Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRP00038039 | ||
Relator: | MÁRIO CRUZ | ||
Descritores: | NULIDADE LEGITIMIDADE | ||
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Nº do Documento: | RP200505100522204 | ||
Data do Acordão: | 05/10/2005 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | AGRAVO. | ||
Decisão: | PROVIDO. | ||
Área Temática: | . | ||
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Sumário: | Pedindo-se a declaração de nulidade ou a falsidade de uma escritura pública, a acção tem de ser proposta necessariamente também contra o Notário que a celebrou. | ||
Reclamações: | |||
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Decisão Texto Integral: | Acordam no Tribunal da Relação do Porto: I. Relatório B....., casada, residente com domicílio estabelecido na Urbanização....., Rua....., ....., ....., instaurou, em 2003.07.14, acção declarativa sob a forma ordinária contra 1.º C....., 2.º “D....., SA” 3.º “E....., Ld.ª, todos ids. nos autos, e 4.º F....., Notária, com domicílio no Cartório Notarial de....., Rua....., ....., pedindo: a). que se declare a falsidade da escritura pública junta aos autos como doc. n.º5, e, consequentemente, b). seja declarado nulo o negócio jurídico que a mesma corporiza, com as consequências legais. Para o efeito - e tendo apenas em conta o que para a apreciação do recurso interessa, - alegou a A., em resumo, que: - A. e 1.º R. são mulher e marido, encontrando-se em processo de divórcio, sendo os únicos sócios da 3.ª Ré, da qual a A. é única gerente; - A. e R. são também sócios accionistas da 2.ª Ré, da qual a A. é vice-presidente e o 1.º R. presidente do seu conselho de administração, sendo os restantes sócios (de capital meramente simbólico), os filhos de ambos (G..... e H.....) e o genro L.....; - A acção de divórcio em curso foi precedida de providência cautelar de arrolamento dos bens comuns do casal, no âmbito da qual foi a A. nomeada fiel depositária das quotas da 3.ª Ré; - As 2.ª e 3.ª RR. tinham como real finalidade permitir à A. e 1.º R. salvaguardar os bens e fazer a aplicação dos rendimentos adquiridos com os negócios do casal no domínio da ourivesaria, sendo a 3.ª Ré utilizada para titular a propriedade de uma Herdade adquirida pelo casal no Alentejo, conhecida por Herdade da.....”, e a 2.ª Ré utilizada para permitir a aplicação de dinheiro do casal no negócio imobiliário; - A 4.ª Ré é Notária no Cartório de...... - Em 2003.05.26, segundo consta de uma escritura junta aos autos, foi celebrada perante a 4.ª Ré, no Cartório a que preside, em....., uma escritura pública que a A. diz ser falsa, uma vez que, contra o que nela se diz, a A. não a outorgou, não esteve presente a ela, não lhe apôs a respectiva assinatura, nem declarou o que da escritura consta como lhe estando atribuído. - Refere a A. que a 4.ª Ré não teve o devido cuidado na verificação da identidade dos outorgantes, designadamente por ter identificado como sendo ela própria, uma outra pessoa, através de carta de condução, que havia desaparecido à A. em Junho de 2002. - Diz ainda a A. que o 1.º R. não se coíbe de confessar perante os amigos e a própria A. que “compra” toda a gente, juízes, notários, inspectores da PJ e funcionários judiciais, afirmando que as assinaturas estão muito bem feitas - Mais refere a A. que o 1.º R. tem actuado concertadamente com os filhos e genro do casal, com o único intuito de, no momento da partilha dos bens comuns, a A. nada ter a receber, tendo todos eles conhecimento da falsa escritura, que se destinou a facilitar a dissipação do património comum, único património da 3.ª Ré. - Pelos factos relacionados com a falsificação da escritura a A. já apresentou queixa crime nos serviços do M.ºP.º do Tribunal Judicial de Valongo.” Para o presente recurso interessa apenas dizer que a 4.ª Ré apresentou contestação, impugnando a generalidade dos factos que lhe estão imputados, designadamente, a falta de cuidado que lhe é imputada na identificação dos outorgantes na escritura . No saneador o M.º Juiz julgou a 4.ª Ré parte ilegítima, por considerar não ter esta um interesse directo em contradizer, sustentando que, face à relação material tal como ela lhe foi apresentada, nenhum propósito delituoso ou envolvimento consciente e deliberado com os demais RR. lhe está imputado, nem qualquer pedido indemnizatório formulado, quiçá fundado em negligência. Depois, seleccionou a matéria de facto que considerou assente e aquela que deveria passar a constituir a base instrutória. A A. não se conformou com a decisão que absolveu da instância a 4.