Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0423026
Nº Convencional: JTRP00037517
Relator: HENRIQUE ARAÚJO
Descritores: ABUSO DE DIREITO
MURO
Nº do Documento: RP200412210423026
Data do Acordão: 12/21/2004
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: REVOGADA A SENTENÇA.
Área Temática: .
Sumário: I - Pese embora a regulamentação na lei civil das relações de vizinhança, é possível atalhar os conflitos derivados de tal relação através do instituto do abuso de direito.
II - Tal se aplica às situações típicas do exercício inútil danoso ou de desproporcionalidade entre a vantagem auferida pelo titular e o sacrifício imposto pelo exercício de outrem.
III - Será o caso de muro excessivamente elevado, sem justificação plausível, e que priva o vizinho de luz e sol necessários.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:

I. RELATÓRIO

B..... e mulher, C....., residentes na Rua....., ....., ....., intentaram no Tribunal Judicial da..... a presente acção ordinária contra D..... e mulher, E....., residentes na Rua....., ....., ....., pedindo que os Réus sejam condenados a:
a) reconhecerem o direito de propriedade dos Autores sobre o prédio descrito no artigo 1º da petição inicial;
b) reconhecerem que exerceram o seu direito de propriedade de modo excessivo, abusivo e prejudicando aqueles;
c) demolirem o muro confinante com o dos Autores, de modo a que este não ultrapasse a altura de 4 metros, num prazo de um mês após o trânsito em julgado da sentença.
Para o efeito alegaram que os Réus, agindo com manifesto abuso de direito, construíram, contiguamente ao muro dos Autores, um muro com sete metros de altura, que priva o quintal, o logradouro e a parte de trás do primeiro andar do prédios dos Autores de sol em qualquer altura do dia, criando ainda correntes de ar insuportáveis no quintal.

Os Réus contestaram, afirmando que o muro em causa não prejudica o prédio dos Autores e que tem como objectivo vedar o seu terreno e, principalmente, suportar as terras e consolidar o solo, correspondendo 4,6 metros da sua altura a muro de suporte e 1,10 metros a muro de protecção.
No final do seu articulado os Réus pediram que os Autores sejam condenados, como litigantes de má fé, no pagamento de multa e indemnização.

Foi proferido o despacho saneador, fixaram-se os Factos Assentes e organizou-se a Base Instrutória.

Foi realizada a audiência de julgamento, tendo-se respondido à matéria da Base Instrutória pela forma e com a fundamentação que consta de fls. 162 a 164, sem que surgisse qualquer reclamação.

Por fim, foi proferida a sentença que, julgando procedente a acção, condenou os Réus a:
a) reconhecerem o direito de propriedade dos Autores sobre o prédio identificado na petição inicial;
b) reconhecerem que exerceram o seu direito de propriedade de modo excessivo, abusivo e prejudicando os Autores;
c) demolirem o muro confinante com o dos Autores, de modo a que este não ultrapasse a altura de 4 metros, num prazo de seis meses após o trânsito em julgado da sentença.

Os Réus recorreram.
O recurso foi admitido como sendo de apelação, com subida imediata nos próprios autos, com efeito devolutivo (fls. 183 e 253).

