Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRP00039449 | ||
Relator: | FERNANDO BAPTISTA | ||
Descritores: | DOAÇÃO DOAÇÃO ONEROSA | ||
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Nº do Documento: | RP200609140633771 | ||
Data do Acordão: | 09/14/2006 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO. | ||
Decisão: | CONFIRMADA A SENTENÇA. | ||
Indicações Eventuais: | LIVRO 683 - FLS 16. | ||
Área Temática: | . | ||
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Sumário: | I - A doação remuneratória não se confunde com a doação modal: naquela visa-se compensar os serviços já prestados; nesta o doador atribui o benefício patrimonial para que o donatário preste (futuramente) certos serviços. II - Sendo a doação modal uma forma ou modalidade de doação que se caracteriza pela imposição ao donatário de uma obrigação ou de um ónus (encargo), esta obrigação ou ónus são, porém, meramente acessórios daquela, sem terem a natureza de contraprestação da atribuição patrimonial do doador, não colidindo, por isso, com a qualificação contratual daquela figura que continua a ser um verdadeiro contrato gratuito (negócio jurídico gratuito). | ||
Reclamações: | |||
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Decisão Texto Integral: | Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto I. RELATÓRIO: No 2º Juízo de Competência Mista do Tribunal Judicial de Gondomar, por apenso à acção especial de interdição n.º …-A/2000, B………. intentou acção especial de Autorização Judicial, pedindo que seja autorizado a, enquanto tutor nomeado ao interdito C………., por si e em representação do interdito, outorgar a escritura pública de doação dos dois imóveis descritos no item 19 da petição inicial a favor da D………. . Citados o Ministério Público e o parente mais próximo do interdito, não foi oferecida oposição. Foi, então, proferida sentença a julgar a acção improcedente e, em conformidade, indeferindo, por falta de verificação do pressuposto «acto cuja validade depende de autorização judicial», o requerido pedido de autorização judicial. Inconformado com o sentenciado, veio o autor, a fls. 49, interpor recurso, recebido a fls. 51, apresentando alegações que remata com as seguintes “CONCLUSÕES: 1° B………. na qualidade de tutor de C………., propôs a presente acção especial de autorização judicial, peticionando a) que lhe seja concedida a Autorização Judicial , para por si em representação do seu irmão C………. para outorgar a escritura pública de doação dos imóveis descritos no item , 19 da P.I.. 2° Como fundamentos do seu Pedido o Tutor, aqui Recorrente o alegou em síntese: Que celebraram o aqui Recorrente, na qualidade de Tutor do seu irmão C………., um Contrato Promessa de doação e prestação de serviços com a D………., junto aos autos a fls. 36 a 39, cujo o teor aqui se dá por integralmente reproduzido por mera economia processual, pelo qual, a D………. aceita cuidar do interdito C………., obrigando-se a venerá-lo e tratá-lo na saúde e na doença ...; 3° Pelo referido Contrato Promessa que se juntou como doc. n.°l da P. I., o qual aqui se considera integralmente reproduzido para todos os efeitos legais, como contrapartida dos serviços que vão ser prestados ao Interdito C………. "na saúde e na doença" e enquanto este for vivo, compromete-se o aqui Recorrente, na qualidade de Tutor daquele a entregar a reforma dele e a doar a favor da D………. os dois prédios melhor descritos a fls. 38 dos autos, livres de qualquer ónus ou encargos, e enquanto não efectuar as doações serem entregues as rendas referentes ao contratos de arrendamento habitacional e comercial que existem sobre os mencionados prédios. 4° Acontece que, o aqui Recorrente, na qualidade de Tutor do Interdito C………. não pode doar os ditos bens imóveis, sem antes requer que lhe seja concedida autorização judicial para tal, como dispõe o art. 1439 do C.P.C., o que o fez pela presente lide. Todavia, 5° por douta sentença de fls. 43 e segs. foi julgada a presente acção improcedente , indeferindo-se a autorização judicial ao Tutor , por falta a verificação do pressuposto "acto cuja a validade depende de autorização judicial, o pedido de autorização". 6° Sucede que, no item 27 da P.I. o aqui Recorrente alegou que carece da autorização judicial para alienar os bens imóveis do Interdito. Mais, 7° como doutamente refere a Sentença de que se recorre nos fundamentos do pedido que doação seria efectuada como contrapartida pelo facto de a donatária D………. "aceitar cuidar do interdito em regime de internamento". 