesse âmbito de atividade e do mencionado contrato a que corresponde o produto “MT – Semanal com Feriados BASSIC INDEX, ponto de entrega CPE: ...8NZ, foram emitidas as seguintes facturas correspondentes à quantidade de energia consumida:
- Factura n.º ...31, datada de 22/09/2022, com vencimento em 17/10/2022, no valor de 420.642,91 euros correspondente ao período de facturação de 19/08/2022 a 18/09/2022, que inclui o valor de 189.168,88 euros de ajuste de mercado.
- Factura n.º ...61, datada de 20/10/2022, com vencimento em 14/11/2022, no valor de 233.922.98 euros correspondente ao período de facturação de 19/09/2022 a 16/10/2022, que inclui o valor de 67.898,77 euros de ajuste de mercado
8 - Da factura acima referida FT F22PT/...31, a R. efectuou o pagamento parcial da mesma, encontrando-se pendente de pagamento a quantia de 372.558,33 euros.
9 - Prestados os fornecimentos e vencidas as facturas nas datas acima referidas, a R. não as pagou apesar de interpelada para tal.
10 - Após a propositura da acção, em 24/11/2022, a R. pagou ainda à A. a quantia de 254.484,01 euros.
11 - A A. enviou à R. a carta que foi junta aos autos como documento 1 da contestação, citando o DL. 33/2022, recebida pela R. pelo menos em 02/06/2022, e comunicando que iriam proceder à modificação da tarifa comercial para os CPES referidos para a “Tarifa Bassic Index”, indicando os termos em que seriam estabelecidos os preços, e que, no caso de se pretenderem opor deveriam informar a C... por escrito, por carta registada com aviso de recepção, com uma antecedência mínima de 30 dias, nos termos das condições gerais do contrato, sendo que decorrido esse prazo sem que tivesse sido notificada a C... da sua oposição, ter-se-iam como aceites as actualizações de preços nos termos indicados, cujo teor aqui se considera reproduzido.
12 - A R. enviou missiva à A. reclamando no sentido de as condições contratuais acordadas a isentarem da liquidação do valor de ajuste de mercado.
13 - Por carta de 04/10/2022, a A. comunicou à R. ter corrigido as facturas que contemplavam de forma errada a aplicação do mecanismo de ajuste, entendendo que, em relação às demais, não se verificava a isenção desse mecanismo, acrescentando que a R. poderia resolver o contrato celebrado sem necessidade de qualquer pré-aviso ou sanção por rescisão antecipada.
14 - No acordo escrito celebrado, as partes acordaram que:
“3 - Tarifas, preços e modificações contratuais:
3.1. O cliente está obrigado perante a C... ao pagamento dos preços estabelecidos nas condições económicas. O preço a pagar pelo cliente inclui o custo da tarifa de acesso às redes e o custo de aquisição da energia e /ou gás natural fornecidos pela C... ou cliente.
3.2.
3.3. Qualquer alteração aos montantes das tarifas de acesso às redes ou a qualquer dos componentes regulados no preço da energia em vigor na data da celebração do presente contrato, que seja aprovado durante a vigência do mesmo, será automaticamente repercutida nos preços aplicáveis ao contrato, sem que tal possa ser considerado uma alteração das condições contratuais acordadas pelas partes.
3.4. Durante o período contratual, a C... poderá introduzir alterações ao contrato, incluindo aos preços aplicáveis, nomeadamente, no caso de alteração dos custos de aquisição da energia eléctrica e/ou gás natural, bem como em caso de modificação do perfil de consumo especificado nas condições particulares para o fornecimento de energia eléctrica e/ou gás natural, e, no que diz respeito ao fornecimento em gás natural, em caso de alteração de escalão de consumo promovida pelo ORD, podendo aqui verificar-se um aumento até 5 €MVh no custo da energia.
3.5. As alterações contratuais referidas no número anterior são previamente comunicadas, por escrito, ao cliente, com uma antecedência mínima de 30 dias à sua implementação. O cliente poderá opor-se, por escrito, às referidas modificações, no prazo máximo de 20 dias, caso em que o contrato será considerado resolvido, sem que recaia sobre o cliente qualquer encargo a título de penalização. Decorrido o prazo indicado, sem que o cliente tenha notificado a C... da sua oposição, considerar-se-á aceite a modificação das condições entrando as mesmas em vigor a partir da data definida pela C... para o efeito.
