Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
| ||
Nº Convencional: | JTRP000 | ||
Relator: | PAULO DUARTE TEIXEIRA | ||
Descritores: | ACIDENTE DE VIAÇÃO DANO BIOLÓGICO DANOS PATRIMONIAIS FUTUROS INDEMNIZAÇÃO ESPERANÇA MÉDIA DE VIDA DANOS NÃO PATRIMONIAIS | ||
![]() | ![]() | ||
Nº do Documento: | RP202311231548/21.9T8PVZ.P1 | ||
Data do Acordão: | 11/23/2023 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
![]() | ![]() | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | ALTERADA | ||
Indicações Eventuais: | 3ª SECÇÃO | ||
Área Temática: | . | ||
![]() | ![]() | ||
Sumário: | I - A indemnização do dano biológico não pode atender, sob pena de duplicação, aos mesmos danos ressarcidos através de outros institutos. II - Caso a lesada não aufira rendimentos, mas fique afetada de forma sensível na sua integridade corporal não pode ser indemnizada pela perda dos mesmos a título de frustração de danos patrimoniais futuros, mas sim através da indemnização pelo dano biológico. III - Para cálculo desse dano deve, além do mais, atender-se ao grau da lesão sofrida, dimensão dos esforços necessários, esperança de vida e ao valor do salário mínimo nacional mais recente. IV - A esperança de vida atendível deve ser, se possível, a da expectativa de vida de cidadãos do mesmo sexo e idade. V - Considera-se adequado fixar em 40 mil euros o valor da indemnização por danos não patrimoniais de uma lesada atropelada na passadeira, que foi submetida a uma operação e fisoterapia durante quase um ano, apresenta uma IPP de 18%, quantum doloris de 4/7, dano estético 2/7, e terá de ser submetida a medicação e consultas o resto da sua vida. | ||
Reclamações: | |||
![]() | ![]() | ||
Decisão Texto Integral: | Processo: 1548/21.9T8PVZ.P1 * Sumário:* * * ……………………………… ……………………………… ……………………………… * 1. Relatório* * AA intenta a presente acção, sobre a forma comum contra A... S.A., agora denominada B... COMPAÑIA DE SEGUROS Y RESEGUROS SA - Sucursal em Portugal, peticionando a sua condenação no pagamento de uma indemnização de 80.000,00 euros, bem como a que vier a liquidar ulteriormente, acrescida de juros de mora contabilizados desde a citação. Alega, que sofreu um acidente, imputando a responsabilidade pela sua verificação ao condutor de veículo seguro na R.. Peticiona a título de dano patrimonial futuro o valor de 30.000,00 euros, 20.000,00 euros de dano biológico e 30.000,00 euros de dano não patrimonial. Relega para liquidação ulterior a indemnização relativa aos tratamentos e medicamentos que terá de realizar para o resto da vida. Veio a R. contestar, alegando ter assumido a responsabilidade pela reparação das consequências do sinistro. Impugna, na generalidade, os valores por aquela peticionados. Por requerimento de 02/11/2021, o A. veio apresentar requerimento de ampliação do pedido formulado, requerendo: - a ampliação do valor peticionado a título de dano patrimonial futuro de 30.000,00 euros para 130.000,00 euros; - a ampliação do valor peticionado a título de dano biológico de 20.000,00 euros para 50.000,00 euros; - a ampliação do valor peticionado a título de dano não patrimonial de 30.000,00 euros para 60.000,00 euros; - a quantia de 16.128,00 euros a título de ajuda de 3ª pessoa. Continuou a relegar para incidente ulterior os danos a que, para tal, se reportava na petição inicial. Esta ampliação do pedido (e da causa de pedir quanto ao último item) foi admitida nos termos do despacho de 09/02/2023. Saneada e instruída a causa procedeu-se à realização de audiência final. Foi proferida sentença que decidiu: a) condena a R. B... COMPAÑIA DE SEGUROS Y RESEGUROS SA - Sucursal em Portugal a pagar à A: 1- a quantia de 30.000,00 euros (trinta mil euros) a título de danos não patrimoniais; 2- a quantia de 22.560,80 euros (vinte e dois mil quinhentos e sessenta euros e oitenta cêntimos) a título de danos patrimoniais; 3- a quantia que se vier a liquidar em incidente ulterior relativamente a despesas com: a) tratamentos médicos regulares relativos às sequelas resultantes deste acidente, nomeadamente fisioterapia