Nas respectivas alegações de recurso, os Réus pedem a revogação da sentença, formulando, para esse efeito, as seguintes conclusões:
1. Há, na douta sentença recorrida, erro manifesto na qualificação e decisão da matéria de facto.
2. Na verdade, em vista da prova testemunhal e documental produzida nos autos, e registada nas gravações dos depoimentos prestados pelas testemunhas ouvidas, a decisão sobre a matéria de facto afigura-se errada, deficiente, obscura e contraditória.
3. Valorando de forma errónea o depoimento da testemunha F....., testemunha com qualificações e conhecimentos técnicos, e que depôs com total isenção e razão de ciência.
4. Testemunho que estabeleceu, de forma concisa, clara e isenta, que a construção do muro in casu não pode gerar correntes de ar no prédio dos Autores.
5. Pelo que se impõe resposta diversa à matéria constante do art. 13º da douta base instrutória.
6. Os documentos juntos pelos Réus como sendo os documentos nºs 8 e 9, juntos com a contestação e, bem assim, as medições efectuadas pelo Meritíssimo Juiz a quo, constantes do teor da acta da audiência de julgamento (a fls. 153 e ss. dos autos) provam à saciedade que os Autores desaterraram o seu prédio aplanando-o.
7. Estes factos provados impõem resposta diversa à matéria constante do quesito 20º da douta base instrutória.
8. Os depoimentos das testemunhas G..... e H....., em concreto à matéria constante dos artigos 16º, 19º e 20º da douta base instrutória impõem resposta diversa da dada a essa matéria pelo Meritíssimo Juiz a quo.
9. Devendo a douta sentença em crise, em consequência, ser alterada, dando-se sem efeito a decisão recorrida e alterando-se a decisão da matéria de facto – art. 712º do CPC.
Sem prescindir!
10. A matéria provada nos autos não permite concluir pelo abuso do direito de tapagem por parte dos Réus.
11. Na verdade, não foram alegados quaisquer factos integrativos de um abuso de direito de tapagem e, consequentemente, não ficaram, provados quaisquer factos integrativos desse abuso.
12. Ao contrário, ficou provado que os Réus usaram o seu direito de acordo com o fim social e económico para o qual o mesmo foi previsto na lei – a garantia do exclusivismo na fruição ou uso da coisa.
13. Bem como não ficou provado qualquer prejuízo sério da parte dos Autores que seja decorrente da construção do muro!
14. Na verdade, provou-se apenas que a construção do muro originou uma diminuição de luminosidade em parte do logradouro do prédio dos Autores.
15. Pelo que não há, nem ficou provado nos autos, qualquer desproporção entre a utilidade obtida com o muro, de suporte e protecção diga-se, e a consequência que o vizinho tem de suportar.
16. Não se provando qualquer abuso de direito, não pode a douta sentença condenar na demolição do muro.
Pelo que a douta sentença recorrida constitui uma violação de jus condito!
Ainda sem prescindir.
17. A douta sentença, ao condenar os Réus na demolição do seu muro de tapagem sem que exista, decorrente da construção do mesmo, qualquer abuso de direito, viola o direito de propriedade dos Réus.
18. Direito este constitucionalmente protegido, designadamente no artº 62º da Constituição da República Portuguesa.
19. Em consequência, é a douta sentença em crise inconstitucional e como tal deve ser declarada!

Os apelados contra-alegaram, batendo-se pela manutenção do julgado.

Foram colhidos os vistos legais e procedeu-se à audição da prova gravada.
*
Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões dos recorrentes – arts. 684º, n.º 3 e 690º do CPC – as questões a debater são:
Devem ser alteradas as respostas aos quesitos 13º, 16º, 19º e 20º da Base Instrutória?
Os apelantes não agiram com abuso de direito?
c) A sentença recorrida viola o preceito do art. 62º da Constituição?
*
II. FUNDAMENTAÇÃO

OS FACTOS

A 1ª instância deu como provados os seguintes factos:

1. Mediante escritura pública, datada de 14.03.1997, I..... e G....., na qualidade de sócios gerentes e em representação da sociedade “J....., Limitada”, declararam vender a D....., que declarou aceitar tal venda, pelo preço de Esc. 4.000.000$00, um terreno para construção, com a área de trezentos e oitenta e oito metros quadrados, sito na Rua A do loteamento, em....., ....., descrito na Conservatória do Registo Predial da..... sob o n.º 933, conforme documento de fls. 23 a 26 dos autos, que aqui se dá por integralmente reproduzido.
2. O prédio urbano sito na Rua....., em ....., ....., confronta a sul com o prédio referido em 1.
3. Os Autores são proprietários do prédio referido em 2., o qual é composto por uma moradia com r/c e 1º andar, quintal e logradouro.
4. Os Autores residem no prédio aludido em 2. há mais de vinte anos.
5. Encontra-se construída uma moradia com cave, r/c, 1º andar e quintal, no prédio referido em 1., cuja frente deita para a Rua X.....
6. O lote onde os Réus construíram a moradia confronta em toda a parte norte com o lote dos Autores.
7. O lote de terreno onde os Réus construíram o seu prédio de habitação era em rampa, cuja parte mais baixa era junto à parte da lateral sul do lote dos Autores e a mais alta junto à Rua das X......
8. Os Réus fizeram um aterro nas traseiras do seu prédio, repondo estas ao nível da Rua das X......
9. A cota inicial do terreno foi elevada.
10. Os Réus edificaram um muro como suporte e vedação, confinante ao muro dos Autores, com cerca de 5 metros.
11. O muro dos Autores confinante com o muro dos Réus tem cerca de 1,10 metros.
12. O muro dos Réus diminui calor e luminosidade.
13. E gera correntes de ar.
14. Após a construção do muro referido em 10., os Autores passaram a usufruir, em parte do seu prédio, de menos luz e calor do que usufruíam antes da construção de tal muro.
15. O lote de terreno onde foi construída a habitação dos Réus sempre esteve num plano mais elevado face ao prédio referido em 2.
16. Em momento posterior à construção da casa referida em 5., entre Novembro de 1999 e Dezembro de 1999, os Réus procederam à edificação de um muro para vedar o seu prédio e de proceder ao suporte de terras.
17. O muro dos Réus mede, pelo interior e a contar do solo, 1,10 metros.
18. Os Réus recuaram o muro aludido em 10. em 3 metros ao longo dum comprimento de cinco metros, na sua extrema nascente.

Está ainda provado documentalmente que:
19. Em 29 de Fevereiro de 2000, o Município..... vendeu aos Réus, pelo preço de Esc. 656.200$00, uma parcela de terreno, com a área de 77,20 m2, confrontando do norte com o lote n.º 7 e do sul com os Réus, parcela essa destinada a ser anexada ao logradouro do prédio de habitação destes – doc. fls. 32 a 35, cujo teor se dá aqui por integralmente transcrito.

O DIREITO

a)
Os apelantes reclamam a alteração das respostas dadas aos quesitos 13º, 16º, 19º e 20º da Base Instrutória.
Vejamos, primeiro, qual a redacção de cada um deles.
13º
E gera correntes de ar?
16º
O lote de terreno onde foi construída a habitação dos Réus sempre esteve, como actualmente, ao nível da Rua das X.....?
19º
Com a construção do muro referido em 9º, os Réus visaram evitar o risco de desmoronamento de terras sobre o prédio referido em B)?
20º
Aquando da construção da casa referida em 1), os Autores procederam ao desaterro do prédio aludido em B), cavando-o em cerca de 5 metros a fim de o tornar plano e permitir a construção?