8° A verdade é que, o contrato celebrado entre o Tutor do Interdito e a D………. não cabe no estatuído no art.° 1937 alínea a) do Cód Civil Pois, 9° como se colhe do contrato junto como doc. 1 da P.I., os bens imóveis do Interdito vão ser entregues como contrapartida económica dos serviços prestados pela D………. àquele. Aliás, 10° serviços esses que a D………. presta ao Interdito desde 1 de Fevereiro de 2004 , com a condição de ser cumprido o dito contrato celebrado pelo aqui Recorrente no único interesse de proporcionar o bem estar do Interdito. Porquanto, 11° não está o aqui Recorrente a dispor gratuitamente dos bens imóveis do Interdito , pelo que, não pode ser entendido que o acto para o qual este requer a autorização judicial se enquadra no disposto no art ° 1937 alínea a) do Cód. Civil Aliás, 12° o acto para o qual o Recorrente requereu a autorização judicial consiste num pagamento pelos serviços que estão a ser prestados , e que serão prestados ao Interdito. Pois, 13° do teor do contrato junto aos autos a fls. 36 a 39 verifica-se que a doação dos bens imóveis do Interdito serão entregues como contrapartida económica dos serviços que lhe estão e vão ser prestados pela D………., o que preenche o disposto no art° 941 do Cód. Civil, ou seja, consiste numa doação remuneratória . 14° Ocorre que, não constitui por si só o acto para cuja a autorização judicial requereu o aqui Recorrente uma disposição gratuita dos bens imóveis do Interdito, mas, pelo contrário constitui tal acto antes uma oneração daqueles. Daí que, 15° o acto para cuja a autorização judicial requereu o Recorrente não cabe dentro do disposto no art° 1937 alínea a) do Cód. Civil, mas, preenche antes os requisitos legais do art° 1938 n° 1 alínea) que remete ao art° 1889 n ° 1 alínea a) ambos do Cód. Civil Mais, 16° sendo a doação a efectuar remuneratória , não decorre da lei , mormente do art° 949 n ° 2 do Cód. Civil que seja vedado ao Recorrente, na qualidade de Tutor do Interdito efectuá-la, tanto mais que, deve ser tido em conta que a mesma se destina a pagamentos de serviços que estão a ser prestados ao Interdito, para o seu bem estar. 17° Face ao exposto, e com o devido respeito pela douta decisão, entende o Recorrente que não falta a verificação do 1° requisito da acção - existência de um acto cuja a validade depende autorização do tribunal , porquanto , do teor do contrato de fls. 36 a 39 dos autos resulta claro e evidente que a disposição a efectuar pelo Recorrente no que respeita aos bens imóveis do Interdito não é gratuita , mas onera-os como forma de pagamento dos serviços que a donatária presta e prestará àquele. 18° Assim sendo, ao considerar a presente Acção totalmente improcedente por entender que falta a verificação do 1° requisito da acção - existência de um acto cuja a validade depende autorização do tribunal violou a douta sentença o disposto nos art.°s do art° 1938 n° 1 alínea a) que remete ao art° 1889 nº 1 alínea a) ambos do Cód. Civil Termos em que, deve o presente recurso de apelação ser julgado procedente e em consequência ser revogada a douta sentença apelada, substituindo-se por outra que julgue a acção totalmente procedente“ Contra-alegou o Mº Pº, pugnando pela improcedência da apelação. Foram colhidos os vistos. I. FUNDAMENTAÇÃO II. 1. AS QUESTÕES: Tendo presente que: - O objecto dos recursos é balizado pelas conclusões das alegações dos recorrentes, não podendo este Tribunal conhecer de matérias não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso (arts. 684º, nº3 e 690º, nºs 1 e 3, do C. P. Civil); - Nos recursos se apreciam questões e não razões; - Os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido, as questões a resolver são as seguintes: - Natureza da doação em questão; - Se tal doação é permitida por lei—o mesmo é dizer se pode ou deve ser deferida a autorização judicial requerida nos autos para tal efeito. II. 2. OS FACTOS: No Tribunal a quo deu-se como assente a seguinte factualidade: “1 – O tutor do aqui interdito outorgou, em nome do interdito, contrato denominado de contrato promessa de doação e prestação de serviços, junto aos autos a fls. 36 a 39, cujo teor aqui se dá por reproduzido, pelo qual a D………., na qualidade de primeira outorgante, “promete aceitar como seu utente, num dos lares de que é proprietária”, o