e acompanhamento anual em consulta de ortopedia; b) medicação para controlo das dores para o resto da vida, relacionada com as sequelas resultantes deste acidente 4- juros de mora, sobre as quantias referidas, desde a data desta decisão relativamente à quantia referida em a) e desde a data da citação relativamente às demais, à taxa de 4%, até integral pagamento, aplicando-se qualquer alteração que venha a ser introduzida a esta taxa de juro até àquela data. b) no mais, o Tribunal absolve a R. do restante pedido formulado pela A. quer na acção quer no incidente de liquidação. Inconformada veio a autora Ré seguradora interpor recurso, o qual foi admitido como: de apelação, com subida imediata e efeito meramente devolutivo. * 2.1. Foram apresentadas as seguintes conclusões1- A Autora, aqui recorrente, foi submetida a uma intervenção cirúrgica em 10-07-2020 para redução aberta e osteossíntese com placa philos do úmero proximal esquerdo. 2- E a uma nova intervenção cirúrgica para colocação de uma prótese no ombro esquerdo, em 23-02-2021. 3- Cirurgias que determinaram uma incapacidade total e parcial de pelo menos 416 dias, sempre sujeita a tratamentos de fisioterapia, que aliás mantém até aos dias de hoje, e que segundo o Relatório de Avaliação de Dano, determinaram um Quantum Doloris de 4 numa escala de 7 pontos. 4- Mantém até aos dias de hoje ajuda medicamentosa e que vai necessitar até ao fim dos seus dias, porque apesar das lesões terem sido consideradas consolidadas em 27-8-2021, o certo é que a dor se mantém e com a dor o sofrimento e angústia da sua nova condição. 5- Mantém até hoje uma cicatriz com 14cms no braço e ombro esquerdo. 6- A incapacidade resultante das lesões sofridas é irreversível e impeditiva do exercício da sua actividade laboral habitual, bem como ainda de algumas actividades básicas da vida diária, tendo-lhe sido atribuído um Défice Funcional Permanente de Integridade Físico-psíquica de 18 Pontos. 7- Mais, refere o mesmo Relatório Pericial, que a Autora necessita de ajuda de terceira pessoa, por um período de 4 horas, duas vezes por mês. 8- Além da incapacidade profissional, tem ainda graves limitações funcionais, tendo dificuldade em realizar vários actos da vida diária, como por exemplo lavar a cabeça, dificuldades em realizar várias tarefas domésticas que exigem esforços com o braço esquerdo. 9- Pugna-se por isso para que seja atribuída à ora recorrente a quantia peticionada de 60.000,00€ a título de danos morais, que será sempre mais justa e equitativa e susceptível de proporcionar à Recorrente alguns momentos de relativa qualidade de vida, a que tem direito, porque reitera-se em nada contribuiu para o seu estado actual. 10- Ora tendo em conta o facto da A., aqui recorrente, estar na data do acidente desempregada, sempre teria que ser considerado pelo menos o salário mínimo nacional, para efeitos de cálculo da indemnização por danos patrimoniais, assim decorre da jurisprudência dos Tribunais em Portugal. 11- Há ainda que ter em conta o facto da A., aqui recorrente, ter ficado afectada de uma incapacidade para o trabalho valorada em 18 pontos, mas agravada pelo facto de ter ficado totalmente incapaz para a profissão habitual! 12- A Recorrente, tinha 60 anos à data dos factos, tem a 4ª classe, sempre trabalhou em serviços domésticos e em lavandarias, passando a ferro, actividade que não pode agora desempenhar. 13- Assim sendo é de toda a justiça, que à Recorrente seja atribuído um montante indemnizatório consentâneo com a real perda de capacidade de ganho de que ficou a padecer. 14- Tendo por base o salário mínimo nacional, que é de 760,00€ mensais, que a recorrente tinha á data dos factos 60 anos e que teria pelo menos mais 6 anos e 4 meses de trabalho até atingir a idade da reforma, sempre seria de atribuir um montante nunca inferior a 66.880,00€ - (760€X14X6anos+4meses). 15- A indeminização a fixar à A., ora Recorrente, pela perda de rendimento futuro deverá ser de 66.880,00€, o que se reclama e se espera ver atendido, por este Venerando Tribunal, por ser de inteira justiça. 