Destes quesitos, só o 13º obteve resposta positiva. Todos os outros foram respondidos “não provado” – cfr. fls. 163.
Os apelantes pretendem a inversão do sentido dessas respostas, mas desde já se adianta que não há razões para tal.
A decisão da matéria de facto julgada pelo Tribunal de 1ª instância pode, como se sabe, ser impugnada se a prova tiver sido gravada, cabendo ao recorrente indicar os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados e os meios concretos de prova que impunham decisão diversa – art. 690-A.
Esta possibilidade não significa que o Tribunal da Relação deva proceder a novo julgamento da matéria de facto impugnada. A Relação, como avisa Abrantes Geraldes (“Temas da Reforma do Processo Civil”, 2º Volume, pág. 266), não é um segundo tribunal da 1ª instância, mas um tribunal de 2ª instância, com competência, que se pretende residual, de proceder à reapreciação de determinados aspectos da matéria de facto.
A modificação da matéria de facto só obterá viabilidade quando os elementos de prova apontem, de forma clara e segura, para uma decisão diversa da recorrida. É preciso, pois, que haja uma gritante desconformidade entre o decidido e aquilo que resulta da ponderação e análise dos depoimentos gravados ou de outros elementos de prova disponíveis nos autos.
E isto é assim porque a gravação da prova pode esconder aspectos comportamentais ou reacções dos depoentes que apenas podem ser percepcionados, apreendidos, interiorizados e valorados por quem os presencia, ou seja, pelo juiz da 1ª instância.
Ouvida a prova, chegamos à conclusão de que nada deve ser alterado na decisão da matéria de facto.
Vejamos porquê:
À matéria do quesito 13º referiram-se, de modo expresso, a testemunha L....., indicada pelos Autores, e a testemunha F....., arrolada pelos Réus.
A primeira, é amiga do Autor B..... e, por esse facto, ajudou na construção da sua casa, uma vez que exerce a profissão de pintor de construção civil. Referiu que no quintal dos Autores, na zona contígua ao muro dos Réus, é como se fosse um túnel, “dá vento”.
A segunda, é profissional de seguros mas tem uma licenciatura em Geografia. Começou por referir que não é possível existirem correntes de ar e que o muro até poderá servir de resguardo às mesmas. Mas depois admitiu que nunca visitou o prédio dos Autores e, interpelado pelo Mmº Juiz, acabou por reconhecer que o que dissera era em abstracto e que é possível existir um túnel de vento na zona de implantação do muro, tudo dependendo do lado de que o vento soprar.
Parece-nos óbvio que a construção de um muro da envergadura do dos Réus, propicia a formação de um corredor de vento no terreno dos Autores, se soprar de feição. O Mmº Juiz também o entendeu, tendo em relação a nós a vantagem de ter visitado o local – cfr. fls. 154 e 163.
No que toca aos quesitos 16º e 19º, todas as testemunhas indicadas a essa matéria afirmaram que o acrescentamento do lote dos Réus, conseguido à custa da aquisição de uma parcela que pertencia ao Município da..... (cfr. doc. fls. 32 a 36) , não tinha, pelo menos na parte em que confina com o prédio dos Autores, o nivelamento que hoje se verifica. Era em rampa descendente até encontrar o muro de 1,10 metros de altura que delimita o prédio dos Autores.
Para prolongarem o lote e ganharem terreno, os Réus aterraram parte da área comprada à Câmara Municipal da...... Dessa forma altearam o nível desse lote, na zona em que confina com o prédio dos Autores, cerca de 2,5/3 metros (cfr. depoimento da testemunha G....., que realizou o projecto de construção da casa dos Réus).
Não se vê, por conseguinte, motivo para alterar o sentido das respostas dadas aos quesitos 16º e 19º. Com efeito, não ficou provado que o lote dos Réus tivesse o mesmo nivelamento da Rua das X..... - cfr. ponto 8. - , nem que, com a construção do muro, pretendessem evitar o risco de desmoronamento de terras no prédio dos Autores. É certo que a testemunha M....., engenheiro civil, que apenas depôs à matéria do quesito 19º, referiu que o objectivo do muro era a retenção de terras. Todavia, é absolutamente claro que, conforme a mesma admitiu, a finalidade de suportar as terras só surgiu após o aterro, já que, até esse momento, a altura de terras existentes não justificava um muro tão alto.
Finalmente, no que toca ao quesito 20º, não há a menor dúvida, depois de ouvida a prova gravada e analisada a prova documental junta aos autos, de que os Autores não contribuíram para o desnivelamento do seu prédio em relação ao prédio dos Réus. A análise das cotas de solo constantes das plantas topográficas de fls. 147 e 152 (a primeira, referente à data da construção da casa dos Autores, e a segunda, depois de realizado o loteamento) dão nota de que nenhuma alteração de nível do solo foi feita no prédio dos demandantes. Isso mesmo foi confirmado pelas testemunhas L....., acima citada, e N....., engenheiro civil que realizou o projecto da habitação dos Autores e dirigiu a execução da obra.