3.6. No fim de cada período contratual, a C... poderá alterar as condições contratuais do presente contrato, aplicáveis à sua renovação. Para o efeito, deverá enviar as novas condições ao cliente com uma antecedência mínima de 45 dias relativamente à data de renovação do contrato. Caso o cliente pretenda opor-se às alterações contratuais deverá informar a C..., por escrito, com uma antecedência mínima de 30 dias relativamente à data da renovação do contrato. Decorrido este prazo sem que tenha sido notificada a C... da oposição, ter-se-ão como aceites as alterações contratuais. A oposição às modificações contratuais constitui os mesmos efeitos da oposição à renovação do contrato”.
15 - Nas condições económicas do contrato consta que “o preço contratado é fixo, portanto será mantido no primeiro ano do contrato. No entanto, o preço fixo aplicado à electricidade pode ser alterado pelo comercializador dependendo das variações que ocorram nos preços médios do mercado diário da electricidade OMIE correspondente ao mês de aplicação. No caso desta alteração, o cliente será notificado com a antecedência mínima de 30 dias, podendo rescindir o contrato em caso de não concordar com as mesmas, devendo informar o comercializador 15 dias antes”.
16 - A Ré aceitou a nova tarifa comunicada pela Autora enquanto vigorou o acordo celebrado”.
*
III.3-Alteração da matéria de facto no que respeita ao facto ínsito no ponto 2.
Resulta do documento junto com a petição inicial – não impugnado - que a duração do contrato é de 24 meses e não de 12 meses, conforme consta do ponto dos factos considerados assentes.
Assim, ao abrigo do disposto no artigo 662º, nº1, do Código de Processo Civil, altera-se a decisão de facto por referência ao facto ínsito no ponto 2, nos seguintes termos:
2 - Por acordo escrito datado de 09/09/2021 a A. celebrou com a R. um contrato de fornecimento de energia, (que incluía dois pontos de entrega CPE) cuja duração dos mesmos era de 24 (vinte e quatro) meses sendo automática e sucessivamente renovável por iguais períodos dos temporais, se nenhuma das partes fosse notificada, por escrito, com 30 dias de antecedência relativamente à data da sua cessação, da oposição da sua renovação”.
*
*
*

IV. Fundamentação de direito

1ª Questão
Nos pontos 11 e 12 das suas conclusões, a Recorrente invoca a violação do disposto no artigo 376º do Código Civil, sustentando que “O tribunal não poderia ter deixado de (…) dar como assentes os factos provados nos documentos juntos, na medida em que são contrários aos interesses da apelada invocados em sede judicial, realidade que não fez, valorando assim erradamente a prova ao seu dispor, aliás, com regras próprias de valoração da prova sediadas na lei substantiva civil”.
Conforme o disposto no artigo 376º, nº1, do Código Civil, os documentos particulares gozam de força probatória plena quanto à materialidade das declarações atribuídas ao seu autor, se apresentados contra este e na medida em que lhe sejam prejudiciais.
Todavia, não basta à Recorrente sinalizar a existência de prova documental nos autos. Recai sobre si o ónus de indicar quais os factos concretos e relevantes para a decisão a proferir que, no seu entender, se mostram provados através de tais documentos.
Pela Recorrente não foi indicado qualquer facto concreto pertinente para a apreciação e decisão de mérito a proferir. omisso da matéria de facto considerada assente e que se encontre demonstrado pelos documentos juntos aos autos.
Pelo exposto, mostra-se inoperante a impugnação.
*
2ª Questão
A questão que se coloca nos presentes autos consiste em saber se à Ré pode ser imputado o valor do “mecanismo de ajustamento temporário” que lhe foi exigido pela Autora.
Defende a Autora/Recorrente que a isenção prevista no n.º2 do artigo n.º7 do Decreto-Lei nº 33/2022 é para contratos que se mantêm em situação de taxa fixa, não sendo aplicável aos contratos que ao abrigo do princípio da liberdade contratual as partes acertaram proceder à alteração da tarifa fixa, o que sucedeu no contrato objecto dos autos porquanto, a alteração foi na “decorrência da anuência e de uma plataforma consensual entre as partes”. Defende que na senda e espírito do que prevê o n.º5 desse artigo 7º, as alterações contratuais relativamente aos preços permitem sujeitar os contratos celebrados antes de 22/04/2022 ao MAT.