interdito, obrigando-se a tratar dele em regime de internamento e com os cuidados e regras decorrentes do regulamento interno da instituição, e o tutor do interdito C………., como terceiro outorgante e nessa qualidade de tutor, como “contrapartida económica a esses serviços que vão ser prestados ao incapaz C………., na saúde e na doença e enquanto este for vivo”, se compromete a: - entregar o montante da reforma a que vai ter direito aquele C………., já requerida enquanto incapaz junto da Segurança Social; - doar a favor da instituição D………. dois prédios melhor descritos a fls. 38, livres de quaisquer ónus ou encargos, à excepção dos contratos de arrendamento habitacional e comercial sobre eles existentes; - desde já, e enquanto não se efectivar as referidas doações de bens imóveis, a entregar mensalmente as rendas resultantes dos falados contratos de arrendamento. 2 – Para celebrar a escritura pública de doação dos dois referidos prédios o referido Tutor do interdito C………., o aqui requerente B………., intentou a presente acção de autorização judicial ao abrigo do art. 1439.º do Código de Processo Civil, pedindo que o Tribunal o autorize a celebrar tais escrituras de doação, em nome do interdito C………., a favor da D……….”. III. O DIREITO: Vejamos, então, as questões suscitadas. - Primeira questão: natureza da doação em questão (que o tutor do interdito pretende outorgar a favor da D………., em conformidade com o “contrato-promessa…” celebrado e com cópia a fls. 37 a 39): Pelo aludido contrato-promessa com cópia a fls. 37 a D………. prometeu aceitar como seu utente, num dos lares de que é proprietária, o interdito, obrigando-se a tratar dele, tendo-se, por sua vez, o tutor do interdito-- como “contrapartida económica a esses serviços que vão ser prestados ao incapaz…” diz-se no aludido contrato-promessa--, designadamente, a doar a favor daquela instituição os dois prédios melhor descritos a fls. 38, “livres de quaisquer ónus ou encargos, à excepção dos contratos de arrendamento habitacional e comercial sobre eles existentes”. Pergunta-se, então, se a doação prometida deve ser entendida como doação remuneratória, logo com carácter oneroso, e, portando, não gratuito —entendimento sufragado pelo apelante, ao sustentar que a doação dos referidos imóveis é uma forma de pagamento pelos serviços que estão a ser prestados, e que serão prestados ao interdito, motivo porque defende poder tal acto ser praticado pelo tutor do interdito obtida que seja a autorização judicial (ut arts. 1889º-1-a) e 1938º-1-a) do CC)—, ou se não estamos perante doação dessa natureza, e, nesse caso, qual a sua modalidade. Doação é o “contrato pelo qual uma pessoa, por espírito de liberalidade e à custa do seu património, dispõe gratuitamente de uma coisa ou de um direito, ou assume uma obrigação, em benefício do outro contraente” (artº940º CC—diploma a que nos referiremos sem que outra menção seja feita). ************************ - DOAÇÃO REMUNERATÓRIA OU DOAÇÃO MODAL? De entre as modalidades das doações, duas se impõe salientar no fito de solucionar o caso sub judice: a “doação remuneratória”-- que o artº 941º define como “a liberalidade remuneratória de serviços recebidos pelo doador, que não tenham a natureza de dívida exigível”-- e a doação modal-- ou seja, aquela que se caracteriza pela imposição ao donatário de um ónus ou encargo (ut artº 963º). Sendo a doação um contrato [Planiol entende que a doação é mais um fenómeno económico do que um acto jurídico: há doação sempre que há enriquecimento gratuito provocado intencionalmente por uma pessoa a favor doutra (Traité de Droit Civil, 11ª ed., 3º vol., nº2 501)], é, como tal, fonte de obrigação—vínculo jurídico por virtude do qual o doador fica adstrito para com o donatário à realização da prestação fixada livremente dentro dos limites da lei (arts. 397º e 398º-1). Como contrato que é, exige o concurso e acordo de duas vontades—embora em certos casos se dispense a aceitação, como é o caso do artº 951º-2 (Ver Galvão Telles, Dos Contratos, onde se ensina que as doações puras a incapazes apresentam estrutura unilateral—embora Cunha Gonçalves sustente que nestes casos o que se passa é simplesmente que se presume aceitação do donatário, ut Dos Contratos em especial, Ed. Ática), pág. 224). Uma coisa, porém, é certa: é da essência da doação ser gratuita, não se podendo configurar uma dação em pagamento ou outra espécie de contrato oneroso. Ou seja, na doação não há prestação correlativa do donatário. E mesmo que, secundaria ou acessoriamente, a liberalidade esteja conjugada com o interesse pessoal do doador—que pode ter nisso um interesse moral, afectivo, material, etc.