16- A ora recorrente, independentemente do dano pela perda da sua capacidade de ganho, sofreu também um grave da biológico, que merece ressarcimento autónomo. 17- Não podemos deixar de lembrar o Tribunal que o Dano Biológico se traduz na verificação de uma diminuição físico-emocional, que ainda que não implique perda remuneratória, torna mais penosa a realização das tarefas quotidianas. 18- Trata-se, por conseguinte, de um dano autónomo e indemnizável. 19- A ora Recorrente, além da incapacidade profissional, tem ainda graves limitações funcionais, flexão e abdução até 90%, rotação interna até 30% e rotação externa 30% com atrofia dos músculos da região escapular e metade superior do braço esquerdo. 20- A Jurisprudência recente tem entendido que o dano biológico configura um dano distinto do dano patrimonial da perda da capacidade de ganho, devendo ser indemnizado autonomamente – neste sentido vide Acórdão do S.T.J. de 17 de Novembro de 2015 (6ªsecção), proferido no âmbito do processo nº 1857/06.7TJVNF.P1.S1, no qual a vítima foi compensada pelo dano biológico de modo autónomo. 21- Vide ainda o douto Ac. Do STJ de 2 de Junho de 2016 (Proc. nº 3987/10.1TBVFR.P1.S1): “(o) dano biológico abrange ainda (…) os custos de maior onerosidade no exercício ou no incremento de quaisquer dessas actividades ou tarefas, com a consequente repercussão de maiores despesas daí advenientes ou malogro do nível de rendimentos espectáveis” – disponível em www.dgsi.pt. 22- De igual forma na quantia a ser atribuída a título de dano biológico, o Tribunal deve ponderar o impacto que as lesões e limitações têm na vida do lesado, no caso dos autos com lesões irreversíveis. 23- Considera a ora recorrente justa, equitativa e mais consentânea com o seu estado físico o montante de 50.000,00€ (cinquenta mil euros) a título de dano Biológico o montante que reclama novamente, esperando ser atendido por este Venerando Tribunal, por ser de inteira justiça, face aos factos dados como provados. * 2.2. A apelada contra-alegou proficuamente (cujo teor integral se dá por reproduzido, concluindo (na 56º conclusão) que; “entende a aqui Recorrida que, atendendo aos factos invocados pela Recorrente e, bem assim, atenta a manifesta insustentabilidade dos mesmos, quer por falta de fundamentação legal, quer por falta de fundamentação fáctica, sempre terão de improceder as alegações de recurso por esta interpostas.* 3. Questões a decidirDeterminar se os valores dos danos Moral, Dano Patrimonial futuro e Dano Biológico devem ou não ser alterados para 60.000,00€; 66.880,00€ e 50.000,00€ como requerido pela apelante. * 4. Motivação de facto1. No dia 08/07/2020, cerca das 09 horas e 45 minutos, na Rua ..., em ..., Trofa, ocorreu um acidente de viação. 2. Tal acidente envolveu a A. enquanto peão e o veículo de matrícula ..-..-PN. 3. Naquele dia e hora a A. efectuava a travessia daquela rua na passadeira, quando foi embatida pelo PN. 4. A R. assumiu já a responsabilidade por indemnizar à A. pelas consequências do acidente sofrido e causado pelo veículo ..-..-PN. 5. A A. foi transportada para o Hospital ..., onde foi submetida a exames radiológicos, tratamentos e sutura de feridas e escoriações, bem como tratamentos para controlo de dor e estabilização de lesões e fracturas. 6. Tendo sida transferida, no próprio dia, para o Hospital 1... no Porto. 7. Nesta unidade hospitalar, foram diagnosticadas à A. fractura do úmero e da diáfise do perónio. 8. No dia 10/07 foi transferida para o Hospital 2..., onde foi submetida a intervenção cirúrgica para redução aberta e osteossíntese com placa philos do úmero proximal esquerdo. 9. Permanecendo neste hospital até 13/07. 10. Depois da alta hospitalar a A. foi seguida nos serviços clínicos da R., onde realizou sessões regulares de fisioterapia. 11. Tendo ali mantido todos os tratamentos de recuperação, até à data da alta definitiva em 27/08/2021. 12. A R., através dos seus serviços clínicos, avaliou a A. ao dano corporal, tendo-lhe fixado, a título de défice funcional permanente na sua integridade física e psíquica, 10 pontos. 