Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1654/19.0T8VCD.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FERNANDO VILARES FERREIRA
Descritores: ACÇÃO DE REIVINDICAÇÃO
PRÉDIO CONFINANTE
PEDIDO DE DEMARCAÇÃO
SANÇÃO PECUNIÁRIA COMPULSÓRIA
DIREITO DE INDEMNIZAÇÃO
Nº do Documento: RP202205171654/19.0T8VCD.P1
Data do Acordão: 05/17/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: RECURSO PARCIALMENTE PROCEDENTE; DECISÃO ALTERADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – Sempre que um ponto da matéria de facto integre uma afirmação ou valoração de factos que se insira na análise das questões jurídicas que definem o objeto da ação, comportando uma resposta, ou componente de resposta àquelas questões, o mesmo deve ser desconsiderado.
II – Na ação de reivindicação, reconhecido ao autor o direito de propriedade da coisa reivindicada, a restituição desta só lhe pode ser recusada caso o réu demonstre ser titular de algum direito (real ou obrigacional), licitamente constituído e, por isso, compatível com o direito do proprietário.
III – No caso em que o prédio é reivindicado ao proprietário de um prédio confinante, não é impossível entender que o reivindicante pode formular não só o pedido de reivindicação, mas também o de demarcação, não ocorrendo qualquer incompatibilidade substancial entre eles, antes se completando entre si, porquanto que o que se reivindica é o que resulta da demarcação a realizar.
IV – A sanção pecuniária compulsória prevista no art. 829.º-A, n.º 1, do CCivil, destina-se a compelir o devedor ao cumprimento em espécie de uma prestação de facto infungível, não contemplando, por isso, as situações de falta de cumprimento da prestação de entrega de coisa, cuja sanção deverá ser obtida por via de indemnização complementar, ou as prestações de facto que possam ser cumpridas por terceiro, de acordo com o critério estabelecido no art. 767.º do CCivil.
V – A mera privação de faixa de terreno reivindicada, impedindo, embora, o proprietário do gozo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição, só constitui dano indemnizável se alegada e provada, pelo dono, a frustração de um propósito, real, concreto e efetivo de proceder à sua utilização, os termos em que o faria e o que auferiria, não fora a ocupação pelo lesante.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: PROCESSO N.º 1654/19.0T8VCD.P1
[Tribunal de origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto - Juízo Central Cível da Póvoa de Varzim - Juiz 1]

Relator: Fernando Vilares Ferreira
Adjunta: Maria Eiró
Adjunto: João Proença

SUMÁRIO:
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I.
RELATÓRIO
1.
JUNTA DE FREGUESIA ... intentou a presente ação declarativa, sob a forma de processo comum, contra M..., LDA.
Alegou, em síntese, que é proprietária de um imóvel rústico que identifica, sendo a Ré proprietária de um terreno que se situa a norte daquele; a Ré procedeu à vedação e iniciou uma construção, que invadem a parcela de terreno pertencente à Autora, ocupando-a numa área de 235,15 m2.
Pediu que seja a Ré condenada a:
a) Reconhecer que a Autora é proprietária do prédio identificado em 1.º com os limites e configuração constantes da planta junta como doc. 3.
b) Reconhecer que o limite entre a sua propriedade e o prédio da Autora se define pela linha que, na planta topográfica junta como doc. 3, vai desenhada a verde, entre os pontos A e E assinalados.
c) Restituir à Autora a parcela de terreno com a área de 235,15 m2 identificada na dita planta topográfica, e a dela retirar todos os materiais e construções que lá tenha implantado, bem como a repor o terreno no estado em que se encontrava à data da ocupação pela Ré;
d) Pagar, a título de sansão pecuniária compulsória, o montante de 50,00 euros por cada dia de atraso na entrega da referida parcela, a partir da notificação da sentença.
e) Pagar, a título de indemnização, a quantia de 200,00 euros por cada mês que perdurar a ocupação abusiva.
2.
A contestou, invocando que o imóvel que lhe pertence tem a configuração e confrontações que indica, abrangendo a área de terreno reivindicada pela Autora.
Em reconvenção, pediu que:
a) se declare que é proprietária do imóvel que identifica;
b) se declare que a parcela de terreno com a área de 235,15 m2 faz parte daquele prédio;
c) seja a Reconvinda condenada a reconhecer tais pedidos;
d) seja a Reconvinda condenada a abster-se, por qualquer forma, via ou meio, ocupar, perturbar, impedir ou turbar o gozo desse imóvel.
3.
Replicou a Autora, mantendo, no essencial a posição assumida na petição inicial.
4.
Teve lugar a audiência prévia, no âmbito da qual foi admitido liminarmente o pedido reconvencional, procedeu-se ao saneamento e à fixação do objeto do processo, assim como à delimitação dos temas de prova.
5.
Realizada a audiência de discussão e julgamento foi proferida sentença, com o seguinte DISPOSITIVO:
[Pelo exposto, o Tribunal julga a ação e a reconvenção parcialmente procedentes e, em conformidade:
a) Condena a R. M... Ldª a reconhecer que a A. JUNTA DE FREGUESIA ... é proprietária do prédio rútico descrito na Conservatória do Registo Predial de Vila do Conde sob o nº ... e inscrito na matriz predial rústica sob o art. ....
b) Declara e condena a A. a reconhecer que a R. reconvinte é proprietária do prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de Vila do Conde sob o nº ... e inscrito na matriz predial urbana nº ....
c) Condena ainda a A. a abster-se de por qualquer forma impedir o exercício daquele direito de propriedade.
d) Absolve a R. dos demais pedidos formulados pela A..
e) Absolve a A. dos demais pedidos reconvencionais formulados pela R. reconvinte.
As custas do processo serão suportadas em partes iguais por ambas as partes - art. 527º do C. P. Civil.
Notifique.]
6.
Inconformada, a Autora interpôs recurso de apelação, versando matéria de facto e de direito, assente nas seguintes CONCLUSÕES:
1.ª – A sentença condenou a Ré a reconhecer a A. como proprietária do prédio rústico descrito na CRP de Vila do Conde sob o nº ... e inscrito no artigo ... da matriz rústica da Freguesia ..., absolvendo-a dos demais pedidos.
2.ª – Foram várias as sessões de julgamento. Muitos os documentos juntos aos autos e exibidos às testemunhas, entre os quais fotografias e plantas topográficas elaboradas por ambas as partes, todavia a sentença enumera com parcimónia 21 pontos da matéria de facto provada.
3.ª – Sucede, porém, que lida atentamente a extensa e exaustiva motivação da decisão de facto, desde logo e sem mais - como acima se demonstra e para que se remete - haveria que alterar a decisão sobre a matéria de facto, completando-a, nomeadamente no que concerne aos pontos 17 e 18 dos Factos Provados e aditando aos factos provados a matéria constante dos artigos 5º/6º, 10º e 25º da PI, bem como a dos artigos 39º e 40º da réplica.
4.ª – Na verdade, tendo o tribunal apurado aquilo que faz constar da motivação da decisão de facto, impõe-se necessariamente que daí se extraiam as devidas conclusões em termos de prova.
5.ª – Mais se impõe, pela reapreciação da totalidade da prova, nos termos acima detalhados, nomeadamente conjugando tudo aquilo que já está adquirido com os documentos referenciados acima e com a reapreciação da prova gravada identificada, bem como de acordo com a regra da distribuição do ónus da prova, que passem para provados os factos dados como não provados em 1, 2, 3 e 5/6 da sentença (estes no que concerne à A.)
6.ª – Devendo, nos termos supra, para que se remete e se dão por reproduzidos:
• DAR-SE COMO PROVADO que no prédio da A. se inclui a área de 235,15m2 em discussão, melhor identificada a tracejado na planta topográfica de fls. 12 (tal como alegado em 5º PI).
• DAR-SE COMO PROVADO que desde data anterior à escritura de fls. 9, a parcela sempre foi ininterruptamente cuidada pela A., repondo terreno com saibro, limpando de sucata e outros materiais lá colocados, bem como sempre foi ininterruptamente usada pelos fregueses, ora para secar sargaço, ora para estacionar veículos, para colocar estendais de roupa, ora para passagem para a praia e para a pesca, sempre sem oposição de ninguém, nomeadamente dos proprietários do prédio ora da Ré.
• DAR-SE COMO PROVADO que A. autorizou, solicitando à Câmara Municipal, a construção de arruamento junto à parcela em questão, bem como foi anuindo na ocupação da parte sul do seu prédio por famílias pobres da freguesia.
• DAR-SE COMO PROVADO, que tudo foi feito na convicção de exercer um direito próprio, conforme já declarado na escritura de justificação de fls. 9.
• RETIRAR-SE DE NÃO PROVADOS os itens correspondentes, ou seja, 1, 2, 3 e 5/6 no respeitante à A.
• DAR-SE ANTES COMO PROVADO no ponto 17, que “Após a aquisição do terreno, a Ré procedeu à vedação de uma parcela de terreno com a forma retangular com a configuração da planta de fls. 37, dentro da qual, na parte sudeste, iniciou uma construção.”
• DAR-SE ANTES COMO PROVADO no ponto 18, que “Dentro da área vedada a rede malhasol pela Ré encontra-se a área de 235,15m2 que se situa para sul do valo identificado a tracejado na planta da Ré de fls. 37, onde esta implantou parte das fundações da edificação que pretende construir.
BEM COMO, PELO EXPOSTO, DEVE DAR-SE COMO PROVADO:
• como alegado em 10ª da PI, que: - entre o prédio da A. inscrito no artigo ... pelo Norte, e o prédio da A. inscrito no artigo 83º pelo Sul, sempre existiu uma parcela de terreno cultivada, a uma cota mais baixa, que era da família de AA.
• como alegado em 6ª da PI, que: - essa parcela de terreno cultivada, a uma cota inferior, era delimitada por valos, tendo a configuração constante da planta de fls. 47, coincidente com a linha A a E constante da planta de fls. 12.
• como alegado em 25º da PI, que: - A A. por carta registada de 05/11/2019 já alertou a Ré de a vedação e as obras que a Ré pretendia levar a efeito ocupam parte da parcela de terreno que pertence à A. Junta de freguesia, e de que deveria respeitar a sua propriedade.
• como alegado em 39º e 40º da réplica, que: - o terreno de cota inferior era separado dos demais por limites naturais, nomeadamente por sebes e valos, tendo entrada do lado do mar através de um valo e uma pedra grande, esta no local assinalado com a letra A na planta topográfica de fls. 12, tendo o valo o desenho dessa planta constante resultante da linha A a E.
7.ª – O perfil da acção de reivindicação afere-se pela causa petendi que, em acções desta natureza, decorre do facto jurídico de que deriva o direito real, facto que, em concreto, deve ter a força suficiente para criar a favor do demandante, e nele radicar, o domínio da coisa reivindicada, e pelas pretensões jurídicas deduzidas, quais sejam, o do reconhecimento do direito de propriedade e o da restituição da coisa por outro, para além da indemnização pela ocupação indevida.
8.ª – Decorre do artigo 1311º do Código Civil que sobre o reivindicante recai o ónus de provar que é proprietário da coisa e que esta se encontra na posse ou detenção do réu; este, por sua vez, tem o ónus da prova de que é titular de um direito (real ou de crédito) que legitima a recusa de restituição.
9.ª – Numa acção de reivindicação como a presente, cabe à parte contrária invocar e provar o facto impeditivo da entrega ou restituição do bem. Caso contrário – não demonstrando que tem sobre ele outro qualquer direito real que justifique a sua posse ou que a possui por virtude de direito pessoal bastante, ou ainda que o bem pertence a terceiro – nada obstará à sua restituição.
10.ª – De acordo com a estatuição do artigo 1311º do Código Civil, a decisão sobre a prova haveria de ser feita necessariamente sob o prisma do ónus da prova, em observância do disposto no nº 2 do artigo 342º do Código Civil, de onde decorre para aquele a quem compete o ónus de fornecer a prova do facto, o efeito de ter de suportar as desvantajosas consequências da sua falta, nomeadamente a de se ter como líquido – no caso dos autos – o facto que pretendia impedir.
11.ª – Ora, tendo a A. logrado provar os factos constitutivos do seu direito de propriedade – o que fez, a ponto da Ré ter sido condenada a reconhecê-la – e se provou a ocupação pela Ré da parcela de terreno com 235,15m2 que vai para além do valo, e não tendo a Ré – para impedir o direito da A. invocara – provado que tinha a propriedade do terreno para além do valo, ou seja, se não provou a sua legitimidade para a ocupação feita dessa parcela, onde fez fundações e iniciou construção, fundada em direito real de propriedade, a acção deveria ter sido julgada totalmente procedente e a Ré condenada integralmente no pedido, com as inerentes consequências no concernente ao pedido reconvencional.
11.ª – A sentença recorrida violou, pelo exposto, o disposto no artigo 1311º do Código Civil, bem como o artigo 342º do mesmo diploma.
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Terminou, pedindo a revogação da decisão recorrida e substituída por outra que, julgando a ação procedente, condene a Ré nos pedidos.
7.
Contra-alegou a Ré, pugnando pela improcedência do recurso da Autora.
8.
Também a Ré recorreu da sentença, em matéria de facto e de direito, fazendo assentar o seu inconformismo nas seguintes CONCLUSÕES:
1.ª- A recorrente não se conforma com a decisão proferida, porquanto a mesma fez errada decisão da matéria de facto e menos correta interpretação e aplicação do direito ao caso concreto, como a seguir se vai demonstrar.
2.ª - Deveriam ter sido dados como NÃO PROVADOS os factos 1., 2., 3., 4., 5., 6., 16., e 20. Dos factos dados como provados, deveriam ter sido dados COMO PROVADOS os factos 4., 5., e 6., dos factos dados como não provados, e deveria o Tribunal ter entendido que a Ré/Recorrente logrou demonstrar e provar os limites que alega ter o prédio de que é proprietária, acrescendo ainda que resultaram provados actos materiais de gozo sobre tal parcela de terreno, pela ré e ante possuidores, com intenção de verdadeiros proprietários, pelo tempo necessário à sua aquisição por usucapião.
3.ª - Com base nas Declarações de Parte da Legal Representante da Autora BB, as quais constam gravadas através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal, em 27-11-2020, com início pelas 10,05 e com duração de 26 minutos e 31 segundos, e com relevo para este recurso de 0:02:23.2 a 0: 14:53.3.
4.ª - Com base nos depoimentos das testemunhas: CC, o qual consta gravado através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal, em 13-05-2021, com início pelas 11:29 com duração de 38 minutos e 42 segundos, com relevo para este recurso de 00:00:21.3 a 0: 19:58.9; DD, o qual consta gravado através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal, em 13-05-2021, com inicio pelas 12:09 horas com duração de 28 minutos e com relevo para este recurso de 0:01 :36.3 a 0: 15:45.4; EE, o qual consta gravado através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal, em 13-05-2021, com inicio pelas 4:03 horas, com duração de 28 minutos e 31 segundos e com relevo para este recurso de 0:01: 11.6 a 0:21: 13.8; FF, o qual consta gravado através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal, em 13-05-2021, com inicio pelas 14:32 minutos, com duração de 9 minutos e 40 segundos e com relevo para este recurso de 0:02: 11.2 a 0:08:51.1.
5.ª - Com base na Prova Documental composta pelos seguintes documentos: Documentos n°s I e 2 da contestação, Documento n° 3 da contestação, Documento n° 4 da contestação, Documento nº 5 da contestação, Documento n° 6 da contestação, Documento n° 7 da contestação, Documento n° 8 da contestação, Documento n° 9 da contestação, Documento n° I0 da contestação, Documento n° 11 da contestação, Documento n° 12 da contestação, Documento n°.13 da contestação, Documento n° 14 da contestação, Documento n°.15 da contestação, Documento n° 16 da contestação, Documento n° 17 da contestação, Documento n° 18 da contestação, Documento n° 19 da contestação, Documento n° 20 da contestação, Documento n° 21 da contestação, Documento n° 22 da contestação, Documento n° 23 da contestação, Documento n° 1 junto com o requerimento com a Ref. 36809867; Documento n° 2 junto com o requerimento com a Ref. 36809867; Documento n° 6 junto com o Requerimento com a Ref. 37635323; Documentos n.os 1 e 2 juntos com o Requerimento Ref. 37678403; Documentos juntos aos autos pela Autoridade Tributária e Aduaneira - Serviço de Finanças de Vila do Conde e da Conservatória do Registo Predial e Comercial de Vila do Conde notificados às partes com a Ref. 426676328; Auto de Inspeção Judicial ao Local.