Conclui que tendo a Ré anuído à alteração de tarifário para preço indexado, logo não poderá libertar-se do pagamento do MAT.
Discorda a Ré da existência de aceitação da “alteração de tarifário ínsito na carta recebida pela apelada em 02/06/2022, passando desde aí a vigorar um contrato a preço indexado”, com a consequente liquidação do Mecanismo de Ajuste Temporário (MAT), alegando que “reclamou das alterações por missiva de 23/08/2022” e, nem então nem posteriormente, se conformou com a aplicação do MAT.
Defende que os clientes com contratos de preços fixos celebrados antes de 26 de Abril de 2022 encontram-se excluídos desse custo, exclusão que tem vindo a ser exaustivamente difundida pela ERSE – Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos, nomeadamente através da Instrução n.º 6/2022 e de cujo teor resulta que estão abrangidos pela isenção prevista no nº2 do artigo 7º do Decreto-Lei 33/2022, os clientes que celebraram, antes de 26 de abril de 2022, contratos de fornecimento de eletricidade a preços fixos.
Vejamos se assiste razão à Recorrente.
Consta do preâmbulo do Decreto- Lei n.º 33/2022, de 14 de Maio, que “A situação do conflito armado na Ucrânia provocou uma forte instabilidade no setor energético mediante, entre outros efeitos, o aumento do preço dos combustíveis com inequívocos impactos nos diversos setores da atividade económica e nos consumos das empresas e das famílias .
Nesse sentido, e considerando as particulares características do Mercado Ibérico de Eletricidade (MIBEL), bem como a reduzida interligação elétrica da Península Ibérica à Europa Continental, os Governos de Portugal e de Espanha cooperaram no desenho de um mecanismo para o desacoplamento do preço do gás natural do MIBEL, com vista à mitigação da atual instabilidade sobre os respetivos preços. Neste âmbito, o presente decreto-lei prevê um regime excecional e temporário para a fixação dos preços no MIBEL, mediante a fixação de um preço de referência para o gás natural consumido na produção de energia elétrica transacionada no MIBEL, com vista à redução dos respetivos preços”.
Dispõe o artigo 2ºdo Decreto-Lei 33/2022 queO presente Decreto-Lei aplica-se:
a) Aos centros eletroprodutores termoelétricos correspondentes a centrais de ciclo combinado a gás natural;
b) Às instalações de cogeração em regime de mercado, nos termos do artigo 4.º -B do Decreto- -Lei n.º 23/2010, de 25 de março, na sua redação atual;
c) Aos comercializadores, agentes de mercado e consumidores de energia elétrica no âmbito do mercado grossista de eletricidade.
…”
Nos termos do artigo 5.º do citado diploma:
“1 — O cálculo do valor do ajuste global a repercutir em período de negociação compete ao operador nomeado do mercado da eletricidade no âmbito dos mercados de eletricidade sob a sua gestão.
2 — O custo do valor previsto no artigo anterior é exclusivamente imputável aos consumidores de energia elétrica referidos na alínea c) do n.º 1 do artigo 2.º, sem prejuízo do disposto no artigo 7.º”.
Sob a epígrafe “Isenções”, dispõe o artigo 7.º do Decreto-Lei 33/2022 que:
“2- O custo da liquidação do valor do ajuste de mercado não se imputa, ainda, aos consumos realizados ao abrigo de contratos de fornecimento de energia elétrica a preços fixos celebrados antes de 26 de abril de 2022”.
3 - No âmbito do número anterior incluem -se os contratos de fornecimento de energia elétrica a preços fixos ao abrigo de instrumentos regulatórios aprovados antes da referida data.
4 - Para efeitos do disposto nos n.ºs 2 e 3, são considerados os seguintes instrumentos de verificação dos contratos de fornecimento de energia elétrica a preços fixos comunicados pelos agentes de mercado, com exceção do comercializador de último recurso:
a) O reporte efetuado junto do gestor global do SEN, para os contratos bilaterais físicos;
b) Consoante a natureza da liquidação, o registo de transações prevista no Regulamento (UE) n.º 1227/2011 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de outubro de 2011, relativo à integridade e à transparência nos mercados grossistas da energia, ou o registo de transações nos termos do Regulamento (UE) n.º 648/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 4 de julho de 2012, relativo aos derivados do mercado de balcão, às contrapartes centrais e aos repositórios de transações, para os contratos decorrentes da participação em mercados organizados ou de contratação em mercados de balcão.