13. A A. apresenta um défice funcional permanente da sua integridade físico-psíquica de 18 pontos, considerando uma desvalorização de 16 pontos pelo Código III Ma0203 e de 2 pontos pelo Código Mc0622, ambos da TNI. 14. Tal défice impossibilita a A. de exercer a sua actividade profissional habitual, sendo compatível com outras profissões da sua área de preparação técnico-profissional. 15. Este défice exige que a A. seja auxiliada por terceira pessoa por um período de 4 horas, duas vezes por mês. 16. A A. sofreu um período de défice funcional temporário total de 66 dias e parcial de 350 dias. 17. A A. nasceu em .../.../1960. 18. Trabalhou numa lavandaria do grupo 5ÀSEC. 19. Encontrando-se desempregada à data do acidente, situação que se mantém. 20. A A. está limitada na força e movimento do membro superior esquerdo. 21. Sofreu dores, sendo o quantum doloris fixável em grau 4 numa escala de gravidade crescente de 7 graus. 22. Apresenta cicatriz de tipo cirúrgico com 14 cms de comprimento e 1 cm de largura, com vestígios ligeiros de agrafos na face anterior do ombro e do braço. 23. Apresenta por isso um dano estético permanente fixável em grau 2 numa escala de gravidade crescente de 7 graus. 24. A A. vai necessitar de tratamentos médicos regulares, nomeadamente fisioterapia e acompanhamento anual em consulta de ortopedia. 25. Vai necessitar de tomar medicação para controlo das dores para o resto da vida. * 5. Motivação Jurídica* * Está em causa, “apenas”, a fixação do quantum indemnizatório em três dimensões, tendo transitado todas as restantes questões, nomeadamente os montantes indemnizatórios parcelares já fixados. * 1. Da fixação do dano biológico Este foi consagrado pelo legislador no Decreto-Lei n.º 352/2007 de 23 de outubro, e concretizada na Portaria n.º 377/2008, de 26 de maio, alterada pela Portaria 679/2009, de 25 de junho. O dano biológico surge logo no preâmbulo, onde se prevê que “ainda que não tenha direito à indemnização por dano patrimonial futuro, em situação de incapacidade permanente parcial, o lesado terá direito à indemnização pelo seu dano biológico, entendido este como ofensa à integridade física e psíquica”. Sendo que, este conceito foi precisamente “importado” do direito Italiano para ressarcir situações em que existe uma lesão física ou diminuição do bem estar do lesado sem perda de retribuição patrimonial que, como veremos é o caso. A nossa jurisprudência tem analisado esta realidade sendo, pelo menos maioritário que[1]: 1. O dano biológico consiste na perda de capacidades físicas e intelectuais nos campos laboral, recreativo, social, sexual ou sentimental que pode ter repercussões patrimoniais ou não. 2. Quando não há perdas económicas imediatas ou futuras o dano biológico indemniza o esforço acrescido que o lesado tem de suportar em todas as atividades da vida. Mas, a indemnização desse dano nunca pode valorar os mesmos factores utilizados noutras dimensões da indemnização sob pena de duplicação ilegal da mesma[2]. Conforme Ac do STJ de 31.1.23, (Maria Tomé) 43/07.3TBVRS.E1.S1: A liquidação dos danos não patrimoniais com base na equidade não é arbitrária: o juízo equitativo, ainda que permita ao julgador alguma margem de discricionariedade, deve fundar-se em critérios de adequação, de proporção e de ponderação prudente e racional de todas as circunstâncias do caso concreto. O recurso a critérios de equidade não impede que se tenham em devida conta as exigências do princípio da igualdade. Por fim, “Nessa fixação, os factores essenciais a ter em conta podem ser assim elencados: (i) idade do lesado à data do sinistro; (ii) esperança média de vida do lesado à data do acidente; (iii) índice de incapacidade geral permanente do lesado; (iv) potencialidades de ganho e de aumento de ganho do lesado, anteriores à lesão, tanto na profissão habitual, como em profissão ou actividades económicas alternativas, aferidas, em regra, pelas suas qualificações e competências; (v) conexão entre as lesões psicofísicas sofridas e as exigências próprias de actividades profissionais ou económicas do lesado, compatíveis com as suas habilitações e/ou formação”[3]. Ora, os únicos elementos que podem ser utilizados autonomamente para fixar o dano biológico são: 1. Que esta sofreu uma incapacidade de 18% 2. Tal défice impossibilita a A. de exercer a sua actividade profissional habitual, sendo compatível com outras profissões da sua área de preparação técnico-profissional 3. A A. está limitada na força e movimento do membro superior esquerdo. 