6.ª - O Tribunal recorrido fez errada decisão da matéria de facto.
7.ª - Da prova produzida resulta que a recorrente é dona e legítima possuidora do prédio urbano sito na Rua ... em ..., Freguesia ..., Concelho de Vila do Conde, com área total e descoberta de 1397 m2, composto por parcela de terreno para construção, a confrontar a Norte e a Sul com Terreno da Freguesia ..., a nascente GG, a poente com H..., inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo ... e descrito na Conservatória do Registo Predial de Vila do Conde sob o número .../........, com inscrição de aquisição a seu favor pela Ap... de 04-05-2018, a configuração constante no levantamento topográfico obtido em Novembro de 2010, com a área, limites e configuração definidos pela linha vermelha no documento n° 3 junto com a contestação, isto é, tudo o que está dentro da linha marcada a vermelho naquele levantamento topográfico é pertença do prédio urbano adquirido pela recorrente sob o artigo matricial ..., nas suas áreas, limites e configuração, encontrando-se ainda delimitado, a azul, a área cedida ao domínio público de 53m2.
8.ª - O prédio urbano da recorrente tem, como sempre teve, forma retangular, iniciando-se a sul, junto à estrada, nos pontos assinalados com as letras A e B melhor identificados no documento nº 4 junto com a recorrente na contestação, prosseguindo em linha reta para norte numa extensão de cerca de 59,20m, um retângulo com cerca de 24,5m de largura, até terminar nos pontos assinalados com as letras C e D, tudo com uma área total de 1397 m2 o qual confronta, como sempre confrontou, a sul com Terreno da Freguesia ... terminando no arruamento construído no âmbito da requalificação ocorrida, e a norte com terreno da junta de freguesia ....
9.ª - Da caderneta predial resulta que o artigo ... teve origem no prédio urbano com o artigo ..., do distrito do Porto, concelho de Vila do Conde e Freguesia ..., que confronta a Norte com Junta de Freguesia, a Sul com Junta de Freguesia, a Nascente com GG e a Poente com H..., tendo como descrição: terreno para construção, e com as seguintes áreas: Área total do terreno: 1.397,0000m2; Área de implantação do edifício: 120.7000 m2; Área Bruta de Construção: 268,5000 m2; Área bruta dependente: 0,0000 m2, inscrito na matriz no ano de 2008.
10.ª - Da certidão da Conservatória do Registo Predial de Vila do Conde o indicado prédio urbano com a matriz ... consta como tendo área total de 1397 m2 e área descoberta 1397m2, sendo composto por parcela de terreno para construção, confrontando a norte e sul com Terreno da Freguesia ..., a nascente com GG e a poente com H..., tendo sido cedidos 53m2 para o domínio público estando a área atualizada.
11.ª - No ano 1989 o prédio da R. tinha 1450 m2 (hoje tem menos porque 53m2 foram cedidos para domínio público) e confrontava a norte e sul com Terreno da Freguesia ..., a nascente com GG e a poente com H..., tendo sido adquirido, aquisição em comum e sem determinação de parte ou direito, conforme AP ../......, para seguidamente ser adquirido por HH, casado com II na comunhão de adquiridos conforme consta da AP. 07/92....
12.ª - Na sequência daquela aquisição, HH submeteu, junto da Câmara Municipal ... Pedido de Informação Prévia de Construção de uma habitação unifamiliar de r/c e andar que deu origem ao Processo n.º ../06 e em 26/06/07 o Departamento de Planeamento e Gestão Urbanística, na pessoa da Técnica JJ, analisou aquele Processo n.º ../06 cujo titular do processo era HH, cuja localização da obra era na Rua ... -..., o qual foi posto à análise e consideração da CCDR-N e das demais entidades, tendo obtido parecer favorável, constando ainda daquela Análise/Informação Técnica que "foi recebido o parecer da Junta de Freguesia (pág. 23 e 24) que, face ao teor do mesmo, em relação ao teor dos pareceres da CCDR-N e ao disposto no PDM, se coloca à consideração superior o seguimento a dar ao mesmo".
13.ª - Tal quer significar que a própria recorrida analisou aquele projeto, que previa a construção de uma habitação unifamiliar no trato de terreno de que agora se vem arrogar dona e legítima proprietária e não se opôs, antes, deu o seu consentimento.
14.ª - Em 06-07-2007 o Sr. Presidente da Câmara proferiu despacho a deferir a construção de uma habitação unifamiliar de r/c e andar, desde que a construção da mesma respeitasse os limites impostos pela CCDR-N e em 24 de Junho de 2008, o Senhor Arquiteto KK solicitou junto da Câmara Municipal ... lhe fossem indicadas as confrontações do prédio descrito da Conservatória do Registo Predial de Vila do Conde sob o n.º .../........ e artigo matricial n.º ..., tendo a Câmara Municipal ..., em 24-06-2008, informado que as confrontações do terreno em causa são: Norte: Freguesia ...; Sul: Freguesia ...; Nascente: Freguesia ... e Rua ...; Poente: Domínio Público Marítimo.
15.ª - Em 10 de Outubro de 2008 foi realizada Escritura de Permuta na qual LL transmite a propriedade do Prédio urbano, com as áreas e limites atuais (dos quais fazem parte o trato de terreno em causa nestes autos) para CC, sendo, em 18 de Abril de 2018 CC transferiu o prédio para a S..., Lda e em 18 de Abril de 2018 esta vendeu o prédio à recorrente.
16.ª - A recorrente goza da presunção derivada do registo em como o seu direito existe e lhe pertence como titular inscrita, nos presentes termos em que o registo o define - artigo 7° do Registo Predial.
17.ª - Quanto aos limites do prédio resulta do depoimento da Representante legal da recorrente que adquiriu o prédio para lá construir uma moradia, e que naquela época fez o contrato-promessa já lhe tendo sido exibido pelo anterior proprietário um PIP para construir naquela área uma habitação, e que os limites lhe haviam sido transmitidos pessoalmente pelo anterior proprietário CC, tendo a mesma esclarecido que se recorda da existência de uns marcos, uns paus espetados na areia e que o trato de terreno em casa nestes autos foi indicado pelo anterior proprietário fazer parte integrante do prédio que ia adquirir, já a testemunha CC esclareceu que foi o senhor DD quem levou ao local e lhe indicou os limites e configurações do terreno, limites estes que lhe foram transmitidos pessoalmente pelo Sr. MM, e a testemunha DD esclareceu que o prédio em causa nos autos foi propriedade de um seu compadre - HH - por compra que fez, o qual devido à sua situação financeira da empresa, e que a testemunha se deslocou ao local com o Sr. HH tendo este indicado os limites e áreas do prédio., referindo ainda que, naquela data o prédio estava a ser cultivado por pescadores, na parte Nascente havia um caminho, portanto, havia uma estrada e o terreno batia nessa estrada, da parte do bairro dos pescadores batia na outra estrada, que estava em terra, essa estava em terra, e dava acesso à praia, e o terreno terminava nessa estrada (0:06:39.0), do lado do mar tinha a areia, tinha uma sebe, depois tinha a areia mesmo, onde está a praia, onde tem a praia, e do outro lado areia e praia.
18.ª - Do depoimento da legal representante da recorrente, de CC e de DD resulta que o trato de terreno em causa foi sempre apontado pelos anteriores possuidores e proprietários como fazendo parte componente e integrante do prédio urbano adquirido pela recorrente, convicção que ainda hoje mantêm, sendo que até o presidente da junta esteve interessado na aquisição do prédio urbano, nunca tendo este manifestado a discordância de que o trato de terreno não fizesse parte do prédio que ia adquirir.
19.ª - Já quanto aos atos materiais de gozo veja-se que resulta do depoimento da legal representante da recorrente que esta em depois de adquirir o prédio, em Dezembro de 20 18 (durante 7 dias) limpou e vedou o mesmo, sendo que a vedação instalada naquela data é a mesma e pelos mesmos limites que o antigo proprietário havia indicado, em confrontação com o levantamento topográfico que tinha do levantamento do processo camarário obtido junto da Câmara Municipal. CC disse que, desde que comprou, desde 2005/2006 até ter vendido à M..., todos os atos que fez sobre o terreno, nomeadamente, esses projetos, acompanhamentos, essas limpezas e essas visitas ao terreno, essa permissão para o senhor MM cultivar e depois a irmã. "os tais talhões lá, a cedência à Câmara alguns metros de terreno, fê-lo na convicção de que estava a dispor de uma coisa sua. Recuando ainda mais no tempo, DD esclareceu que falou com quem estava a cultivar e as pessoas pediram para continuar lá. E, na altura, da não houve qualquer impedimento, dizendo a eles que se fosse necessário que saíssem a qualquer momento, perdendo a agricultura.
20.ª - Dos depoimentos da legal representante da recorrente, de CC e de NN resulta que a recorrente, o anterior proprietário CC e, por sua vez, o proprietário anterior a este, todos praticaram atos materiais de gozo no prédio urbano e na fazia de terreno em causa neste processo, atos estes que não foram só a colocação da vedação pela recorrente no ano de 2018, mas também, a permissão pelos anteriores proprietários para granjeiro por pessoas da zona, pessoas estas que, note-se, sempre reconheceram CC e HH como proprietários da faixa de terreno em causa nestes autos.
21.ª - Mal andou o tribunal ao entender que nenhuma prova foi apresentada que corrobore que os sucessivos proprietários do imóvel fizeram utilização da parte sul do imóvel e que se situa a uma cota superior, uma vez que resulta que antecessores e ante possuidores da recorrente sempre ocuparam e administraram aquele prédio urbano, limpando-o, conservando-o, retirando e colhendo todos os rendimentos do prédio urbano, ou consentindo que o fizessem, pagando as respetivas contribuições, à vista de todas as pessoas, sem oposição de quem quer que seja, de forma ininterrupta e consecutiva, na intenção e convicção de que o prédio lhes pertenceu, por mais de 20, 30, 40 anos, pelo que se outro título não tivesse sempre o haviam adquirido por Usucapião.
22.ª - Por conseguinte, também a recorrente, por si, antecessores e ante possuidores, cuja posse pode juntar à sua, tem ocupado e administrado aquele prédio urbano, limpando-o, conservando-o, retirando e colhendo todos os rendimentos do prédio urbano, ou consentindo que o façam, pagando as respetivas contribuições, à vista de todas as pessoas, sem oposição de quem quer que seja, de forma ininterrupta e consecutiva, na intenção e convicção de que o prédio lhe pertence, por mais de 20, 30, 40 anos, pelo que se outro título não tivesse sempre o havia adquirido por Usucapião, que se invocou e deveria ter sido declarada.
23.ª - A S..., Lda, anterior proprietária do prédio urbano com o artigo matricial ..., havia projetado uma edificação consubstanciada em moradia composta por cave, rés do chão e primeiro andar, o qual previa a construção de uma moradia unifamiliar, ao qual correspondeu o Processo 121/09 que foi aprovado pelo Município de Vila do Conde, e titulado pela Admissão de Comunicação Prévia n. o ... de 4 de Julho de 2017 e foi aprovado pela Câmara Municipal ... e titulado pela Admissão de Comunicação Prévia n° ../17 de 4 de julho de 2017 com validade até 04 de Julho de 2020.
24.ª - A Câmara Municipal ... aprovou a construção da moradia sobre o prédio inscrito na matriz ..., sem qualquer objeção, tendo conhecimento das áreas e limites do mesmo, isto é, tendo conhecimento de que os 235,15 m2 em causa estavam incluídos, conforme se prova pelo levantamento topográfico do projeto aprovado datado de Janeiro de 2010, e que consta arquivado no processo junto da Câmara Municipal ....
25.ª - Em Dezembro de 2018, a Câmara Municipal ... notifica o titular do processo para, na qualidade de proprietário do terreno em causa, remover o entulho (restos de obras) existentes no terreno, e ainda, para proceder à vedação do mesmo, isto porque, quando foi adquirido pela R. o prédio inscrito na matriz ..., num segmento, encontrava-se repleto de entulho/lixo que foi ali depositado, durante anos, pela população, sendo que o segmento no qual se encontrava depositado o entulho/lixo era precisamente no trato de terreno que a A. se arroga dona e legítima proprietária.
26.ª - Em 10 Dezembro de 2018 e durante uma semana a recorrente, à vista de todos, inclusive da A. e sem oposição de ninguém, procedeu à vedação daquele terreno nos limites e por respeito às áreas constantes na certidão permanente emitida pela Conservatória do Registo Predial de Vila do Conde e na caderneta predial urbana, tendo ainda, removido todo o entulho que no mesmo se encontrava depositado, sem que a recorrida ou qualquer outra pessoa tenham contestado a vedação.
27.ª - Durante um ano, a recorrida viu lá instalada a vedação, e que a mesma incluía o trato de terreno em causa nos presentes autos, sem nunca se opor ou contestar a mesma, como igualmente viu a R. a expurgar daquele trato de terreno de todo o lixo e entulho lá existente, sem se opor ou manifestar.
28.ª - Por despacho de 11 de Janeiro de 2019 a Câmara Municipal ... aprovou o averbamento do titular do processo com o n° 121/09 e com Admissão de Comunicação Prévia n° ../17 para a obra sita na Rua ... - ..., verificando-se, assim, que a Câmara Municipal ... aceitou e deferiu o pedido, não se referindo a qualquer impedimento, legal ou outro, para a continuação da obra, permitindo assim que o titular do processo continuasse confiante e com as mesmas expectativas relativamente à mesma.
29.ª - A obra foi analisada pelas entidades a quem coube pronunciar-se sobre o domínio público marítimo (APA) e o POOC (CCDR-R), as quais emitiram parecer favorável, e de igual forma a Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Norte (CCDR-N) e a agência Portuguesa do Ambiente (AP A) licenciaram a obra conforme documento numero dezassete junto pela recorrente com a contestação.
30.ª - No dia 12 de Outubro de 2019 deslocou-se ao local o Sr. Presidente da Junta de Freguesia ..., em nome e representação daquela Junta de Freguesia, acompanhado de testemunhas tendo notificado verbalmente, na presença daqueles, a responsável pelos trabalhos presente no local, e que se identificou como dona de obra, a Eng. BB sócia-gerente da R., de que deveria suspender imediatamente todos os trabalhos no terreno da A., e que o motivo para esse efeito era que a obra não tinha licença, sendi o que quando a mesma lhe foi exibida o Presidente de imediato alterou a justificação e que afinal teria uma parte pertença da Junta de Freguesia, mantendo e justificando desta forma o embargo extra judicial que estava a levar a cabo, embargo que não foi ratificado.
31.ª - Foram construídos passeios pela Câmara Municipal ... na Rua ..., mais precisamente a nascente do prédio da recorrente sendo certo que, aqueles passeios não foram construídos junto ao terreno da recorrente, mas do lado oposto, significando que aquando das obras de melhoramento com passeios e estacionamentos, a Câmara Municipal ... realizou as mesmas nos terrenos públicos, não tendo incluído, por não lhe pertencer, quaisquer obras a levar a cabo junto ao prédio da R., quer a sul junto à estrada quer a nascente.