5 — As renovações ou as alterações das condições relativas aos preços de fornecimento de energia elétrica determinam a sujeição dos contratos referidos nos n.ºs 2 e 3 na base da repercussão dos custos do mecanismo de ajuste”.
Este mecanismo de ajuste, que foi criado pelos governos de Portugal e Espanha procede à fixação de um “tecto” administrativo do preço do gás para produção de eletricidade com vista a mitigar os impactos, no preço da eletricidade, da subida dos preços dos combustíveis fósseis nos mercados internacionais, causados sobretudo pelo conflito que envolve a Ucrânia e a Rússia.
Fixado um “tecto” para o preço do gás natural para produção de eletricidade, foi procurado um mecanismo para compensar os produtores de electricidade com centrais a gás natural pela diferença entre o preço de referência e o preço real que pagam pela compra do gás natural nos mercados, ou seja, o custo do ajustamento.
A compensação paga aos produtores, isto é a diferença entre o tecto administrativo, imposto às centrais a gás, e o custo real dessa matéria-prima comprada nos mercados internacionais é, numa primeira fase, suportada pelos comercializadores de Portugal e de Espanha, expostos ao preço do mercado diário. Estes comercializadores, por sua vez, repassam esse custo do ajustamento para os consumidores finais com contratos indexados ao mercado diário e com contratos celebrados após 26 de abril de 2022, bem como com as renovações de contratos operadas após 26 de abril de 2022, que vão pagar na sua factura um preço inferior ao que existiria sem o mecanismo ibérico.
A razão para o valor do ajuste de mercado não ser imposto a todos os consumidores mas, apenas, aos consumidores finais com contratos indexados ao mercado diário; aos consumidores com renovações de contratos operadas após 26 de abril de 2022 e aos consumidores com alterações introduzidas nas condições relativas aos preços de fornecimento de energia elétrica, reside no seguinte: estes consumidores vão pagar na sua factura um preço inferior ao que existiria sem o mecanismo ibérico[1].
Aos clientes com contratos com preço fixo, celebrados antes de 26 de abril de 2022, não deve ser imputado o custo daquele ajuste, uma vez que na contratação dos preços contratados com esses consumidores era de todo impossível ter em conta os efeitos da aplicação do mecanismo ibérico.
A partir do momento em que tais consumidores passam a ter contratos indexados ao mercado diário e a suportar um preço inferior ao que seria praticado sem o mecanismo ibérico, deixa de ter justificação a isenção prevista no nº2 do artigo 7º do Decreto-Lei 33/2022. Isso ocorre com todos os consumidores que tenham iniciado ou renovado um contrato de fornecimento de eletricidade de preços fixos a partir de 26 de Abril de 2022 ou que o fornecimento esteja sujeito às tarifas indexadas ao OMIE. O mesmo sucede com os contratos celebrados antes de 26 de Abril de 2022, relativamente aos quais tenha sido acordada alteração sobre o preço, a operar após 26 de Abril de 2022.
Aceite, pelo consumidor, a alteração do contrato, após 26 de Abril de 2022, quanto às condições relativas aos preços de fornecimento, passando de preço fixo para “Tarifa Bassic Index”, não pode o mesmo beneficiar de um preço inferior por força do mecanismo Ibérico e não suportar o custo do ajustamento.
As renovações ou as alterações, por acordo, das condições relativas aos preços de fornecimento dos contratos incluídos no âmbito da isenção do custo de ajuste do mecanismo ibérico nos termos dos n.ºs 2 e 3 do artigo 7.º do Decreto-Lei n.º 33/2022, de 14 de maio, determinam a inclusão dos mesmos contratos na base da repercussão do mecanismo ibérico ao abrigo do n.º 5 do referido artigo.
Não pode um consumidor passar a beneficiar de um preço inferior ao que existiria sem o mecanismo ibérico, com a renovação do contrato operada após 26 de abril de 2022 ou com alterações introduzidas nas condições relativas aos preços de fornecimento de energia elétrica, e pretender não suportar o custo do ajustamento.