Com a improcedência das conclusões 1ª a 9ª do recurso, fica fixada, em definitivo, a matéria de facto.

b)
Vejamos, agora, se os Réus, ao murarem pela forma apurada o seu prédio, agiram com abuso de direito.
Diz o art. 1305º do CC que o proprietário goza de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas que lhe pertencem, dentro dos limites da lei e com observância das restrições por ela impostas. Dentro destes limites, o proprietário pode actuar, com absoluta liberdade, sobre o objecto do deu direito, através de actos materiais ou jurídicos.
No Código Civil existem normas que constituem autênticas restrições de interesse privado ao exercício pleno do direito de propriedade, motivadas por situações de vizinhança imobiliária (p. ex. os artigos 1346º a 1352º, 1357º, 1359º, n.º 1, 1360º, 1366º e 1563º). Essas restrições ora se traduzem em limitações ao direito de livre actuação do proprietário, ora em limitações ao direito de excluir ou impedir intromissões alheias – v. Henrique Mesquita, “Direitos Reais”, pág. 125.
A sua finalidade é a de compatibilizar o exercício de diferentes direitos sobre diferentes coisas, mais ou menos próximas (já que o conceito de vizinhança não significa, obrigatoriamente, contiguidade entre dois prédios), por forma a evitar prejuízos intoleráveis a cada um dos respectivos titulares. É o que costuma designar-se por “direito de vizinhança”.
O conjunto de normas que faz parte do cerne do direito de vizinhança (arts. 1346º e ss.) está inserido no capítulo dedicado à propriedade de imóveis, embora se deva considerar que a respectiva regulamentação é aplicável a todos os direitos reais cujo regime possa originar problemas ou conflitos de interesses idênticos – v. Henrique Mesquita, “Obrigações Reais e Ónus Reais”, edição de 1990, pág. 95, nota 103.

Um dos direitos que a lei civil expressamente reconhece ao proprietário é o de murar, valar, rodear de sebes o seu prédio, ou tapá-lo de qualquer modo – v. art. 1356º do CC. As únicas restrições a este direito, genericamente denominado como direito de tapagem, estão previstas nos artigos 1357º, n.º 1 e 1359º do Código Civil, onde se indicam as condições em que se podem abrir valas ou plantar sebes vivas.
Seguramente que o caso dos autos não configura uma situação que possa ser enquadrada em qualquer uma dessas restrições.
Parece, então, que nada impediria os Réus de edificarem o muro no limite do seu prédio, que confina, pelo norte (cfr. ponto 6.) com o prédio dos Autores.
Todavia, o muro implantado tem 5 metros de altura, tendo parte dessa altura sido “provocada” pelo aterro que realizaram nas traseiras do seu prédio, ou seja na parte mais próxima da confrontação com o prédio dos Réus (designadamente, como resulta dos autos, na parcela de terreno que adquiriram ao Município da .....) – v. 8., 9. 10. e 19. O muro dos Autores confinante com o muro dos Réus tem apenas 1,10 metros de altura – v. 11.
Antes do aterro aludido em 8., o terreno dos Réus terminava em rampa e, mais ou menos ao nível do topo do muro dos Autores, como se vê da fotografia junta a fls. 151 – v. 7. Pode daqui inferir-se que, nessa parte, o citado aterro elevou em quase 3 metros a altura do solo, “obrigando” à construção de um muro que suportasse as terras que aí foram deitadas. Esse muro dos Réus tem, pois, as finalidades referidas no ponto 10. da matéria de facto: serve de suporte às terras, na altura aproximada de 3,90 metros; e serve de vedação do prédio dos Réus, numa altura de 1,10 metros – cfr. ponto 17.