ª Ré, interpondo, por isso, o respectivo recurso, que foi admitido como de agravo, com subida imediata, em separado e com efeito devolutivo Apresentou então as alegações de recurso. Não houve contra-alegações. O M.º Juiz sustentou o despacho agravado. Remetidos os autos a este Tribunal foi o recurso aceite com a adjectivação e demais atributos que lhe haviam sido atribuídos na primeira instância. Correram os vistos legais. ........................... II. Âmbito do recurso. Vamos começar por transcrever as conclusões apresentadas pela agravante, já que de acordo com o disposto nos arts. 684.º-3 e 690.º-1 do CPC, é através delas que ela delimita as questões que pretende ver tratadas nesta sede: Assim: “1. O pedido formulado pela Autora é que seja declarada falsa uma escritura pública celebrada no Cartório Notarial de....., em 30.12.02, em que "supostamente" teria intervindo a Autora; 2. A 4.ª Ré é Notária, exerce as suas funções no Cartório Notarial de..... e lavrou a escritura pública que a Autora reputa de falsa; 3. A 4.ª Ré tem interesse directo em contradizer o pedido da Autora, uma vez que a procedência deste pode gerar responsabilidade disciplinar e civil para aquela; 4. A 4.ª Ré tem, também, interesse directo em contradizer o pedido da Autora, uma vez que a procedência deste coloca em causa o seu bom nome profissional; 5. Da relação controvertida, tal como é configurada pela Autora, resulta que 4.ª Ré tem interesse/legitimidade para contradizer. 6. Deve, assim, a 4.ª Ré ser considerada parte legítima nos presentes autos. 7. Ao decidir pela ilegitimidade da 4.ª Ré o Tribunal "a quo" fez uma errada interpretação do disposto no art. 26° do CPC; Nestes termos, (...), deve o presente recurso ser julgado procedente por provado, e, em consequência, ser revogada a decisão recorrida. Decidindo assim, farão (...) Justiça!” ........................... De acordo com tais conclusões, vemos que a única questão colocada consiste em determinar se a 4.ª Ré (Notária que presidiu a uma escritura que a A. entende ter sido falsa), é ou não parte legítima para a causa. .................................. III. Fundamentação III-A) Os factos Os factos a ter em consideração para o presente recurso são os já constantes do Relatório, para os quais com a devida vénia se remete, mas aos quais podemos acrescentar aqueles que, não estando aí expressamente indicados foram considerados como matéria assente, e que foram os seguintes: A) A. e 1° Réu contraíram entre si casamento em 17 de Outubro de 1976, sem convenção antenupcial (cfr. doc. de fls. 22 a 24, aqui dado por reproduzido); B) Na Conservatória do Registo Comercial de....., sob a matrícula 00479/171296, relativa à descrição da 3.ª Ré, A. e 1.º Réu figuram como os seus sócios, a A. com uma quota de € 2.493,99 e o 1° Réu com uma quota de € 4.987,98, figurando registralmente a A. como gerente, e tendo esta a sua sede na Herdade da ....., freguesia de....., concelho de....., obrigando-se com a assinatura da A. (cfr. doc. de fls. 25 a 28, aqui dado por reproduzido); C) Na Conservatória do Registo Comercial de....., sob. a matrícula 1793/981019, relativa à descrição da 2.ª Ré, aí figuram, para o quadriénio, 2001/2004 o 1.º R. como presidente do Conselho de Administração, a A. como vice-presidente e G..... como vogal, obrigando-se a sociedade com a assinatura conjunta do presidente e da vice-presidente (cfr. fIs. 29 a 32, aqui dadas por reproduzidas); D) No dia 30 de Dezembro de 2002, no Cartório Notarial de....., realizou-se uma escritura pública intitulada de "compra e venda" (cfr. doc. de fls. 36 a 41, aqui dado por reproduzido), da qual constam nomeadamente os seguintes dizeres: (...) perante mim, a Notária Licenciada F....., compareceram como outorgante C.....(...) titular do bilhete de identidade número 00900405 (...); e B..... (...), titular da carta de condução P número 00105800, emitida em 11/10/2002, pela Direcção-Geral de Viação do Porto. Os outorgantes C..... e B..... agem ambos na qualidade de únicos sócios e gerentes, e em representação da sociedade comercial por quotas denominada "E....., LIMITADA", com sede na Herdade da ....., na freguesia de....., concelho de..... (...). Os outorgantes agem, ainda, na qualidade, respectivamente, de presidente e vice-presidente, e em representação, da sociedade anónima denominada: "D....., S.A.", com sede na Rua....., na freguesia de....., concelho de..... (...) Pelos outorgantes, na qualidade de representantes da sociedade "E....., Lda. "foi