--, o certo é que o doador dá para beneficiar o donatário, num acto espontâneo, ou seja, não determinado por uma obrigação jurídica anterior (Vaz Serra, BMJ, nº 76º-86): propter nullam aliam causam…quam ut liberalitatem et munificentiam exerceat, já se escrevia no Digesto. E não deixa de ser assim mesmo naqueles casos em que o donatário tenha de suportar encargos que o doador tenha imposto (precisamente as supra referidas doações modais). Com efeito, mesmo nas doações modais – isto é, como vimos, “oneradas com encargos” (artº 963º)—“tem a vontade das partes de ser dirigida sempre a um enriquecimento do receptor, embora diminuído na medida dos meios necessários para a execução do encargo; a intenção de doar tem de exceder a de obrigar o outro a uma prestação; a execução do encargo só pode ser fim acessório” (Larenz, citado pelo Prof. Vaz Serra, no Bol. M.J., 75-271, nota)—sublinhado nosso. O Prof. Cunha Gonçalves [Tratado de Dir. Civil, VIII-58/59, e dos Contratos em especial, Ed. Ática, pág. 206] diz que o que importa é a causa imediata e exteriorizada da doação, isto é o animus donandi, e não o motivo íntimo que a determinou. Reitera-se: da seguinte asserção não se pode fugir: sem espírito de liberalidade não existe doação. Voltando à questão da doação remuneratória—que, como dissemos, o apelante sustenta verificar-se no caso sub judice--, que vem definida no artº 941º, diremos, ainda, o seguinte: Nessa situação não há por banda do atribuinte qualquer dever jurídico, nem moral ou social, de remunerar o serviço recebido pelo doador: a liberalidade não apresenta uma solutio nem uma dação em cumprimento [Antunes Varela, Noções Fundamentais de Direito Civil, vol. I, 3ª ed., pág. 451 e P.Lima e A. Varela, CC Anotado, vol. II, pág. 184]. Uma coisa há que adiantar, no entanto, desde já: os serviços “recebidos pelo doador” de que fala o artº 941º são os serviços passados, pois se forem futuros já não se tratará de doação remuneratória: tratar-se-á de pagamento de dívida exigível no futuro por serviços então prestados ou de doação onerada com um encargo—precisamente o encargo da prestação do serviço. Com efeito, o artº 941º fala, não em dívida exigida, mas em “dívida exigível”: “desde que ela é ou era exigível, já não há doação remuneratória, mas pagamento de serviços, embora por preço que, na opinião do devedor, seria superior ao seu valor real” (Batista Lopes, Das Doações, págs. 21/22). Assim sendo e atenta a factualidade assente nos autos, logo se conclui que a doação sob apreciação de forma alguma podia ser considerada remuneratória, pois a liberalidade seria uma forma de compensar – como “contrapartida económica”, escreveu-se na cláusula 3ª—os serviços, não “recebidos” do donatário, mas, sim, …. a receber no futuro! ***************** Continuando, diremos que, in casu, não só não estamos perante doação remuneratória, como parece inequívoco estarmos perante doação modal. E a diferença entre os dois tipos de doações é bem acentuada por Maria do Rosário Palma Ramalho, in Sobre a doação modal, Revista “O Direito”, Ano 122, 1990, III, IV-Julho/Dezembro--, a pág. 736: “as duas figuras podem ser distinguidas tanto por um critério temporal como por um critério de causalidade. Por um lado, enquanto a doação remuneratória visa compensar serviços já prestados, a doação modal exige do donatário uma prestação futura; por um lado, enquanto na doação remuneratória o doador atribui a vantagem patrimonial ao donatário por causa dos serviços prestados, na doação modal ele atribui o benefício patrimonial para que o donatário preste certos serviços”. Nesta obra distingue-se a doação modal das figuras das doações remuneratórias, condicional e com reserva, do negócio misto com doação, do contrato a favor de terceiro e da doação para instituição de fundação. No caso presente, como vimos, a doação dos dois prédios referidos no “contrato promessa de doação…” não visa compensar a donatária por serviços que tenha prestado ao doador, não sendo feita por causa da prestação (passada) desses serviços, mas é feita a fim de que os serviços descriminados naquele contrato sejam, de facto, prestados (no