Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRP000 | ||
Relator: | JOÃO PEDRO PEREIRA CARDOSO | ||
Descritores: | DESPACHO DE ARQUIVAMENTO DO INQUÉRITO FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO IRREGULARIDADE QUESTÕES NOVAS | ||
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Nº do Documento: | RP202206292722/17.8T9VFR.P1 | ||
Data do Acordão: | 06/29/2022 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | CONFERÊNCIA | ||
Decisão: | NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO | ||
Indicações Eventuais: | 4.ª SECÇÃO (CRIMINAL) | ||
Área Temática: | . | ||
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Sumário: | I - Não constitui a nulidade insanável de falta de promoção do Ministério Público, mas falta de fundamentação, a omissão, no despacho de arquivamento do inquérito, da análise de questões factuais e jurídicas suscitadas na denúncia. II - Tal falta de fundamentação constitui irregularidade desse despacho, sujeita ao regime geral do artigo 123.º do Código de Processo Penal. III - Considerando que a irregularidade que se evidencia na decisão em crise atinge valores e princípios que extravasam dos concretos sujeitos processuais, deve a mesma ser declarada oficiosamente. IV - Os recursos são meios de impugnação de atos judiciais, e não meios de julgamento de questões novas. | ||
Reclamações: | |||
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Decisão Texto Integral: | Proc.º 2722/17.8T9VFR.P1 Acordam, em conferência, na Segunda Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto: 1. RELATÓRIO O presente recurso vem interposto do despacho de 27.02.2022 (ref. 120485073) que declarou a nulidade do despacho final (arquivamento) proferido no inquérito e de todos os atos subsequentes, que desse despacho dependem, determinando-se que, após trânsito, se proceda à remessa dos autos aos Serviços do Ministério Público para os fins tidos convenientes. Concretizando, por despacho de 22.12.2021 (ref. 119270011) foi deduzido arquivamento do inquérito nº 2722/17.8T9VFR, nos seguintes termos: DESPACHO DE ARQUIVAMENTO I. Relatório: Teve início o presente inquérito com a denúncia (intitulada queixa-crime) apresentada por AA contra BB, enquanto Presidente da Câmara Municipal ... (CM...), CC, Vereador do Pelouro de ... da CM..., DD, Chefe da Divisão de ... e EE, coordenador ..., da mesma CM.... Referiu, em suma: • Reside desde 1981 numa casa implantada em terreno contíguo ao de FF, e para o qual tem janelas. • Deu origem ao Proc. n.º 1870/98URB, da CM..., após participar a construção de muro em tal terreno sem licença camarária, e em desrespeito da altura legal, e a existência de aterros, e deu depois origem ao Proc. n.º 194/2014URB, frisando agora as consequências para a visibilidade e luminosidade da sua casa. A par destes processos, correram outros, como o Proc. n.º 2133/2005URB por causa do agravamento da escorrência das águas e infiltrações causadas por novos aterros e construção nesse terreno. Correu ainda o processo de contra-ordenação n.º 33/2015/CO. • FF, disse, incumpriu sempre as determinações provindas da CM... (v.g. demolição do aumento do muro e remoção do aterro construído por terra e cascalho), mas foi emitida licença camarária, e ainda por cima, para artigo rústico que não corresponde àquele onde se encontrava a erigir uma construção (emitido sobre os prédios inscritos na matriz urbana sob os artigos ..., ..., ... da freguesia ..., e não para a matriz rústica sob o artigo ... da freguesia ...). Referiu que a plataforma licenciada cobriu os aterros, sem os remover, e causou obstrução às suas janelas, e que o muro de 3,60 metros viola o disposto pelo art. 44.º, n.º 1 do RME. Enquadrou a ilegalidade desta conduta pelo “incumprimento reiterado da dona do terreno pelas ordens camarárias (cfr. doc 21 a 23), as persistentes e reiteradas violações da dona do terreno (cfr. doc 24 e 25), as novas ordens camrárias (cfr, doc. 27 a 29), o decidido pelos Denunciados (cfr. doc. 20), o disposto no artigo 106.º. n.º 4 do D.L. 555/99 de 16/12 (RJUE), no artigo 1.º, n.º 1, alínea b) do D.L. n.º 139/89, de 28 de abril, nos artigos 34.ç a 37.º do Regulamento do Plano Director Municipal e 27.º, n.ºs 1, 4 e 5 e, ainda, 44.º, n.º 1 do RMUE”, no que entende ser um licenciamento fraudulento e abusivo. II. Enquadramento jurídico-penal e jurídico-processual: II. 1. Do enquadramento jurídico-penal – a qualificação criminal: Os crimes a considerar como indiciados, e a investigar, serão sempre necessariamente aqueles indicados pelo denunciante/queixoso, aqueles cuja subsunção jurídico-penal é efectuada a partir da matéria factual denunciada/exposta, ou que o decurso das investigações permitiu fixar, sempre que seja razoável e minimamente sustentada a sua indiciação. Estes factos e crimes indiciados fixam o objecto do processo e enformam a análise crítica da prova, pré-condicionada pela sua relevância e suficiência para concluir sobre a recolha de indícios suficientes, e na negativa, permitem a exclusão das matérias exorbitantes, supérfluas, e/ou irrelevantes. No caso dos autos, considerou-se no primeiro despacho que apreciou a matéria conhecida, e aqui recuperado, porque actual, que a mesma poderia indiciar a prática dos seguintes crimes: “crime de prevaricação, pº e pº pelo artº 11º da Lei nº 34/87, de 16 de Julho que dispõe sobre “Crimes da Responsabilidade de Titulares de Cargos Políticos”. Esta indiciação foi efectuada em abstracto, perante a presença possível dos diversos elementos típicos. II. 2. Do enquadramento jurídico-processual – a fase de inquérito: O despacho que proceder ao encerramento do inquérito/investigação deve debruçar-se sobre esses factos e crimes, nos moldes adequados e suficientes, ainda que sumarizados, para explicitar e fundamentar a decisão de mérito do Ministério Público, e por outro lado, esclarecer os sujeitos processuais, outros intervenientes, e a comunidade em geral. A finalidade do inquérito é a investigação da existência de um crime, a determinação dos seus agentes e a respectiva responsabilidade, descobrir e recolher provas, com vista a proferir a decisão de mérito final – art. 262.º, n.º 1 do Código de Proc. Penal. A função de um inquérito é assim a de ordenar os actos subordinados à “função endoprocessual de determinar a decisão de mérito do MP sobre a decisão penal”, e pela negativa, “não deve compreender atos instrutórios automáticos desvinculados do trilho conformado por essa bússola funcional” – Paulo Dá Mesquita, Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Tomo III, Almedina, 2021, página 872. A decisão de mérito final, sendo de acusar, pressupõe a recolha de indícios suficientes de se ter verificado crime e de quem foi o seu agente, sendo estes todos aqueles elementos sugestivos de uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança – art. 283.º n.º 1 e 2 do Código de Proc. Penal. A lei reconhece nesta fase a “mesma exigência de verdade requerida pelo julgamento final” – Castanheira Neves, Sumários de Processo Criminal, Coimbra, 1968, página 37 -, isto é, a alta probabilidade de condenação, e por outro, “a convicção de que virá a ser condenado pelo crime que lhe é imputado” – Ac. Relação do Porto, de 25/06/1988, BMJ, 1998, 378, página 787. Não obstante, a fase de inquérito é de contraditório limitado, pelo que o juízo de prognose é de menor intensidade. Se este juízo não for favorável à dedução de acusação, deve o inquérito ser arquivado. Um inquérito criminal não é uma sindicância, nem um instrumento da vontade ou das aspirações dos sujeitos processuais, de quaisquer outros envolvidos, ou de terceiros, nem sequer é um procedimento que visa responder às suas dúvidas e anseios, mas obedece ao princípio da descoberta da verdade material orientada pelo seu objecto e pelo fim último, que é o de deduzir acusação, ou o de arquivar os autos, e ainda pela disciplina dos meios de obtenção de prova, seu valor, e pelo teste geral de proporcionalidade e adequação, a ter em conta, entre a matéria a investigar, e os meios de obtenção de prova a considerar para esse fim. A prova a considerar, para demonstrar a realidade do facto – art. 341.º do Código Civil -, será a directa, mas também a indirecta/indiciária, quando “mediante um raciocínio lógico, pelo método indutivo, se obtém a conclusão, firme, segura e sólida de outro facto” – Ac. do STJ de 11/07/2007 e art. 349.º e 351.º do Código Civil. No caso dos autos, importa desde já esclarecer que as eventuais ilegalidades administrativos e até cíveis não são senão instrumentais para o processo penal, salvo, no caso da tipificação caracterizada como norma penal em branco, ser necessário recorrer a esses ordenamentos. Mas não é ao Ministério Público que, nesta sede, incumbe proceder a quaisquer acções que reponham, ainda que no sentido pretendido pela denunciante, a legalidade. III. Diligências de investigação: Diga-se, desde já, nos moldes do relatório final da Polícia Judiciária, com o qual se concorda integralmente, e aqui se reproduz, não se vislumbra tenham sido recolhidos indícios mínimos da prática de crime. São os seguintes os processos administrativos mencionados, e que poderiam ou não ter sido decididos contra o Direito, relativamente aos quais se obteve cópia digital da documentação solicitada à CM... – cfr. Auto de Gravação de Suporte Digital, constante de fls. 126, e DVD anexo à contracapa dos autos, e informação da CM... de fls. 129 a 131.: - Processo 194/2014/QXA – relativo à queixa apresentada pela denunciante junto da edilidade, fls. 135 a 141. Ocorreu notificação para reposição da legalidade (apresentação do processo de licenciamento ou eliminação dos trabalhos executados sem título, preferindo-se a reposição voluntária da legalidade em face do disposto pelo art. 102.º-A, do DL n.º 555/99, de 16/12); - Processo 6/2015/EMB – relativo ao embargo da obra denunciada, fls. 142; - Processo 33/2015/CO – relativo ao processo de contraordenação decorrente dos factos denunciados, fls. 143. Este processo, cujo auto de notícia resultou de acção de fiscalização – DOC. 3 do DVDA -, resultou em condenação com o pagamento da coima. Foi ainda decretado o embargo da obra, originando o processo n.º 6/2015/BEM. Concomitantemente, foi apresentado pedido de licenciamento para a obra alvo de fiscalização, ao qual foi atribuído a referência Processo n.º 345/2015/URB. - Processo 345/2015/URB – relativo ao pedido de licenciamento realizado pela denunciada, por forma a repor a legalidade dos factos denunciados, fls. 144 a 148. Este pedido teve a sua normal tramitação. O despacho de aprovação sustentou-se na informação dos serviços camarários n.º 461/2017/INT, a qual considera “que a nova solução arquitetónica poderá permitir resolver o motivo de indeferimento do despacho Precedente (drenagem de águas pluviais)”. Considerou-se que a solução aprovada em sede de licenciamento viria a deferir a pretensão da requerente, ao mesmo tempo que salvaguardaria os problemas invocados pela denunciante no que concerne à escorrência das águas pluviais e eventuais danos na sua habitação. Para sustentar tais conclusões, a Polícia Judiciária veio a efectuar uma aprofundada análise desses processos, em moldes mais do que satisfatórios para esclarecer a ausência de quaisquer indícios. Esta análise foi complementada com pesquisa em fontes abertas, pesquisa essa que respeitou as cronologias possíveis (2007 e 2019, com nota sobre a evolução), e diligência no local – fls. 114 a 118 e 119 a 120. Considerou-se ainda o arquivamento da queixa apresentada junto da Provedoria de Justiça, e o acompanhamento processual (autónomo) por parte da IGF. Adiante-se, essa análise efectuada veio ainda a ser confirmada pelas instâncias cíveis, em sentença proferida no Juízo Central Civil do Tribunal ... (Proc. n.