dito: Que vendem à sociedade "D....., S.A.", que os mesmos representam, pelo preço total de NOVECENTOS E NOVENTA E OITO MIL EUROS, que já receberam, para a sua representada, "E....., Lda.", os seguintes bens imóveis: Um - Prédio rústico com parte urbana, conhecido por "Herdade da..... ou..... ou .....", constituído por: cultura arvense, olival, solo subjacente à cultura arvense, montado de sobro, montado de azinho, ribeira, dependências agrícolas, e uma morada de casas com seis divisões, prédio este descrito na Conservatória do Registo Predial de..... sob o número mil cento e quarenta e sete, da freguesia de....., e registado a favor da sociedade vendedora pela inscrição G-dois - o qual imóvel é vendido pelo preço de quatrocentos e noventa e nove mil euros. Dois - Prédio urbano situado no Lugar do....., na freguesia de....., concelho de....., constituído por solo subjacente de cultura arvense, montado de sobro, montado de azinho, sobreiros, oliveiras e olival, ribeira, dependências agrícolas, prédio este descrito na Conservatória do Registo Predial de..... sob o número mil trezentos e três, da freguesia de....., e registado a favor da sociedade vendedora pela inscrição G-dois - o qual imóvel é vendido pelo preço de quatrocentos e noventa e nove mil euros. Declararam os outorgantes que na invocada qualidade de representantes da sociedade D....., S.A. ", aceitam o presente contrato nos termos exarados. ASSIM O DISSERAM E OUTORGARAM. ............................. III-B) Análise do recurso Como já atrás dissemos, a única questão colocada no presente recurso consiste em determinar se a 4.ª Ré (Notária que presidiu a uma escritura que a A. entende ter sido falsa), é ou não parte legítima para a causa. A 4.ª Ré, ao defender-se na contestação, não suscitou a sua própria ilegitimidade. O despacho recorrido sustentou no entanto, que a 4.ª Ré é parte ilegítima, porque entendeu que da procedência da acção não adviria para a Ré qualquer prejuízo do ponto de vista jurídico que justificasse a sua intervenção, na medida em que não se lhe atribuiu qualquer intenção dolosa ou concertada com os demais RR. intervenientes, nem se lhe pediu qualquer indemnização fundada a título de mera negligência. A A. no entanto, entende que a 4.ª Ré é parte legítima, porque tem interesse directo em contradizer, uma vez que está em causa o bom nome assim como a responsabilidade civil e disciplinar desta, invocando em favor dessa tese, o Ac. do STJ de 1996.06.04, in CJ, Acs. do STJ, ano 1996, tomo II-108. No despacho de sustentação o M.º Juiz desenvolve a argumentação a respeito da posição por si assumida, trazendo à colação que a referência ao Acórdão citado se encontra deslocada em face do presente quadro normativo, uma vez que a redacção actual do CPC no que toca aos incidentes de falsidade de documentos revogou a anterior legislação processual sobre esta matéria (deixando de contemplar a exigência anteriormente existente, de ser também demandado o funcionário alegadamente interveniente na falsificação) Não cremos, no entanto, e salvo o devido respeito, que assista razão ao M.º Juiz na posição que tomou, embora a tónica utilizada na argumentação da agravante se tenha de ver mais na defesa da sua autoridade como entidade conferidora de fé pública aos actos a que presida, do que nos outros argumentos, pois no fundo é essa autoridade que está posta em causa no caso em presença. Antes de mais, importa não deixar de se perder de vista que a legitimidade passiva se coloca quando a Ré tenha interesse directo em contradizer o que lhe vem imputado (art. 26.º-1 do CPC), o qual se determina pelo prejuízo que lhe advenha da procedência da acção. (n.º 2 do mesmo artigo) O n.º 3 (do mesmo art. 26.º), por sua vez, refere-nos que, na falta da indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida tal como é configurada pelo A. Ora, se bem que seja certo que a A. não dirigiu qualquer pedido de indemnização contra a 4.ª Ré (o que a acontecer, tornaria absolutamente inquestionável a legitimidade passiva desta, pelas repercussões negativas directas que a eventual procedência da acção iria ter no seu património), não pode deixar de ter-se também em consideração que a A. lhe imputa uma actuação movida por erro, ou, em alternativa, por negligência censurável (arts. 38.º e ss. da petição inicial), tentando pôr em causa a fé pública do documento, dada pela autoridade de quem presidiu ao acto (a 4.