Em suma, a aplicação do mecanismo ibérico tem como efeito que o preço médio, mesmo com o custo do mecanismo de ajuste de mercado, desça em virtude de ter sido aprovado um tecto máximo para o preço do gás natural na ibéria. Beneficiando o consumidor da aplicação desse mecanismo ibérico, não existe fundamento para não estar sujeito ao mecanismo de ajuste de mercado que teve aplicação no MIBEL, a partir do dia 15 de Junho de 2022.
Por último, da “Instrução relativa à não reflexão nas faturas dos consumos isentos do valor da liquidação do custo do ajuste de mercado, previsto no Decreto-Lei n.º 33/2022, de 14 de maio” – Instrução nº 6/2022 – consta:
O Decreto-Lei n.º 33/2022, de 14 de maio, veio estabelecer um mecanismo excecional e temporário de ajuste dos custos de produção de energia elétrica no âmbito do Mercado Ibérico de Eletricidade (MIBEL), introduzindo um preço de referência para o gás natural consumido na produção de eletricidade, com vista à redução dos respetivos preços. Os produtores de eletricidade a partir do gás natural são, por sua vez, compensados do valor da diferença entre o referido preço de referência e o preço de mercado do gás natural através da aplicação de um ajuste que deve ser suportado pela procura.
Todavia, os comercializadores e agentes de mercado gozam, nos termos do mesmo diploma, de significativas isenções ao pagamento do referido custo do ajuste. Paralelamente, o Decreto-Lei n.º 33/2022, de 14 de maio determina que o valor da liquidação do custo do ajuste de mercado não se impute a um conjunto de consumos, entre os quais aos consumos realizados ao abrigo de contratos de fornecimento de energia elétrica a preços fixos celebrados antes de 26 de abril de 2022 (artigo 7.º, n.º 2)”.
Consta dessa Instrução da Entidade Reguladora dos Serviços Energético que “Assim, nos termos legais, podem ser chamados a suportar os custos do ajuste apenas os clientes (incluindo os consumidores) que, simultaneamente, estão a beneficiar dos efeitos provocados pela introdução do respetivo mecanismo ibérico. Tal inclui os contratos a preços indexados, a preços fixos celebrados após 26 de abril de 2022 ou com alterações de preço (que não decorram da atualização das tarifas de acesso às redes) ou renovações após aquela data. Aos clientes com contratos de preços fixos, celebrados antes de 26 de abril de 2022, não deve ser imputado o custo daquele ajuste, uma vez que os preços contratados com estes não poderiam ter tido em conta os efeitos da aplicação do mecanismo ibérico”.
Decorre do exposto, que aceite, pelo consumidor, em momento posterior a 26 de Abril de 2022, a alteração do preço fixo para preço indexado, deixa de beneficiar da isenção conferida pelo nº2 do artigo 7º do referido diploma.
Revertendo ao caso dos autos, encontra-se assente que:
_ A Autora dedica-se à actividade de comercialização de gás e electricidade, incluindo a importação e a exportação; engenharia e realização de instalações eléctricas e de gás, abrangendo o design e a construção de hardware e software.
_ Por acordo escrito datado de 09/09/2021, a A. celebrou com a R. um contrato de fornecimento de energia, (que incluía dois pontos de entrega CPE) cuja duração dos mesmos era de 24 meses, sendo automática e sucessivamente renovável por iguais períodos dos temporais, se nenhuma das partes fosse notificada, por escrito, com 30 dias de antecedência relativamente à data da sua cessação, da oposição da sua renovação.
Ao abrigo desse acordo, obrigou-se a A. a fornecer energia eléctrica à R. mediante o pagamento do respectivo preço contratualizado, sendo a facturação correspondente emitida com uma periodicidade mensal.