4. E que a autora tinha 60 anos na data do acidente. * Esse dano irá perdurar até ao termo da vida da lesada (e não até apenas até ao termo da sua idade de reforma), logo, durante 22 anos os esforços acrescidos resultantes do acidente terão de ser indemnizados.Com efeito a esperança actual de vida para as mulheres é de 83 anos.[4] Mas teremos de notar que esse valor, até em termos estatísticos terá de ser interpretado de forma condicionada. Porque, o essencial é determinar a esperança de vida média das mulheres portuguesas com a idade da lesada, pois, a várias condições de morbilidade são distintas consoante a respectiva idade. Nesses termos a expectativa de vida de cidadãos com 65 anos de idade atinge em 2022 19,61 anos[5]. Depois, o referencial monetário terá de ser o salário mínimo nacional[6] mais recente. Assim o valor global meramente matemático seria de entre 38.304 (smnx14x2o anosx0,18) a cerca de 39 mil euros (x22). Mas teremos de frisar que “Para a quantificação do “dano biológico”, na vertente de dano patrimonial futuro, são convocadas as normas dos arts.564 e 563 nº3 do CC, onde se extrai a legitimação do recurso à equidade (art.4 do CC) e a desvinculação relativamente a puros critérios de legalidade estrita, pois o direito equitativo não se compadece com uma construção apriorística, emergindo, porém, do “facto concreto”, como elemento da própria compreensão do direito, rectius, um direito de resultado, em que releva a força criativa da jurisprudência, com o imprescindível recurso ao “pensamento tópico”, na ponderação casuística[7]. Ora, nesta matéria é fundamental ter presentes e aplicar os resultados obtidos em casos semelhantes pela nossa jurisprudência. O Ac. do STJ de 6.2.20 nº 2251-12 ECLI (Rosa Tching), fixou esse valor em 40 mil euros, num caso em que o lesado tinha 62 anos e uma incapacidade global de 19%. E, o Ac de 12.1.2017 nº 3323/13 (Maria Prazeres Beleza), a quantia de vinte mil euros num caso de um lesado com 60 anos e incapacidade de 10%. Ponderando esses factores, o lapso de tempo, entretanto decorrido, julgamos, suficiente, adequado e proporcional fixar o valor da indemnização a título de dano biológico em 40.000 euros, deduzindo já uma quantia de 10% por forma a operar o desconto entre o benefício do recebimento imediato da quantia e a inflacção futura. Porque é inquestionável que o recebimento total dessa indemnização que visa ressarcir danos futuros, neste caso, com mais de 20 anos, é uma vantagem patrimonial que implica a diminuição do montante em função da rentabilidade previsível na aplicação desse capital. É essa a posição de, pelo menos, de parte desta secção[8] e foi recentemente reiterado pelo Ac do STJ DE 12.10.23,nº 22082/15.0T8PRT.P1.S1 (Cura Mariano) “Quanto à preocupação de que o valor do capital antecipadamente pago ao lesado por um dano que se irá a refletir continuadamente no futuro se esgote no termo previsível da sua vida, o facto de, no período já decorrido, o nível da remuneração dos depósitos a prazo ser baixo, embora seja uma realidade a atender, não justifica que não se deva operar uma redução do valor a atribuir, uma vez que essa não é a única forma de investir uma soma avultada em dinheiro, assim como não existe uma previsibilidade dessa realidade se manter durante muito tempo.” * 2. Do Dano patrimonial futuroPretende a apelante: “tinha á data dos factos 60 anos e que teria pelo menos mais 6 anos e 4 meses de trabalho até atingir a idade da reforma, sempre seria de atribuir um montante nunca inferior a 66.880,00€ - (760€X14X6anos+4meses)”. Desde logo, importa ter presente que a