º 543/18.0T8VFR, Ação Declarativa Comum, que se acompanha electronicamente). Note-se, a sentença ainda não transitou em julgado, mas efectua uma análise relevante para estes autos, a título instrumental, e totalmente coincidente com as conclusões da Polícia Judiciária, até porque a sentença se debruçou sobre pretensão da aqui denunciante, que queria considerado pela CM... a relevância de questões cíveis, como seja a servidão de vistas, o que esta entidade afastava dever obediência por o Código Civil regular a relação entre privados – cfr. Doc. 38 da pasta 345/2015/URB – DVD anexo à contracapa. De facto, naqueles autos cíveis, a aqui denunciante propôs acção contra FF e familiares, peticionando: “1) Ser declarada constituída servidão de vistas, de luz e de ar, sobre o prédio dos réus a favor da casa da autora; 2) A condenação dos réus a: (a) reconhecerem o direito da referida servidão de vistas, de luz e de ar da autora sobre o seu prédio, voltado a Norte das respetivas janelas e absterem-se de praticar quaisquer atos que limitem ou impeçam o exercício de tal direito; (b) demolirem o muro e plataforma que construíram no seu prédio de forma a respeitar o direito à servidão de vistas da autora, designadamente, proceder à sua demolição na dimensão e enfiamento das três janelas ali existentes; (c) demolirem o muro para a altura legal na restante parte confinante com o prédio da Autora em toda a sua extensão, tomando por referência a cota natural inicial dos prédios, v.g. do prédio da autora; (d) reporem a cota do seu prédio à situação natural; (e) indemnizar a autora a título de danos morais que lhe causaram e 13.043,98 (treze mil quarenta e três euros e noventa e oito cêntimos); (f) indemnizar a autora pelos danos futuros, v.g., os medicamentos que esta continua a tomar e eletricidade que consome em excesso, na medida indicada nos pontos 36 e 44 da petição, até reposição da situação natural.”. Essa acção foi julgada totalmente improcedente. Pelo contrário, julgou-se parcialmente procedente o pedido reconvencional, dando então razão aos ali Réus, condenando-se a “reconvinda AA a (i) tapar completamente todas as janelas que abriu para o lado dos réus nas construções existentes no terreno contíguo ao destes; (ii) repor o muro dos réus no estado em que se encontrava após a conclusão da obra em 10 de Agosto de 2017 antes dos atos de destruição do mesmo muro, repondo o muro antigo no estado em que este se encontrava desde a sua construção em 1998.”. Considerou-se, entre o mais que se entende relevante: - servidão legal/por usucapião: “as aberturas do local de habitação da autora não preenchem os requisitos para serem consideradas janelas. Desde logo, não foi observada a distância de 1,5m de intervalo com o prédio dos réus; por outro lado, nenhuma delas tem parapeito que permita as pessoas debruçarem-se e projetarem-se a partir dele para a vista integral, para cima e baixo e para os lados. Acresce que as aberturas não mantiveram a mesma configuração ao longo do tempo, tendo sofrido diversas alterações, desde barras de cimento com frestas, estrutura metálica com frestas, vidro fosco e, mais recentemente, alteração para caixilharia de alumínio. No entanto, em nenhuma das suas situações preenche as características necessárias para integração no conceito de janela, razão por que devem ter-se por frestas irregulares, dado que também não correspondem, no seu estado atual, ao regime das frestas. (…) Em conformidade, as aberturas existentes no prédio da autora não podem ser qualificadas de janelas, por absoluta falta de cumprimento de todos os seus requisitos, devendo ser qualificadas de frestas irregulares, por não permitirem que uma pessoa, com a altura média, possa debruçar-se com a parte superior do corpo, a partir de um parapeito e assim devassar as vistas, olhando quer para a frente, quer para os lados, quer para cima ou para baixo (…). (…) as obras executadas pelos réus (factos 13 a 15) têm respaldo de integral licitude, tendo os réus direito a tapar na totalidade as aberturas existentes no prédio do autor, desde que o façam até ao linha divisória do seu prédio, quer porque inexiste qualquer servidão de vistas, nem qualquer servidão predial por frestas irregulares, mas ainda que essa servidão tivesse sido constituída por usucapião, os réus continuariam a ter o direito em tapá-las pelos fundamentos já profusamente explicitados, pelo que segundo pedido formulado pela autora, na sua alínea a), deve ser igualmente julgado totalmente improcedente. - o desvio das águas: “Em primeiro lugar, os aterros não alteram, por si só, o normal escoamento das águas. Salvo nos casos em que haja uma pluviosidade que crie lagoas nos prédios, as águas da chuva, de forma natural, não estando os terrenos impermeabilizados, caem para os níveis freáticos que seguem o seu curso. (…) Por outro lado, conforme igualmente provado (facto provado 14), os réus (i) procederam à deslocação de terra do próprio terreno e cascalho, apenas na área correspondente à construção da plataforma, com aposição de cimento para finalização desta, com queda para norte (foto 25 da inspeção judicial) ou seja, com queda no sentido oposto ao prédio da autora, inviabilizando qualquer percurso de água para este; (ii) a plataforma visou a entrada e saída de veículos e não tem ligação nem encosta a qualquer construção do prédio da autora (foto 25 da inspeção judicial), tendo sido deixada uma caixa de ar; (iii) na plataforma e na respetiva caixa de ar, não existe acumulação de água, tendo sido criada uma rede de drenagem de todas as águas, quer pluviais, quer naturais, em toda a extensão, largura e comprimento da plataforma e em toda a extensão do muro junto à plataforma, sendo as conduzidas para uma grelha na superfície da plataforma; (iv) as águas recolhidas na referida grelha são, após, conduzidas para um poço de infiltração absorvente, distanciado a norte da plataforma, a cerca de 7 metros do prédio id. em 01), com profundidade a contar da cota do terreno de 2,60m e de 3,60m a contar da plataforma. Em conclusão, as obras realizadas pelos réus ao invés de prejudicar, beneficiaram o prédio da autora com desvio da água do seu curso natural (que seria para o prédio da autora) para o interior do próprio prédio dos réus. O pedido é, assim, totalmente infundado e, por conseguinte, deve ser julgado improcedente.”. - do muro: “A autora peticiona ainda a condenação dos réus em demolirem o muro para a altura legal na restante parte confinante com o prédio da Autora em toda a sua extensão, tomando por referência a cota natural inicial dos prédios, v.g. do prédio da autora. Ora, o muro foi devidamente licenciado com a altura a cumprir o limite máximo de altura previsto no Regulamento Municipal de Urbanização e Edificação, razão por que, sem que tenha sido explicitamente provada qualquer violação de direitos de personalidade da autora, a matéria suscitada não tem qualquer sustentáculo, nem de facto, nem de Direito.”. A inquirição de DD – fls. 149 a 153 – veio a confirmar todas aquelas conclusões. IV. Apreciação crítica: Veja-se agora o tipo penal indiciado: Artigo 11.º Prevaricação O titular de cargo político que conscientemente conduzir ou decidir contra direito um processo em que intervenha no exercício das suas funções, com a intenção de por essa forma prejudicar ou beneficiar alguém, será punido com prisão de dois a oito anos. O bem jurídico tutelado é a confiança comunitária na prossecução por um serviço público de acordo com a lei e o interesse público – cfr. Maria do Carmo Silva Dias, “Comentário das Leis Penais Extravagantes”, Volume 1, UCE, página 751 – “sem ilegalidades, nem compadrios ou malquerenças particulares” – Ac. do TRL de 09/11/2011. É um crime de dano porquanto exige lesão do bem jurídico tutelado, e formal, por não pressupor resultado. Quem ocupa um cargo político, público, está obrigado a decidir processo que lhe esteja atribuído no respeito pela lei, ou, por outras palavras, pratica-se este crime quando “em procedimento administrativo inerente às suas funções, o agente deve cometer actos ou omissões contrárias ao direito, entendido este como conjunto de princípios e normas jurídicas vinculativas ao processo e à decisão respectiva” – acórdão citado. O agente comete este crime desde que tenha intenção de beneficiar ou de prejudicar. No entanto, a “realização do tipo preenche-se no âmbito de processo (seja gracioso ou contencioso) sobre o qual o agente “realiza ou omite um comportamento contra direito” (assim (…) PEDRO CAEIRO (…)” – Op. Cit, página 752. Ora, o que a investigação permite concluir é que os procedimentos denunciados correram os seus trâmites normais. A denunciante não o aceita, e está no seu direito não o aceitar, mas para o efeito deverá recorrer aos mecanismos processuais existentes. O certo é que inexiste qualquer indício de que tenha presidido às decisões em crise qualquer vontade de agir contra o Direito com o fito de beneficiar ou até de prejudicar outrem. V. Decisão jurídico-processual: Por tudo o que vem de se expor, atentos os enquadramentos e apreciações efectuados, pela inexistência de indícios suficientes quanto à verificação do(s) crime(s), determina-se nesta parte o arquivamento do inquérito ao abrigo do disposto pelo art. 277.º, n.º 2 do Código de Proc. Penal, sem prejuízo da reabertura nos termos do art. 279.º do mesmo Código perante novos e/ou entretanto conhecidos elementos de prova (que deverão ser dados a conhecer ao processo para análise da possibilidade de reabertura)”. -- Regularmente notificada do arquivamento em 28.12.2021, a denunciante veio em 25.01.2022 requerer a abertura de instrução e, de novo, a sua constituição como assistente (fls.456ss), arguindo as nulidades por falta/insuficiência do inquérito (artigos 119.º, alínea b) e 120.º, n.º 2, alínea d) do Código Processo Penal) e consequentemente a invalidade do encerramento do inquérito e actos subsequentes (cfr. n.º 1 do artigo 122.º do CPP), com os seguintes fundamentos:- desconsideração dos crimes indicados na denúncia (abuso de poder e violação das regras urbanísticas) e ainda na falta de produção de prova indicada pela denunciante; - falta de constituição como arguidos de alguns dos denunciados; - falta de constituição de assistente pela denunciante. - Admitida a constituição como assistente da denunciante, no respeito pelo contraditório, o Ministério Público veio pugnar pelo indeferimento das nulidades arguidas, nos seguintes termos: “Julgou já o Tribunal Constitucional, no Ac. n.º 395/2004: “não poderá considerar-se como desconforme com a lei fundamental a sindicada acepção normativa que foi inferida dos referidos artigos 120.º, n.º 1, alínea d), 17.º, 262.º e 263.º do CPP, segundo a qual o Ministério Público é livre, salvaguardados os actos de prática obrigatória e as exigências decorrentes do princípio da legalidade, de levar a cabo ou de promover as diligências que entender necessárias com vista a fundamentar uma decisão de acusar ou de arquivar o inquérito, e não determina a nulidade do inquérito por insuficiência a omissão de diligências de investigação não impostas por lei…”. Dos actos processuais que entende não levados a cabo não figura qualquer um que seja de realização obrigatória. Se a Assistente entendesse que o inquérito deveria merecer nesta parte outra condução, teria disponível a intervenção hierárquica provocada prevista pelo art. 278.º do CPP. Optou legitimamente pela abertura de instrução. Assim sendo, deve a presente alegação ser julgada improcedente. Por outro lado, entendendo o Assistente que o Ministério Público não prosseguiu, acusando, quanto a factos que tivessem constituído o objecto do inquérito, pode lançar mão da faculdade de requerer a abertura de instrução nos termos do disposto pelo art. 287.