32.ª - Bem andou o Tribunal ao entender que não ficou provado que a recorrida alguma vez tenha tido a posse da parcela de terreno em causa, nem mesmo que esta alguma vez tivesse tido a convicção de que o trato de terreno era sua propriedade, tendo o último Presidente de Junta sido ouvido pelo Tribunal, tendo ficado claro do seu depoimento - que desconhecia até a existência da escritura pública de justificação notarial e, portanto, nunca agiu na convicção de representar quem era o dono da parcela _, tal limpeza era ordenada por si por não querer aquele terreno sujo, naquele local, junto à praias, como faria com qualquer bouça onde fosse depositado lixo e não porque a Junta fosse dona do que quer que seja.
33.ª - A recorrida é dona e legitima possuidora, a título principal e exclusivo do prédio rústico inscrito na matriz ..., com as áreas, limites, demarcações e configuração tisica supra alegada e constantes dos documentos 1, 2, 3 e 4 juntos com a contestação, do qual faz assim parte componente e integrante a parcela de terreno com 235,15 m2 que a recorrida identificou por referência à planta que, em formato maior, foi junta a fls, 269 e está assinalada a quadriculado verde e vermelho.
34.ª - Estabelece o artigo 1311.º do Código Civil que "o proprietário pode exigir judicialmente de qualquer possuidor ou detentor da coisa o reconhecimento do direito de propriedade e a consequente restituição do que lhe pertence", referindo Pires de Lima e Antunes Varela': "São dois os pedidos que integram e caracterizam a reivindicação: o reconhecimento do direito de propriedade (pronunciatio), por um lado, e a restituição da coisa (condemnatio), por outro. Só através destas duas finalidades, previstas no n.º 1, se preenche o esquema da acção de reivindicação (quanto à primeira finalidade, tem-se entendido que, se o reivindicante se limita a pedir a restituição da coisa, não formulando expressamente o pedido de reconhecimento do seu direito de propriedade, deve este pedido considerar-se implícito naquele ( ... ). Nada impede, no entanto, que, ao abrigo das regras válidas no domínio do direito processual civil (art. 470°, do Cod. de Proc. Civ.), o autor da reivindicação junte aos dois pedidos referidos no artigo 1311° um pedido de indemnização (vg., dos danos causados na coisa pelo demandado ou do valor do uso que este dela fez): vide Antunes Varela, na Rev. de Leg. e Jur., anos 115°, pág. 272, nota 2, e 116°, pág. 16, nota 2".
35.ª - Neste tipo de ações, a causa de pedir é constituída pelo ato ou facto jurídico concreto que gerou o direito de propriedade, ou outro direito real limitado, na esfera jurídica do peticionante e ainda pelos factos demonstrativos da violação desse direito, tendo o reivindicante de alegar e provar que é proprietário da coisa, e que esta se encontra em poder do réu.
36.ª - No sentido de provar o seu direito sobre a coisa, existem duas vias: ou demonstra a aquisição originária, por si ou por algum dos seus antepossuidores, do direito de propriedade sobre a coisa, ou então, no caso de aquisição derivada, terá de provar as sucessivas aquisições dos antecessores até à aquisição originária, prova fundamental em face do conhecido brocado "nemo plus iuris ad alium transfere potest quam ipse habet".
37.ª - Por forma a ultrapassar tal dificuldade de prova, podem então assumir papel relevantíssimo as presunções legais resultantes da posse e do registo, mais concretamente, as previstas nos arts. 1268.°, do Código Civil e 7.°, do Código de Registo Predial.
38.ª - A recorrente alegou e provou factos suscetíveis de levar à aquisição por usucapião da parcela de terreno de 235,15 m2 e que está identificada na planta de fls. 269 na parte quadriculada a verde e vermelho (artigos 1263°, 1268°, 1287°, 1288° e 1302° e seguintes, todos do Código Civil).
39.ª - O art. 1251.°, do Código Civil, consagra que: "Posse é o poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real", sendo um poder de facto sobre a coisa que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real.
40.ª - Segundo Orlando Carvalho, R.L.J., Ano 122, pág. 104, "posse é o exercício de poderes de facto sobre uma coisa em termos de um direito real (rectius: do direito real correspondente a esse exercício). Envolve, portanto, um elemento empírico - exercício de poderes de facto - e um elemento psicológico - em termos de um direito real. Ao primeiro é o que se chama corpus e ao segundo animus",
41.ª - A posse é fundamentalmente poder de facto, estável, mas o "corpus" não pode estar desconexionado do "animus", pois só na medida em que os atos materiais que se praticam indicam um "animus" é que se pode, nomeadamente, dizer que se possui como proprietário ou noutra qualidade e a posse pode ser adquirida por uma das formas previstas no art. 1263° e 1255°, do Código Civil.
42.ª - A recorrente logrou provar factualidade que permita considerar que a recorrente seja possuidora da parcela de terreno em litígio, ou seja, que haja praticado atos materiais na parcela de terreno em causa na convicção de ser sua proprietária, tendo logrado provar os limites que alega ter o prédio de que é proprietária, pois que resultaram provados actos materiais de gozo sobre tal parcela de terreno pela recorrente, com intenção de verdadeira proprietária, pelo tempo necessário à sua aquisição por usucapião, e que têm possuído a parcela de terreno em causa não só por sim mas também pelos ante possuidores - CC e HH - durante um período de tempo e com as características necessárias à aquisição do respetivo direito de propriedade por usucapião.
43.ª - Logrou ainda a recorrente provar factualidade que permitisse concluir que ela e os seus ante possuidores tenham possuído a parcela em causa, em circunstâncias de modo e tempo, que permitiu terem adquirido o respetivo direito de propriedade por usucapião.
44.ª - Provou a recorrente que os anteriores proprietários utilizavam o prédio urbano na sua totalidade, com inclusão dos 235,15 m2, e que a recorrente também o passou a fazer após o ter adquirido, e assim sendo, teria necessariamente de estar votado ao sucesso o pedido feiro pela recorrente em reconvenção de se declarar procedência aos pedidos c.l), c.2), c.3) e cA) relativos ao peditório da reconvenção.
45.ª - Deverá a sentença ser revogada e substituída por outra que julgue procedente, in totum, a reconvenção deduzida pela recorrente e declare que a recorrente é dona e legítima possuidora do prédio urbano sito na Rua ... em ..., Freguesia ..., Concelho de Vila do Conde, com área total e descoberta de 1397 m2, composto por parcela de terreno para construção, a confrontar a Norte e a Sul com Terreno da Freguesia ..., a nascente GG, a poente com H..., inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo ... e descrito na Conservatória do Registo Predial de Vila do Conde sob o número .../........, com inscrição de aquisição a seu favor pela Ap... de 04-05-2018, com a configuração constante no levantamento topográfico obtido em Novembro de 2017, com a área, limites e configuração definidos pela linha vermelha, com forma retangular, iniciando-se a sul, junto à estrada, nos pontos assinalados com as letras A e B no documento n. o 5 junto pela R., prosseguindo em linha reta para norte até terminar nos pontos assinalados com as letras C e D, declare que a parcela de terreno com área de 235,15 m2 em causa nestes autos faz parte integrante do prédio da recorrente.
46.ª - O Tribunal recorrido violou, por erro de interpretação e aplicação o disposto nos artigos 70 do Registo Predial e artigos 1305° 1311° 1268° 1263° 1268° 1287° 1288º 1302º 1255º 1307º 1125°,1133° e 1188° todos do Código Civil.
9.
Contra-alegou a Autora, pugnando pela improcedência do recurso da Ré.
II.
OBJETO DO RECURSO
1.
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este tribunal conhecer de questões nelas não incluídas, salvo se forem de conhecimento oficioso (cf. artigos 635.º, n.º 4, 637.º, n.º 2, 1.ª parte, e 639.º, nºs 1 e 2, todos do Código de Processo Civil (CPCivil).
Tanto o recurso da Autora como o da Ré visam a impugnação da sentença em matéria de facto e de direito.
Em sede de contra-alegações, a Autora sustentou não ter a Ré cumprido os ónus que decorrem do art. 640.º do CPCivil, em matéria de impugnação da decisão da matéria de facto, alegadamente por se ter limitado [a impugnar, “por atacado”, o conjunto de factos que gostaria não tivessem sido provados, apresentando, também “por atacado”, os meios de prova que diz demonstrarem a incorreção da decisão da matéria de facto, sem fazer uma mínima análise facto a facto e a respetiva demonstração de qual o concreto meio de prova, e porquê, imporia uma decisão diversa”.
Vejamos.
Nos termos do art. 640.º, n.º 1, do CPCivil, a impugnação da decisão sobre a matéria de facto implica, sob pena de rejeição, o ónus de o recorrente especificar: “a) os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; b) os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; c) a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas”. E acrescenta-se no n.º 2: “No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte: a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes; b) (…)”.
Analisadas as alegações do recurso interposto pela Ré, não obstante a praticamente inexistente análise crítica aos meios de prova que indica, com exceção de um ou outro aspeto no domínio da prova documental, a verdade é que, do ponto de vista formal, não vemos razões válidas para rejeição liminar do recurso no segmento em questão, porquanto nos parece estarmos perante uma peça processual que integra motivação e conclusões em termos suficientemente adequados ao cabal cumprimento do mencionado ónus de especificação.
Também o recurso da Autora observa o cumprimento do ónus estatuído no cit. art. 640.º.
2.
Assim, partindo das conclusões das alegações apresentadas pelas Apelantes, as questões estruturais a decidir nesta instância de recurso passam por saber se se justifica a modificação da decisão da matéria de facto nos termos pretendidos pelas Recorrentes, e, em caso de resposta positiva, se tal implicará a alteração da solução jurídica a que chegou a 1.ª instância.
III.
FUNDAMENTAÇÃO
1.
OS FACTOS
1.1.
Factos provados[1]
1. Por escritura pública de justificação notarial, datada de 29/08/1986, a A. declarou-se possuidora, com exclusão de outrem, dos seguintes prédios rústicos, todos omissos na Conservatória do Registo Predial: ..., com inscrição matricial ..., Bouça, a pastagem, com inscrição matricial ..., Bouça, a pastagem, com inscrição matricial ..., Juncal, com inscrição matricial ..., Pinhal com inscrição matricial ..., Pinhal com inscrição matricial ....
2. Encontra-se descrito sob o nº ... da Conservatória do Registo Predial de Vila do Conde, Freguesia ..., o prédio rústico situado na ..., constando dessa descrição que tem a área de 1.450 m2, inscrição matricial ..., de pastagem, a confrontar do norte com AA, do sul com caminho, do nascente com OO e do poente com H....
3. A aquisição deste imóvel está registada a favor da A. desde 11/12/1986, estando indicada como causa “usucapião”.
4. A inscrição matricial ... da Freguesia ..., Vila do Conde identifica um prédio rústico situado na ..., estando indicada a área de 1.450 m2 e as seguintes confrontações: do norte com AA, do sul com caminho, do nascente com OO e do poente com H....
5. O prédio inscrito na matriz predial rústica sob o art. ... está identificado como tendo a área de 4.900 m2 e as seguintes confrontações: norte com ..., sul com AA, nascente com PP e outros e do poente com H....
6. Encontrava-se descrito sob o nº ... da Conservatória do Registo Predial de Vila do Conde, Freguesia ..., o prédio rústico situado na ..., constando dessa descrição com a área de 1.450 m2, inscrição matricial ..., de pastagem, a confrontar do norte e sul com Terreno da Freguesia ..., nascente com GG, e poente com H....
7. Por escritura pública de 30/10/1989, QQ e RR, representados por SS, TT, UU, VV, MM, AA, WW, XX, YY, ZZ, AAA, BBB e CCC declararam vender HH, que aceitou comprar, pelo preço 1.500.00$00, o prédio rústico denominado ..., com a área de 1.450 m2, sito no Lugar ..., de ..., a confrontar do norte e sul com a Junta de Freguesia, do nascente com GG e do poente com H..., descrito na CRP sob o nº... e inscrito na matriz predial rústica sob o art. ....
8. Por escritura pública de 17/07/1992, HH declarou vender a LL, que declarou comprar, pelo preço de 1.800.000$00 o prédio rústico denominado ..., pastagem, sito no Lugar ..., ..., com a área de 2.160 m2, inscrito na matriz predial rústica sob o art. ..., descrito na CRP sob o nº ....
9. Por escritura de retificação de 14/02/2008 foi retificada a escritura pública de 17/07/1992, declarando-se que a área correta era de 1.450 m2 e não 2.160 m2.
10. Por escritura pública de permuta de 10/10/2008, LL e DDD, representados por EEE, declararam permutar com CC a parcela de terreno para construção com a área de 1.450 m2, situada na Rua ..., Freguesia ..., Vila do Conde, descrita na CRP sob o nº ... e inscrita na matriz predial urbana sob o art. ..., com o valor de 65.000,00 euros, por um imóvel pertencente ao segundo sito em ....
11. Por escritura pública de 18/04/2018, CC declarou vender à empresa S..., Lda, que representava e declarou comprar, por 64.710,19 euros, a parcela de terreno para construção com a área de 1450 m2, situada na Rua ..., Freguesia ..., Vila do Conde, descrita na CRP sob o nº... e inscrita na matriz predial urbana sob o art. ....
12. Por escritura pública de 18/04/2018, a R. declarou comprar a S..., Lda, que declarou vender-lhe, pelo preço de 225.000,00 euros, o prédio urbano composto por parcela de terreno para construção, sito na Rua ..., Freguesia ..., Vila do Conde, inscrito na matriz predial urbana sob o art. ..., descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº ....
13. A aquisição deste imóvel está registada a favor da R. desde 04/05/2018, por compra.
14. A Autoridade Fiscal eliminou o art. ... rústico da inscrição matricial e procedeu à inscrição oficiosa do art. ... da inscrição matricial urbana, ambos da Freguesia ..., Vila do Conde.
15. O art. 1821 da inscrição matricial urbana corresponde ao antigo art. ... da inscrição matricial urbana, da Freguesia ..., Vila do Conde.
16. Pelo menos até ao prolongamento da Rua ... em direção à praia, este prédio, agora inscrito na matriz predial urbana sob o art. ..., situava-se entre os prédios inscritos na matriz predial rústica sob o os arts. ... e ..., confrontando com estes pelo sul e pelo norte, respetivamente.
17. A R., após a compra efetuada, procedeu à vedação e iniciou uma construção.
18. A R. realizou essa vedação com rede malha sol, incluindo uma área de 235,15m2 que se situa para sul do valo existente no prédio identificado em 6, representada na planta topográfica de fls. 269 a quadriculado verde e vermelho, circundada a tracejado verde, implantando nessa parcela parte das fundações da casa que pretende construir”[2].
19. Estes atos foram praticados pela R., após a aquisição efetuada, na convicção de ser a dona da parcela em causa, tendo sido efetuados à vista de toda a gente, sem oposição de quem quer que seja, incluindo da A., até 12/10/2019.
20. A A. Junta de Freguesia, no exercício das suas competências como Órgão Autárquico, procedeu à limpeza da parcela de terreno com a área de 235,15 m identificada na planta junta aos autos a fls. 269 e que se apresenta quadriculada a vermelho e verde.
21. Esta parcela de terreno encontrava-se livre de qualquer vedação, pavimentação ou construção.
22. Desde data anterior à escritura pública de justificação notarial mencionada em 1), a parcela de terreno em discussão, identificada a quadriculado verde e vermelho na planta topográfica de fls. 269, correspondente ao original do documento n.º 3 junto com a petição inicial, sempre foi ininterruptamente cuidada pela A., repondo terreno com saibro, limpando de sucata e outros materiais lá colocados, bem como sempre foi, com anuência da A., ininterruptamente usada pelos fregueses, ora para secar sargaço, ora para estacionar veículos, para colocar estendais de roupa, ora para passagem para a praia e para a pesca, sempre à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém e na convicção de que a referida faixa de terreno pertence à Autora JUNTA DE FREGUESIA ...[3].
1.2.
Factos não provados
Da matéria tida por relevante, o Tribunal a quo julgou não ter resultado provado que:
1 - O prédio referido em 2) dos factos provados, com a inscrição matricial ..., tenha a configuração constante da planta topográfica junta e inclua a área em discussão nestes autos.