afectação da capacidade de ganho é de 18%, pelo que com base nesse cálculo, a indemnização total nunca poderia ser superior a 12.038,00 euros. Depois, teremos de notar que a lesada não auferia (nem aufere) qualquer rendimento não tendo sido alegado e provado que tivesse qualquer expectativa de o auferir. Acresce que resulta provado que a consolidação médico-legal das suas lesões ocorreu em 27/08/2021, pelo que depois dessa data não pode ser imputável ao lesante qualquer responsabilidade causal na perda de rendimento laboral[9], já que recorde-se está provada a capacidade de desempenhar a mesma tarefa com esforços acrescidos. Portanto, temos de concluir que a IPP não determinou nenhuma diminuição do rendimento do lesado, seja porque a sua actividade profissional não foi afectada, seja porque consegue exercer a sua actividade com um esforço complementar. Por fim, sob o ponto de vista indemnizatório, a indemnização do dano biológico e do dano patrimonial futuro implicaria a valorização dos mesmos factos e a duplicação da mesma indemnização[10]. Nesta medida, o Ac do STJ de 12.10.23, nº 1969/19.7T8PTM.E1.S1, (Ataíde das Neves) refere: “Procurando dissipar uma linha rígida divisória entre os danos patrimoniais e os danos não patrimoniais, a doutrina e a jurisprudência adoptaram a expressão “dano biológico”, concebendo este em muitas situações de afectação da integridade físico-psíquica, em que a própria natureza híbrida ou indefinida do dano não é passível de situar ou enquadrar este apenas na esfera patrimonial ou na dimensão não patrimonial, porquanto a sua materialização não se ajusta apenas às dores da alma, assim como não se adequa tão-só na perda de utilidades de índole económica, não dependendo a sua ressarcibilidade da efectiva e comprovada perda de rendimentos, mas sim da demonstração de que, em resultado de tal dano, o lesado passou a ser portador de limitações ou constrangimentos que, não obstante possa continuar a conseguir realizar as suas tarefas profissionais e de natureza pessoal, o faz mediante um esforço acrescido, ou de um vigor muito superior àquele que teria se não tivesse sofrido esse dano.” Se dúvidas houvesse bastaria citar o Ac. STJ de 14.3.23, nº 11575/18.8T8LSB.L1.S1 (Isaías Pádua): “Entre os danos indemnizáveis ano âmbito da responsabilidade civil extracontratual por facto ilícito encontra-se o chamado dano biológico. Dano esse que tanto pode ser ressarcido enquanto dano patrimonial, como compensado a título de dano não patrimonial, o que resultará de uma avaliação casuística quanto aos seus reflexos. Resultando esse dano de uma incapacidade geral permanente, o mesmo é suscetível de ser indemnizado, como dano patrimonial futuro, desde que essa incapacidade se repercuta diretamente no exercício da atividade profissional para o autor, que dela padece, em termos de, pelo menos, lhe exigir um maior esforço no exercício dessa atividade (nosso sublinhado). Esta parte do recurso, terá, pois, de improceder. * 3. Dos danos não patrimoniaisÉ consabido que os danos não patrimoniais indemnizáveis são aqueles que, pela sua gravidade, merecem a tutela do direito (art. 496º nº 1 do CCivil). Estes destinam-se a permitir que, com essa quantia monetária, o lesado encontre compensação para a dor, a fim de restabelecer um desequilíbrio no âmbito da “felicidade” humana individual. Os critérios do art. 496º, nº3, do CC demonstram uma cláusula geral sendo que, actualmente, como acentua o recente Ac do STJ de 9.5.23, nº 7509/19.0T8PRT.P1.S1 (Jorge Arcanjo): “Há hoje uma preocupação superadora da tradicional categoria de “dano moral”, ampliando o seu espectro, de modo a abranger outras manifestações que a lesão provoca na pessoa, e já não a simples perturbação emocional, a dor ou o sofrimento, erigindo-se, assim, um novo modelo centralizado no “dano pessoal” que afecta a estrutura ontológica do ser humano, entendido como entidade psicossomática e sustentada na sua dignidade e liberdade, correspondendo ao “dano ao projecto de vida”, como núcleo do “dano existencial”, com consequências extrapatrimoniais. Esta