_ No âmbito do mencionado contrato a que corresponde o produto “MT – Semanal com Feriados BASSIC INDEX, ponto de entrega CPE:...5DE, foram emitidas as seguintes facturas correspondentes à quantidade de energia consumida:
a) factura n.º ...00, datada de 12/09/2022, com vencimento em 07/10/2022, no valor de €190.988,33, correspondente ao período de facturação de 09/07/2022 a 08/08/2022, que inclui o valor de €85.902,68 de ajuste de mercado.
b) Factura n.º ...84, datada de 11/10/2022, com vencimento em 05/11/2022, no valor de €126.843,41, correspondente ao período de facturação de 08/09/2022 a 07/10/2022, que inclui o valor de €41.266,82 de ajuste de mercado.
c) Factura n.º ...84, datada de 20/10/2022, com vencimento em 14/11/2022, no valor de €33.322,53, correspondente ao período de faturação de 08/10/2022 a 16/10/2022, que inclui o valor de €8.920,36 de ajuste de mercado.

Da factura ...00 a R. efectuou o pagamento parcial da mesma, encontra-se pendente de pagamento a quantia de €170.350,16.
No âmbito do mencionado contrato a que corresponde o produto “MT – Semanal com Feriados BASSIC INDEX, ponto de entrega CPE: ...8NZ, foram emitidas as seguintes facturas correspondentes à quantidade de energia consumida:
- Factura n.º ...31, datada de 22/09/2022, com vencimento em 17/10/2022, no valor de €420.642,91 correspondente ao período de facturação de 19/08/2022 a 18/09/2022, que inclui o valor de €189.168,88 de ajuste de mercado.
- Factura n.º ...61, datada de 20/10/2022, com vencimento em 14/11/2022, no valor de €233.922.98 correspondente ao período de facturação de 19/09/2022 a 16/10/2022, que inclui o valor de €67.898,77 de ajuste de mercado.
Da factura acima referida FT F22PT/...31, a R. efectuou o pagamento parcial da mesma, encontrando-se pendente de pagamento a quantia de €372.558,33.
_ Apesar de interpelada, a Ré não pagou os valores em dívida referentes às facturas acima indicadas.
_ Após a propositura da acção, em 24/11/2022, a R. pagou, à A., a quantia de €254.484,01.
_ A A. enviou à R. que recebeu, pelo menos em 2/6/2022, a carta na qual cita o Decreto-Lei 33/2022 e comunica que irá proceder à modificação da tarifa comercial para os CPES referidos para a “Tarifa Bassic Index”, indicando os termos em que serão estabelecidos os preços. Nessa carta foi comunicado à Ré que, no caso de se pretender opor deveria informar, por carta registada com aviso de recepção, com uma antecedência mínima de 30 dias, nos termos das condições gerais do contrato, sendo que decorrido esse prazo sem que tivesse sido notificada a C... da sua oposição, ter-se-iam como aceites as actualizações de preços nos termos indicados.
_ A R. enviou missiva à A. reclamando no sentido de as condições contratuais acordadas a isentarem da liquidação do valor de ajuste de mercado.
_ A Ré aceitou a nova tarifa comunicada pela Autora enquanto vigorou o acordo celebrado.
_ Por carta de 04/10/2022, a A. comunicou à R. ter corrigido as facturas que contemplavam de forma errada a aplicação do mecanismo de ajuste, entendendo que, em relação às demais, não se verificava a isenção desse mecanismo, acrescentando que a R. poderia resolver o contrato celebrado sem necessidade de qualquer pré-aviso ou sanção por rescisão antecipada.
Sendo esta a factualidade, assiste razão à Recorrente. Não foi posto em causa pelas partes que celebraram entre si um contrato de fornecimento de energia eléctrica, com preço fixo, em 09/09/2021.
Concorda-se com a decisão recorrida que para o efeito o que releva não é o preço que é devido em cada momento de consumo (se é fixo ou variável) mas o momento em que o contrato de fornecimento se estabeleceu e se, nesse momento, se acordou que o preço seria fixo.
Concorda-se igualmente com a decisão recorrida quanto à alteração do contrato não ter efeitos retroactivos. Ou seja, não é pelo facto de a partir de 01/07/2022 estabelecer que o preço passa a ser variável que o contrato de fornecimento deixou de ter sido celebrado antes de 26/04/2022 e com preço fixo.
Porém, consta da matéria de facto assente que foi comunicado à Ré que iria proceder à modificação da tarifa comercial para a “Tarifa Bassic Index”, indicando os termos em que seriam estabelecidos os preços. Consta, ainda, da matéria de facto assente que a Ré aceitou a nova tarifa.