2 - Tenha sido a A. a autorizar a ocupação da parcela de terreno e tenha sido ela quem autorizou a construção de um arruamento junto à parcela em questão.
3 - Tenha reposto terreno naquele local, tenha agido na convicção de ser a proprietária do terreno e de forma ininterrupta.
4 - O prédio referido em 7 a 13 da matéria de facto provada, tenha a configuração que a R. indica e inclua a área em discussão nestes autos.
5 - A A. a R. ou os seus antepossuidores tenham praticado quaisquer actos materiais sobre a referida parcela de terreno, para além dos actos que estão referidos nos factos provados.
6 - Tenham agido na convicção de serem donos daquela parte da parcela de terreno, para além do que consta dos factos provados.
1.3.
Apreciação da impugnação da decisão da matéria de facto
1.3.1.
Segundo dispõe o art. 662.º, n.º 1 do CPCivil, “a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos dados como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”.
À luz deste preceito, “fica claro que a Relação tem autonomia decisória, competindo-lhe formar e formular a sua própria convicção, mediante a reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes ou daqueles que se mostrem acessíveis e com observância do princípio do dispositivo no que concerne à identificação dos pontos de discórdia”[4].
O Tribunal da Relação usa do princípio da livre apreciação da prova com a mesma amplitude de poderes da 1.ª instância, nos termos consagrados pelo art. 607.º, n.º 5, do CPCivil, sem olvidar, porém, os princípios da oralidade e da imediação.
Há que ter presente que o tribunal de recurso não possui uma perceção tão próxima como a do tribunal de 1.ª instância ao nível da oralidade e sobretudo da imediação com a prova produzida na audiência de julgamento. Na verdade, a atividade do julgador na valoração da prova pessoal deve atender a vários fatores, alguns dos quais – como a espontaneidade, a seriedade, as hesitações, a postura, a atitude, o à-vontade, a linguagem gestual dos depoentes – não são facilmente ou de todo apreensíveis pelo tribunal de recurso, mormente quando este está limitado a gravações meramente sonoras relativamente aos depoimentos prestados.
A modificabilidade da decisão de facto é ainda suscetível de operar nas situações previstas nas diversas alíneas do n.º 2 do art. 662.º do CPCivil.
1.3.2.
A prova é “a atividade realizada em processo tendente à formação da convicção do tribunal sobre a realidade dos factos controvertidos”[5], tendo “por função a demonstração da realidade dos factos” (art. 341.º do CCivil) – a demonstração da correspondência entre o facto alegado e o facto ocorrido.
Sendo desejável, em prol da realização máxima da ideia de justiça, que a verdade processual corresponda à realidade material dos acontecimentos (verdade ontológica), certo e sabido é que nem sempre é possível alcançar semelhante patamar ideal de criação da convicção do juiz no processo de formação do seu juízo probatório.
Daí que a jurisprudência que temos por mais representativa acentue que a “verdade processual, na reconstrução possível, não é nem pode ser uma verdade ontológica”, não podendo sequer ser distinta ou diversa “da reconstituição possível do passado, na base da avaliação e do julgamento sobre factos, de acordo com procedimentos e princípios e regras estabelecidos”, os quais são muitas vezes encontrados nas chamadas “regras da experiência”[6].
Movemo-nos no domínio do que a doutrina considera como standard de prova ou critério da suficiência da prova, que se traduz numa regra de decisão indicadora do nível mínimo de corroboração de uma hipótese para que esta possa considerar-se provada, ou seja, possa ser aceite como verdadeira[7].
Para LUÍS FILIPE PIRES DE SOUSA, “pese embora a existência de algumas flutuações terminológicas, o standard que opera no processo civil é, assim, o da probabilidade prevalecente ou “mais provável que não”. Este standard consubstancia-se em duas regras fundamentais:
(i) Entre as várias hipóteses de facto deve preferir-se e considerar-se como verdadeira aquela que conte com um grau de confirmação relativamente maior face às demais;
(ii) Deve preferir-se aquela hipótese que seja “mais provável que não”, ou seja, aquela hipótese que é mais provável que seja verdadeira do que seja falsa.
Em primeiro lugar, este critério da probabilidade lógica prevalecente – insiste-se – não se reporta à probabilidade como frequência estatística mas sim como grau de confirmação lógica que um enunciado obtém a partir das provas disponíveis.
Em segundo lugar, o que o standard preconiza é que, quando sobre um facto existam provas contraditórias, o julgador deve sopesar as probabilidades das diferentes versões para eleger o enunciado que pareça ser relativamente “mais provável”, tendo em conta os meios de prova disponíveis. Dito de outra forma, deve escolher-se a hipótese que receba apoio relativamente maior dos elementos de prova conjuntamente disponíveis”[8].
Os meios de prova, enquanto “modos por que se revelam os factos que servem de fonte das relações jurídicas”[9], encontram no Código Civil os seguintes tipos: a confissão (arts. 352.º a 361.º); a prova documental (arts. 362.º a 387.º); a prova pericial (arts. 388.º e 389.º); a prova por inspeção (arts. 390.º e 391.º); e a prova testemunhal (arts. 392.º a 396.º). O art. 466.º do CPCivil acrescenta a “prova por declarações de parte”.
Nos termos do preceituado no art. 607.º, n.º 5, do CPCivil, “o juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto; a livre apreciação não abrange os factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, nem aqueles que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes”.
O cit. normativo consagra o chamado princípio da livre apreciação da prova, que assume carácter eclético entre o sistema de prova livre e o sistema de prova legal.
Assim, o tribunal aprecia livremente a prova testemunhal (art. 396.º do CCivil e arts. 495.º a 526.º do CPCivil), bem como os depoimentos e declarações de parte (arts. 452.º a 466.º do CPCivil, exceto na parte em que constituam confissão; a prova por inspeção (art. 391.º do CCivil e arts. 490.º a 494.º do C.PCivil); a prova pericial (art. 389.º do CCivil e arts. 467.º a 489.º do CPCivil); e ainda no caso dos arts. 358.º, nºs 3 e 4, 361.º, 366.º, 371.º, n.ºs 1, 2ª parte e 2, e 376.º, n.º 3, todos do CCivil.
Por sua vez, estão subtraídos à livre apreciação os factos cuja prova a lei exija formalidade especial: é o que acontece com documentos ad substantiam ou ad probationem; também a confissão quando feita nos termos do art. 358.º, nºs 1 e 2 do CCivil; e os factos que resultam provados por via da não observância do ónus de impugnação (art. 574.º, n.º 2, do CPCivil).
O sistema de prova legal manifesta-se na prova por confissão, prova documental e prova por presunções legais, podendo distinguir-se entre prova pleníssima, prova plena e prova bastante”[10].
A prova pleníssima não admite contraprova nem prova em contrário. Nesta categoria integram-se as presunções iuris et de iure (art. 350.º, n.º 2, in fine do CCivil).
Por sua vez, a prova plena é aquela que, para impugnação, é necessária prova em contrário (arts. 347.º e 350.º, n.º 2, ambos do CCivil). Assim será com os documentos autênticos que fazem prova plena do conteúdo que nele consta (art. 371.º, n.º 1, do CCivil), sem prejuízo de ser arguida a sua falsidade (art. 372.º, n.º 1, do CCivil), e também com as presunções iuris tantum (art. 350.º, n.º 2, do CCivil).
Por último, a prova bastante carateriza-se por ser suficiente a mera contraprova para a sua impugnação, ou seja, a colocação do julgador num estado de dúvida quanto à verdade do facto (art. 346.º do CCivil). Assim se distingue prova em contrário de contraprova – aquela, mais do que criar um estado de dúvida, tem de demonstrar a não realidade do facto[11].
1.3.3.
Fundamentação da decisão recorrida
Para decidir como o fez, a 1.ª instância fundamentou nos termos que se transcrevem:
[O Tribunal considerou o conjunto da prova produzida para afirmação dos factos provados e não provados, tendo considerado:
I - A prova documental:
a) Fls. 8: A inscrição matricial rústica relativa ao art. 86, que refere o ano de inscrição na matriz como sendo 1975, com a área total de 0,145000 ha, tendo como confrontações:
- norte: AA;
- sul: caminho;
- poente: H...;
- nascente: OO.
b) Fls. 9: A justificação notarial lavrada em 29/08/1986 em que a Junta de Freguesia justificou a aquisição por usucapião, no que agora nos interessa, de dois imóveis:
- o já referido com a inscrição matricial ... (com as características que constam do documento acima referido);
- o prédio inscrito na matriz sob o art. ..., a confrontar do norte com rego, do sul com AA, do nascente com PP e outros e do poente com H....
Nessa escritura a aqui R. declarou não ter título de aquisição destes e de outros imóveis, mas que há mais de 30 anos que os utilizava, tendo-os adquirido por usucapião.
c) Fls. 12 e fls. 269: Planta topográfica elaborada pela A., que considera os limites da parcela de terreno justificada e que foram indicados pela própria A., embora seja claro, como referiu a pessoa que a elaborou e resultou da inspecção realizada que os limites aí indicados com os pontos A, B, C, D e E, têm em consideração o valo que existe na parcela de terreno em causa e que são visíveis na planta que a R. juntou como documento 11 junto com a contestação (espaço “tracejado” que indica precisamente a existência de uma cota inferior).
Este documento 11 de fls. 47 permite perceber que, na parcela de terreno que a R. identifica como sua, existe uma parte significativa que se situa numa cota mais baixa (aí assinalada como tal). Ou seja, na caracterização da parcela de terreno que a R. identifica como sua existe de facto uma parte (a sul do terreno) a uma cota superior, com a configuração que consta da planta junta pela A. e nesta assinalada a quadriculado verde e vermelho.
d) Fls. 90: descrição predial nº ... da Freguesia ..., de onde se retira que o prédio inscrito sob o art. ..., com as confrontações referidas, tem a sua aquisição registada a favor da A. desde 11/12/1986.
e) Fls. 32 verso: inscrição matricial relativa ao art. urbano ..., do qual consta que teve origem no art. ..., com a área de 1.397 m2, sendo a área de implantação do edifício de 120,70 m2, sendo terreno para construção, e correspondendo ao descrito na CRP sob o art. ..., da Freguesia ... e que tem as seguintes confrontações:
- norte: Junta de Freguesia;
- sul: Junta de Freguesia;
- poente: H...;
- nascente: GG.
f) Fls. 34 e 37: descrição predial nº280 da CRP, Freguesia ..., com as confrontações, área e inscrição matricial referidas em c).
Consta ainda que houve uma cedência de 53 m2 para o domínio público (e que foi já efectuada pela R.).
Dessa descrição consta que foi efectuado o registo de aquisição a favor da R. por compra a S..., Lda, em 04/05/2018, estando registada com a mesma data a aquisição pela empresa S..., Lda, por compra a CC.
Da descrição inicial consta que era um terreno rústico com 1.450 m2, e as confrontações já referidas, sendo o averbamento relativo à sua natureza urbana de 27/02/2008, passando a constar como tendo a área coberta de 120 m2 e a descoberta de 1330 m2.
Foi efectuado o registo da sua aquisição em 06/07/89 a favor da família de AA por sucessão hereditária de FFF e GGG, estando registada a aquisição a favor de HH, por compra, em 03/01/1990 e a favor de LL com data de 27/02/2008, também por compra.
g) Fls. 116 verso: Escritura pública através da qual o prédio, então como rústico, foi transmitido pela família de AA para HH, em 30/10/1989, estando então referido como correspondendo à matriz sob o art. ..., com a área de 1.450 m2. Este prédio, com esta mesma identificação, foi vendido em 17/07/1992 a LL, continuando a constar como prédio rústico inscrito na matriz rústica sob o art. ..., agora com a área de 2.160 m2, tendo a área sido rectificada por escritura de 14/02/2008.
h) Fls. 121: escritura de rectificação e que é a primeira em que se fala de prédio urbano, dizendo-se que aquele prédio rústico do art. ... passou a corresponder ao art. ... da matriz urbana.
i) Fls. 39: decisão proferida no pedido de informação prévia solicitado por HH, no âmbito do processo ../2006, datada de 26/06/2007 que admite a construção na parcela de terreno em causa, desde que respeitadas as condicionantes indicadas e que reporta um parecer da junta de freguesia e um parecer da CCDR norte. Essa decisão foi comunicada a HH por ofício datado de 02/08/2007.
j) Fls. 42: pedido dirigido à Câmara Municipal ... no sentido de serem verificadas as confrontações do prédio descrito sob o nº..., a que a Câmara deu resposta, confirmando as que constam da descrição.
k) Fls. 45: escritura pública de aquisição do imóvel em causa nestes autos, pela R., realizada em 18/04/2018, por compra à empresa S..., Lda Como consta da referida escritura, esta empresa havia adquirido tal imóvel, nesse mesmo dia, àquele que era o seu legal representante CC.
l) Fls. 109: Esse imóvel foi adquirido por CC por permuta realizada em 10/10/2008, tendo este, como já foi dito, vendido o imóvel em causa à sociedade que representava em 18/04/2018 (fls. 112).
m) Fls. 55 verso: notificação dirigida a este CC no sentido de proceder à limpeza do terreno.
n) Fls. 67: comunicação da CCDR Norte, agora no âmbito do processo camarário 121/09, relativa à possibilidade de construção no imóvel em causa.
o) Fls. 69: carta que a R. enviou à A. na sequência de embargo extrajudicial que a A. realizou e não ratificou e que mereceu a resposta de fls. 77 - é esse o momento que marca a oposição da A., sendo que em data anterior já a R. havia colocado vedação, demonstrando que entendia que esta área de 235,15 m2 integrava o prédio que adquirira.
p) Fls. 79: comunicação da decisão da Câmara Municipal de determinar a cedência de uma área do imóvel para que integrasse o domínio público, destinada a arranjos exteriores, exigindo uma caução para a sua realização e ainda que fosse apresentada certidão que comprovasse a redução de área respectiva. Como resulta dessa comunicação, a Câmara entendia então que era dono do terreno CC.
q) Fls. 155 verso: Está em causa planta extraída do processo de licenciamento de loteamento nº.../1985 (fls. 218) da qual se retira, sem qualquer dúvida que, pelo menos na data em questão, a Rua ... não se prolongava até ao mar e tinha então, no que é hoje o seu prolongamento para o mar, casas (ou seja, o bairro de casas ditas “clandestinas” que é visível na parte inferior direita da planta, existia até à parcela de terreno que permitiu o prolongamento daquela rua).
Mas se analisarmos com atenção, dessa imagem se retira também com clareza que o limite do terreno que hoje é da R. não encostava no que é hoje o prolongamento da Rua ... em direcção ao mar, antes ficando aquém dos limites que a R. indica como sendo os da parcela de terreno para construção que adquiriu.
Este processo de licenciamento é relativo à construção do “bairro social” existente à esquerda da referida planta (identificado com as letras A e B) e que acompanha, do lado esquerdo (para quem está a analisar a planta), a Rua ... que, como se disse, então terminava junto do bairro dito “clandestino” visível na parte inferior da mesma (esta mesma realidade é também visível da planta de fls. 22 verso).
r) Fls. 156 e segs.: Estão em causa documentos que comprovam, sem qualquer dúvida, contrariamente ao referido pela prova testemunhal apresentada pela A., que a projectada construção de um parque de merendas para o local em questão, a realizar pela A., nunca esteve equacionada para a parcela de terreno que aqui se discute, mas para uma outra, próxima, junta à praia e que está assinalada de forma ténue mas visível na 2ª fotografia de fls. 166. Aliás, nessa mesma fotografia é possível verificar a parcela de terreno identificada nestes autos e a sua diferente configuração para a restante parte que ninguém discute ter sido adquirida pela R. (parte superior da segunda fotografia).
s) Fls. 215 e segs.: As fotografias extraídas do Google Earth, todas elas relativas ao período em que a Rua ... se prolongava já até ao mar, sendo visível que o “Bairro ...” que se situa à esquerda da fotografia se estende até ao início da Rua (quando, como resulta de fls. 155, se estendeu em tempos para além do chão do que é hoje essa Rua), tendo os 235,15 m2 que aqui se discutem (numa figura geométrica próxima de um triângulo) uma aparência visível e significativamente diferente do resto do terreno, este sim com sinais de cultivo.