º, n.º 1, al. b) do Código de Proc. Penal, como fez. A nulidade prevista pelo art. 119.º, n.º 1, al. b) do Código de Proc. Penal, na sua primeira parte, encontra-se estruturalmente prevista, como a letra já permite adivinhar, para a falta de “intervenção constitutiva do MP (a “promoção” do MP); sendo o MP o órgão do Estado que detém o monopólio do exercício da acção penal” – Henriques Gaspar, “Código de Processo Penal Comentado”, Almedina, 3.ª Edição Revista, página 334. Daí a remissão expressa para o art. 48.º do Código Penal, e na segunda parte da previsão da norma, as consequências igualmente previstas para a ausência do Ministério Público. Contempla situações, como por exemplo, o encerramento do inquérito sem dedução de acusação por parte do Ministério Público seguindo-se-lhe acusação por parte do Assistente e/ou integrando crimes semipúblicos ou mesmo públicos. Nestes casos, o processo penal iniciaria uma fase jurisdicional sem que o órgão exclusivamente competente para o exercício da acção penal o tivesse promovido. Já não contempla, salvo o devido respeito por opinião contrária, a situação de eventual omissão de pronúncia no despacho de encerramento do inquérito, por não abordar parte do objecto do inquérito, quer o seja verdadeiramente ou não – pois mesmo aí, diga-se que nem tudo o que é afirmado nos autos deverá constituir o objecto, conquanto tenha relevância jurídico-penal ou não -, a qual apenas poderá ser resolvida processualmente em abertura de instrução requerida pelo Assistente, como já indicado. Essa é verdadeiramente uma questão de apreciação indiciária – cfr. nesse sentido João Conde Correia, anotação 24 ao art. 119.º, “Comentário Judiciário do Código de Processo Penal”, Tomo I, Almedina, 2020, página 1233. Assim sendo, também não relevaria esta nulidade, porque não se verifica in casu. Ademais, o certo é que o despacho de arquivamento se pronunciou, como um todo, sobre a matéria denunciada, não vislumbrando indícios da prática de crime por referência aos procedimentos analisados, e à conduta indiciada. Mais, a análise efectuada teve por referência os elementos típicos comuns aos crimes que entende não apreciados, como seja que “os procedimentos denunciados correram os seus trâmites normais”, e que “inexiste qualquer indício de que tenha presidido às decisões em crise qualquer vontade de agir contra o Direito com o fito de beneficiar ou até de prejudicar outrem”. Pelo que, por outro lado, também não se vislumbra qualquer nulidade para o caso de não ter sido apreciado qualquer argumento particular adiantado na denúncia. Assim sendo, promove-se igualmente seja julgada improcedente a nulidade arguida”. - Seguiu-se então o despacho recorrido do Juíz de Instrução Criminal, com os seguintes fundamentos: “Veio a assistente AA invocar a verificação das nulidades previstas nos arts. 119º/b) e 120º/2, b) e d), do Código de Processo Penal, alegando para tanto que o Ministério Público nada disse acerca da documentação que juntou, e das 6 testemunhas que arrolou com conhecimento dos factos, não tendo os denunciados sido constituídos na qualidade de arguidos, e alguns nem teriam sido ouvidos no inquérito; ela própria nunca teria sido ouvida e, apesar de ter requerido em 17/11/2017 a sua constituição como assistente, não houve despacho sobre esse requerimento. Mas alega também que embora tenha apresentado queixa pela prática de factos susceptíveis de configurar a prática pelos denunciados dos crimes de abuso de poder, previsto e punido pelo disposto no art. 382º do Código Penal e de violação das regras urbanísticas por funcionário, previsto e punido pelo disposto no art. 382º-A do Código Penal, não se pronunciou o Ministério Público no despacho de arquivamento acerca destes ilícitos penais, nem foram realizadas quaisquer diligências no sentido de apurar a prática dos mesmos. No exercício do contraditório, o Ministério Público defendeu não ter sido omitido qualquer acto de prática obrigatória e que se a assistente entendesse que deveria o inquérito nessa parte merecer outra condução, teria disponível a intervenção hierárquica prevista no art. 278º do Código de Processo Penal. Além disso, defendeu, tem sempre a possibilidade de requerer a abertura de instrução, como requereu. Entende que o disposto no art. 119º/b) do Código de Processo Penal se aplica apenas a casos em que o Ministério Público declararia encerrado o inquérito sem deduzir acusação, seguindo-se-lhe acusação por parte do assistente integrando crimes públicos ou semi-públicos; já não se aplicará a casos de omissão de pronúncia no despacho de encerramento do inquérito por não abordar parte do objecto do inquérito, a qual apenas poderá ser resolvida processualmente com a abertura de instrução pelo assistente, por ser uma questão de apreciação indiciária; por último, defende que o despacho de arquivamento se pronunciou como um todo sobre a matéria denunciada, não se tendo divisando indícios da prática de um crime, tendo-se pronunciado sobre elementos típicos comuns aos crimes denunciados. Cumpre decidir. Ora, se quanto às nulidades invocadas, de ausência, por falta de notificação, do assistente nos casos em que a lei exigir a respectiva comparência - art. 120º/2,b) do Código de Processo Penal -, e de insuficiência do inquérito por não terem sido praticados actos legalmente obrigatórios - art. 120º/2,d) do Código de Processo Penal -, se nos afigura não assistir razão à assistente, o mesmo não poderá dizer-se em relação à nulidade por falta de promoção do processo pelo Ministério Público, prevista no art. 119º/b) do Código de Processo Penal. Senão vejamos. É verdade que a denunciante há mais de quatro anos atrás, em 17/11/2017, com o inquérito em curso, requereu a sua constituição na qualidade de assistente, reunindo já então todas as condições para o seu deferimento – cfr. fls. 59 e 65 e sg. -, sem que o Ministério Público se tivesse pronunciado sobre tal requerimento ou, como se lhe impunha, houvesse determinado a remessa dos autos à distribuição para prática de acto jurisdicional relativo à sua apreciação. No entanto, não divisamos que tal omissão configure a nulidade prevista sob o art.120º/2, b) do Código de Processo Penal, porquanto esta diz respeito apenas a diligência em que o assistente devesse comparecer ou fazer-se representar, por exigir a lei essa comparência, e não tenha comparecido por não ter sido para tanto notificado. Não vem indicada pela assistente qualquer diligência desse tipo, nem, percorrendo os autos, se divisa tenha havido alguma. Todavia, não pode deixar de se notar que cabia efectivamente ao Ministério Público promover o procedimento destinado à constituição de assistente e, não o tendo feito, terá, de algum modo, limitado a requerente no exercício dos seus direitos processuais, concretamente os previstos no art. 69º do Código de Processo Penal. Quanto à nulidade prevista sob o art. 120º/2, d) do Código de Processo Penal, importa ter presente que nos termos deste preceito legal constitui nulidade dependente de arguição “[a] insuficiência do inquérito ou da instrução, por não terem sido praticados actos legalmente obrigatórios, e a omissão posterior de diligências que pudessem reportar-se essenciais para a descoberta da verdade”. Esta norma tem dois segmentos. No primeiro, refere-se à «insuficiência do inquérito ou da instrução»; no segundo, à «omissão posterior de diligências que pudessem reportar-se essenciais para a descoberta da verdade». Isto é, a omissão de diligências essenciais para a descoberta da verdade (seja qual for o alcance que isso tenha), só constitui nulidade se for posterior ao inquérito ou à instrução, ou seja, se for atinente à fase do julgamento – neste sentido, Germano Marques da Silva, no seu Curso de Processo Penal, III Vol., 1994, pág. 85. Durante as duas fases processuais anteriores ao julgamento, esta norma apenas comina com o vício da nulidade a «insuficiência do inquérito ou da instrução, por não terem sido praticados actos legalmente obrigatórios» (sublinhado nosso). Era, aliás, já neste sentido a doutrina que precedeu a alteração introduzida na redacção original deste normativo legal pela L. 48/2007, de 29/08, com o aditamento do segmento agora por nós sublinhado. Pelo que, dúvidas não podem restar de que esta nulidade só se verifica nas fases do inquérito ou da instrução quando se tiver omitido a prática de um acto que a lei prescreve como obrigatório; asserção que leva até a que o citado autor, Germano Marques da Silva, se interrogue acerca da utilidade da previsão desta nulidade num processo em que a lei não impõe, em geral, a prática de quaisquer actos típicos de investigação ou de instrução. Até agora, pelo que nos foi dado verificar mediante breve estudo realizado, a doutrina e a jurisprudência têm vindo a convergir no sentido de que esta nulidade da insuficiência do inquérito ocorrerá apenas quando se posterga o único acto legalmente obrigatório nessa fase, qual seja, o interrogatório do arguido, se o inquérito decorrer contra pessoa determinada, nos termos previstos no art. 272º do Código de Processo Penal – neste sentido, veja-se o acórdão da Relação de Lisboa, de 18/03/2014, processo nº 6447/12.2TDLSB.L1-5, onde são identificados outros arestos, acessível em www.dgsi.pt e Paulo Pinto de Albuquerque, no seu Comentário do Código de Processo Penal, 2ª ed., pág. 306. Temos assim que concluir que a omissão de diligências de investigação não impostas por lei, não determina a nulidade do inquérito por insuficiência, pela simples razão de que a aferição da necessidade da prática desses actos é da competência exclusiva do Ministério Público. No caso em análise, está em causa a inquirição das 6 testemunhas indicadas na denúncia mais a própria denunciante, e a audição dos denunciados, sendo que inexiste norma legal que imponha ao Ministério Público tais inquirições e audição. De resto, como referido no parecer emitido pelo Ministério Público no exercício do contraditório, sempre estaria ao alcance da assistente lançar mão do disposto no art. 278º do Código de Processo Penal, e requerer a intervenção hierárquica do Ministério Público, visando a reabertura do inquérito, o que optou por não fazer. Não pode, nestes termos, proceder a arguição de nulidade por insuficiência do inquérito. * Mas a assistente invoca ainda nulidade por falta de promoção do Ministério Público, nulidade esta que, sendo insanável, é de conhecimento oficioso – arts. 118º e 119º/b) do Código de Processo Penal.E neste particular, afigura-se-nos que a razão lhe assiste. Expliquemos porquê. Como decorre do processado, o Ministério Público abriu inquérito relativamente à denúncia apresentada pela agora assistente, e no âmbito desse inquérito, promoveu a realização de um conjunto de diligências essencialmente de requisição e de junção de documentos, e sua análise pela Polícia Judiciária, em suma dirigiu como entendeu a investigação, como titular exclusivo da acção penal, que é; e, por isso, inexiste nulidade por insuficiência do inquérito porque foi feita a opção da não inquirição das testemunhas arroladas na denúncia, da denunciante e dos denunciados. O que, com todo o respeito, nos parece ter sido omitido pelo titular do inquérito foi o despacho final relativamente à integralidade do objecto dessa denúncia, abrangendo todos os factos denunciados e soluções plausíveis de direito que a mesma expressamente colocava, com a menção aos crimes previstos nos arts. 382º e 382º-A, do Código Penal. Na verdade, a falta de indícios objecto do