concepção é a que melhor se adequa à natureza e finalidade da indemnização pelos danos extrapatrimoniais/pessoais, pondo o enfoque na vítima, com implicações na (re)valorização compensatória, maximizada pelo princípio da reparação integral”. No que respeita à fixação dos danos não patrimoniais a jurisprudência nacional utiliza uma clássica frase doutrinal que afirma: “deve atender-se às regras de boa prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas e de criteriosa ponderação das realidades da vida”. Mas essa forma genérica deve ser densificada por vários factores, nomeadamente: “A natureza, a multiplicidade e a diversidade das lesões sofridas; as intervenções cirúrgicas, os tratamentos médicos e medicamentosos a que o lesado teve de se submeter; o período temporal de internamento, de doença e de tratamento para debelar as mesmas; a natureza e extensão das sequelas consolidadas; o quantum doloris e o dano estético, se o houver”[11]. Ora, as circunstâncias do caso concreto revelam que a apelante sofreu os seguintes danos: 1. Desde logo a eclosão do acidente que ocorreu quando atravessava uma passadeira. 2. Depois, o transporte para três hospitais. 3. As lesões foram fractura do úmero e da diáfise do perónio. 4. A submissão a uma operação e sessões de fisioterapia. 5. A A. sofreu um período de défice funcional temporário total de 66 dias e parcial de 350 dias. 6. Depois, sofreu dores, sendo o quantum doloris fixável em grau 4 numa escala de gravidade crescente de 7 graus. 7. Apresenta cicatriz de tipo cirúrgico com 14 cms de comprimento e 1 cm de largura, com vestígios ligeiros de agrafos na face anterior do ombro e do braço. Apresenta por isso um dano estético permanente fixável em grau 2 numa escala de gravidade crescente de 7 graus. 8. A A. vai necessitar de tratamentos médicos regulares, nomeadamente fisioterapia e acompanhamento anual em consulta de ortopedia. 9. Vai necessitar de tomar medicação para controlo das dores para o resto da vida e, conforme resulta do dano cuja liquidação foi relegada o auxílio de uma terceira pessoa. Quantificando esses elementos temos que: 1) a simples eclosão do acidente com o inerente susto, medo e angústia implica um dano valorável em 3.000 euros. 2) depois a submissão a uma operação, e o período de incapacidade implicará, pelo menos, a quantia de 9000 euros (salário mínimo nacional/30 dias x período de incapacidade parcial). 3) o quantum doloris é relevante pelo que julgamos adequado fixá-lo em 8.000 euros. 4) O dano estético não é muito relevante, mas implica o grau 2, pelo que deve ser fixado em 10 mil euros. Este é um dano permanente e duradouro que afecta a lesada para sempre. Note-se, que actualmente é pacifico que o dano estético não assume uma função puramente unilateral afectando um aspecto isolado da pessoa. Bem pelo contrário, esse dano ou prejuízo afecta a pessoa em todas as suas dimensões, e a Organização Mundial de Saúde define a saúde como “um estado de completo bem-estar físico, mental e social, que não consiste apenas na ausência de doença ou enfermidade”. Portanto, aqui chegados obteríamos já o valor de 30 mil euros fixado na decisão recorrida. 5) Acresce, por fim, que devido ao acidente a autora “A A. vai necessitar de tratamentos médicos regulares, nomeadamente fisioterapia e acompanhamento anual em consulta de ortopedia. 25. Vai necessitar de tomar medicação para controlo das dores para o resto da vida.” Acresce ainda que foi relegado para execução um dano que tem repercussões não patrimoniais. Ou seja, os incómodos e consequências das lesões irão continuar a produzir incómodos e problemas que afectarão o equilíbrio emotivo da autora. Nessa medida o Ac do STJ DE 6.6.23, nº 9934/17.2T8SNT.L1.S1(Manuel Capelo), decidiu: “É adequada a indemnização de € 50.000,00 por danos não patrimoniais de quem foi atropelado numa passadeira de peões, cujas lesões se consolidaram ao fim de um ano, ficando com quatro cicatrizes; com sofrimento físico e psíquico entre o acidente e a consolidação mensurado como de grau 5 numa escala de 7, cujo défice funciona permanente físico foi fixado em 12 pontos, repercutindo-se as sequelas nas atividades de lazer e convívio social que exercia de forma regular em grau 3 de uma escala de 7 graus de gravidade crescente, com dano estético permanente de grau 3 numa escala de 7, sendo previsível o agravamento da artrose pós-traumática do tornozelo”.