Na fotografia de fls. 258 são visíveis carros estacionados na parcela de terreno em questão.
Idênticas conclusões extraímos da análise da ferramenta existente no site da Câmara Municipal ... (referido pela testemunha que fez o levantamento topográfico de fls. 269), “G...”, e que tem várias fotografias do local, com as mesmas características das juntas aos autos, sendo facilmente localizável a parcela em causa nos autos com a referência da Rua ... em ... e a sua diferente configuração quando comparada com a parcela de terreno situada na cota inferior.
t) Fls. 265: A acta de fls. 265 que comprova que, perante a justificação notarial realizada pela A., houve quem se se apresentasse a informar que um dos prédios justificados que lhe pertencia, assumindo a A. o erro na justificação realizada.
Com particular relevância, considerou o Tribunal os documentos cuja junção determinou oficiosamente já depois de encerrada a audiência e que permitiram parte dos factos provados, no que se refere à evolução da inscrição matricial dos imóveis e, em particular, a passagem do imóvel de natureza rústica a urbana.
Em particular, veja-se que a parcela de terreno passa de rústica a urbana por intervenção oficiosa da administração tributária, no âmbito da liquidação do imposto de sisa (que teria sido efectuada considerando a natureza rústica e se entendeu que deveria ser efectuada como urbana na categoria de “outros”), sendo inequívoco que, tal como referiu a Mandatária da A. em alegações, da planta de fls. 363 se extraem as mesmas conclusões a que o Tribunal já se reportou supra ao analisar a planta de fls. 155 verso, no sentido de a parcela de terreno que a R. refere ser sua não se estender para sul até ao local que é indicado na planta junta como documento 11 com a contestação.
Assim, o Tribunal considerou:
II - A inspecção realizada ao local e as fotografias juntas aos autos, que se encontram a cores no suporte electrónico do processo, tendo sido extraídas dos locais que ambas as partes reportavam como sendo os limites dos terrenos de que arrogam proprietárias.
III - As declarações de parte da legal representante da R., sendo que esta adquiriu o imóvel apenas em 18/04/2018 - e veja-se que estes autos são de Dezembro de 2019 -, conhecendo os limites do terreno que lhe foram indicados como sendo os reais, sabendo da existência de um processo camarário em que aqueles estavam já indicados, por anteriores proprietários, como sendo os que nestes autos referiu serem os limites do imóvel que adquiriu.
Nada mais sabia sobre o terreno ou os seus limites, relativo ao momento anterior à sua aquisição, para além do que constava do respectivo processo de licenciamento.
Referiu ainda os actos praticados pela empresa após a compra do terreno, primeiro com a sua vedação e, depois, com o início da construção, que foi, segundo referiu, embargada extrajudicialmente pela A., que não ratificou tal embargo, e depois pela Câmara Municipal ..., correndo termos processo no Tribunal Administrativo relativo a tal questão.
IV - A prova testemunhal produzida:
- CCC, HHH, III, JJJ e KKK todos da Freguesia ... e com ligações à Freguesia e ou à Junta.
- Foi ainda ouvido LLL, topógrafo, que elaborou o levantamento de fls. 269.
- CC, que vendeu o imóvel à R., DD que representou o vendedor do imóvel perante o referido CC, embora não conste da escritura pública outorgada, nas circunstâncias que explicou ao Tribunal.
- EE, pai das sócias da R., e que, na prática gere a actividade da empresa, e que, tal como a filha, tinha o conhecimento do que lhe foi dito pelo vendedor quanto aos limites do terreno, sabendo ainda o que constava do processo de licenciamento camarário, instruído por anteriores proprietários. Referiu também, nos mesmos termos que a filha, as circunstâncias em que a A. embargou extrajudicialmente a obra, sem que, contudo, tivesse ratificado tal embargo, estando a obra parada por questões em discussão no Tribunal Administrativo.
- FF, funcionário da empresa que estava a proceder à construção da obra (diferente da R., mas pertencente aos mesmos sócios ou familiares directos) e descreveu o que foi efectuado no imóvel, fosse a sua vedação, fosse o início da construção e os termos em que foi embargada.
Analisada a totalidade da prova produzida, começa por referir-se que não existiu qualquer meio de prova que tivesse sequer indiciado a prática de qualquer acto material de gozo, por quem quer que seja anterior à R., sobre a parcela de terreno identificada na quadrícula verde e vermelha da planta de fls. 269, quando consideramos os sucessivos proprietários do imóvel antes da sua aquisição.
Nenhum.
O único acto material referido reporta-se já à vedação do terreno, efectuada pela R. após a sua compra, a que se seguiu a sua limpeza e o início da construção que lá verificamos existir.
Até então, nenhum dos sucessivos adquirentes fez da parcela em causa (aquela que fica a uma cota superior e sul do valo existente) qualquer utilização, fosse a que título fosse.
Aliás, o cultivo do terreno foi apenas referido na parte que se situa na cota inferior, o que é visível nas fotografias juntas.
Logrando o Tribunal recuar no tempo até ao momento em que esse terreno, então ainda como rústico, foi adquirido por HH (Outubro de 1989) e, portanto, há 30 anos, considerando a data da petição inicial, não conhecemos qualquer acto material que este tenha praticado no imóvel (e não estão aqui em causa actos jurídicos), mas apenas que, estando em fuga aos seus credores, diligenciou por colocar o imóvel em nome de um terceiro (LL), que apenas formalmente se tornou seu proprietário e que nenhum acto praticou também. Quem nos relatou estes factos, e que, como referiu, foi um par de vezes ao imóvel, foi aquele a quem HH escolheu para o representar, e que tratou efectivamente da venda do terreno a CC, que depois, em nome de uma sociedade, o vendeu à R..
Ou seja, de Outubro de 1989 a 2018 (data da aquisição pela R.) a única pessoa ouvida que teria conhecimento dos limites iniciais do terreno foi o referido DD que, como se disse já, assumiu ter ido um par de vezes ao terreno, ao que julga uma das quais com o proprietário HH (que se encontrava em fuga aos credores a viver fora do país e estava por isso interessado em esconder património através do familiar a quem apenas formalmente o vendeu).
É com base nestes limites, indicados nos termos em que a testemunha descreveu, olhando para a planta e dizendo, o terreno é por aqui, sem concretizar qualquer deles, que se estrutura toda a alegação da R. de serem estes os limites do terreno que adquiriu, quando é certo que a testemunha não teve dúvidas em afirmar que o terreno em causa (aquele que vendeu) ficava a um nível mais baixo dos restantes.
É certo que, como bem referiu a R. nas suas alegações, o processo de licenciamento não foi por si iniciado e, como tal, não são da sua autoria as descrições dos limites do terreno, por referência às plantas juntas. Tal caracterização do imóvel nos termos que constam do processo não é imputável à R., e provavelmente nem sequer a quem lhe vendeu o imóvel, se consideramos o levantamento topográfico de fls. 163 e datado de 2006.
O que sabemos é que nenhuma prova foi apresentada que corrobore que qualquer dos sucessivos proprietários do imóvel fez qualquer utilização, fosse a que título fosse, da parte sul do imóvel, a tal com a forma de triângulo e existente a uma cota superior, ou seja, a área quadriculada a verde e vermelho de fls. 269, pelo menos desde 1989.
Fizemos esta análise em face dos factos alegados pela R., apenas por comodidade de exposição já que era tão claro não se ter provado a prática de nenhum acto material (aliás, diria o Tribunal que não foi sequer efectuado qualquer esforço probatório nesse sentido, considerando a prova testemunhal por si indicada e o que cada uma delas fez em relação ao imóvel).
A A. alegava os factos contrários, ou seja, ter sido ela a praticar, sobre a parcela referida e identificada a quadriculado verde e vermelho, actos materiais de posse - arts. 16º a 22º da petição inicial.
Analisada criticamente a prova testemunhal produzida, em particular o depoimento da última testemunha da A., o Tribunal não tem dúvidas que apenas pode afirmar o facto que deu como provado.
Ninguém tinha dúvidas que havia no local um terreno, que foi cultivado pela família ... (e que são os vendedores da escritura pública de 1989), e em particular por AA, até ao valo existente no local e que se identifica facilmente nas plantas do processo camarário de fls. 47, ou seja, o espaço interior do tracejado.
Nenhuma das testemunhas reportou qualquer cultivo na específica parcela situada a sul e que se situa numa cota superior.
Aliás, a única utilização que referiram, diz respeito a tempos que não lograram precisar, mas anteriores ao prolongamento da Rua ... em direcção ao mar, em que um tal de “MMM” teria naquela parcela uma casinha, trazendo o barco pelo mar até ao terreno onde ficava guardado, sem que soubessem a que título e com autorização de quem se havia instalado naquele local.
Sabiam, contudo, como o referiram, que aquela casa teria sido destruída, chegando a afirmar que teria sido indemnizado para deixar o local em causa.
Note-se que todos os que conheciam aquele local, sem excepção, afirmaram que a última casa do bairro dito “clandestino” era a que hoje ainda existe (apesar das melhorias introduzidas), não tendo nenhuma memória daquela 1ª do lado esquerdo que se verifica a fls. 155 (parte inferior) e que tem de ter sido destruída para que fosse efectuado o prolongamento da Rua ... até ao mar. Existe pelo menos a dúvida se tal casa seria ou não a do tal “MMM”.
Certo é que, para além deste bairro de casas que todos identificaram como clandestinas e até ao que identificaram como sendo da família de AA, para além da tal casa do MMM, nenhuma utilização referiram para a referida parcela.
Todos se reportaram a estes terrenos como sendo da “freguesia”, da “protecção marítima” ou “baldios” (estamos perante uma parcela de terreno junto à praia, havendo a convicção generalizada que nela não se pode construir atenta a proximidade com o mar) e as casas construídas como sendo clandestinas, quando é certo, como todos sabiam, estas casas já existiam quando a A. justificou notarialmente a aquisição por usucapião do imóvel que alega agora integrar aquela parte identificada na parte quadriculada da planta.
Ou seja, não existe qualquer dúvida que a A., quando justificou, em 1986, ter adquirido por usucapião o imóvel inscrito na matriz predial rústica sob o art. ..., não tinha a posse da parcela de terreno, pelo menos na parte em que existiam já as construções ditas clandestinas e que se reportam, pelo menos, ao período após o 25 de Abril.
Todos, com mais ou menos rigor, referiram que a A. foi procedendo à limpeza daquele espaço, que tem a configuração específica que as fotografias documentam, imputando tal limpeza a ordens do último Presidente de Junta que foi ouvido pelo Tribunal, mas, como ficou claro do seu depoimento - que desconhecia até a existência da escritura pública de justificação notarial e, portanto, nunca agiu na convicção de representar quem era o dono da parcela -, tal limpeza era ordenada por si por não querer aquele terreno sujo, naquele local, junto à praias, como faria com qualquer bouça onde fosse depositado lixo e não porque a Junta fosse dona do que quer que seja.
Note-se que nenhuma das testemunhas da A. reportou que esta teve qualquer intervenção na cedência da parcela de terreno que permitiu a construção do prolongamento da Rua ... até ao mar, quando é certo que, na sua versão, a rua teria sido construída em terreno que lhe pertencia, tendo tal construção provocado a separação, em relação ao imóvel cuja aquisição foi justificada, da parcela de terreno referida de 235,15 m2.
O Tribunal não pode deixar de referir que lhe parece também inequívoca a leitura que foi efectuada pelo Mandatário da R. relativamente ao levantamento de fls. 269. Se é certo, como se disse, que na confrontação norte o topógrafo considerou os limites do valo existente no local, já a sul e a nascente tal levantamento nada tem a ver com as construções que já existiam no local quando a justificação foi efectuada. Ou seja, as características que o imóvel tinha então não conduziriam aos limites que constam do levantamento, sem que haja qualquer referência a qualquer marco delimitador com os terrenos confrontantes.]
1.3.4.
Da impugnação apresentada pela Ré
1.3.4.1.
Defende a Apelante/Ré que a matéria descrita no elenco dos factos provados, sob os pontos 1) a 6), 16) e 20) deveria antes ter sido julgada não provada, e que a matéria descrita no elenco dos factos não provados, sob os pontos 4), 5) e 6), com referência à sua alegação, deveria antes ter sido julgada provada.
Fundamenta tal pretensão nos seguintes meios de prova:
a) Depoimento da sua legal representante, nas passagens da gravação áudio que indica e transcreve;
b) Depoimentos das testemunhas CC, DD, EE e FF, nas passagens da gravação áudio que indica e transcreve;
c) Documentos apresentados com a contestação, sob os n.ºs 1 a 23; documentos apresentados com o requerimento ref.ª Citius 36809867, sob os n.ºs 1 e 2; documento apresentado com o requerimento ref.ª Citius 37635323, sob o n.º 6; documentos apresentados com o requerimento ref.ª Citius 37678403, sob os n.ºs 1 e 2; documentos juntos pela Autoridade Tributária e Conservatória do Registo Predial, com a ref.ª Citius 426676328; e
d) Auto de inspeção judicial ao local realizada em 24.11.2020.
Escutada integralmente a prova produzida oralmente em audiência e analisado o acervo documental carreado para os autos, afigura-se-nos manifesta a falta de razoabilidade da impugnação sobre a qual agora nos debruçamos.
Prenúncio de tal falta de razoabilidade é, desde logo, a quase total ausência de avaliação crítica por parte da Apelante, fundada em critérios dotados de objetividade e racionalidade, quanto aos meios de prova indicados, no sentido de justificar a pretendida modificação da decisão da matéria de facto.
Com efeito, no que concerne à prova oralmente produzida em audiência, a Apelante limita-se a transcrever parte dos depoimentos e a sumariar o respetivo teor; e no que concerne à prova documental, a técnica é em tudo semelhante, limitando-se à identificação dos mesmos e à enunciação do respetivo conteúdo, ainda que num ou noutro caso acabe por expressar o sentido da sua leitura.
1.3.4.2.
Relativamente à factualidade julgada provada, descrita sob os respetivos pontos 1) a 6), dúvidas não pode haver de que a mesma traduz tão só o teor dos documentos existentes nos autos, considerados pelo Tribunal a quo, não assumindo os meios de prova indicados pela Recorrente o mais ténue relevo para contrair o juízo probatório alcançado na sentença.
Também no que concerne às confrontações mencionadas sob o ponto 16) do elenco do elenco dos factos provados, elas resultam desde logo da documentação tida em conta pelo Tribunal recorrido, em termos que os argumentos esgrimidos pela Ré/Apelante não põem sequer minimamente em causa.
O facto provado sob o respetivo ponto 20) encontra ampla e sólida sustentação na prova testemunhal produzida, nomeadamente nos depoimentos das testemunhas HHH, III, JJJ e KKK, que revelaram conhecimento direto e circunstanciado do facto em questão, tendo deposto de forma merecedora de juízo de seriedade e isenção, depoimentos não contrariados minimamente pela produção de quaisquer outros meios de prova tidos por relevantes, nomeadamente os indicados pela Ré/Apelante.
Não há, pois, razões que justifiquem, nesta parte, a alteração da decisão da matéria de facto, e daí a manifesta improcedência do recurso.
1.3.4.3.
Centremos agora a nossa atenção na pretensão da Ré/Apelante no que concerne à factualidade julgada não provada, descrita sob os respetivos pontos 4), 5) e 6).
Defende a Apelante que se impõe antes julgar provado o seguinte:
“4 - O prédio referido em 7 a 13 da matéria de facto provada tem a configuração que a R. indica e inclui a área em discussão nestes autos.
5 – A R. e os seus antepossuidores praticaram actos materiais sobre a referida parcela de terreno, para além dos actos que estão referidos nos factos provados.