despacho de encerramento proferido pelo Ministério Público diz respeito tão somente aos factos integradores do crime de prevaricação previsto e punido pelo disposto no art. 11º da L. 34/87, de 16/07, crime específico próprio, que apenas pode ser cometido por titular de cargo político. E não se diga que esses factos são comuns aos crimes de abuso de poder e de violação de regras urbanísticas e, por isso, a sua apreciação estaria já contida na efectuada quanto ao crime de prevaricação. É que, os elementos típicos do crime de prevaricação previsto e punido pelo disposto no art.11º da Lei 34/87, de 16/07, são distintos e substancialmente mais exigentes do que os elementos típicos do crime de abuso de poder, mas sobretudo do que os do crime de violação de regras urbanísticas por funcionário, sendo que quanto a estes é manifesta a falta de pronúncia do Ministério Público. Na realidade, mesmo em relação ao crime de prevaricação, o Ministério Público concluiria singelamente que os procedimentos administrativos questionados pela assistente correram os seus trâmites normais, sem assumir qualquer posição acerca da sua legalidade substantiva. Este mostra-se elemento fundamental do crime de prevaricação (“contra direito”), mas também dos demais ilícitos denunciados, de abuso de poder (“abusar de poderes ou violar deveres inerentes às suas funções”) ou de violação de regras urbanísticas por funcionário (“desconformidade da sua conduta com as normas urbanísticas”), não analisados no despacho de arquivamento, e constitui o cerne da denúncia. É certo que no despacho de arquivamento se afasta expressamente a possibilidade de se verificar um crime de prevaricação por inexistência de qualquer indício de que tenha presidido às decisões em crise vontade de agir contra o Direito com o fito de beneficiar ou de prejudicar outrem; e daqui poderia retirar-se implicitamente o afastamento do crime de abuso de poder, como previsto pelo art. 382º do Código Penal, por inexistência de indícios de uma intenção por parte dos denunciados de, por essa forma, beneficiarem alguém ou causarem prejuízo a outra pessoa. Todavia, tal argumento, em que funda o Ministério Público o despacho de arquivamento quanto ao crime de prevaricação, podendo adoptar-se, por uma espécie de analogia, de forma implícita quanto ao crime de abuso de direito, não valeria já para o também denunciado crime de violação de regras urbanísticas por funcionário, previsto e punido pelo art. 382º-A do Código Penal. Com efeito, se em relação aos crimes de prevaricação e de abuso de poder, têm que verificar-se indícios de factos integradores de um dolo específico - a intenção de por essa forma beneficiar alguém ou causar prejuízo a outra pessoa -, o mesmo não sucede e relação ao crime de violação das regras urbanísticas por funcionário, previsto pelo art. 382º-A do Código Penal. O preenchimento deste tipo legal de crime basta-se, pois, com a verificação de indícios de factos atinentes ao dolo genérico: consciência da desconformidade da sua conduta com as normas urbanísticas e vontade de assim actuar – dolo directo -, ou aceitação dessa desconformidade como consequência necessária da sua actuação – dolo necessário – neste sentido Paulo Pinto de Albuquerque, em Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República Portuguesa e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, UCE, 2010, pág. 1016. Assim, com todo o respeito por posição diversa, importava que no inquérito e no despacho de arquivamento, o Ministério Público tomasse posição acerca dos indícios relativos à legalidade ou ilegalidade da actuação dos arguidos, por um lado e, por outro, sobre os indícios relativos à atitude interior subjacente à prática dos factos atribuídos aos denunciados, sob o prisma de qualquer dos ilícitos penais denunciados, tudo factos que se mostram descritos na denúncia, com indicação explícita dos ilícitos penais prefigurados, e sobre os quais o despacho de arquivamento é absolutamente omisso. Por último, embora não se encontre no âmbito da nulidade por falta de promoção do processo ora apreciada, a verdade é que não podemos olvidar que: - tendo AA requerido a sua constituição na qualidade de assistente em 2017, nunca houve despacho proferido sobre tal requerimento, nem promoção do Ministério Público nesse sentido; ser assistente no processo conferir-lhe-ia outras possibilidades de conformação do inquérito, possivelmente com reflexos no despacho final, face ao disposto no art. 69º do Código de Processo Penal; - não se pronunciou o Ministério Público sobre o seu requerimento de prova constante da denúncia, nomeadamente justificando a não realização das diligências aí sugeridas, sem que possamos nesta fase escrutinar e compreender o juízo subjacente ao despacho de arquivamento – que tem implícito um juízo de desnecessidade de produção de tais provas. O arquivamento seria proferido ao abrigo do disposto no art. 277º/2 do Código de Processo Penal, portanto por não ter sido possível obter indícios suficientes da verificação de crime, e não, por ter recolhido prova bastante de se não ter verificado o crime, estando, é certo, ao alcance da assistente, como já referido, requerer a intervenção hierárquica do Ministério Público, visando a reabertura do inquérito, o que optou por não fazer. * Ora, tudo conjugado, em nosso entender, ao não se pronunciar no despacho final do inquérito acerca de parte dos factos denunciados, concretamente relativos à denunciada ilegalidade da actuação dos denunciados, conhecimento e vontade de actuarem em desconformidade com a lei, factos integradores dos ilícitos penais indicados na denúncia, e em particular do crime de violação das regras urbanísticas por funcionário, previsto e punido pelo disposto no art. 382º-A do Código Penal, e sobre a prova produzida nos autos a esse propósito – que é vasta -, acusando ou arquivando, o Ministério Público faltou ao dever de promover a acção penal nos termos do art. 48º do Código de Processo Penal.E ao omitir esse despacho final, o Ministério Público incorreu em nulidade insanável por falta de promoção do processo, como estava legalmente obrigado – neste sentido, Germano Marques da Silva, em Curso de Processo Penal, Tomo II, Edit. Verbo, pág. 64, e o assento 1/2000, publicado em D.R., nº 4, I Série -A, de 6/1/2000. Discorda-se neste ponto da posição assumida pelo Ministério Público no exercício do contraditório, a fls. 481 e verso, segundo a qual a nulidade prevista no art. 119º/b) do Código de Processo Penal não contempla a omissão de pronúncia do despacho final de encerramento do inquérito. Conhecemos o entendimento doutrinário vertido nesse parecer, mas somos também dele discordantes. Em primeiro lugar, não vemos que o texto legal do art. 119º/b) limite a nulidade ali prevista à falta de dedução de acusação e não à omissão de despacho de arquivamento, mesmo parcial, porquanto refere expressamente “promoção do processo” – art. 119º/b) – e remete para o art. 48º do Código de Processo Penal que indica: “promover o processo penal”; promover o processo penal passa por instaurar o inquérito sempre que legalmente deva ser instaurado e proferir no mesmo um despacho final de encerramento desse inquérito, arquivando-o ou deduzindo acusação – arts. 262º e 276º/1 do Código de Processo Penal. Ao optar pelo encerramento do inquérito, seja ele total ou parcial, não pode o Ministério Público omitir pronúncia sobre factos e crimes denunciados sob pena de, nessa parte, haver falta de promoção do processo e, em última análise, denegação de justiça. Acresce que, contrariamente ao pressuposto, não caberá ao juiz de instrução suprir essa omissão, pronunciando-se em primeira mão sobre factos e crimes denunciados, seus indícios e provas. Seja porque não é essa a finalidade legal da instrução que, como definido sob o art.286º/1 do Código de Processo Penal, visa a comprovação da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito, e, no caso de arquivamento, apenas em relação a factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido acusação, ou seja, factos em relação aos quais o Ministério Público optou por proferir despacho de arquivamento – art. 287º/1, b), do Código de Processo Penal. Seja porque aceitar fazê-lo importa coarctar ao assistente o direito de tomar conhecimento das concretas razões que levariam o Ministério Público a arquivar o inquérito quanto a esses factos e crimes – assumindo que seria proferido quanto a eles despacho de arquivamento, não de acusação – e então, sim, com propriedade poder questioná-las e impugná-las junto do juiz de instrução, requerendo a abertura de instrução. Colocar o juiz de instrução na posição de, em primeira mão, sem promoção do Ministério Público, apreciar factos, indícios e crimes, isso sim nos parece subverter os princípios enformadores do nosso processo penal, concretamente o princípio do acusatório plasmado no art. 32º/2 da Constituição da República Portuguesa, em que se funda a doutrina sufragada por João Conde Correia, na obra citada no parecer do Ministério Público – cfr. Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Tomo I, Almedina, 2019, pág. 1232. Trata-se, pois, de garantir ao cidadão utente dos serviços de Justiça que uma falha cometida na tramitação de um processo penal considerada pela lei como grave (daí a cominação com a nulidade insanável), possa ser reparada assim que detectada, seja pelo próprio que a cometeu, seja por quem presida à fase ou fases subsequentes desse mesmo processo, assegurando que não será prejudicado por isso, nem lhe serão, por esse facto, coarctadas quaisquer direitos ou faculdades processuais. De resto, tem vindo a ser este também o entendimento da jurisprudência maioritária, destacando-se pela pertinência para o presente caso, o sumário do acórdão da Relação do Porto de 08/03/2017, processo 97/12.0GAVFR (confirmando decisão por nós proferida): «I - A omissão do Ministério Público do despacho final de encerramento do inquérito sobre um procedimento por crime semipúblico integra a nulidade insanável do art. 119º al. b) Código de Processo Penal: falta de promoção do processo nos termos do art. 48º do Código de Processo Penal, ao não se pronunciar sobre a totalidade do objecto do inquérito. II - O Tribunal de Instrução Criminal ao declarar tal nulidade e ordenar o suprimento de tal nulidade cometida em inquérito não viola o princípio da autonomia do Ministério Público para exercer a acção penal.». Ainda no mesmo sentido, embora em situações diversas de falta de promoção do processo, o acórdão do STJ de 27/4/2011, processo nº 31/08.2TELSB.L1.S1, citado por António Henriques Gaspar, e outros, no Código de Processo Penal Comentado, 2014, Almedina, pág. 392; os acórdãos da Relação do Porto de 20/06/2012, processo 35/10.5PGPRT, de 22/4/2015, processo 43/13.4TASBG-B.C1, e da Relação de Guimarães de 12/07/2016, no processo 679/14.6GCBRG, e de 30/11/2015, no processo 471/13.5TAGMR.G1, todos acessíveis em www.dgsi.pt . Em suma: estamos diante uma nulidade insanável, cujo regime e consequências, estão previstos nos arts. 118º, 119º e 122º, do Código de Processo Penal. O art. 119º do Código de Processo Penal é expresso quando dispõe deverem as nulidades insanáveis ser oficiosamente declaradas em qualquer fase do procedimento. Tendo sido requerida a abertura de instrução pela assistente ora constituída, cabe ao juiz de instrução, antes de apreciar o mérito da mesma – comprovando ou não a decisão do Ministério Público de arquivar o inquérito -, e diríamos mesmo, antes de proferir despacho de abertura da instrução, aferir da verificação de nulidades ou questões prévias que obstem a essa apreciação material. Dessa prefigurada nulidade, decorre, segundo o preceituado no art. 122º/1 do Código de Processo Penal, a invalidade do despacho final proferido no inquérito, afectado que fica pela falta de promoção do Ministério Público no tocante à indicada factualidade. Nestes termos, e ao abrigo do disposto nos arts. 119º/b) e 122º, do Código de Processo Penal, declara-se a nulidade do despacho final proferido no inquérito e de todos os actos subsequentes, que desse despacho dependem, determinando-se que, após trânsito, se proceda à remessa dos autos aos Serviços do Ministério Público para os fins tidos convenientes. - Inconformado com esta decisão, dela interpôs recurso o Ministério Público, para este Tribunal da Relação do Porto, com os fundamentos descritos na respetiva motivação e contidos nas seguintes “conclusões”, que se transcrevem: CONCLUSÕES: 1. O douto despacho judicial de fls. 483-487, ao declarar a nulidade do despacho de encerramento do inquérito e dos actos subsequentes, nos termos do disposto pelo art. 119.