Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0811275
Nº Convencional: JTRP00041187
Relator: JOAQUIM GOMES
Descritores: APLICAÇÃO DA LEI NO TEMPO
APLICAÇÃO RETROACTIVA DE LEI PENAL MAIS FAVORÁVEL
REGIME CONCRETAMENTE MAIS FAVORÁVEL
SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA
Nº do Documento: RP200804020811275
Data do Acordão: 04/02/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Indicações Eventuais: LIVRO 521 - FLS 88.
Área Temática: .
Sumário: Para o efeito previsto no art. 371º-A do Código de Processo Penal, a nova lei, se apenas alterou o pressuposto formal da suspensão da execução da pena de prisão, não é mais favorável ao agente condenado, no domínio da lei antiga, em pena de prisão cuja medida já então não era impeditiva da suspensão.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam na 1.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto

I.- RELATÓRIO

1. No PCC n.º …/02.7P6PRT da ..ª Vara Criminal do Tribunal do Porto, em que são:

Recorrente/Arguido: B………. .

Recorrido: Ministério Público.

foi proferido despacho em 2007/Dez./21, a fls. 12-13, que indeferiu a reabertura da audiência, por entender que não havia lugar à mesma em virtude do arguido ter sido condenado numa pena de prisão efectiva de dois anos e três meses, não sendo o novo regime introduzido pela Lei n.º 59/2007, de 04/Set., concretamente mais favorável em relação ao anterior.
2.- O arguido em 2008/Jan./18 a fls. 18-19 interpôs recurso dessa decisão, sustentando a sua revogação, concluindo, em suma que:
1.º) A pena de prisão efectiva de dois anos e três meses que lhe foi aplicada é, ao abrigo do art. 50.º do Código Penal vigente passível de ser suspensa na sua execução;
2.º) Não foram sequer ponderadas as circunstâncias susceptíveis de determinar a suspensão da execução da pena de prisão aplicada ao arguido ao abrigo da lei penal em vigor, mormente no que concerne aos pressupostos dessa suspensão;
3.º) O actual art. 50.º do Código Penal, decorrente da Lei n.º 59/2007,de 04/Set., consagra, inequivocamente, um regime penal mais favorável ao arguido no que concerne aos pressupostos da suspensão da execução da pena de prisão;
4.º) Por força do art. 371.º- A do Código Processo Penal, aditado pela Lei n.º 48/2007, de 29/Ago., o recorrente pode requerer a abertura da audiência;
5.º) Na verdade, ter-se-á que reapreciar diversos factores, como o tempo decorrido sobre os factos;
6.º) Actualmente o arguido encontra-se no Estabelecimento Prisional do Porto, mantendo uma conduta isenta de reparos.
3.- O Ministério Público respondeu em 2008/Fev./07, pugnando pela improcedência do recurso, não merecendo a decisão recorrida qualquer censura.
4.- O ilustre PGA emitiu parecer em 2008/Fev./15, a fls. 32 e verso, sustentando a rejeição deste recurso por ser manifestamente improcedente.
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II.- FUNDAMENTAÇÃO
1.- Circunstâncias a considerar.
1.º) Por acórdão de 2005/Nov./16, a fls. 142-146, o arguido foi condenado pela prática, como co-autor material, de um crime de furto qualificado da previsão do art. 202.º, al. e), 203.º, na pena de 2 anos e 3 meses de prisão efectiva.
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2.- Os fundamentos do recurso.
A questão em apreço consiste em saber se actualmente o disposto no art. 50.º do Código Penal, conjugado com o preceituado no art. 371.º-A do Código Processo Penal, na sequência da Revisão de 2007[1], conduz à reabertura da audiência de julgamento, tal como foi requerido pelo arguido e indeferido pelo despacho recorrido.
Porém, subjacente a estes normativos está o que se encontra actualmente estipulado no art. 2.º, n.º 4 do Código Penal, segundo o qual “Quando as disposições penais vigentes no momento da prática do facto punível forem diferentes das estabelecidas em leis posteriores, é sempre aplicado o regime que concretamente se mostrar mais favorável ao agente; se tiver havido condenação, ainda que transitada em julgado, cessam a execução e os seus efeitos penais logo que a parte da pena que se encontrar cumprida atinja o limite máximo da pena prevista na lei posterior”.
Mediante esta alteração eliminou-se a barreira do trânsito em julgado da sentença condenatória, que obstava à aplicação da primeira parte deste segmento normativo face à superveniência de lei nova que, em concreto, viesse a beneficiar o arguido.
Esta modificação legislativa, donde resultou a 21.ª alteração ao Código Penal com a Lei n.º 59/2007, na sequência dos trabalhos desenvolvido pela Unidade Missão para a Reforma Penal (UMRP)[2], surgiu com a proposta de Lei n.º 98-X e foi aí justificada nos seguintes termos:
“No Título I da Parte Geral, referente à lei penal, reforça-se a aplicação retroactiva da lei mais favorável, em cumprimento do disposto no artigo 29.º, n.º 4, da Constituição. Assim, mesmo após o trânsito em julgado da sentença condenatória, cessarão a execução e os efeitos penais quando o arguido já tiver cumprido uma pena concreta igual ou superior ao limite máximo da pena prevista em lei posterior (artigo 2.º, n.º 4). Esta solução é materialmente análoga à contemplada no n.º 2 do artigo 2.º para a hipótese de lei nova descriminadora ou despenalizante e a sua efectivação prescinde de uma reponderação da responsabilidade do agente do crime à luz do novo regime sancionatório mais favorável.”
Assim, a revisão penal de 2007 veio estender a aplicação da lei nova mais favorável, ultrapassando os casos julgados condenatórios, aos casos em que “as disposições penais vigentes no momento da prática do facto punível forem diferentes das estabelecidas em leis posteriores” [2.º, n.º 4], sabido que com o Código Penal de 1982 era legalmente inquestionável a sua aplicação quando um “facto punível segundo a lei vigente no momento da sua prática deixa de o ser” [2.º, n.º 2],
Na dimensão normativa do art. 2.º, n.º 4 abrangem-se todas aquelas hipóteses em que muito embora a lei nova continue a punir um certo facto, passou-se, no entanto, a estabelecer um regime penal distinto e mais favorável ao arguido, como sucede quando e a título de exemplo, se modifica a moldura penal, os pressupostos da suspensão da execução da pena ou o regime de concessão da liberdade condicional.
Tal orientação, veio alinhar com a posição minoritária que vinha sendo apregoada no Tribunal Constitucional, donde se destacam os votos de vencidos[3] tirados no Ac. 644/98, segundo os quais a aplicação retroactiva tanto se justifica nos casos de descriminalização, como nas situações de atenuação da pena.
Esta posição assentava essencialmente no fundamento constitucional da lei penal mais favorável (29.º, n.º 4 da C. Rep.), bem como nos princípios constitucionais da necessidade das penas (18.º, n.º 2 C. Rep.) e da igualdade (13.º C. Rep.), no que era seguido de perto por alguma doutrina[4].
Convém, no entanto, recordar que a posição maioritária deste mesmo Tribunal, não deixou de proferir os seguintes juízos de inconstitucionalidade:
- no Ac. n.º 240/97, “por ofensa do nº 4 do artigo 29º da Constituição, as normas conjugadas dos artº 2º, nº 4, do Código Penal, e 666º, nº 1, do Código de Processo Civil, na interpretação segundo a qual, entrando em vigor, posteriormente a uma decisão condenatória do arguido e antes de esta ter formado caso julgado material, uma lei penal que, eventualmente, se apresente como mais favorável em concreto, não pode tal lei conduzir à modificação da decisão proferida pelo próprio tribunal, se a mesma já não for passível de recurso”;
- nos Ac. n.º 677/98 e 169/2002, “por violação do princípio da aplicação retroactiva da lei penal mais favorável, consagrado no nº 4 do artigo 29º da Constituição, a norma constante do nº 4 do artigo 2º do Código Penal, na parte em que veda a aplicação da lei penal nova que transforma em crime semi-público um crime público, quando tenha havido desistência da queixa apresentada e trânsito em julgado da sentença condenatória”.
Será também de salientar, que, a nível do direito comparado, a Revisão de 2007 do Código Penal ao consagrar um regime extensivo da retroactividade da lei penal mais favorável, veio aderir ao que se encontra consagrado no Código Penal Espanhol, designadamente no seu art. 2.º, n.º 2[5] – vejam-se os apontados votos de vencido.
No entanto, o legislador espanhol “temperou” quase sempre a aplicação retroactiva da lei nova mais favorável com disposições finais transitórias, como sucedeu com a Reforma de 1995, no caso a “Duodécima”[6], de forma a tornar perceptíveis os critérios da aplicação no tempo desse instituto – veja-se a propósito e de um modo geral “Comentários al Nuevo Código Penal” (2005), sob a direcção de Gonzalo Quintero Olivares e a coordenação de Fermin Morales Prats, p. 56-58, 2652 e ss.
Não foi esta a posição seguida pelos impulsionadores e revisores de 2007 do Código Penal, o que não invalida o estabelecimento de algumas linhas de orientação para a aplicação da lei nova mais favorável, designadamente, como é o caso, no que concerne às consequências jurídicas do facto quando está em causa a suspensão da execução da pena de prisão.