6 - Tendo agido na convicção de serem donos daquela parte da parcela de terreno, para além do que consta dos factos provados”.
Começando pelo mencionado item 4), o que se evidencia é a natureza manifestamente conclusiva da matéria que o mesmo contém e, como tal, insuscetível de merecer consideração no elenco da factualidade relevante, provada ou não provada.
Com efeito, o que se espera ver vertido no elenco dos factos relevantes são apenas factos concretos, e não conceitos, proposições normativas ou juízos jurídico-conclusivos (art. 607.º, n.º 4, do CPCivil). Ou seja, factos enquanto premissas de um juízo conclusivo, num ou noutro dos sentidos defendidos pelas partes, ou até eventualmente num terceiro sentido afirmado pelo tribunal por via do princípio do inquisitório.
Como se deixou bem sublinhado no Ac. da RE de 28.06.2018[12], “sempre que um ponto da matéria de facto integre uma afirmação ou valoração de factos que se insira na análise das questões jurídicas que definem o objeto da ação, comportando uma resposta, ou componente de resposta àquelas questões, o mesmo deve ser eliminado”.
Com efeito, pese embora no atual CPCivil não exista norma como a do n.º 4 do art. 646.º do CPCivil de 1961, que considerava “não escritas as respostas do tribunal coletivo sobre questões de direito”, tal “não significa, obviamente, que seja admissível doravante a assimilação entre o julgamento da matéria de facto e o da matéria de direito ou que seja possível, através de uma afirmação de pendor estritamente jurídico, superar os aspetos que dependem da decisão da matéria de facto”[13].
Ora, não se conceberia que nesta ação, em que as partes pedem ao tribunal que responda a uma controvérsia jurídica, que o tribunal desse tal resposta, em termos cabais e praticamente definitivos, em sede de decisão da matéria de facto.
Mas seria isso o que sucederia, se o Tribunal levasse a cabo a integração da matéria de facto em questão no elenco dos factos provados!
Quanto aos referidos pontos 5) e 6), não poderíamos estar mais de acordo com a valoração assumida pelo Tribunal a quo.
Na verdade, é absoluta a ausência de prova quanto à prática de atos materiais sobre a parcela de terreno sob discussão, pela Ré ou seus antecessores, para além do que ficou vertido no elenco dos factos provados. E por isso encontra plena justificação a afirmação feita pela Exma. Juíza de Direito, no sentido de que a Ré nem sequer demonstrou ter “efetuado qualquer esforço probatório nesse sentido, considerando a prova testemunhal por si indicada e o que cada uma delas fez em relação ao imóvel”.
É, pois, também nesta parte, manifestamente infundada a pretensão recursiva da Ré/Apelante, pelo que se nos impõe concluir pela total improcedência do recurso em matéria de facto.
1.3.5.
Da impugnação apresentada pela Autora
1.3.5.1.
Do pretendido aditamento aos factos provados da matéria alegada sob os artigos 5.º/6.º, 10.º e 25.º da petição inicial, e sob os artigos 39.º e 40.º da réplica
a)
Quanto aos artigos 5.º/6.º e 10.º, este último conexionado com o art. 11.º, todos da petição inicial, que de seguida se transcrevem:
[5.º - O indicado prédio da autora tem a configuração constante da planta topográfica que se anexa como doc. nº 3, onde o limite norte se define pela linha aí definida a verde, com início no ponto assinalado com a letra A e passando pelos pontos aí assinalados com as letras B, C, D até terminar no ponto assinado com a letra E.
6.º - Essa linha corresponde a um valo de areia e terra, por cuja base se acedia para a praia e para uma masseira ali existente, para norte, valo esse que sempre fez a respectiva delimitação.
10.º - Entre o prédio identificado em 1º da PI (inscrito no artigo ...), pelo norte e o prédio identificado no item 9º supra (inscrito no artigo 83º) pelo sul, sempre existiu uma parcela de terreno em forma de masseira, que era da família do AA, a qual estava antigamente inscrita no artigo ... da matriz rústica.
11.º - Será essa parcela de terreno, agora inscrita no artigo 1821º urbano, que a ré recentemente adquiriu, a qual, como se poderá verificar da respectiva matriz, confronta, efectivamente, pelo norte e pelo sul com a Autora.]
Tais artigos da petição inicial nada mais contêm do que matéria conclusiva e, como tal insuscetível de merecer consideração no elenco da factualidade relevante, provada ou não provada, reiterando-se aqui as considerações que sobre esta temática deixámos vertidas no âmbito do conhecimento da impugnação apresentada pela Ré.
Improcede, pois, nesta parte, a pretensão recursiva da Apelante/Autora.
b)
E que dizer quanto ao alegado no art. 25.º da petição inicial? – “A Autora Junta de Freguesia, quer directamente, quer através de carta registada, já alertou a ré de que está a ocupar terreno que lhe pertence e que não autoriza quer essa ocupação, quer a efetivação de quaisquer construções na mesma, que reputa de abusivas”.
A resposta é simples e só uma. Tal matéria, em face do pedido e da causa de pedir não se apresenta como facto essencial, sendo que, se vista na perspetiva da sua intrumentalidade ou complementaridade, considerando o demais alegado e a controvérsia estabelecida pelas partes, a sua eventual inclusão no elenco dos factos provados, nada alteraria em termos de decisão do problema jurídico sob discussão, sendo certo que a sua limitada relevância acaba até por encontrar expressão no ponto 19 dos factos provados, no segmento “…incluindo da A., até 12.10.2019”.
Não vemos, pois, necessidade fazer constar tal factualidade no elenco dos factos julgados provados, pelo que se impõe, também nesta parte, a improcedência da pretensão da Recorrente.
c)
No que concerne à matéria vertida nos artigos 39.º e 40.º da Réplica, a mesma limita-se a replicar, agora na perspetiva da defesa à reconvenção, o que já se fizera constar na petição, enquanto fundamento da ação, cujo caráter conclusivo deixámos assinalado supra, pelo que, pela mesma ordem de razões, não pode proceder a pretensão da Apelante.
1.3.5.2.
Da invocada necessidade de complementação dos factos julgados provados e descritos sob os respetivos pontos 17 e 18
Assumem o seguinte teor os itens 17 e 18 do elenco dos factos julgados provados:
[17. A R., após a compra efetuada, procedeu à vedação e iniciou uma construção.
18. A R. realizou essa vedação com rede malha sol, incluindo uma área de 235,15m2 que se situa para sul do valo existente no prédio identificado em 6, implantando nessa parcela parte das fundações da casa que pretende construir”.]
Neste âmbito, discorre a Apelante nos seguintes termos:
[O ponto 17 da matéria de facto tem na sua base o artigo 12º da PI onde se afirmava que a Ré procedeu à vedação e iniciou uma construção em parte do prédio da A. Sendo conclusiva a afirmação constante da parte final do item, compreende-se que não tenha sido levado aos factos assentes, todavia falta o «complemento directo» da frase, isso é saber o que é que a R. vedou, o que, como vimos supra, conjugada a prova, o tribunal apurou.
Assim, ao indicado ponto 17 da matéria de facto provado deve ser aditada a parte infra sublinhada, passando a ter a seguinte redação:
- Após a aquisição do terreno, a Ré procedeu à vedação de uma parcela de terreno com a forma retangular com a configuração da planta de fls. 37, dentro da qual, na parte sudeste, iniciou uma construção.
O ponto 18 da matéria de facto acima transcrito tem na sua base o artigo 13º da PI onde se afirmava que, ao invés de respeitar o valo que sempre delimitou ambas as propriedades, valo esse existente pelo lado sul do seu prédio, a ré vedou uma área de terreno que pertence à autora com rede malha sol, e nela implantou parte das fundações da edificação que pretende construir.
Como se vê do que acima se transcreveu da motivação da decisão de facto, bem como da inspeção ao local, o tribunal apurou mais, devendo ser aditada a parte infra sublinhada, sugerindo-se, para sua melhor perceção, que passe a ter a seguinte redação:
- Dentro da área vedada a rede malhasol pela Ré encontra-se a área de 235,15m2 que se situa para sul do valo identificado a tracejado na planta da Ré de fls. 37, onde esta implantou parte das fundações da edificação que pretende construir.]
Quanto ao pretendido acrescento ao ponto 18), parece evidente o lapso da Apelante, que se evidencia desde logo pela incompletude do que, em sede de alegações de recurso, deixou citado quanto ao teor do item em questão: “A R. realizou essa vedação com rede malha sol, incluindo uma área de 235,15m2 que se situa para sul do valo existente no prédio identificado em 6”. Ora, conforme deixámos citado supra, o teor do ponto 18 do elenco dos factos provados não termina no ponto em que a Apelante deu por finda a citação que do mesmo fez. Na verdade, o mesmo prossegue assim “…implantando nessa parcela parte das funções da casa que pretende construir”. Ou seja, o que a Apelante pretende ver acrescentado, afinal já consta no lugar indicado!
Ainda assim, julgamos que a localização da área de 215,15 m2 mencionada no ponto 18 melhor explicitada ficará por referência à planta topográfica de fls. 269, correspondendo à área que aí surge quadriculada a verde e vermelho e delimitada a tracejado verde.
A planta topográfica de fls. 269 corresponde ao original do documento junto sob nº 3 com a petição inicial, tendo sido elaborada pela testemunha LLL, nos termos e circunstâncias que esclareceu em audiência de julgamento, depoimento merecedor de juízo de seriedade e isenção.
Por isso, decidimos alterar o ponto 18 do elenco dos factos julgados provados, passando o mesmo a constar com a seguinte redação:
[18 - A R. realizou essa vedação com rede malha sol, incluindo uma área de 235,15m2 que se situa para sul do valo existente no prédio identificado em 6, representada na planta topográfica de fls. 269 a quadriculado verde e vermelho, circundada a tracejado verde, implantando nessa parcela parte das fundações da casa que pretende construir”.]
No que concerne ao ponto 17, não vemos necessidade de acrescentar o quer que seja, designadamente o conteúdo proposto pela Recorrente, porquanto da leitura conjugada com o ponto 18, retira-se o que é essencial ao apontado “complemento direto”.
1.3.5.3.
Da pretensão de modificação da decisão quanto aos factos julgados não provados e elencados sob os respetivos pontos 1, 2, 3, 5/6
1.3.5.3.1.
Quanto ao ponto 1) – “O prédio referido em 2) dos factos provados, com a inscrição matricial ..., tenha a configuração constante da planta topográfica junta e inclua a área em discussão nestes autos” –, defende a Apelante/Autora, com base nos meios de prova que especifica, a respetiva integração no elenco dos factos julgados provados, e com a seguinte redação que propõe: “No prédio da A. inclui-se a área de 235,15m2 em discussão e identificada a tracejado na planta topográfica de fls. 12”.
Pois bem, por tudo quanto já expusemos, não custa perceber que a matéria agora em apreço assume natureza puramente conclusiva, tanto na redação conferida pelo Tribunal a quo, como na redação proposta pela Apelante, e daí que não possa figurar no elenco dos factos provados.
Improcede, nesta parte, a pretensão da Recorrente/Autora.
1.3.5.3.2.
Relativamente ao ponto 2) – “Tenha sido a A. a autorizar a ocupação da parcela de terreno e tenha sido ela quem autorizou a construção de um arruamento junto à parcela em questão” -, defende a Apelante que se justifica pelo menos dar como provado o seguinte: “A. autorizou, solicitando à Câmara Municipal, a construção de arruamento junto à parcela em questão, bem como foi anuindo na ocupação da parte sul do seu prédio por famílias pobres da freguesia”.
No que concerne ao primeiro segmento (A. autorizou, solicitando à Câmara Municipal, a construção de arruamento junto à parcela em questão), a Apelante parece fundar o seu entendimento unicamente no depoimento da testemunha HHH, conforme excerto transcrito do minuto 48:20 a 49:00.
Embora a testemunha em questão tenha efetivamente dito, a dado passo, ter sido a Junta de Freguesia a pedir à Câmara Municipal para fazer o arruamento em questão, a verdade é que tal depoimento, sem mais, nomeadamente sem documentação de sustentação que seria razoável que existisse, não se nos apresenta como meio de prova bastante para considerar provado tal facto, mormente se levarmos em consideração que dos depoimentos das testemunhas indicadas pela Apelante, como ligação mais estreita à Junta de Freguesia, o que resultou foi antes a ideia generalizada de que a Câmara Municipal “punha e dispunha a seu bel prazer” em matéria de organização do espaço urbanístico.
Quanto ao mais contido no ponto 2), afigura-se-nos não assumir especial relevância para a decisão, ao menos fora do âmbito da matéria abrangida pelos subsequentes pontos 3), 5) e 6), pelo que poderá eventualmente ser objeto de consideração quando nos debruçarmos sobre aquele outro segmento da impugnação.
1.3.5.3.3.
Defende ainda a Apelante/Autora, desde logo com base nos depoimentos das testemunhas DD, CCC, HHH, III e JJJ, nas passagens da gravação áudio que especificou, bem assim no teor dos documentos que indicou, que em vez de se considerar não provada a matéria integrada nos respetivos pontos 3), 5) e 6, deve antes julgar-se provada a matéria de facto que encontra expressão nos artigos 14.º a 23.º da petição inicial, com descrição equivalente ao que se segue:
- “Desde data anterior à escritura de fls. 9, a parcela em discussão, identificada a quadriculado verde e vermelho na planta topográfica de fls. 269, correspondente ao original do documento n.º 3 junto com a petição inicial, sempre foi ininterruptamente cuidada pela A., repondo terreno com saibro, limpando de sucata e outros materiais lá colocados, bem como sempre foi, com anuência da A., ininterruptamente usada pelos fregueses, ora para secar sargaço, ora para estacionar veículos, para colocar estendais de roupa, ora para passagem para a praia e para a pesca, sempre à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém e na convicção de que a referida faixa de terreno pertence à Autora JUNTA DE FREGUESIA ...”.
Escutados integralmente os mencionados depoimentos testemunhais, deles se retira desde logo uma primeira convicção, irrefutável à luz de qualquer outro meio de prova produzido: o prédio em discussão, adquirido pela Ré, em tempos agricultado, corresponde a uma parcela de terreno situado em toda a sua extensão a uma cota substancialmente mais baixa relativamente aos demais terrenos envolventes, habitualmente designado na zona por “masseira”.
Também a testemunha KKK caracterizou o terreno adquirido pela Ré em termos idênticos às demais: [O terreno da Ré era uma “Gamela” – terreno fundo que quando eu era garoto juntava muita água (…) o que delimitava o terreno da Junta do terreno da Ré era um valo].
Significativo é o facto de a referida caracterização do terreno adquirido pela Ré, enquanto situado a cota mais baixa relativamente a todos os demais terrenos, traduzir não só os depoimentos das testemunhas arroladas pela Autora, mas também o depoimento da testemunha DD (arrolada pela Ré) que, identificando-se como “compadre” de quem antes assumia a qualidade de real proprietário do terreno (HH), referiu ter diligenciado pela venda do terreno desde 2006, altura em que “estava a ser cultivado (…) encontrava-se todo ele a uma cota mais baixa (…) e existiam umas sebes que o delimitavam naturalmente”.
Parcela de terreno com semelhantes características (“masseira”) encontra mesmo expressão gráfica na planta correspondente ao documento de fls. 47 do suporte físico do processo (linha circundante irregular com traços de dois tamanhos diferentes e intercalados a apontar para o interior do espaço sob representação).
No que respeita às confrontações do terreno adquirido pela Ré, resulta inequívoco, não só por via do sentido dos depoimentos das mencionadas testemunhas arroladas pela Autora, mas sobretudo pelos documentos juntos, que a sul confronta com terreno da Autora JUNTA DE FREGUESIA ..., o que de resto se mostra refletido na factualidade julgada provada e descrita sob os respetivos pontos 6) e 7).
Ora, tal confrontação a sul, por via da caracterização relatada pelas ditas testemunhas, corresponde materialmente a um “valo” (termo mencionado pela generalidade dos depoentes), sinónimo de “valado”, “fosso” ou “barranco”, que por sua vez se apresenta compatível com a linha definida pelas letras A, B, C, D e E, traçada na mencionada planta topográfica de fls. 269.
