Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0817543
Nº Convencional: JTRP00042253
Relator: LUÍS TEIXEIRA
Descritores: CONCORRÊNCIA DE CULPA E RISCO
Nº do Documento: RP200903040817543
Data do Acordão: 03/04/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: PROVIDO.
Indicações Eventuais: LIVRO 571 - FLS 154.
Área Temática: .
Sumário: Se só pela via legislativa se atingirá uma maior clarificação e determinação das situações em que a responsabilidade pelo risco deve concorrer com a conduta imputável ao lesado na produção do acidente, é desde já possível admitir, na fixação da indemnização, um concurso entre a conduta/culpa do lesado e a responsabilidade pelo risco, nas situações em que seja ainda possível evidenciar ou concretizar um risco próprio do veículo.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso nº 7543/08-1.
1ª Secção Criminal.
Processo em 1ª instância nº …/03.6GNPRT.
*
Acordam em conferência na 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:
I
Nos autos de processo comum nº …/03.6GNPRT do .º Juízo do Tribunal Judicial de Amarante, foi deduzida acusação pelo Ministério Público contra o arguido
B………., filho de C………. e de D………., natural de ………., Amarante, nascido a 21/12/1982, solteiro, trolha, residente no ………., freguesia de ………., Amarante,
imputando-lhe a prática, em autoria material, de um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos arts. 131º, 132º, n.ºs 1 e 2, als. d), g) e j), 22º, n.ºs 1 e 2, al. b) e 23º, n.º 1 do Código Penal, por referência ao art. 14º, n.º 3 do mesmo diploma legal.
Deduziu ainda o Ministério Público, em representação do Estado Português, o pedido de indemnização cível de fls. 347 a 351 contra FUNDO DE GARANTIA AUTOMÓVEL do Instituto de Seguros de Portugal, com sede na ………., .., …-… Lisboa, e B………. pedindo a condenação destes a pagar ao Estado, através do Comando Nacional da GNR, a quantia de 20.809,68 Euros, acrescida de juros de mora desde a notificação até ao seu efectivo e integral pagamento.

Procedeu-se a julgamento e a final foi proferida a seguinte DECISÃO:
“Nesta conformidade, acordam os juízes que compõem este Tribunal Colectivo em julgar a acusação pública improcedente por não provada e, em consequência, absolver o arguido B………. da prática do crime de homicídio qualificado, na forma tentada, por que vem acusado.
Sem custas.
Julgar o pedido de indemnização cível de fls. 347 a 351 parcialmente procedente por provado e, em consequência, condenar solidariamente o Fundo de Garantia Automóvel do Instituto de Seguros Portugal e B………., a pagar ao Estado através do Comando Nacional da GNR a quantia de 8.323,88 Euros (devendo à quantia da responsabilidade do Fundo de Garantia Automóvel ser deduzida a franquia de 299,28 Euros), acrescida de juros de mora, à taxa de 4% ao ano, a partir de 13/12/2007, até integral pagamento, absolvendo-se os demandados do restante pedido”.
2.
Não se conformando com o seu teor, dela recorreu para este Tribunal da Relação do Porto, o FUNDO DE GARANTIA AUTOMÓVEL, formulando as seguintes conclusões:
1ª O presente recurso foi interposto da sentença proferida nos autos e reporta-se à parte em que nela se apreciou e decidiu o pedido de indemnização civil.
2ª Nos presentes autos a decisão judicial na parte recorrida fez incorrecta interpretação e aplicação do direito aos factos apurados e ao caso concreto, como adiante se vai demonstrar.
3ª Atenta a factualidade dada como provada e que não merece reparos, devendo manter-se inalterada tal como foi apurada, conclui-se que o demandado B………. não infringiu qualquer regra estradal, nem se provou que tenha agido ilicitamente na condução que desenvolvia, aquando do sinistro.
4ª Antes pelo contrário, a matéria de facto provada mostra com cristalina clareza e certeza que foi o agente E………. quem agiu ilícita e negligentemente.
5ª Uma vez que se posicionou em frente ao veículo conduzido pelo demandado B……… próximo de um entroncamento e numa zona entre curvas e quando o veículo seguia em movimento a uma distância do agente E………. entre 20 a 30 metros.
6ª A violação do dever objectivo de cuidado da parte do lesado foi a única e exclusiva causa que determinou o eclodir do sinistro dos autos.