Não obstante o que acima ficou dito sobre as relações de vizinhança imobiliária e a respectiva regulamentação na lei civil, é possível atalhar a conflitos de vizinhança não expressa nem concretamente previstos pelo Código Civil, através do instituto do abuso de direito, designadamente nas situações típicas do exercício inútil danoso ou da desproporcionalidade entre a vantagem auferida pelo titular e o sacrifício imposto pelo exercício a outrem – v. Lorenzo González, “Limitações de Vizinhança”, pág. 93. Com efeito, sobre o proprietário impende a obrigação jurídica de exercer o seu direito em conformidade com a função social da propriedade, pois o mesmo só é constitucionalmente garantido enquanto ainda puder ser reconduzido a uma forma legítima de utilização da propriedade, isto é, a uma forma que ainda revele de algum modo, a função social da mesma. O exercício de tal direito em manifesta contrariedade do fim constitucionalmente incluído em tal direito fundamental reveste a qualidade de um abuso de direito – v. Maria Elizabeth Moreira Fernandez, “Direito ao Ambiente e Propriedade Privada”, em Studia Iuridica”, n.º 57, pág. 199.
A aplicação do citado instituto depende sempre da invocação e demonstração dos competentes factos constitutivos – v. Menezes Cordeiro, ob. cit., pág. 196.
Foi esse o caminho seguido pela sentença recorrida, ao decidir-se por adesão aos fundamentos do Acórdão do STJ de 16.03.1995, sumariado no endereço electrónico www.dgsi.pt e publicado na íntegra na CJSTJ, Ano III, Tomo I, págs. 121 e ss. Nesse acórdão, numa situação parecida com a dos autos, entendeu-se haver abuso do direito de propriedade dos demandados por terem procedido a um aterro e construído um muro de 2,80 m de altura, sendo o mesmo de suporte de terras na altura de 1,5 m, afectando desse modo a luminosidade da casa dos demandantes e o calor que ela antes recebia (v. fls. 123/124).
Segundo o art. 334º do CC age com abuso de direito quem exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.
De um modo genérico, pode dizer-se que há abuso de direito quando o excesso cometido seja manifesto, isto é quando haja uma clamorosa ofensa do sentimento jurídico-socialmente dominante – v. Vaz Serra, “Abuso do Direito”, BMJ n.º 85, pág. 253.
Este princípio geral domina todo o direito e constitui um excelente remédio para, como diz Menezes Cordeiro, “Tratado de Direito Civil Português”, Parte Geral, Tomo I, pág. 197, “… garantir a supremacia do sistema jurídico e da Ciência do Direito sobre os infortúnios do legislador e as habilidades das partes”.
No entanto, esse ilustre Professor, ob. cit., pág. 196, adverte que os nossos tribunais vivem uma “fase caracterizada – num aparente paradoxo – por uma aplicação sistemática e criteriosa do abuso de direito e, em certos casos, por uma banalização do instituto, com aplicações menos justificadas”. E o mesmo autor prossegue, na página seguinte: Aos tribunais pede-se, todavia, o maior critério e a maior precisão na aplicação da boa-fé e, designadamente, quando isso suceda contra o ius strictum. A possibilidade de qualquer pedido ser detido por invocado abuso (…) introduz, nos processos, um factor de álea ou de insegurança incompatível com a justiça. Decidir de acordo com a boa fé exige, ao intérprete-aplicador, um esforço analítico, conceitual e justificatório paradoxalmente muito superior ao requerido pela aplicação de normas estritas”.