Chegados aqui, uma primeira conclusão se nos impõe: nada do que existe a sul do referido “valo” ou “linha gráfica” se inscreve na área do prédio pertencente à Ré.
Com efeito, a Ré não logrou fazer prova, como se deixou afirmado na sentença recorrida, e deixámos já confirmado, ter, por si e antecessores, praticado qualquer ato material na faixa de terreno identificada a quadriculado verde e vermelho na planta topográfica de fls. 269, a não ser os atos de vedação e construção descritos em 17) e 18) do elenco dos factos provados, ocorridos necessariamente após 18.04.2018.
Mas, e a Autora? Que atuação teve ela ao longo do tempo sobre a mesma dita faixa de terreno?
Adiantamos desde já que o sentido da resposta dada pelo Tribunal a quo nesta matéria, que acaba por se traduzir, afinal, em deixar ficar a dita faixa numa espécie de limbo ou “terra de ninguém”, não pode, de modo algum, ser merecedora do nosso acolhimento.
Vejamos.
Em face dos factos julgados provados e descritos sob os respetivos pontos 1), 2) e 3), o terreno situado imediatamente a sul do referido “valo” ou da dita “linha gráfica”, em conjugação com o sentido dos depoimentos testemunhais invocados pela Apelante/Autora, terá necessariamente de corresponder ao “prédio rústico descrito sob o nº ... da Conservatória do Registo Predial de Vila do Conde, Freguesia ..., situado na ..., constando dessa descrição que tem a área de 1.450 m2, inscrição matricial ..., de pastagem, a confrontar do norte com AA, do sul com caminho, do nascente com OO e do poente com H...”, cuja aquisição, por usucapião fundada em escritura pública de justificação notarial datada de 29.08.1986, se encontra registada a favor da Autora desde 11.12.1986.
Não há conhecimento de que a mencionada escritura de justificação notarial tenha sido impugnada por quem quer que seja, sendo certo que nela deixou a Autora declarado ser possuidora, com exclusão de outrem, do dito prédio.
Em 1986, à data da referida escritura de justificação notarial, tal prédio, nos termos da respetiva descrição matricial, confrontava a sul com “caminho”.
E porque em 1986 já existia o edificado correspondente ao “Bairro ...”, assim nomeado pelas ditas testemunhas e representado na referida planta topográfica, então, considerando a área inscrita do artigo matricial rústico ... (1.450 m2), é crível que esta área abranja todo o tal “Bairro ...”, levando a concluir que a respetiva confrontação sul, um “caminho” em 1986, corresponderá ao que na dita planta topográfica se mostra representado pelo prolongamento da “Rua ...” em direção à praia.
Desde 1986 até à atualidade, como resultou dos mencionados depoimentos testemunhais, e os documentos correspondentes às fotografias que integram folhas 255 a 264 do suporte físico do processo, ocorreram, compreensivelmente, alterações estruturais no terreno em questão.
Foi realizado, designadamente, arranjo urbano pela Câmara Municipal, que se traduziu no prolongamento da Rua ... em direção ao mar, prolongamento esse que, em outubro de 2014, já assumia a forma de “arruamento”, empedrado, como figura na fotografia de folhas 264.
No âmbito da realização do dito prolongamento da Rua ... até ao mar, conforme resultou mais esclarecidamente do depoimento da testemunha III, foi derrubada uma edificação, também ela clandestina, conhecida por todos como a casa do “MMM”, situada em local que passou a ficar ocupado pela Rua.
Neste quadro, o Tribunal a quo deixou afirmado: “não existe qualquer dúvida que a A., quando justificou, em 1986, ter adquirido por usucapião o imóvel inscrito na matriz predial rústica sob o art. ... não tinha a posse da parcela de terreno, pelo menos na parte em que existiam já as construções ditas clandestinas e que se reportam, pelo menos, ao período após o 25 de Abril”.
Não vemos que relevância poderá assumir tal afirmação no caso dos autos.
Por um lado, tendo a Autora outorgado a dita escritura de justificação sobre área de terreno ocupada por construções clandestinas, e tendo registado a respetiva aquisição por usucapião, sem que haja notícia de impugnação do ato de aquisição por quem quer que seja, presume-se a propriedade da Autora sobre a dita área ocupada pelas construções clandestinas.
Por outro, o que está em discussão nos autos nada tem a ver com a área que foi ou ainda é ocupada pelas construções clandestinas.
O que está efetivamente em causa é tão só uma parcela de terreno que a A. considera também integrada no artigo rústico ..., descrita no ponto 18 do elenco dos factos julgados provados, e que podemos ver retratada na fotografia de fls. 264, a partir do lancil norte do dito arruamento, como um terreno em terra batida, bordeada a norte por vegetação.
Sobre essa faixa de terreno, circunscrita a 235,15 m2, nenhum meio de prova foi produzido suscetível de pôr em causa a veracidade da declaração vertida pela Autora na mencionada escritura de justificação notarial.
Ao invés, o que se pode concluir da prova testemunhal, mormente dos depoimentos das testemunhas HHH (presidente da Junta de Freguesia desde 1985 a 1994), III (presidente da Junta de Freguesia desde 2000 a 2004), JJJ (presidente da Assembleia de Freguesia desde 2009 a 2017), é que a faixa sob discussão, desde data muito anterior à outorga da dita escritura de justificação, era sobretudo usada pela generalidade da população para aceder à zona da praia, bem assim para proceder ao depósito sargaço e secagem da roupa em estendais, e, a partir de certa altura, para estacionamento de veículos, e até para depósito de entulho, exercendo a Autora, antes e após a escritura, sobretudo atividade de vigilância e limpeza, com o intuito de manter a referida serventia comunitária.
Tais depoimentos, não obstante o “episódio” pouco recomendável de que se falou em sede de audiência de julgamento, traduzido na existência de uma reunião das testemunhas na sede da Junta de Freguesia, com a presença também da Ilustre Advogada da Autora, nas vésperas do julgamento, onde se falou do assunto em causa, evidenciaram conhecimento direto dos factos, e, atento o modo sereno e assertivo como foram prestados, são merecedores de juízo de seriedade e isenção, não contrariado pela produção de qualquer outro meio de prova relevante.
Tendo por base o depoimento da testemunha KKK (presidente da junta desde 2005 a 2007), mormente no segmento em que afirmou “desconhecer a existência da escritura pública de justificação notarial”, concluiu-se na sentença que aquele presidente de junta, relativamente aos atos que praticou sobre a faixa de terreno em discussão, “nunca agiu na convicção de representar quem era o dono da parcela”.
Pouco importam para o caso os “estados de alma” ou a maior ou menor consciência de representação, ou do seu sentido, por parte do referido Senhor Presidente de Junta, considerando desde logo que no respeitante à freguesia, são dois os órgãos autárquicos: a assembleia de freguesia (órgão deliberativo) e a junta de freguesia (órgão executivo).
Embora desconhecendo a existência da escritura de justificação notarial, certo é que, enquanto presidente do órgão executivo da freguesia, deu continuidade a uma atuação antiga daquele órgão sobre o terreno em causa. Determinou, para além do mais, a colocação de pedras e terra com o objetivo de impedir a entrada de água do mar no terreno; e, sobretudo, mandou limpar, com regularidade, o terreno, “não havendo nada mais a fazer”, citando as palavras da testemunha.
Ou seja, nenhuma atuação da testemunha, enquanto presidente da Junta no mencionado período, permite concluir pela inversão do sentido da atuação do órgão autárquico sobre o terreno em causa, iniciada muitos anos antes.
É verdade que a Autora Junta de Freguesia nunca mandou plantar batatas e couves no terreno, mas muito compreensivelmente, deve dizer-se, considerando a constituição predominante do mesmo (areia, segundo as testemunhas).
Os atos materiais praticados pela Autora traduzem afinal o que é normalmente esperado de qualquer Junta de Freguesia na situação em apreço, que se reconduzem a vigilância e manutenção de um espaço destinado a servir os interesses dos fregueses, atuação que por sua vez se mostra compatível com o exercício de um direito próprio, nomeadamente de propriedade.
Por tudo quanto deixámos exposto, julgamos que se justifica inteiramente a alteração da decisão da matéria no segmento em apreço, em conformidade com a pretensão da Apelante/Autora, pelo que decidimos aditar ao elenco dos factos julgados provados um novo item, com o seguinte teor:
[22. Desde data anterior à escritura pública de justificação notarial mencionada em 1), a parcela de terreno em discussão, identificada a quadriculado verde e vermelho na planta topográfica de fls. 269, correspondente ao original do documento n.º 3 junto com a petição inicial, sempre foi ininterruptamente cuidada pela A., repondo terreno com saibro, limpando de sucata e outros materiais lá colocados, bem como sempre foi, com anuência da A., ininterruptamente usada pelos fregueses, ora para secar sargaço, ora para estacionar veículos, para colocar estendais de roupa, ora para passagem para a praia e para a pesca, sempre à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém e na convicção de que a referida faixa de terreno pertence à Autora JUNTA DE FREGUESIA ...].
Consequentemente, tal matéria deixa de constar no elenco dos factos relevantes julgados não provados.
2.
OS FACTOS E O DIREITO
2.1.
A presente ação, enquadrada pelos pedidos formulados pela Autora e pela Reconvinte, assume-se essencialmente como reivindicação, à luz do preceituado no artigo 1311.º do Código Civil (CCivil), que assim dispõe: “1 – O proprietário pode exigir judicialmente de qualquer possuidor ou detentor da coisa o reconhecimento do seu direito de propriedade e a consequente restituição do que lhe pertence. 2 – Havendo reconhecimento do direito de propriedade, a restituição só pode ser recusada nos casos previstos na lei”.
São dois os pedidos que é comum ver associados à reivindicação:
. o reconhecimento do direito de propriedade (pronunciatio); e
. a restituição da coisa (condemnatio).
Só através destas duas finalidades se preenche o esquema da ação de reivindicação, se bem que quanto à primeira finalidade, tem-se entendido que, se o reivindicante se limitar a pedir a restituição da coisa, não formulando expressamente o pedido de reconhecimento do seu direito de propriedade, deve este pedido considerar-se implícito naquele.
No caso, dúvidas não há de que foram formulados ambos os pedidos, tanto pela Autora como pela Reconvinte.
Formulou a Autora pedidos adicionais, nomeadamente o que consta da respetiva al. b), com a seguinte expressão: “Reconhecer [a Ré] que o limite entre a sua propriedade e o prédio da Autora se define pela linha que, na planta topográfica junta como doc. 3, vai desenhada a verde, entre os pontos A e A aí assinalados”.
É costume ver-se tal pedido associado às chamadas “ações de demarcação”.
Assim como tem sido habitual ver questionada pela jurisprudência a compatibilidade entre os pedidos de reivindicação e de demarcação, constituindo exemplos de afirmação de “incompatibilidade” o acórdão da RC, de 15.02.2022[14], e da RP, de 13.07.2021[15].
Pese embora no caso a questão não tenha sido nunca suscitada, e em bom rigor o referido pedido adicional não assuma sequer virtualidade para descaracterizar a ação como substancialmente reivindicativa, por se conter na causa de pedir que lhe é própria, sempre diremos que, em tese, não partilhamos da citada jurisprudência da “incompatibilidade”, que de resto tem sido objeto de críticas pelos processualistas, mormente nos tempos mais recentes.
Exemplo de tais críticas é o recente texto de URBANO A. LOPES DIAS, com data de 22 de março último, intitulado “Da não incompatibilidade entre os pedidos de reivindicação e de demarcação - Breve comentário ao acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, proferido no processo 768/21.0T8CVL.C1, em 15/02/2022”, publicado no “Blog do Instituto Português do Processo Civil (IPPC)[16], no qual o autor conclui: “1.ª Ao contrário do que decidiram as instâncias, os AA. apenas se limitaram a pedir a demarcação dos prédios e, na sequência da procedência da sua pretensão, pediram que os RR. fossem condenados a retirarem os pertences da parcela indevidamente ocupada; 2.ª Não havia motivo algum a impedir o prosseguimento da lide. Ao contrário do sumariado e decidido, o pedido de demarcação não é substancialmente incompatível com o pedido de reivindicação; 3.ª Acresce que, actualmente, nem incompatibilidade processual existe entre os dois referidos pedidos”.
Semelhante entendimento vem manifestando MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, nomeadamente em comentário ao acórdão da RG, de 25.03.2019 (3279/19.0T8BRG-B-G1)[17] - “(…) a interessante questão que ele [acórdão] suscita é a de saber se o pedido de reivindicação e o pedido de demarcação são substancialmente incompatíveis. É claro que os fundamentos de cada um dos pedidos são distintos. No entanto, isto não chega para entender que há uma incompatibilidade substancial entre o pedido de reivindicação e o pedido de demarcação. Se o prédio for reivindicado ao proprietário de um prédio confinante, não é impossível entender que o reivindicante pode formular não só o pedido de reivindicação, mas também o de demarcação. A incompatibilidade substancial entre os pedidos ocorre quando ambos se excluem mutuamente. Não é o caso do pedido de reivindicação e do pedido demarcação. Em vez de se excluírem mutuamente, esses pedidos completam-se entre si, dado que o que se reivindica é o que resulta da demarcação a realizar entre os prédios confinantes” -, e ao cit. acórdão da RP, de 13.07.2021 (500/20.6T8ALB.P1)[18] – “Com o devido respeito, não se acompanha a orientação da RP quanto à ineptidão da petição inicial. Coloca-se uma pergunta muito simples: o que deve fazer alguém que se considera proprietário de um terreno, mas que tem dúvidas quanto à sua demarcação perante o terreno vizinho de que é titular o demandado? Segundo a orientação da RP, o que o reivindicante deve fazer é ignorar quaisquer dúvidas sobre as estremas dos prédios e reivindicar o prédio com a dimensão que julga ser a verdadeira. "Depois logo se verá". Segundo uma outra orientação, o reivindicante deve reivindicar o prédio contra o vizinho e, porque tem dúvidas quanto às estremas dos respectivos prédios, não deixar de, de acordo com uma litigância aberta e clara, as referir e, em consequência, cumular o pedido de demarcação. Porque esta solução é muito mais transparente, não pode deixar de ser esta a solução preferível. Resta acrescentar que não há nenhuma incompatibilidade substantiva entre o pedido de reivindicação e o pedido de demarcação: a reivindicação define a titularidade de prédio; a demarcação define, quando tal seja necessário, a extensão do prédio. Assim, é perfeitamente admissível reivindicar o que resultar da demarcação”.
Nas ações reais, como é o caso da ação de reivindicação, “a causa de pedir é o facto jurídico de que deriva o direito real” (art. 581.º, n.º 4, do CPCivil).
À luz do que se dispõe no art. 1316.º do CCivil, são duas as vias possíveis para o reivindicante demonstrar ser titular do direito de propriedade: aquisição originária, pelo reivindicante ou por algum dos seus antepossuidores, do direito de propriedade sobre a coisa (usucapião, ocupação ou acessão); ou então, no caso de aquisição derivada, terá de provar as sucessivas aquisições dos antecessores até à aquisição originária, prova fundamental em face do conhecido brocado nemo plus iuris ad alium transfere potest quam ipse habet.
Por forma a ultrapassar tal dificuldade de prova, podem então assumir papel relevantíssimo as presunções legais resultantes da posse e do registo, mais concretamente, as previstas nos arts. 1268.° do Código Civil e 7.° do Código de Registo Predial.
2.2.
No caso dos autos, o Tribunal a quo, com fundamento na presunção derivada do registo, julgou procedente o pedido da Autora, mas também o da Reconvinte, no que concerne ao reconhecimento genérico do direito de propriedade sobre os respetivos prédios enquanto realidades descritas no registo predial.
Todavia mais além não foi o Tribunal de que vem o recurso, a não ser julgar a improcedência do demais peticionado por ambas as partes.