º, al. b) do C.P.P., por falta de apreciação de factos, indícios e crimes, interpretou erradamente o Direito aplicável, e violou o disposto pelos arts. 53.º, n.º 2, al. b), 118.º, n.º 1, 119.º, al. b), 263.º, n.º 1, e 277.º, todos do C.P.P., e ainda, os arts. 32.º, n.º 5 e 219.º, n.º 2 da C.R.P. 2. A nulidade em causa encontra-se prevista para a falta de “intervenção constitutiva do MP (a “promoção” do MP); sendo o MP o órgão do Estado que detém o monopólio do exercício da acção penal” – Henriques Gaspar, Op. Cit., página 334. Está em causa a posição do M.P. no processo penal, e a proibição da usurpação dessa posição. A situação paradigmática geradora desta nulidade é “a prossecução processual sem prévia acusação do MP” – João Conde Correia, Op. Cit., página 1233. 3. No caso dos crimes semipúblicos e particulares, a legitimidade do M.P. encontra-se restringida pela vontade dos ofendidos, tanto para dar início, como até para se findar, o procedimento. O sentido da remissão efectuada na al. b) do art. 119.º do C.P.P. para o art. 48.º do mesmo Código é garantir a não usurpação das funções estruturantes do M.P., e que não há demissão da prossecução do processo por questões alheias a essa legitimação. 4. Essa questão não se coloca nos crimes públicos, nem por outro lado, a qualificação jurídico-penal efectuada pelos ofendidos vincula o Ministério Público: “para efeitos da densificação do conceito de “falta de promoção do processo pelo Ministério Público” dever-se-á entender que apenas haverá lugar àquela falta quando, no plano da legitimidade, não seja esta magistratura a promovê-lo, nomeadamente através da abertura do competente inquérito, ou quando não seja este a deduzir a acusação que lhe compete, designadamente quando estejam em causa crimes de natureza pública ou semipública. (…) É sobre factos que incide a atividade investigatória e não sobre a qualificação jurídica que lhes atribui o queixoso ou denunciante (…) Não é a qualificação jurídica de uma qualquer denúncia ou queixa que limita e define a atividade do MP mas sim o resultado da sua investigação” - Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 29/09/2021, Proc. n.º 6549/13.8TDLSB-3 (www.dgsi.pt) 5. A interpretação que venceu na decisão recorrida, além de ampliar a letra e o sentido da nulidade, e por isso violar o princípio da tipicidade das nulidades, ameaça a paz jurídica dos denunciados/arguidos. Sendo insanável a nulidade, ainda que não ocorra qualquer reacção a um despacho de arquivamento, nunca será suficientemente assegurada estabilidade jurídica a um denunciado/arguido. 6. A interpretação do Tribunal a quo cria ainda o que nos parece ser uma dessintonia sistemática. Não faria sentido que o legislador pretendesse salvaguardar a autonomia do M.P. na condução do inquérito salvo realização de actos legalmente obrigatórios, afastando, como na decisão recorrida, a nulidade prevista no art. 120.º, n.º 2, al. d) do C.P.P., para depois sancionar com nulidade a mera omissão de apreciação de um facto, de um indício, de um crime. 7. Conquanto o despacho de acusação será nulo se, por exemplo, não contiver as razões de facto e a indicação das normas aplicáveis que suportam a pretensão acusatória, conforme art. 283.º, n.º 3, als. b) e c) do C.P.P., essa mesma exigência não vem prevista para o despacho de arquivamento no art. 277.º do mesmo Código. 8. A decisão recorrida não fez ainda, salvo o devido respeito, a interpretação conforme à C.R.P. quanto ao princípio do acusatório, e da autonomia do M.P. Ao declarar esta nulidade, o Juiz de Instrução não agiu nas vestes de presidente da fase de instrução, pois quando é esse o caso, e se efectua o controlo jurisdicional da actividade do Ministério Público, o Tribunal exerce as competências próprias legais e constitucionais que lhe são atribuídas, deixando intocada a autonomia do M.P. 9. Não respeita o princípio do acusatório e a autonomia do Ministério Público uma decisão que, a propósito do que entende ser uma nulidade processual, aprecia e sindica a fundamentação do despacho de encerramento do inquérito, de modo a considerá-la insuficiente e omissa. É precisamente para controlar jurisdicionalmente o Ministério Público que a fase de instrução existe, e esta fase tem os seus momentos próprios para nela se produzirem decisões que poderão até contrariar o entendimento plasmado pelo Ministério Público na fase de inquérito a que presidiu. 10. Veja-se, por exemplo, a suportar indirectamente esta nossa posição, o Acórdão Nº 121/2021 do Tribunal Constitucional: “o momento adequado para apreciação jurisdicional dos atos do Ministério Público – que não estão, como é evidente, a ela imunes – terá lugar, em regra, e dentro da arquitetura do sistema, na fase de instrução (…). Esta deve funcionar como um mecanismo de comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de encerrar o inquérito (…) um excessivo protagonismo do Juiz de Instrução Criminal, durante o inquérito, que lhe atribuísse um âmbito de competência alargado, permitindo a reapreciação jurisdicional de todos, ou quase todos, os atos praticados pelo Ministério Público (sempre sem prejuízo de apreciação em sede de instrução, segundo as regras próprias dessa fase processual), significaria uma inversão do paradigma constitucionalmente estabelecido. De facto, isso equivaleria, em grande medida, a entregar a direção do inquérito ao Juiz, já não mais juiz das liberdades, mas sim juiz da acusação. Como, aliás, alega o recorrido nos presentes autos, o Juiz de Instrução Criminal estaria, assim, a co-exercer “o poder de iniciativa do Ministério Público” (…)”. 11. A pronúncia do Tribunal a quo a respeito da nulidade decretada não vem enquadrada para necessária salvaguarda dos direitos fundamentais, neste caso, da Assistente. Não só o legislador não definiu a nulidade para a hipótese de violação do dever de fundamentação ou omissão, como estabeleceu remédios claros e operativos com a hipótese de reclamação hierárquica e com a abertura de instrução pelo Assistente nos arts. 278.º e 287.º C.P.P., nos casos de discordância com o despacho de arquivamento. 12. Nesse sentido, também indirectamente, decidiu o Tribunal Constitucional no Ac. nº 121/2021 ao afastar a inconstitucionalidade do entendimento segundo o qual era possível ao juiz conhecer da invalidade dos actos processuais de constituição de arguido: “a intervenção do Juiz de Instrução Criminal durante o inquérito, só é imposta pela Lei Fundamental em relação aos atos lesivos de direitos fundamentais. (…). Decidiu-se “Não julgar inconstitucional a interpretação normativa dos artigos 17.º, 53.º, n.º 2, alínea b) e 269.º, n.º 1, alínea f), do CPP, segundo a qual está subtraída ao Juiz de Instrução Criminal a competência para conhecer das invalidades processuais dos atos de constituição de arguido e aplicação de TIR, praticados pelo Ministério Público.”. 13. Assim se não entendendo, à cautela, concluindo que a nulidade é aplicável, entende-se então que a douta decisão recorrida, ao verificar uma omissão que não existe, interpretou e aplicou erradamente o Direito aplicável, e violou o disposto pelos arts. 119.º, al. b) e 277.º, ambos do C.P.P.. A não verificação da omissão impunha que a nulidade não fosse decretada. 14. Não pode haver “falta de promoção” se o Ministério Público proferiu uma decisão, neste caso de arquivamento. E, em todo o caso, referindo-se na fundamentação, ainda que sumária, ao conjunto dos factos e indícios apreciados, num universo normativo – o do crime entendido indiciado, e aquele que a Assistente entende não ter sido apreciado - que compartilha elementos típicos. 15. No despacho de arquivamento se considerou que nos iriamos debruçar sobre os crimes “sempre que seja razoável e minimamente sustentada a sua indiciação. Estes factos e crimes indiciados fixam o objecto do processo e enformam a análise crítica da prova, pré-condicionada pela sua relevância e suficiência para concluir sobre a recolha de indícios suficientes, e na negativa, permitem a exclusão das matérias exorbitantes, supérfluas, e/ou irrelevantes.”. A pronúncia do M.P. foi aquela que, em grau, modo, e intensidade, pareceu mais adequada ao então titular do inquérito. 16. Não deixou de se indicar: “o que a investigação permite concluir é que os procedimentos denunciados correram os seus trâmites normais.(…)inexiste qualquer indício de que tenha presidido às decisões em crise qualquer vontade de agir contra o Direito com o fito de beneficiar ou até de prejudicar outrem.”. Se é certo que o crime de violação de regras urbanísticas não tem previsto um elemento subjectivo especial, também é certo que é doloso, e se bem interpretamos o que é agir contra o Direito, trata-se de declaração suficientemente ampla para incluir as regras urbanísticas. 17. O crime de violação de regras urbanísticas, ao punir o “funcionário” ou titular de cargo político, consoante a previsão em causa, com pena de prisão até três anos pela mera informação ou decisão de processo de licenciamento ou autorização, consciente da desconformidade com as regras urbanísticas, constitui um minus relativamente ao crime de prevaricação. 18. E ainda assim nos encontramos, quer na qualificação privilegiada pelo Ministério Público, quer na privilegiada pela Assistente, no domínio da prevaricação: “Uma leitura perfunctória do tipo de crime de violação de regras urbanísticas por funcionário permite descortinar uma aproximação da sua construção aos crimes de prevaricação previstos na legislação penal, apresentando-se, contudo, como uma prevaricação especifica e materialmente dedicada ao âmbito dos procedimentos de controlo prévio de operações urbanísticas.” - Ricardo Jorge Bragança de Matos, Op. Cit., pág.89 a 114. 19. Os dois crimes encontram-se numa relação de concurso aparente, em que o crime de violação de regras urbanísticas é consumido por aquele, pese embora, atenta a técnica legislativa, o crime de violação de regras urbanísticas seja mais restrito tipicamente. Mas ao apurar uma decisão consciente contra o Direito, com o intuito de favorecer outrem, estamos perante o crime de prevaricação, e se não for esse o caso, mas existir violação de normas urbanísticas de um modo consciente, poderemos estar perante o estoutro crime conquanto se encontre respeitada a restrição típica em causa. 20. No caso dos autos, entendeu-se, perante a indicação de um longo historial de procedimentos administrativos, desde o início do inquérito, orientar a investigação para uma prática propositada, e não meramente violadora das normas urbanísticas. Na queixa-crime, a Assistente direcionou-nos nesse sentido ao indicar que as obras são clandestinas e ilegais mas consideradas conformes pelos Denunciados (art. 35.