Aceite, pela Ré, a nova tarifa comunicada pela Autora – cfr. ponto 16 dos factos assentes -, a partir dessa data deixou de estar integrada na isenção concedida pelo nº2 do artigo 7º do Decreto-Lei 33/2022.
Conforme se explicou, nos contratos com preço fixo, celebrados em data anterior a 26 de Abril de 2022, sujeitos a renovação a operar em data posterior a 26 de Abril de 2022; ou com alterações das condições do preço, acordadas em data posterior a 26 de Abril de 2022; deixa de subsistir a razão para não se repercutir em tais contratos os custos do mecanismo de ajuste pois, beneficiam da aplicação do mecanismo ibérico que tem como efeito que o preço médio desça em virtude da fixação de um tecto máximo para o preço do gás natural.
A situação que não pode ocorrer é o consumidor aceitar a modificação de “preço fixo” para o fornecimento sujeito à “Tarifa Bassic Index”, beneficiando da aplicação do mecanismo ibérico, e não pretender suportar o custo daquele ajuste.
Consta da Decisão recorrida que «o nº 5 do art. 7º citado prevê expressamente que “as renovações ou as alterações das condições relativas aos preços de fornecimento de energia elétrica determinam a sujeição dos contratos referidos nos nºs 2 e 3 na base da repercussão dos custos do mecanismo de ajuste” mas não que aos mesmos possam, por esta via da renovação ou da alteração de preços, passar a ser-lhes imputáveis tais custos de liquidação».
Salvo o devido respeito por entendimento contrário, do nº 5 do art. 7º do Decreto-Lei 33/2022 decorre que as renovações ou as alterações das condições relativas aos preços de fornecimento de energia elétrica, em data posterior a 26 de Abril de 2022, determinam a sujeição dos contratos referidos nos nºs 2 e 3 na base da repercussão dos custos do mecanismo de ajuste, ou seja, como referido, na Instrução nº6/2022, pela Entidade Reguladora dos Serviços Energético, “nos termos legais, podem ser chamados a suportar os custos do ajuste apenas os clientes (incluindo os consumidores) que, simultaneamente, estão a beneficiar dos efeitos provocados pela introdução do respetivo mecanismo ibérico. Tal inclui os contratos a preços indexados, a preços fixos celebrados após 26 de abril de 2022 ou com alterações de preço (que não decorram da atualização das tarifas de acesso às redes) ou renovações após aquela data”.
Em suma, após a renovação ou a alteração, acordada, de preços, passar a ser suportado, pelo consumidor, o custo do ajustamento. O artigo 7º, nº2, do Decreto-Lei 33/2022 proíbe a aplicação do custo do ajustamento aos contratos celebrados até 26 de Abril de 2022 com regime de preço fixo; não proíbe a aplicação do custo do ajustamento a tais contratos, caso ocorra renovação dos mesmos ou tenham sido sujeitos a alterações no regime de preços. Renovados tais contratos, em data posterior a 26 de Abril de 2022, nada impede a sujeição de tais consumidores ao custo do ajustamento – cfr. artigo 7º, nº5, do Decreto-Lei 33/2022. O mesmo sucede quando as partes, em data posterior a 26 de Abril de 2022, acordam na alteração do regime do preço; nesta situação, a lei não impede a sujeição de tais consumidores ao custo do ajustamento - cfr. artigo 7º, nº5, do Decreto-Lei 33/2022.
Não beneficiando a Ré da isenção conferida pelo nº 2 do artigo 7º do Decreto-Lei 33/2022, importa apurar quais os valores em dívida.
Resulta da matéria de facto assente que se encontram vencidas e não pagas as seguintes facturas:
1. - factura n.º ...00, com vencimento em 07/10/2022, no valor de €190.988,33: encontra-se por pagar a quantia de €170.350,16;
2. - Factura n.º ...84, com vencimento em 05/11/2022, no valor de €126.843,41;
3. - Factura n.º ...84, com vencimento em 14/11/2022, no valor de €33.322,53,
4. - Factura n.º ...31, com vencimento em 17/10/2022, no valor de €420.642,91: encontra-se por pagar a quantia de €372.558,33;
5. - Factura n.º ...61, com vencimento em 14/11/2022, no valor de €233.922.98.