ª Ré), na medida em que o alegado vício ou o menor cuidado desenvolvido por esta, no processo identificativo de pessoa que alegadamente se fez passar pela A., assume papel determinante na validade do documento autêntico enquanto tal, como pode ver-se até do facto de já ter sido apresentada queixa crime nos Serviços do Ministério Público do Tribunal Judicial de Valongo... Dizer que a Ré não tem interesse directo em contradizer depois destas alegações, é em nosso entender, e salvo o devido respeito pela opinião sustentada pelo M.º Juiz, uma falácia, pois não há escritura entre outorgantes que não tenha uma autoridade a presidir ao acto, pelo que a anulação ou invalidade do próprio acto enquanto tal, não pode ser obtida sem que seja demandado quem ao acto presidiu, pois está a atacar-se directamente essa autoridade. Na verdade, é a fé pública e o bom nome, aqui corporizada na autoridade derivada do cargo da 4.ª Ré (Notária), ao presidir a esse acto, que a A. começa logo a pôr em crise, tendo um objectivo bem definido: conseguir a anulação da escritura, para assim conseguir a anulação do negócio plasmado nela. Portanto, a acção destinada à anulação da escritura que tenha na base um erro ou falta de cuidado do Notário na identificação dos outorgantes, tem necessariamente de ser instaurada contra o Notário. Só assim não seria, se a causa da anulação não resultasse de vício imputável à actividade do Notário, mas sim e apenas a actos de vontade ou a vícios que respeitem às próprias partes ou a terceiros. Trazer á colação a alteração operada pelos DLs n.º 329-A/95, de 12/12 e 180/96, de 25/09 no CPC a respeito do incidente de falsidade (retirando do Código do Processo Civil os arts. numerados de 360.º a 370.º do CPC) não se nos afigura argumento convincente. Na verdade, não estamos perante um incidente de falsidade (situação marginal de um processo com um objectivo definido - onde o documento surge apenas como instrumento -), mas sim perante uma verdadeira acção de anulação, onde o conhecimento a respeito da falsidade do documento, dotado de fé pública, constitui o próprio fundo da causa, a sua essência. Assim, não é apenas o conteúdo do documento que está em causa, é também a sua própria subsistência enquanto tal, já que de nada releva o conteúdo das declarações atribuídas aos outorgantes perante o Notário, se se constatar que o Notário não identificou correctamente quem se lhe apresentou a prestar declarações negociais “mascarado” de outra pessoa. Assim, afigura-se-nos que para se pôr em causa a fé pública de um documento autêntico com base na sua falsidade imputável a autoridade pública tem de a acção ser proposta (também) contra a autoridade pública que presidiu ao acto (no caso o Notário), já que o documento autêntico constitui prova plena das declarações prestadas pelos outorgantes perante a entidade documentadora, sendo impensável que uma acção deste tipo pudesse ser julgada sem que essa autoridade pública não tivesse a possibilidade de defender-se. Não há necessidade, por isso, que haja preceito legal a impor a necessidade expressa de ser demandado o Notário quando se ataque a autoridade dos seus actos por vícios imputáveis ao próprio Notário. Aceita-se, no entanto, que, no actual quadro legislativo não haja interesse directo em agir do próprio Notário quando os vícios imputados ao documento autêntico não versem propriamente a fé pública de que eles gozam, mas a falsidade respeite antes e tão só ao conteúdo das declarações prestadas, em razão de vícios apenas imputáveis aos próprios outorgantes ou a terceiros, e dos quais o Notário não poderia aperceber-se. Neste caso não está posta em causa a fé pública do documento enquanto tal (que confere prova plena a respeito das declarações prestadas perante a entidade documentadora, mas não necessariamente da sua veracidade.) – art. 371.º-1 do CC. A falsidade neste caso, não respeita propriamente à fonte, mas sim e apenas ao seu conteúdo, ou seja, às declarações negociais prestadas perante a autoridade documentadora, situação muito diferente daquela que neste caso se nos coloca. Assim, acolhem-se as conclusões aduzidas pela agravante. ............................ IV. Deliberação No provimento do agravo, revoga-se o não obstante douto despacho recorrido que considerou a 4.ª Ré parte ilegítima, ordenando a sua substituição por outro que a considere parte legítima, devendo, consequentemente, ser retomado o andamento dos autos a partir do saneador. Sem custas dado não ter havido oposição. * Porto, 10 de Maio de 2005Mário de Sousa Cruz Augusto José Baptista Marques de Castilho Maria Teresa Montenegro V C Teixeira Lopes |