º), numa ilícita concertação de condutas (art. 49.º), e ao lançar a suspeita no art. 40.º: “vá-se lá saber porquê (…) os Denunciados licenciaram tudo sem fiscalizar (…)”. 21. O cerne da conduta que a Assistente entende punível por parte dos denunciados BB, CC, DD, e EE, encontra-se no Despacho/Notificação Nº 951/2017/INT, de 11/01/2017, proferido no Proc. n.º 345/2015/URB (Doc. 50) – tanto quanto se sabe, incontestado junto dos TAF’s -, despacho e processo este constantes do ficheiro 345_2015, do DVD anexo. Analisado este processo, como já decorrida ao auto de análise da PJ, temos sucessivas decisões e pareceres contrários à pretensão de FF, culminando com a decisão de 11/01/2017. 22. Por outro lado, a Assistente não aceita que a cota do terreno mais elevada seja aquela aqui em causa, que deu azo ao licenciamento, por referir que essa cota mais elevada o foi artificialmente, e depois do início dos procedimentos. Ainda que tivesse razão, parece então que a decisão camarária teve em conta o disposto pelo art. 44.º, n.º 4 do RMUE, publicado em Diário da República, 2.ª série — N.º 203 — 16 de outubro de 2015. 23. Como se verteu ainda no despacho de arquivamento, a análise da investigação veio “ainda a ser confirmada pelas instâncias cíveis, em sentença proferida no Juízo Central Civil do Tribunal ... (Proc. n.º 543/18.0T8VFR, Ação Declarativa Comum, que se acompanha electronicamente)”, sentença esta que “efectua uma análise relevante para estes autos, a título instrumental, e totalmente coincidente com as conclusões da Polícia Judiciária, até porque a sentença se debruçou sobre pretensão da aqui denunciante, que queria considerado pela CM... a relevância de questões cíveis, como seja a servidão de vistas, o que esta entidade afastava dever obediência por o Código Civil regular a relação entre privados – cfr. Doc. 38 da pasta 345/2015/URB – DVD anexo à contracapa.”. 24. Ora, quanto ao muro, decidiu-se (nos mesmos moldes aceites pelo Município, como indicado a fls. 129): “A autora peticiona ainda a condenação dos réus em demolirem o muro para a altura legal na restante parte confinante com o prédio da Autora em toda a sua extensão, tomando por referência a cota natural inicial dos prédios, v.g. do prédio da autora. Ora, o muro foi devidamente licenciado com a altura a cumprir o limite máximo de altura previsto no Regulamento Municipal de Urbanização e Edificação, razão por que, sem que tenha sido explicitamente provada qualquer violação de direitos de personalidade da autora, a matéria suscitada não tem qualquer sustentáculo, nem de facto, nem de Direito.”. 25. E mais se decidiu: “as aberturas do local de habitação da autora não preenchem os requisitos para serem consideradas janelas. (…) as aberturas existentes no prédio da autora não podem ser qualificadas de janelas, por absoluta falta de cumprimento de todos os seus requisitos, devendo ser qualificadas de frestas irregulares, por não permitirem que uma pessoa, com a altura média, possa debruçar-se com a parte superior do corpo, a partir de um parapeito e assim devassar as vistas, olhando quer para a frente, quer para os lados, quer para cima ou para baixo (…). 26. E ainda: “as obras executadas pelos réus (factos 13 a 15) têm respaldo de integral licitude, tendo os réus direito a tapar na totalidade as aberturas existentes no prédio do autor, desde que o façam até ao linha divisória do seu prédio, quer porque inexiste qualquer servidão de vistas, nem qualquer servidão predial por frestas irregulares, mas ainda que essa servidão tivesse sido constituída por usucapião, os réus continuariam a ter o direito em tapá-las pelos fundamentos já profusamente explicitados, pelo que segundo pedido formulado pela autora, na sua alínea a), deve ser igualmente julgado totalmente improcedente. 27. Quanto ao desvio das águas: “os aterros não alteram, por si só, o normal escoamento das águas. Salvo nos casos em que haja uma pluviosidade que crie lagoas nos prédios, as águas da chuva, de forma natural, não estando os terrenos impermeabilizados, caem para os níveis freáticos que seguem o seu curso. (…) Em conclusão, as obras realizadas pelos réus ao invés de prejudicar, beneficiaram o prédio da autora com desvio da água do seu curso natural (que seria para o prédio da autora) para o interior do próprio prédio dos réus. O pedido é, assim, totalmente infundado e, por conseguinte, deve ser julgado improcedente.”. 28. Razão pela qual, além do mais alegado, e à cautela, o M.P. agiu, promoveu, e apreciou factos, indícios e crimes, tendo-o feito num grau, e nos moldes que o titular entendeu adequados, e que seguramente o Tribunal a quo poderá controlar jurisdicionalmente na fase de instrução, eventualmente proferindo decisão de pronúncia que contrarie o arquivamento, se for esse o caso. Mas não se pode aceitar que tenha ocorrido uma omissão, e uma omissão que comporte o seu sancionamento com uma nulidade. - Da substituição do douto despacho recorrido por outro, de rejeição do RAI ou abertura de instrução29. O RAI deve ser rejeitado nos termos conjugados dos arts. 130.º C.P.C. ex vi art. 4.º do C.P.P., bem como arts. 283.º, n.º 3, al. b) e 287.º, n.º 2 e 3 do mesmo Código, e AUJ n.º 7/2005 e 1/2015, por nulidade e inadmissibilidade legal. A decisão recorrida, não o tendo feito, violou estas normas, as quais, na interpretação defendida no presente recurso, impunham essa rejeição 30. É jurisprudencialmente pacífica a consideração do RAI como uma verdadeira acusação em caso de arquivamento por parte do Ministério Público, acusação essa que constitui o thema decidendum. O RAI deve articular, ainda que livre na forma, os factos de que depende a aplicação de uma pena, não sendo exigível que o Tribunal complete ou aperfeiçoe essa acusação. 31. No caso de um RAI falho nos elementos essenciais de uma acusação, a efectivação da fase de instrução configuraria um acto inútil por se antecipar a impossibilidade de pronúncia nos termos do disposto pelos arts. 303.º e 308.º, n.º 2 do C.P.P. A isto acresce o AUJ n.º 7/2005, o qual proíbe o convite ao aperfeiçoamento no caso de RAI “omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido”. Por outro lado, não poderá ocorrer alteração quando há omissão da descrição do tipo subjectivo, de acordo com o AUJ n.º 1/2015. 32. Salvo o devido respeito, não há no RAI um fio condutor, de teor acusatório, senão uma intensa discordância com as decisões proferidas. A Assistente não diferencia entre argumentação e a alegação de factos concretos. Não deixa de enunciar, misturando-os, diversos factos, procedimentos, decisões e omissões, sem datas, autores, contextos, de tal sorte que se revela de difícil enquadramento os diversos comportamentos que entende consubstanciarem violações. 33. A Assistente conclui que os Denunciados cometeram os crimes “p. e p. nos artigos 382.º, 382.º-A do Código Penal, e bem assim, o crime p. p. no artigo 11 da Lei 34/87 de 16/7” (art. 44.º). Ou seja, abuso de poder (art. 382.º do C.P.) e violação de regras urbanísticas (art. 382.º-A do C.P. e 11.º da Lei n.º 34/87, de 16/07). São denunciados: BB, Presidente da CM...; CC, Vice-Presidente e Vereador da CM...; DD, Chefe da Divisão da CM...; EE, Coordenador ... da CM.... 34. Apontam-se as seguintes faltas essenciais ao RAI enquanto acusação, que impõem a sua rejeição: a) Os dois primeiros denunciados são titulares de cargos políticos, e por isso, a sua conduta é abarcada pelos arts. 11.º (violação de regras urbanísticas) e 26.º (abuso de poderes) da Lei n.º 34/87, de 16/07, atento o art. 3.º, n.º 1, al. i) da mesma. Mas os restantes apenas poderão cometer esses crimes nas previsões típicas dos arts. 382.º e 382.º-A do C.P., salvo comunicabilidade nos termos do art. 28.º do mesmo Código. No RAI, não há distinção entre as actuações dos titulares de cargos políticos das actuações dos funcionários, nem se alega ou articula qualquer comparticipação, senão conclusivamente, da qual decorresse a comunicabilidade da ilicitude. b) Pese embora tenha dirigido o requerimento também contra titulares de cargos políticos, ao omitir o art. 26.º da Lei n.º 34/87, de 16 de Julho, a Assistente parece considerar que não está em causa esse crime, mas apenas o previsto para o funcionário (e isto, porque já não omitiu o art. 382.º do C.P.). Já não o fez para o caso de violação de regras urbanísticas, sem que perceba porquê. c) Efectua um apanhado sem articulação de factos concretos, com autores, datas, planos, situações concretas: por exemplo, refere o parecer de edificação n.º 32320/2016/INT (art. 15.º a 17.º), mas não articula depois qualquer facto quanto ao autor, responsabilidade do mesmo, motivação, ou qualquer outro facto de teor afirmativo e acusatório; refere-se às queixas de outros vizinhos, e da própria Assistente (22.º) no mesmo registo; refere-se a novos aterros e uma informação camarária resultante de fiscalização ciente da desconformidade e sem reacção às queixas apresentadas (art. 25.º e 26.º e 27.º), no mesmo registo, pese embora retire consequências de legalidade (art. 28.º) e de motivação criminal (art. 29.º) d) Aglomera ainda condutas sem referência concreta a datas, autores, nada em concreto, ao indicar que “ao licenciar a obra a que se refere o art. 32.ºda queixa, ou seja, um muro de vedação com 3,60 metros de altura, remodelação de terras quando foram efetuados inúmeros aterros que altearam a cota natural do terreno em cerca de 2 metros de altura e uma plataforma que tem tudo menos ser nivelada, os Denunciados (arguidos), enquanto, Presidente, Diretor do ... e Coordenador ... da Câmara Municipal ... aprovaram as obras em clamorosa violação dos citados preceitos legais” - art. 43.º), o que no seu entender configura os crimes indicados (art. 44.º). e) Obriga por outro lado a interpretar para procurar onde se encontra pelo menos um esquisso acusatório. Crê-se, fazendo uso dessa interpretação, o que não seria expectável, que centra o RAI a dado momento no Despacho/notificação n.º 951/2017/INT, assinado por GG (cfr.ficheiro dedicado a este processo no DVD anexo, e referido a fls. 126, e no auto de análise de fls. 133 e ss.); f) Nesse aspecto, é gritante a falta total de concretização quanto aos agentes, pois que não é alegado qual a relação dos demais denunciados com aquele Despacho/notificação. No facto 52.º, a Assistente refere-se ao mesmo despacho sem indicação de autor, e nos artigos seguintes refere-se ao conhecimento que eles, pressupõe-se que todos, porque nunca individualizado, teriam das diversas pretensas ilegalidades, e no 72.º afirma-se em singelo que “os Denunciados (Arguidos) licenciaram tais aterros e obras”. g) Entende desenhar a comparticipação daqueles com a frase “licenciaram tais obras” (art. 74º), colocando-os, ou conclusivamente, ou com total omissão de quaisquer factos concretos, como verdadeiros autores (conjuntos?) dos factos. Já tinha afirmado que “aprovaram as obras em clamorosa violação dos citados preceitos legais” (art. 43.º), e que o fizeram “Querendo, dessa forma, prejudicar como efectivamente prejudicaram (…) e beneficiando os donos do terreno em causa” (art. 29.º). Tudo indistintamente, sem concretização de quem fez o quê, responsabilidades de cada um, autorias, planos concretos; h) Pese embora lhe seja possível ainda indicar o lugar, tempo, e motivação, porque estão sobretudo em causa documentos, é apenas mencionado com alguma concretização o tal Despacho, sem se alegar quem o assinou, com base em que informação, nem qualquer outra concretização, sendo os demais documentos e decisões referidos em apreciação das condutas dos Denunciados e sem concretizar qualquer actuação a esse nível. Falta uma linha lógico-cronológica que nos indique assim onde está o acto, ou actos, ilícitos penalmente; i) Quanto ao tipo subjectivo, nos arts. 73.