Após a propositura da acção, em 24/11/2022, a R. pagou, à A., a quantia de €254.484,01.
Dispõe o artigo 785º do Código Civil que:
1. Quando, além do capital, o devedor estiver obrigado a pagar despesas ou juros, ou a indemnizar o credor em consequência da mora, a prestação que não chegue para cobrir tudo o que é devido presume-se feita por conta, sucessivamente, das despesas, da indemnização, dos juros e do capital.
2. A imputação no capital só pode fazer-se em último lugar, salvo se o credor concordar em que se faça antes”.
No requerimento de 19/1/2023, a Autora imputou a quantia entregue pela Ré, em data posterior à propositura da acção, no valor das facturas em dívida.
Assim, atento o nº2 do artigo 785º do Código Civil, imputar-se-á esse valor no pagamento do valor em dívida referente à factura n.º ...00 (valor de €170.350,16) e no pagamento parcial do valor referente à Factura n.º ...84, datada de 11/10/2022, com vencimento em05/11/2022, no valor de €126.843,41 [€254.484,01- (€170.350,16 +€126.843,41) = €42.709,56].
Pelo exposto, a Ré é, actualmente, devedora do valor peticionado pela Autora, no Requerimento de 19/1/2023, deduzida a quantia paga após a propositura da acção €682.513,40 (€42.709,56 + €33.322,53 + €372.558,33 + €233.922.98).
Assiste, ainda, à Autora, o direito aos juros de mora, calculados sobre a quantia em dívida relativamente a cada factura e desde a data do respectivo vencimento, até integral pagamento, ou seja:
- sobre a quantia de €42.709,56, desde 5/11/2022 (Factura n.º ...84, com vencimento em 05/11/2022, no valor de €126.843,41);
- sobre a quantia de €33.322,53, desde 14/11/2022 (Factura n.º ...84, com vencimento em 14/11/2022);
- sobre a quantia de €372.558,33, desde 17/10/2022 (Factura n.º ...31, com vencimento em 17/10/2022);
- sobre a quantia de €233.922.98, desde 14/11/2022 (Factura n.º ...61, com vencimento em 14/11/2022).
A taxa de juros aplicável é a fixada na decisão recorrida.
Procede, assim, o recurso interposto pela Autora.
*
IV - Decisão
Pelos fundamentos acima expostos, acordam as Juízas deste Tribunal da Relação em julgar procedente o recurso de apelação e, consequentemente, decide-se:
a. alterar a redacção dos factos considerados provados, no ponto 2, nos termos supramencionados;
b. revogar a sentença recorrida, condenando-se a Ré a pagar à Autora a quantia de €682.513,40 (seiscentos e oitenta e dois mil, quinhentos e treze euros e quarenta cêntimos), acrescida de juros de mora vencidos e vincendos até integral pagamento, calculados à taxa legal fixada na sentença, sobre a quantia de €42.709,56, desde 5/11/2022; sobre a quantia de €33.322,53, desde 14/11/2022; sobre a quantia de €372.558,33, desde 17/10/202; sobre a quantia de €233.922.98, desde 14/11/2022.

Custas da acção e da apelação, pela Ré (artigo 527º, nºs 1 e 2, do CPC).

Notifique e registe.
*

Porto, 23/10/2023
Este acórdão é assinado eletronicamente pelas respectivas:
Anabela Morais;
Eugénia Cunha
Fernanda Almeida.
____________
[1] Cfr. exemplo exposto no site https://www.erse.pt/media/gxplcu4z/10-perguntas-e-10-respostas.pdf: “com o mecanismo a funcionar e, partindo do mesmo preço formado para 8 de agosto de 2022 para Portugal de 145,84 EUR/MWh, se adicionarmos o custo do ajustamento no valor de 115,82 EUR/MWh, (valor apurado todos os dias pelo operador de mercado spot, com 4 base na produção que realmente foi necessária mobilizar para a satisfação da procura ibérica), implica que o preço final a pagar pelo consumo exposto a mercado (sem preço fixo) se situou em 261,66 EUR/MWh. Daqui resulta um benefício líquido para o consumo com contratos indexados ao mercado diário de 40,43 EUR/MWh, ou seja, em vez de pagar 302,09 EUR/MWh sem o mecanismo, paga 261,66 EUR/MWh na presença do mecanismo.