E assim, o verdadeiro conflito, incidente sobre uma parcela de terreno com a área de 235,15 m2, sobre a qual ambas as partes se arrogam proprietárias, por alegadamente integrar a área do prédio cuja propriedade lhes foi reconhecida genericamente, ficou por resolver.
Deixou-se afirmado na sentença sob recurso, e bem, que a presunção derivada do registo predial, de que as partes beneficiam, não abrange os limites ou as dimensões dos respetivos prédios descritos, e que por isso sempre teriam de alegar e provar os factos adequados a consubstanciar a aquisição originária do direito de propriedade sobre a dita parcela com a área de 235,15 m2.
2.2.3
A aquisição do direito de propriedade sobre imóveis, por usucapião, depende, como é por demais sabido, da verificação de determinados condicionalismos mínimos de posse, como seja o exercício reiterado de poderes de facto sobre o bem ao longo de um determinado período de tempo, de forma ininterrupta ou contínua, sem oposição de ninguém, à vista de toda a gente ou de modo público, sempre na convicção de agir como dono, conceitos estes, constitutivos dos requisitos objetivos e subjetivos necessários à prova da aquisição originária do direito de propriedade por usucapião, a ser preenchidos por elementos de facto (a prova do corpus e do animus da posse nos termos daquele direito real, impostos pela lei [posse pública, contínua e pacífica] (arts. 1251.º, 1258.º, 1261.º, 1262.º, 1263.º, al. a) e 1287.º e seguintes, todos do CCivil).
À luz dos factos apurados pela 1.ª instância, concluiu esta, mais uma vez bem, que “nem a A. nem a R. lograram provar os limites que alegam ter o prédio de que são proprietários, pois que não resultaram provados quaisquer atos materiais de gozo sobre tal parcela de terreno, por qualquer das partes, com intenção de verdadeiros proprietários, pelo tempo necessário à sua aquisição por usucapião”.
Sendo certo, como resulta do já tratado, que nesta instância de recurso, em matéria de facto, nada se altera em favor do direito pretendido fazer valer pela Ré/Reconvinte, e daí que deva necessariamente manter-se a solução encontrada pela 1.ª instância, o mesmo já não sucede no que concerne ao direito pretendido fazer valer pela Autora.
Com efeito, considerando os factos julgados provados, neles se incluindo a nova factualidade que deixámos descrita sob o respetivo ponto 22) – [Desde data anterior à escritura pública de justificação notarial mencionada em 1), a parcela de terreno em discussão, identificada a quadriculado verde e vermelho na planta topográfica de fls. 269, correspondente ao original do documento n.º 3 junto com a petição inicial, sempre foi ininterruptamente cuidada pela A., repondo terreno com saibro, limpando de sucata e outros materiais lá colocados, bem como sempre foi, com anuência da A., ininterruptamente usada pelos fregueses, ora para secar sargaço, ora para estacionar veículos, para colocar estendais de roupa, ora para passagem para a praia e para a pesca, sempre à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém e na convicção de que a referida faixa de terreno pertence à Autora JUNTA DE FREGUESIA ...], bem assim as disposições a que já aludimos - arts. 1251.º, 1258.º, 1261.º, 1262.º, 1263.º, al. a) e 1287.º e seguintes, todos do CCivil -, é forçoso concluir pela verificação de todos os pressupostos da aquisição do direito de propriedade pela Autora, por usucapião, sobre a faixa de terreno objeto de controvérsia, descrita em 18) dos factos provados – “com a área de 235,15m2 que se situa para sul do valo existente no prédio identificado em 6, representada na planta topográfica de fls. 269 a quadriculado verde e vermelho, circundada a tracejado verde”.
Provado também resultou que a Ré procedeu à vedação daquela faixa de terreno e nela implantou parte das fundações de uma casa que pretende construir.
Assim, reconhecida à Autora o direito de propriedade sobre a faixa de terreno em questão, o respeito por aquele direito e consequente restituição que pediu nesta ação só lhe poderiam ser negados caso existisse fundamento legal para tal (cfr. n.º 2 do cit. art. 1311.º do CCivil).
E impendendo sobre a Ré o ónus de alegar e provar a sua qualidade de titular de um direito (real ou de crédito) legitimador da recusa da restituição (art. 342.º, n.º 2, do CCivil)[19], o que de modo algum logrou, então impõe-se considerar a dita ocupação ilícita e violadora do direito de propriedade da Autora, justificando-se como tal também a procedência dos pedidos formulados na petição inicial, sob as respetivas alíneas c) e d).
Procede, pois, nesta parte, o recurso da autora em matéria de direito.
2.2.4.
A Autora pediu também a condenação da Ré no pagamento, a título de sansão pecuniária compulsória, do montante de 50,00€ por cada dia de atraso na entrega da parcela de terreno à Autora, a partir da notificação da sentença.
Vejamos.
A sanção pecuniária compulsória foi introduzida no nosso ordenamento jurídico-civil pelo Decreto-lei n.º 262/83, de 16 de junho, tendo muito presente o modelo francês das astreintes, visando suprir as insuficiências ou inaptidão das figuras da execução específica e sub-rogatória, para obter eficazmente o cumprimento das obrigações infungíveis a que o credor tem direito.
Sendo nestas obrigações imprescindível uma conduta – ativa ou passiva – do devedor, criou-se um meio indireto de pressão, destinado a induzir aquele a cumprir a obrigação a que está adstrito e a acatar a respetiva injunção judicial.
É, pois, uma medida coercitiva de carácter patrimonial, seguida de sanção pecuniária, na hipótese daquela mensagem não conseguir compelir o devedor ao cumprimento.
Como se deixou bem explícito no preâmbulo do cit. Decreto-lei: “A sanção pecuniária compulsória visa, em suma, uma dupla finalidade de moralidade e de eficácia, pois com ela se reforça a soberania dos tribunais, o respeito pelas suas decisões e o prestígio da justiça, enquanto por outro lado se favorece a execução específica das obrigações de prestação de facto ou de abstenção infungíveis”.
Com tais objetivos estipulou-se no n.º 1, do art.º 829º - A, do CCivil: Nas obrigações de prestação de facto infungível, positivo ou negativo, salvo nas que exigem especiais qualidades científicas ou artísticas do obrigado, o tribunal deve, a requerimento do credor, condenar o devedor ao pagamento duma quantia pecuniária por cada dia de atraso no cumprimento ou por cada infração, conforme for mais conveniente às circunstâncias do caso”.
Do exposto se conclui que a sanção pecuniária compulsória apenas está prevista como instrumento de coação ao cumprimento de obrigações de prestação de facto e não de entrega de coisa. Nestas, uma vez que não é imprescindível um comportamento do devedor, dado que é possível a realização pelo tribunal de tal prestação, o processo executivo para entrega de coisa certa, é suficiente para assegurar o cumprimento da injunção judicial, conforme prevê o art. 827.º do CPCivil, não se justificando a previsão de qualquer medida compulsória do cumprimento.
É este o entendimento que vem sendo seguido pelo STJ, de que é exemplo o Acórdão de 01.07.2021[20]: “a sanção pecuniária compulsória prevista no nº 1 do art. 829º-A, do C. Civil, destina-se a compelir o devedor ao cumprimento em espécie de uma prestação de facto infungível, não contemplando, por isso, as situações de mera falta de cumprimento atempado ou integral de prestação de entrega da coisa, cuja sanção, como já se deixou dito, deverá ser obtida por via de indemnização complementar”.
E no que respeita às obrigações de facto, apenas as que comungam do atributo da “fungibilidade” estão a coberto da sanção em questão.
Rege na matéria o art. 767.º do CCivil, reportado à “legitimidade para prestar” no domínio das obrigações: “1. A prestação pode ser feita tanto pelo devedor como por terceiro, interessado ou não no cumprimento da obrigação. 2. O credor não pode, todavia, ser constrangido a receber de terceiro a prestação, quando se tenha acordado expressamente em que esta deve ser feita pelo devedor, ou quando a substituição o prejudique”.
Nas palavras de CALVÃO DA SILVA, “A questão da fungibilidade ou da infungibilidade da prestação resolve-se, assim, no aspecto prático, pela possibilidade ou impossibilidade de ter lugar o cumprimento por terceiro. Se, de acordo com o critério contido no artigo 767º o cumprimento por terceiro é admissível, a prestação é fungível; se, ao invés, o cumprimento por terceiro for de excluir, a prestação é infungível”[21].
No caso, a condenação da Ré, nos termos que deixámos já definidos, traduz-se em dois tipos de obrigações: uma obrigação de entrega de coisa, consubstanciada no dever de restituir à autora a faixa de terreno em causa; e uma outra obrigação – “de retirar todos os materiais e construções que tenha implantado no terreno, repondo este no estado anterior à ocupação” –, esta já de prestação de facto, mas ainda assim fungível, por à partida não se encontrar excluída a possibilidade de ser cumprida por terceiro, podendo sê-lo no âmbito de execução e à custa do devedor (art. 828.º do CCivil).
Por tudo isto, concluímos não ter aplicação no caso a sanção pecuniária compulsória, pelo que improcede a pretensão da Autora/Recorrente.
2.2.5.
Mais pediu a Autora a condenação da Ré a pagar-lhe, a título de indemnização pela privação do uso da parcela de terreno em causa, a quantia de 200,00 euros por cada mês que perdurar a ocupação abusiva.
Apreciemos.
A questão da ressarcibilidade do dano de privação de uso tem, nos últimos anos, sofrido uma evolução jurisprudencial, no sentido da sua crescente menor exigência factual.
Assim, foi-se abandonando a tese da prova concreta de factos reveladores de uma efetiva lesão patrimonial, adotando-se crescentemente a tese da probabilidade séria de danos patrimoniais e, mais recentemente, a tese de que a mera privação do uso constitui, por si só, um dano patrimonial, a fixar com recurso à equidade.
No caso típico do dano de privação de uso de um veículo automóvel tem vindo a aplicar-se esta tese menos restritiva, por ser legítimo presumir-se que o mesmo se destinasse a ser utilizado pelo respetivo dono, ficando apenas por apurar se tal utilização ocorria diariamente ou ocasionalmente.
No entanto, na privação de uso de um imóvel não parece razoável estabelecer idêntica presunção, por ser de conhecimento geral que muitos prédios se mantêm sem qualquer utilização durante dezenas de anos, ou sem qualquer utilização economicamente relevante.
Daí que tenhamos por inteiramente justificada a jurisprudência maioritária nesta matéria, nomeadamente do STJ, no sentido de que “a mera privação (de uso) da fração reivindicada, impedindo, embora, o proprietário do gozo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição nos termos do artigo 1305.º do CC, só constitui dano indemnizável se alegada e provada, pelo dono, a frustração de um propósito, real, concreto e efetivo de proceder à sua utilização, os termos em que o faria e o que auferiria, não fora a ocupação-detenção, pelo lesante”[22].
À luz de tal entendimento, avaliando os factos julgados provados (e mais não alegou a Autora com interesse nesta matéria), julgamos que os mesmos não são suficientes para alicerçar uma indemnização a título de privação de uso da faixa de terreno em causa.
Improcede, pois, também nesta parte, a pretensão da Apelante/Autora.
2.2.6.
Quanto a custas, considerando o preceituado no arts. 527.º, nºs 1 e 2, do CPCivil, e 1.º do RCProcessuais:
- A Ré/Reconvinte é responsável pelas custas da reconvenção do recurso de apelação que interpôs;
- Relativamente à ação e ao recurso de apelação interposto pela Autora, ambas as partes são responsáveis pelas respetivas custas, na proporção de 30% para a Autora e de 70% para a Ré.
IV.
DECISÃO
Pelos fundamentos expostos, julgando o recurso da Autora parcialmente procedente e totalmente improcedente o recurso da Ré, decidimos:
1. Alterar a decisão recorrida, em matéria de facto, nos termos sobreditos;
2. Alterar a decisão recorrida em matéria de direito e, consequentemente, o respetivo dispositivo, passando o mesmo a conformar-se com o seguinte:
a. Declaramos que o limite da propriedade entre o prédio da Autora e o prédio da Ré é definido pela linha que, na planta topográfica de fls. 269 do suporte físico do processo (correspondente ao original do doc. 3 junto com a petição inicial), é tracejada a verde, entre os pontos A e E assinalados;
b. Condenamos a Ré a restituir à autora a parcela de terreno com a área de 235,15 m2, melhor identificada em 18) do elenco dos factos provados, e a dela retirar todos os materiais e construções que lá tenha implantado, bem como a repor o terreno no estado anterior à ocupação;
c. Condenamos a Ré/Reconvinte a pagar as custas respeitantes à reconvenção e ao recurso de apelação por si interposto;
d. Condenamos ambas as partes a pagar as custas da ação, com referência ao peticionado pela Autora, assim como as custas do recurso interposto pela Autora, na proporção de 30% para esta e de 70% para a Ré.
3. Manter a decisão recorrida quanto ao mais.
***
Porto, 17 de maio de 2022
Fernando Vilares Ferreira
Maria Eiró
João Proença
________________
[1] Descrição que contempla as alterações introduzidas nesta instância de recurso.
[2] Redação alterada, conforme decisão infra sobre a impugnação da decisão da matéria de facto.
[3] Facto aditado ao elenco dos factos julgados provados, conforme decisão infra sobre a impugnação da decisão da matéria de facto.
[4] ANTÓNIO SANTOS ABRANTES GERALDES, Recursos em Processo Penal, 6.ª Edição Atualizada, Almedina, 2020, p. 332.
[5] Cf. MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, As partes, o objeto e a prova na ação declarativa, Lex, 1995, p. 195.
[6] Cf. Ac. do STJ de 06.10.2010, relatado por HENRIQUES GASPAR no processo 936/08.JAPRT, acessível em www.dgsi.pt.
[7] Cf. LUÍS FILIPE PIRES DE SOUSA, O Standard de Prova no Processo Civil e no Processo Penal, janeiro de 2017, acessível em http://www.trl.mj.pt/PDF/O%20standard%20de%20prova%202017.pdf.
[8] Ob. cit.
[9] Cf. TOMÉ GOMES, Um olhar sobre a prova em demanda da verdade no Processo Civil, in Revista do Centro de Estudos Judiciários, n.º 3, 2005, p. 152.
[10] Cf. CASTRO MENDES, Do conceito de prova em processo civil, Ática, 1961, Tese de Doutoramento apresentada à Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, p. 413.
[11] Cf. PAIS DE AMARAL, Direito Processual Civil, 12.ª edição, Almedina, 2015, p. 293.
[12] Relatado por FLORBELA MOREIRA LANÇA no processo 170/16.6T8MMN.E1, acessível em www.dgsi.pt.
[13] Cf. ANTÓNIO SANTOS ABRANTES GERALDES e outros, ob. cit., p. 746.
[14] Relatado por FALCÃO DE MAGALHÃES no processo 768/21.0T8CVL.C1, acessível em www.dgsi.pt.
[15] Relatado por IGREJA MATOS no processo 500/60.6T8ALB.P1, acessível em www.dgsi.pt.
[16] https://blogippc.blogspot.com/2022/03/da-nao-incompatibilidade-entre-os.html.
[17] https://blogippc.blogspot.com/2021/10/jurisprudencia-2021-62.html.
[18] https://blogippc.blogspot.com/2022/03/jurisprudencia-2021-165.html.
[19] Cf. PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, 2.ª edição revista e atualizada, Coimbra Editora, 1987, p. 116.
[20] Relatado por ROSA TCHING no processo 931/14.0T8LOU.P2-A.S1, acessível em www.dgsi.pt.
[21] In, Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória, Coimbra, 1987, págs. 367 e 367.
[22] Acórdão de 08.05.2007, relatado por Sebastião Póvoas no Processo n.º 07A1066; no mesmo sentido, Acórdão desta Relação, de 19.12.2012, relatado por José Igreja Matos no processo n.º 3610/10.4TJVNF.P1, ambos acessíveis em www.dgsi.pt.