[12] E, este tribunal também já decidiu no Ac RP de 9.3.23, nº 15899/17.3T8PRT (Paulo Teixeira) que: ”Um lesado, com 50 anos, que sofreu devido ao acidente: uma operação à coluna, 271 dias de doença, dores numa escala de 4 em 7, dano estético de 2, um défice funcional de 17,9 pontos, e uma repercussão na vida diária de 11 em 100, deve ser indemnizado, no valor de 50 mil euros a título de danos não patrimoniais”. Note-se, pois as semelhanças dos dois casos, sendo que o actual é menos grave em especial quanto às demais sequelas. Logo, o valor global desses danos terá de atender a esse facto, pelo que se considera adequado a sua fixação em 40 mil euros. * 6. Deliberação* * Pelo exposto, este tribunal colectivo julga a presente apelação parcialmente procedente por provada e, por via disso, determina que as quantias constantes da condenação, sejam fixadas em 40 mil euros (quarenta mil euros) quanto aos danos não patrimoniais e 40.000 (quarenta mil euros), quanto ao dano biológico (valor antes fixado em 12.500 euros (doze mil e quinhentos euros), mantendo-se os demais termos aí decididos. Custas a cargo de ambas as partes na proporção do seu decaimento. * Porto em 23.11.23Paulo Duarte Teixeira Márcia Vieira Aristides Rodrigues de Almeida ______________ [1] Cfr Maria da Graça Trigo, ADOPÇÃO DO CONCEITO DE “DANO BIOLÓGICO” PELO DIREITO Português, in ROA Ano 72 – Vol. I, Jan-Mar de 2012, pág. 147 e segs. na jurisprudência do STJ, por mais recentes, Ac de 12.10.23, 1969/19.7T8PTM.E1.S1 (Ataíde das Neves); 12.10.23, nº 22082/15.0T8PRT.P1.S1 (Cura Mariano) e de 14.9.23, nº 1974/21.3T8PNF.P1.S1 (Oliveira Abreu). [2] Nestes termos, o Ac do STJ DE 14.9.23, Nº 2739/19.8T8AVR.P1.S1 (Catarina Serra). [3] Ac STJ de 30.3.23, nº 4160/20.6T8GMR.G1.S1 (Maria Graça Trigo). [4] Estado nacional de estatística, ESPERANÇA DE VIDA DE 80,96 ANOS À NASCENÇA E DE 19,61 ANOS AOS 65 ANOS, acedido em Novembro 2011 em ine.pt. [5] Mesma publicação. [6] STJ de 22.6.2017, Processo 104/10 (Abrantes Geraldes) IN CJ 280, Tomo II/2017. [7] Ac do STJ de 9.5.23, nº 7509/19.0T8PRT.P1.S1 (Jorge Arcanjo). [8] Ac da RP de 15.6.23, Proc. nº 13390/18.0T8PRT, e Ac da RP de 23.9.21, nº 654/19.4T8PVZ.P1 (Paulo Duarte Teixeira). [9] Ac do STJ de 7.3.23, Nº 766/19.4T8PVZ.P1.S1 (Manuel Capelo) : “A compensação do dano biológico tem como base e fundamento, quer a relevante e substancial restrição às possibilidades de exercício de uma profissão pelo lesado traduzida em perda de oportunidades, geradoras de possíveis e futuros acréscimos patrimoniais, frustrados irremediavelmente pelo grau de incapacidade que definitivamente o afete mas, inclui também a acrescida penosidade e esforço no exercício da sua atividade diária e corrente, de modo a compensar e ultrapassar as deficiências funcionais de maior ou menor gravidade que constituem sequela irreversível das lesões sofridas. [10] Ac. STJ de 22.6.2017, Processo 104/10 (Abrantes Geraldes) IN CJ 280, Tomo II/2017. [11] Ac do STJ de 28.3.23, Nº 3410/20.3T8VNG.P1.S1 (Isaías Pádua). [12] Note-se ainda a situação decidida pelo Ac do STJ DE 4.7.23, nº 342/19.1T8PVZ.P1.S1 (Jorge Leal): “É equitativa a atribuição da quantia de € 20.000,00 para compensar um quadro de sofrimento físico e psicológico caraterizado por um quantum doloris de 3/7, repercussão permanente nas atividades desportivas e de lazer fixável no grau 1/7, perturbações significativas no sono e na vida sexual, perda de autonomia na realização de tarefas domésticas e na movimentação de objetos pesados, irritabilidade, desconforto constante, insegurança, baixa capacidade de atenção e concentração, baixa tolerância à frustração”, que se situa num grau menos grave quanto às consequências físicas da intervenção”. |