Convém, no entanto, precisar como se deve efectuar esse juízo prospectivo para aplicação da lei nova mais favorável.
Para o efeito, partiremos essencialmente do seu fundamento constitucional, o qual, no entendimento comum aos dois posicionamentos veiculados no Tribunal Constitucional, reside principalmente no princípio da necessidade das penas decorrente do art. 18.º, n.º 2, conjugado com o art. 29.º, n.º 4, ambos da Constituição.
Por outro lado, a determinação da lei mais favorável deve resultar de uma comparação em bloco do novo e antigo regime, não sendo legalmente admissível seccionar e conjugar parcelarmente cada um dos mesmos, como que originando um regime misto, porquanto isso conduziria à aplicação de ambos os regimes – neste sentido Maia Gonçalves, “Código Penal Português” (1996), p. 83.
Para o efeito, não se deve descurar a efectivação de uma avaliação legal-objectiva da gravidade das reacções penais, que no caso suspensão da execução da pena de prisão assentaria nos respectivos pressupostos.
Porém, convém que recordar que a superveniência da lei nova não conduz à revisão do juízo de culpa já efectuado, porquanto aqui o caso julgado é intangível.
Nesta conformidade e em suma, só tem sentido proceder à reabertura da audiência para aplicação retroactiva da nova lei penal mais favorável, nos termos do art. 371.º-A, do C. P. Penal, quando esta, em concreto, conduza à aplicação de um regime penal mais leve.
Isto significa que neste juízo prospectivo da lei mais favorável e de acordo com o princípio da necessidade das penas, encontramo-nos impedidos de proceder a uma reavaliação do julgamento mediante uma revisão das ponderações judiciais ou legais que já foram efectuadas sob a lei antiga e que estão igualmente abrangidas pela lei nova.
No caso do regime de suspensão da suspensão da execução da pena de prisão e no que concerne aos seus pressupostos, os quais estão consignados no art. 50.º, n.º 1 do Código Penal, podemos constatar que apenas foi alterado o seu pressuposto formal, mediante o alargamento da medida da pena susceptível de ser suspensa.
Assim, enquanto antes a medida da pena de prisão aplicada não deveria ser “superior a 3 anos”, agora passou-se para uma “medida não superior a cinco anos”.
No demais mantém-se o comando legal de que só se suspende a execução da pena de prisão “se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”.
Isto significa, em suma, que sempre que os pressupostos formais (medida da pena de prisão até três anos) e substanciais (juízo de prognose social e finalidade das penas) conducentes à suspensão da execução da pena de prisão, firmados na lei antiga estejam contidos na lei nova, não existe justificação constitucional e legal, atendendo ao referenciado princípio da necessidade da pena, que fundamente a aplicação retroactiva da lei e se proceda a uma avaliação superveniente do regime decorrente da revisão de 2007.
Destarte, o despacho recorrido não merece qualquer censura quando decidiu que não se verificam os pressupostos de que depende a reabertura da audiência.
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III.- DECISÃO.
Nos termos e fundamentos expostos, julga-se improcedente o presente recurso interposto pelo arguido B……… e, em consequência, confirma-se o despacho recorrido.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em cinco (5) UC – art. 513.º n.º 1 e 514.º n.º 2 do Código de Processo Penal e art. 87.º n.º 1 al. b) do Código das Custas Judiciais.

Notifique

Porto, 02 de Abril de 2008
Joaquim Arménio Correia Gomes
Manuel Jorge França Moreira

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[1] Estamo-nos a referir e pela ordem indicada dos Códigos à Lei n.º 59/2007, de 04/Set. e à Lei n.º 48/2007, de 29/Ago.
[2] Esta estrutura, que funcionou na dependência directa do Sr. Ministro da Justiça e foi presidida pelo Mestre Rui Pereira, foi criada pela Resolução do Conselho de Ministros nº 138/2005, de 29 de Julho (publicada no D.R., I Série-B, de 17 de Agosto) e extinta por Resolução do Conselho de Ministros, no dia 12 de Abril de 2007.
[3] Estamo-nos a referir às declarações de voto dos Conselheiros Maria dos Prazeres Pizarro Beleza e José de Sousa Brito.
[4] Como era o caso de Teresa Pizarro Beleza, em “Direito Penal”, Vol. I (1985), p. 455.
[5] “No obstante, tendrán efecto retroactivo aquellas leyes penales que favorezcan al reo, aunque al entrar en vigor hubiera recaído sentencia firme y el sujeto estuviesse cumpliendo condena. ...”
[6] Entretanto revogada pela “Ley Orgânica 5/2000”, de 12/Jan.