São variadas as formas através das quais se pode manifestar o abuso de direito. Na tipologia de actos abusivos podem enunciar-se: a exceptio doli, o venire contra factum proprium, as inalegabilidades formais, a supressio, a surrectio, o tu quoque e, finalmente, o desequilíbrio no exercício.
O acórdão acima citado considerou que os aí demandados agiram com abuso de direito, na modalidade tu quoque. Essa forma de abuso de direito ocorre quando o agente penalizado viola, concretamente e na mesma situação jurídica, a própria norma de que, depois, se pretende prevalecer. Salvo o devido respeito, é muito difícil, senão impossível, divisar o recurso ao tu quoque numa situação como a dos autos ou a ela idêntica. E talvez por causa disso é que Menezes Cordeiro incluiu o referido acórdão do STJ na lista de arestos relacionados com o abuso de direito na modalidade do desequilíbrio no exercício – cfr. ob. cit., pág. 212.
De facto, a única modalidade do abuso de direito que merece ser ponderada no caso dos autos é a do desequilíbrio no exercício de posições jurídicas, já que as outras têm alcance claramente diverso da situação aqui retratada.
Existe desequilíbrio no exercício nas três hipóteses seguintes: exercício danoso inútil; exigência do agente daquilo que a seguir deva restituir; e desproporcionalidade entre a vantagem auferida pelo titular e o sacrifício imposto pelo exercício a outrem – v. Menezes Cordeiro, ob cit., pág. 212.
Ora, os Autores alegaram que o muro construído pelos Réus, em consequência do aterro que realizaram, “priva o quintal e o logradouro, bem como a parte de trás do primeiro andar … de sol, em qualquer altura do dia, e consequentemente, com diminuição de calor e luminosidade” – v. art. 10º da petição inicial. Disseram ainda que esse muro “criou correntes de ar insuportáveis no quintal, não podendo, por isso, os Autores usufruir plenamente deste (…) tornando-se assim, o quintal, o logradouro e o rés-do-chão do prédio, locais sombrios e húmidos” – v. arts. 11º, 12º e 13º da petição.
Esta matéria transitou para os quesitos 11º a 15º, de cujas respostas apenas resultou provado que, com a construção do mencionado muro, os Autores passaram a usufruir, em parte do seu prédio, de menos luz e calor do que anteriormente, e que o mesmo gera correntes de ar – v. pontos 12. a 14.
Por outro lado, não ficou provado que o dito muro prive de sol o quintal e logradouro, bem como a parte de trás do 1º andar dos Autores, em qualquer altura do dia, nem que o quintal, o logradouro e o rés-do-chão desse prédio se tenham tornado locais sombrios e húmidos – cfr. respostas negativas aos quesitos 11º e 14º, a fls. 162/163.
Podemos, então, afirmar que, ao procederem do modo descrito, os Réus não exerceram o seu direito de propriedade com manifesto excesso dos limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes, ou pelo fim económico ou social desse direito. Na verdade, o muro que levantaram em consequência do aterro descrito em 8., no exercício legítimo da vertente subjectiva-individual que integra o conteúdo do direito de propriedade, não ofende de modo clamoroso a justiça. Aliás, Antunes Varela, “Das Obrigações em Geral”, Vol. I, 4ª edição, pág. 465, refere que não actua, em princípio, com abuso de direito, o proprietário que constrói, no seu terreno, tirando as vistas ou a luz ao prédio vizinho.
No caso vertente, os prejuízos que decorrem para os Autores da edificação realizada pelos Réus (correntes de ar e diminuição de luz e calor em parte do prédio) são incomensuravelmente inferiores aos benefícios que para estes resultam (aproveitamento das potencialidade do prédio até ao seu limite físico), tanto mais que, como se relembra, não ficou provado que o muro tire luz e calor ao rés-do-chão ou primeiro andar da casa dos Autores, nem que torne sombrios o quintal, o logradouro e a referida casa.
Deste modo, porque, objectivamente, não resulta para os Autores um sacrifício superior à vantagem que os Réus retiram da obra em causa, arredada está a possibilidade de estes terem criado uma situação de desproporcionalidade exigida pela modalidade de abuso de direito acima indicada (desequilíbrio de exercício).
A sentença tem, pois, que ser revogada, procedendo, assim, as conclusões 10ª a 16º do recurso.

c)
O acabado de decidir em b) prejudica o conhecimento da questão da inconstitucionalidade suscitada pelos apelantes nas conclusões 17º a 19º da motivação de recurso.
*

III. DECISÃO

De acordo com o exposto, na procedência da apelação, revoga-se a sentença recorrida, julgando-se improcedente a acção e absolvendo-se os Réus dos pedidos formulados em b) e c) da petição inicial.

Custas pelos apelados.
*
PORTO, 21 de Dezembro de 2004
Henrique Luís de Brito Araújo
Alziro Antunes Cardoso
Albino de Lemos Jorge