futuro, portanto). Trata-se, por isso, de uma doação feita mediante a imposição de um encargo à donatária: de prestação à 2ª outorgante e ao representado do 3º outorgante dos serviços ali referidos (recolha destes na instituição donatária, em internamento, suportando esta as inerentes despesas). [Diz o mesmo Mestre (Revista de Leg. e Jur., Ano 102º, págs. 38 ss) que a doação modal se caracteriza por ser aquela em que o donatário fica adstrito ao cumprimento de uma ou mais prestações. Enquanto nas outras espécies de doações o beneficiário se limita a receber, na doação modal ele fica vinculado ao cumprimento de um ever] É, assim, uma doação modal. Com efeito, o modo é a cláusula acessória típica, pela qual, nas doações e liberalidades testamentárias, o disponente impõe ao beneficiário da liberalidade um encargo, isto é, a obrigação de adoptar um certo comportamento no interesse do disponente, de terceiro ou do próprio beneficiário (arts. 963º e 2244º). Ao contrário do ónus, o modo é um verdadeiro dever jurídico; o que nele há de típico é o vínculo externo que o prende ao acto de liberalidade, é a função que ele exerce junto da doação; funciona como uma limitação ou restrição da liberalidade, e não como um correspectivo ou contraprestação da atribuição patrimonial proveniente da outra parte (vide, por todos, Antunes Varela, Obrigações, pág. 35). Veja-se que no Cód. Civil de 1867 as doações modais tinham o nome de onerosas ( artº 1454, §3), “designação infeliz pela confusão a que podia dar lugar. Sugeria, na verdade, que o encargo transformava em oneroso o contrato gratuito, quando o modo é, por conceito incompatível com a ideia de onerosidade” (P. Lima e A. Varela, Código C. Anot., em anotação a artº 963º). E acrescenta este mestre: “Nos contratos onerosos, os encargos para cada uma das partes constituem as suas prestações correspectivas—são partes integrantes e obrigatórias do negócio realizado--, enquanto que, nos contratos gratuitos (modo) funcionam como simples limitações ou restrições à prestação do disponente (liberalidade) e não como o seu correspectivo (vide Antunes Varela, Ensaio sobre o conceito de modo, passim).”—os sublinhados são nossos. Sobre a doação modal, veja-se, ainda, o Ac. nº 7/97, STJ, uniformizador de jurisprudência, 25-2-1997: DR, I-A, de 9-4-1997, segundo a redacção constante da Declaração de Rectificação nº 9/97, de 3-5, que dispôs: «A cláusula modal a que se refere o artº 963º do Cód. Civil abrange todos os casos em que é imposto ao donatário o dever de efectuar uma prestação, quer seja suportada pelas forças do bem doado, quer o seja pelos restantes bens do seu património». Também Maria do Rosário Palma Ramalho, in ob. e loc. cits., a pág. 734, diz que a obrigação ou o ónus imposto ao donatário na doação modal são meramente acessórios desta, “sem ter a natureza de contraprestação”, apenas limitando o seu valor. E a aceitação da doação abrange não só a liberalidade como também o próprio encargo que a limita. Até pela simples razão de que o encargo constitui, para o donatário, uma verdadeira obrigação. Uma obrigação em sentido técnico. O donatário tem de saber, pois, ao que se obriga. Respondida fica, desta forma, a primeira questão: a doação sub judice configura, não uma doação remuneratória, mas uma doação modal *********************** - Outra questão urge, então, esclarecer—aliás, bem observada nas doutas contra-alegações do MºPº--: será que a existência do encargo sobre a donatária desfigura a doação, ou seja, faz com que esta deixe de ser uma doação verdadeira e própria, reconduzindo-se, então, à categoria dos contratos onerosos, ou, pelo menos, dos contratos mistos? A resposta não pode deixar de ser negativa. Vejamos. Como bem acentuam P. Lima e A. Valela, Anotado, loc. cit., “afirmando explicitamente que as doações podem ser oneradas com encargos, o artº 963º, nº1, quer precisamente realçar o facto de a atribuição donativa não deixar de ser liberalidade pelo facto de o donatário assumir o encargo de certa prestação: concepção muito diferente da que exprimia a redacção infeliz do artº 1445º do Código de 1987, quando, inspirada na teoria savignyana das duas causas, afirmava que «a doação onerosa só pode ser considerada doação, na parte em que exceder o valor dos encargos impostos»”. Como resulta do dito supra, o modus nunca se torna correspectivo da disposição negocial e por isso a causa do negócio