º a 77.º. a Assistente não indica, senão por referência a normas, qual o comportamento concreto e alegado que era esperado dos Denunciados, já para não dizer que continuou a não individualizar a sua conduta, nem a alegar o regime concreto da comparticipação. Ainda, nem sequer individualiza qual a obra ou obras a que está a fazer referência, o que é também impossível de concluir lendo todos os artigos anteriores com um mínimo de rigor e de segurança; e j) Não se faz qualquer distinção entre as posições dos titulares de cargos políticos e os funcionários, nem de comunicação da ilicitude nos termos do art. 28.º do Código Penal, como se defendeu; e k) Ao nível do abuso de poder, não há alegação sobre a “a intenção de obter, para si ou para terceiro, um benefício ilegítimo ou de causar um prejuízo a outrem”, senão como uma conclusão sobre as consequências deste (ou destes?) licenciamento(s). O mesmo se diga, em rigor, quanto ao dolo do tipo de violação de regras urbanísticas na modalidade volitiva. 35. Razão pela qual, pelos motivos expostos, entende-se que o RAI deverá ser rejeitado; assim se não entendendo, e no pressuposto da procedência dos argumentos elencados para a revogação da douta decisão recorrida, esta deve então ser substituída por outra que dê início à fase de instrução. * Por despacho foi o presente recurso regularmente admitido a subir imediatamente com os legais efeitos.-- A assistente respondeu às motivações de recurso vindas de aludir, entendendo em suma que o recurso interposto pelo Ministério Público deve ser julgado totalmente improcedente.-- Neste Tribunal da Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no qual, acompanhando os considerandos constantes do recurso do Ministério Público, pugna pela sua procedência total.-- Na sequência da notificação a que se refere o art. 417º, nº 2, do Código de Processo Penal, foi efetuado o exame preliminar e, colhidos os vistos, o recurso prosseguiu para conferência.* 2. FUNDAMENTAÇÃO Sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, é pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação apresentada que se delimita o objeto do recurso e os poderes de cognição do Tribunal Superior - artigo 412.º, n.º 1, do Código de Processo Penal). O essencial e o limite de todas as questões a apreciar e a decidir no recurso, estão contidos nas conclusões, excetuadas as questões de conhecimento oficioso” – cfr. Ac. do STJ, de 15.04.2010, in http://www.dgsi.pt. Tendo presente que o objeto dos recursos é balizado pelas conclusões da motivação apresentada pelo recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas - a não ser que sejam de conhecimento oficioso, Assim, as questões a apreciar são as seguintes: 1- ocorre nulidade insanável do despacho de arquivamento, por falta de promoção, nos termos do art.119º, al.b), do Código Processo Penal; 2- o RAI deve ser rejeitado nos termos conjugados dos arts. 130.º C.P.C. ex vi art. 4.º do C.P.P., bem como arts. 283.º, n.º 3, al. b) e 287.º, n.º 2 e 3 do mesmo Código, e AUJ n.º 7/2005 e 1/2015, por nulidade e inadmissibilidade legal, por falta de narração factual dos elementos objetivos e subjetivos dos tipos de crime -- Da falta de promoção ou fundamentação do despacho de arquivamentoDefendeu a decisão recorrida que o despacho de arquivamento foi omisso quanto à integralidade do objeto da denúncia, concretamente quanto a alguns dos factos denunciados e soluções plausíveis de direito que a mesma expressamente colocava, com a menção aos crimes previstos nos arts. 382º e 382º-A, do Código Penal, havendo nessa parte falta de promoção do Ministério Público, nulidade prevista no art. 119º/b) do Código de Processo Penal. Contudo, com o devido respeito, discorda-se desta posição. Tendo havido arquivamento do inquérito, não ocorre aqui falta de promoção do Ministério Público, antes e só falta de fundamentação daquele despacho quanto aos factos denunciados suscetíveis de integrar aqueles crimes. Com efeito, vale aqui o ensinamento de João Conde Correia, in Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Tomo III, Almedina, 2021, pág. 1035: “A falta de fundamentação, embora seja um vício processual penal gerador de invalidade (art.123º), não impede o arquivamento implícito das parcelas do objeto do processo não tratadas no despacho final de inquérito (…) A omissão de aspectos essenciais à completa decisão não permite que o Ministério Público possa depois invocar essa falta de fundamentação para, à revelia do disposto no art.279º, prosseguir com a investigação. Salvo referência em contrário (v.g. através de extração de certidão para novo inquérito), o inquérito é, independentemente do que estiver consignado no despacho final, arquivado in totum. Tudo aquilo que tenha sido investigado, fica, ainda que omitido nesse despacho final, abrangido pela força estabilizadora do arquivamento”. Não se verificando a apontada nulidade insanável, vejamos o vício correspondente à falta de fundamentação desde já se adiantando que tal invalidade em nada se relacionada com a existência ou não de indícios suficientes do cometimento dos crimes denunciados ou com a relevância probatória das diligências apresentadas e/ou requeridas pela denunciante. Nos termos do art.205º da C.R.P., conjugado com o art. 97.º, n.º 5, do Código de Processo Penal, os atos decisórios são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão. Tal dever legal de fundamentação estende-se, por via do art. 97.º, nº3 e 5, aos atos decisórios do Ministério Público, os quais são formalmente apelidados de despachos. Contudo, salvo nos casos de cominação expressa como nulidade, a falta de fundamentação constitui uma irregularidade e consequentemente sujeita ao regime geral do art.123º - cfr. Joaquim Correia Gomes, A motivação judicial em processo penal e as suas garantias constitucionais, JULGAR - N.º 6 – 2008, pg. 26. Defendendo a obrigatoriedade de fundamentação do despacho de arquivamento e a respetiva irregularidade por falta desta – cfr. Albuquerque, Paulo Pinto de. Comentário do Código de Processo Penal, 3ª ed., 2009, Universidade Católica Editora, anotação ao art.277º, pg.714, Paulo Dá Mesquita, Direção do Inquérito Penal e garantia judiciária, Coimbra, Coimbra Editora, 2003, pg. 86 e João Conde Correia, Questões práticas relativas ao arquivamento e à acusação e à sua impugnação, Porto, Publicações Universidade Católica, 2007, 37 e 38, do mesmo Autor, Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Almedina, 2021, Tomo II, anotação ao art.277º, pg.1034. No mesmo sentido António da Silva Henriques Gaspar e outros, Código Processo Penal Comentado, Almedina, anotação art. 277, pg. 972, recordando que no caso de arquivamento por razões materiais o despacho deve conter uma discussão dos indícios suficientemente elucidativa das razões do arquivamento. O regime regra da declaração da irregularidade é o de que esta seja feita a requerimento do interessado, nos estritos termos e prazos previstos na lei, ficando sanada se não for tempestivamente arguida perante o tribunal a quo (art. 123º n.º 1). Ressalva-se no seu n.º 2, a declaração e reparação oficiosa de irregularidades que possam afetar o valor do ato praticado, obviamente limitadas pelo campo de proteção da norma que deixou de observar-se. Assim, se a norma se destina a proteger unicamente interesses de determinado interveniente/sujeito processual e este não se tiver prevalecido da faculdade de invocar o vício, a irregularidade fica definitivamente sanada, não sendo possível declará-la oficiosamente. Se estiver em causa norma ordenadora ou que tenha subjacente a concretização no processo penal de valores inerentes a um Estado de Direito material, já pode ser declarada oficiosamente sem qualquer restrição. A denunciante com faculdade de requerer a constituição como assistente não arguiu, tempestivamente, perante a autoridade judiciária respetiva e nos termos legalmente previstos, a existência de qualquer irregularidade que afetasse o despacho recorrido. Resta, pois, analisar se o caso pode ser subsumido à previsão do n.º 2, do citado art. 123º. A exigência de fundamentação, além da compreensão das decisões pelos cidadãos, especialmente pelos interessados, tem em vista o controlo crítico, por via dos mecanismos de reação ou impugnação, da lógica e transparência da decisão, constituindo fator de legitimação do poder jurisdicional e uma garantia de observância e respeito pelos princípios da legalidade, imparcialidade e independência, obstando a decisões arbitrárias. Daí que a fundamentação de ato decisório deva ser “objectiva, clara e rigorosa e exteriorizar-se no respectivo texto de modo que se perceba qual o seu sentido e os argumentos lógicos que compõem o seu substrato racional”, estando em causa “a transparência democrática no exercício da função jurisdicional e a boa administração da justiça, interesses supra partes que justificam, se for esse o caso, a intervenção oficiosa visando a sanação do vício” – cfr. ac RP 15-04-2015 (Maria Deolinda Deonísio) www.dgsi.pt. No mesmo sentido João Conde Correia, in Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Tomo III, Almedina, 2021, pág.1034, alerta que o despacho de arquivamento, enquanto ato decisório (art.97º, nº3, do Código Processo Penal), qualquer que seja a sua natureza e tipologia processual, deve especificar as razões de facto e de direito da decisão (art.205º, da C.R.P. e art.97º, nº5, do Código Processo Penal. Tal exigência, esclarece o Autor, é determinada por funções endroprocessuais e extraprocessuais que contribuem para a legitimação do exercício do ius puniendi estadual [1], dando conhecimento à comunidade, sobretudo às pessoas envolvidas no conflito, das razões pelas quais o Ministério Público não exerceu, como devia (art.219º, nº1, da C.R.P.), a ação penal. Consequentemente, entendendo-se que a irregularidade que se evidencia do texto da decisão em crise, no caso o despacho de arquivamento, atinge valores e princípios que extravasam o interesse dos concretos sujeitos processuais, deve a mesma ser declarada oficiosamente por este tribunal de recurso e determinada a sua reparação pelos Serviços do Ministério Público ou pelo tribunal a quo, conforme o caso, nos termos e ao abrigo do disposto no art.123º n.º 2, ocorrendo a invalidade de todos os efeitos desse ato e de todos os subsequentes dele dependentes - cfr. Ac RG 27-05-2019 (Fátima Furtado), o ac RP 15-04-2015 (Maria Deolinda Deonísio) www.dgsi.pt, RP 31-05-2017 (Neto Moura), www.dgsi.pt. Também ATRG de 5/1/2004 Proc. 293/04.1, de 12/2/2007 Proc. 2335/06.1, ATRP de 16 /12/2009 Proc. 568/09 GFVNG.P1www.dgsi.pt Neste caso, a extrema gravidade e consequências da imperfeição que atinge o ato decisório determina que o tribunal possa declarar a sua ineficácia, independentemente da sua arguição (nulidade insanável e irregularidades de conhecimento oficioso), dada a ofensa aos mais elementares direitos, liberdades e garantias individuais, sobrepondo-se aos ideais de segurança, celeridade e economia na administração da justiça penal [2]. Este poder-dever restringe-se aos casos em que esteja em causa o interesse público e não um interesse privado disponível – cfr. João Conde Correia, Albuquerque, Paulo Pinto de. Comentário do Código de Processo Penal, 3ª ed., 2009, Universidade Católica Editora, anotação ao art., pg., s.d. Comentário Judiciário do Código de Processo Penal. Almedina, Tomo II, anotação ao art., pg., 2021. Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Almedina, 2019, Tomo I, anot. art.º, pg. s.d. Gonçalves, Maia. Código de Processo Penal Anotado e Comentado, 9.ª edição, pg. s.d. outros, António da Silva Henriques Gaspar e. Código Processo Penal Comentado. Almedina, anotação ao art. , pg., s.d. Inexiste qualquer especial regime normativo – disciplinante quer da forma quer do conteúdo justificativo do despacho de arquivamento, similar ao que o legislador reservou para as sentenças/acórdãos estabelecidas pelos artºs 374º, 375º, nº1 e 379º, nº 1 al. a). Daí que a falta de fundamentação constitua uma irregularidade processual (art.97º, nº3 e 5, e art.123º), que no caso afeta o valor do ato e poderá ser suprida a todo o tempo, pelo que, ainda que não seja arguida, pode ser reparada oficiosamente ou mandada reparar pela autoridade judiciária competente. Posto isto, verificada irregularidade abrangida pela estatuição do art.123º n.º 2, por omissão dos reais fundamentos do arquivamento, cumpre declarar inválido o respetivo despacho (e todos os atos posteriores dele dependentes), devendo ser substituído por outro que se pronuncie sobre a existência ou não de indícios suficientes da prática dos factos denunciados e explicite e exteriorize no respetivo texto, ainda que de forma simples e breve, os fundamentos de facto [enumeração factual e concretos meios de prova atendidos ou não e em que moldes] e de direito que sustentam o respetivo juízo indiciário, pois só assim se dará claro e completo cumprimento ao imperativo constitucional da fundamentação da decisão. Com efeito, não é possível a discussão critica desses indícios probatórios sem a incindível clarificação do sentido indiciado ou não dos factos submetidos ao juízo indiciário. A fundamentação influi essencialmente sobre a descrição dos factos indiciados e dos factos não indiciados, pois são estes que delimitam o objeto de apreciação. A clara indicação dos factos indiciados e não indiciados é corolário do dever de fundamentação das decisões judiciais e imposto quer pela CRP quer pela lei ordinária (artº 97º CPP). Assim, a fundamentação do despacho de arquivamento, ao mover o seu juízo critico probatório entre os factos elencados na denúncia, não pode deixar de indicar aqueles relevantes para conhecer da responsabilidade criminal do arguido que, no caso, julga não indiciados, e só no final poderá extrair a consequência jurídica que se impõe (acusação ou arquivamento). Só especificando os factos relevantes julgados não indiciados, o despacho de arquivamento explicitará verdadeiramente as razões de facto e de direito correspondentes. Em suma, o despacho de arquivamento que, além de não evidenciar os factos típicos relevantes não indiciados, não permite minimamente a sua apreensão no juízo de indiciação, a partir da discussão critica das provas obtidas, também esta omissa, padece de falta de fundamentação e encontra-se ferido de irregularidade, cuja reparação deve ser ordenada a todo o tempo, a requerimento ou oficiosamente, sempre que – como é o caso - puder afetar o valor do ato praticado. Aqui chegados, importa conhecer os elementos típicos dos crimes de abuso de poder ou violação das regras urbanísticas. Incorre no crime de abuso de poder, previsto no art.26º, nº1, da Lei n.º 34/87, de 16 de julho, o titular de cargo político que abusar dos poderes ou violar os deveres inerentes às suas funções, com a intenção de obter, para si ou para terceiro, um benefício ilegítimo ou de causar um prejuízo a outrem. Já em relação ao tipo comum previsto no art.382º, do Código Penal, incorre no crime de abuso de poder: “O funcionário que, fora dos casos previstos nos artigos anteriores, abusar de poderes ou violar deveres inerentes às suas funções, com intenção de obter, para si ou para terceiro, benefício ilegítimo ou causar prejuízo a outra pessoa”. Quanto ao crime de violação de regras urbanísticas por funcionário, previsto no artigo 382.º-A, do Código Penal, estabelece o seu nº1, o funcionário que informe ou decida favoravelmente processo de licenciamento ou de autorização ou preste neste informação falsa sobre as leis ou regulamentos aplicáveis, consciente da desconformidade da sua conduta com as normas urbanísticas. Posto isto, não obstante a existência na denúncia de factos integradores daqueles tipos legais de crimes, nenhuma referência indiciária lhes é feita no arquivamento, nem das razões do arquivamento in totum e, portanto, também nesta parte. Acompanhando-se a decisão recorrida, “importava que no inquérito e no despacho de arquivamento, o Ministério Público tomasse posição acerca dos indícios relativos à legalidade ou ilegalidade da actuação dos arguidos, por um lado e, por outro, sobre os indícios relativos à atitude interior subjacente à prática dos factos atribuídos aos denunciados, sob o prisma de qualquer dos ilícitos penais denunciados, tudo factos que se mostram descritos na denúncia, com indicação explícita dos ilícitos penais prefigurados, e sobre os quais o despacho de arquivamento é absolutamente omisso”. Não o tendo feito quanto aos factos denunciados suscetíveis de integrar os tipos de crime de abuso de poder e violação das regras urbanísticas, nessa parte o Ministério Público feriu de irregularidade do conhecimento oficioso o despacho de arquivamento. Não cabe ao destinatário da decisão, ao Juíz de Instrução Criminal ou ao tribunal ad quem aproveitar o sentido útil da fundamentação no contexto do crime de prevaricação para encontrar, ainda que implicitamente, as razões de facto e de direito do arquivamento em relação aos demais factos denunciados, com sentido de ilícito típico autónomo. Ao Ministério Público competia, isso sim, explicitar no texto do seu despacho, de forma objetiva, clara e rigorosa as razões do arquivamento quanto aos crimes de abuso de poder e violação das regras urbanísticas de modo que se perceba qual o sentido e os argumentos lógicos da sua decisão. Não o tendo feito, ainda que com fundamento distinto, improcede o recurso interposto pelo Ministério Público. -- Da rejeição da abertura de instrução (inadmissibilidade legal) O recorrente Ministério Público invoca a inadmissibilidade legal do requerimento de abertura de instrução, por falta de narração factual dos elementos típicos dos crimes imputados aos arguidos. Contudo, a enunciada questão não foi objeto de pronúncia na 1ª instância. Os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo ato recorrido. Os recursos são meios de impugnação de decisões judiciais e não meios de julgamento de questões novas [3]. Os recursos ordinários visam o reexame da decisão proferida dentro dos mesmos pressupostos em que se encontrava o tribunal recorrido no momento em que a proferiu. Questionando “quando se recorre, recorre-se de quê e para quê”, Sérgio Gonçalves Poças, in Processo penal quando o recurso incide sobre a decisão da matéria de facto, JULGAR - N.º 10 – 2010, pg. 22, responde: “Recorre-se de uma decisão que se tem como errada e pretende-se obter uma outra que corrija o erro da decisão recorrida”. Enquanto meios de impugnação e de correção de decisões judiciais, os recursos não constituem instrumentos processuais para obter decisões novas. Daí que, ressalvadas as questões de conhecimento oficioso, o tribunal de recurso não pode ser chamado a pronunciar-se sobre questões não suscitadas ao tribunal recorrido. Por tal razão, não tem este tribunal de recurso que se pronunciar sobre questões que nem sequer foram suscitadas e decididas pelo tribunal recorrido na decisão de que se recorre. Se a decisão recorrida não se pronunciou sobre a inadmissibilidade legal do requerimento de abertura de instrução não é sobre essa concreta questão que o tribunal de recurso pode e deve pronunciar. Assim, sob pena de se desvirtuar a natureza corretiva dos recursos, com supressão de um grau de jurisdição penal quanto à questão (nova) da inadmissibilidade legal da instrução, não pode nem deve o tribunal de recurso conhecer da mesma. Por conseguinte, também nesta parte improcede a argumentação recursiva. *** 3. DECISÃO Nesta conformidade, acordam os juízes desta Segunda Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e, consequentemente, manter a decisão recorrida quanto à declarada invalidade do despacho de arquivamento do inquérito e de todos os atos subsequentes, que desse despacho dependem, com a consequente remessa dos autos aos Serviços do Ministério Público. Sem custas. Notifique. Acórdão elaborado pelo primeiro signatário em processador de texto que o reviu integralmente (art.94º nº 2 do CPP), sendo assinado pelo próprio e pelo Excelentíssimo Juíz Adjunto. Porto, 29 de junho de 2022 João Pedro Pereira Cardoso Raúl Cordeiro ________________________ [1] José Mouraz Lopes, in A Fundamentação da Sentença no Sistema Penal Português – Legitimar, Diferenciar, Simplificar, Coimbra, Almedina, 2011, pg.131ss. [2] João Conde Correia. Contibuto para a análise da inexistência e das nulidades processuais penais, BFDUC, Stydia Ivridica, 44. Coimbra Editora, 1999, pg. 171 e 174. Haverá aqui que distinguir, como refere Germano Marques da Silva, em Curso de Processo Penal, volume II, 5ª edição, página 131, “entre a validade do acto e o seu valor; o acto será válido se a irregularidade não for declarada, mas pode não ter valor, designadamente por não poder produzir os efeitos a que se destinava”. [3] Neste sentido Miguel Teixeira de Sousa, em "Estudos sobre o Novo Processo Civil", pág. 395, afirma: "No direito português, os recursos ordinários visam a reapreciação da decisão proferida dentro dos mesmos condicionalismos em que se encontrava o tribunal recorrido no momento do seu proferimento. Isto significa que, em regra, o tribunal de recurso não pode ser chamado a pronunciar-se sobre matéria que não foi alegada pelas partes na instância recorrida ou sobre pedidos que nela não foram formulados." Como refere o Prof. Germano Marques da Silva, em "Curso de Processo Penal", III vol., pg. 309: "O recurso é um meio de impugnação de decisões judiciais que tem por finalidade a eliminação dos defeitos da decisão ilegal ainda não transitada em julgado, submetendo-a a uma nova apreciação por outro órgão jurisdicional, ou a correcção de uma decisão já transitada em julgado". O mesmo entendimento vemos seguido na jurisprudência superior, destacando-se o ac STJ 25.03.2010 www.dgsi.pt que firmou posição no sentido de que «os recursos, como remédios jurídicos que são, não se destinam a conhecer questões novas, não apreciadas pelo tribunal recorrido, mas sim a apurar da adequação e legalidade das decisões sob recurso. Despistam erros in judicando, ou in procedendo, que são expressamente indicados pelo recorrente, com referência expressa e específica aos meios de prova que impõem decisão diferente, quanto aos pontos de facto concretamente indicados (quanto à questão de facto), ou com referência à regra de direito respeitante à prova, ou à questão controvertida (quanto à questão de direito) que teria sido violada, com indicação do sentido em que foi aplicada e qual o sentido com que devia ter sido aplicada. Assim, o julgamento do recurso não é o da causa, mas sim do concreto recurso e tão só quanto às questões concretamente suscitadas e não quanto a todo o objecto da causa. Não pode, pois, o Tribunal Superior conhecer de questões que não tenham sido colocadas ao Tribunal de que se recorre». Assim, o ac RG 03-11-2003 (Francisco Marcolino) www.dgsi.pt concluiu estar excluída, “por isso, a possibilidade de alegação de factos novos (ius novorum; nova) na instância de recurso, embora isso não resulte de qualquer proibição legal, mas antes da ausência de qualquer permissão expressa. Não pode, pois, o recorrente pretender que o tribunal profira uma nova decisão com base em factos novos que alega, suportados em documentos mas que não foram levados ao conhecimento da decisão recorrida”. |