atributivo continua a ser liberal. No mesmo sentido escreve Batista Lopes, Doações, pág. 112: “O encargo ou modo, ao contrário do que acontece com a condição e o termo, não modifica os efeitos típicos do negócio, mas acrescenta a este outros efeitos, que não reagem sobre os primeiros, embora os limitem em sentido económico. O modus nunca se torna correspectivo da disposição negocial e por isso a causa do negócio atributivo continua a ser liberal, sem mistura com o elemento de onerosidade. Por isso deve entender-se que o modo, ao contrário da condição e do termo, representa verdadeiramente uma vontade acessória relativamente à vontade da liberalidade”—sublinhado nosso. Também no sentido de que, apesar de onerada com encargos, continua a doação a ser verdadeiro contrato gratuito, pois da parte do donatário não há uma verdadeira contraprestação, pode ver-se, ainda, Vaz Serra, in BMJ 75º-269 e 275; Cunha Gonçalves, Tratado…., VIII-65 e A. Varela, Noções Fundamentais de Dir. Civil, I, 3ª ed., 451. E Maria do Rosário Palma Ramalho, ob. cit., a pág. 734, bate ainda na mesma tecla ao afirmar que o encargo “não colide com a qualificação contratual da doação como negócio gratuito, por se tratar de um elemento acessório do contrato que não se configura como uma contraprestação da atribuição patrimonial do doador, mas como uma simples limitação do valor dessa atribuição”. Em conclusão: a existência no caso sub judice do encargo sobre a donatária de forma alguma desfigura a doação ou faz com que esta deixe de ser uma doação verdadeira e própria, não a fazendo, por isso, reconduzir à categoria dos contratos onerosos. ***************** - Segunda questão: se tal doação é permitida por lei—o mesmo é perguntar se pode ou deve ser deferida a autorização judicial requerida nos autos para tal efeito. É evidente que a resposta não pode deixar de ser negativa. Com efeito, não obstante o estatuído nos arts. 138.º, 139.º, 123.º, 139.º, 124.º e 1935.º do Cód. Civ. (direitos e obrigações do tutor…), tratando-se de um negócio jurídico gratuito (apesar do aludido encargo…), é claro que não pode o autor—nomeado tutor do interdito C……….—outorgar em tal negócio jurídico por se tratar de um acto cuja prática a lei expressamente proíbe ao tutor (ut arts. 949º, nº2 e 1937º, al. a)). Assim sendo, nenhuma censura nos parece merecer a decisão recorrida ao indeferir o pedido de autorização requerido por falta de verificação do pressuposto a que alude o artº 1439º, nº1 do CPC-- “acto cuja validade depende de autorização judicial”. Simplesmente porque tal “autorização” não pode ser concedida-- o que, fatalmente, faz naufragar a pretensão que por esta demanda o autor lograva levar a cabo. Com efeito, o aludido nº 2 do artº 949º não admite que os representantes legais dos incapazes façam doações em nome destes, ao contrário do que sucede quanto à possibilidade de, em nome deles, as aceitarem. Veja-se que—como é acentuado por P. Lime e A. Varela, CCAnotado, em anotação ao mesmo artigo—“não se admitiram sequer algumas excepções que aparecem em leis estrangeiras.”—citando este autor, de seguida, alguns casos nas legislações Italiana (artº 777º) e alemã (§§1641º e 1804º) e esclarecendo ainda que se não trata de uma falta de capacidade dos interditos (ou menores), mas de uma falta de legitimação dos tutores para a realização de actos a título gratuito. Assim claudicam todas as conclusos da apelação. CONCLUINDO: - A doação remuneratória não se confunde com a doação modal: naquela visa-se compensar os serviços já prestados; nesta o doador atribui o benefício patrimonial para que o donatário preste (futuramente) certos serviços. - Sendo a doação modal uma forma ou modalidade de doação que se caracteriza pela imposição ao donatário de uma obrigação ou de um ónus (encargo), esta obrigação ou ónus são, porém, meramente acessórios daquela, sem terem a natureza de contraprestação da atribuição patrimonial do doador, não colidindo, por isso, com a qualificação contratual daquela figura que continua a ser um verdadeiro contrato gratuito (negócio jurídico gratuito). IV. DECISÃO: Termos em que acordam os Juízes da Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto em julgar improcedente a apelação, mantendo-se a decisão recorrida. Custas a cargo do apelante. Porto, 14 de Setembro de 2006 Fernando Baptista Oliveira José Manuel Carvalho Ferraz Nuno Ângelo Rainho Ataíde das Neves |