7ª Donde decore, sem margem para quaisquer dúvidas, que tal circunstância afasta por completo a concorrência entre a culpa do lesado e o risco da utilização do veículo, como bem se realça no Acórdãos do STJ de 4/10/2007, RLJ 137º, pág. 35 e de 15 /08/2008, Proc. 10793/2007.7, in base de dados do ITIJ, citados na sentença recorrida.
8ª A aptidão para a criação de riscos típica dos veículos motorizados em nada contribuiu para a produção do sinistro.
9ª Assim como resulta dos autos que o demandado B………. nada pode fazer para evitar o embate, atenta a forma despropositada, inopinada e rápida como o lesado se colocou em frente do veículo.
10ª No caso dos autos existe prova certa e segura do facto da vítima como causa única e exclusiva do acidente, pelo que não há lugar ao concurso do risco próprio do veículo com o facto do lesado.
11ª Razão pela qual o caso dos autos se enquadra e decide pela culpa única e exclusiva do lesado à luz dos artigos 505º e 570º do C.C., o que se invoca com as legais consequências, designadamente ser o FGA totalmente absolvido dos pedidos cíveis contra si formulados.
12ª Ao decidir de forma contrária ao supra alegado violou o Tribunal recorrido, entre outros, os artigos 505º e 570º do C.C..
No provimento do presente recurso e correspondente reformulação da sentença recorrida, por consubstanciar menos correcta aplicação e determinação da lei, dessa forma, absolvendo o FGA dos pedidos cíveis contra si formulados, se fará JUSTIÇA.
3.
O Ministério Público em 1ª instância, não respondeu ao recurso.
4 Nesta Instância, pelo Exmº Sr. Procurador-Geral Adjunto foi aposto o seu visto.
5.
Colhidos os vistos legais, teve lugar a conferência.
II
Questão a apreciar:
A responsabilidade pelo risco do FUNDO DE GARANTIA AUTOMÓVEL nos termos em que foi condenado, em concorrência com a culpa do lesado, quanto ao pedido de indemnização civil.
III
São os seguintes os factos dados como provados e não provados na decisão recorrida:
A- No dia 08 de Novembro de 2003, encontrava-se a patrulha constituída pelos agentes da GNR-BT, E………. – cabo -, e F………. – soldado –, ambos devidamente fardados e no exercício das respectivas funções, na EN .., entre Penafiel e Amarante, comandando as operações o cabo E………. .
B- Cerca das 10.40 horas, ao Km. 57,60, na localidade de………., em Amarante, área desta comarca, o agente E………., devidamente equipado com material reflectizante, ao aperceber-se que o colega F………., que se encontrava a 20/30 metros atrás de si, atento o sentido de marcha Lixa/Amarante, tinha feito sinal de paragem à viatura de matrícula ..-..-BG, que circulava no sentido Lixa/Amarante, cujo condutor não fazia uso do cinto de segurança, fez-lhe sinal de paragem.
C- Ao volante deste veículo circulava o arguido, que circulava sem seguro de responsabilidade civil automóvel, e foi embater no agente E………. no início da curva para a direita da via, atento o sentido de marcha Lixa/Amarante, colhendo-o na hemifaixa de rodagem direita da via, atento o seu sentido de marcha, já próximo da linha divisória dos sentidos de trânsito da faixa de rodagem, projectando-o e fazendo-o cair no solo, onde ficou imobilizado a cerca de 11 metros do local do embate.
D- Acto contínuo o arguido, apesar de se ter apercebido do embate, prosseguiu a sua marcha, prevendo como possível que tivesse ocorrido a morte do agente, não tendo havido notícia do mesmo até às 17.00 horas desse mesmo dia, altura em que foi localizado e abordado num monte próximo do local em que deixou o veículo, no ………., em Amarante.
E- Em consequência directa e necessária do descrito embate, E………. sofreu os politraumatismos descritos no auto de exame pericial, aqui dado por integralmente reproduzido:
- como seja traumatismo da perna esquerda, nariz, lábios e cabeça, apresentando fractura dos ossos próprios do nariz e da tíbia esquerda:
- cuja recuperação se consolidou em 21/02/2005;
- lesões que lhe demandaram período de consolidação médico-legal de 471 dias, dos quais:
- com afectação da capacidade de trabalho geral (30 dias) e
- com afectação da capacidade de trabalho profissional (210 dias)
- das mesmas tendo resultado como consequências permanentes, as seguintes sequelas:
- crânio: cicatriz em cruz com 2 por 2 cm;
- face: cicatriz com 1 cm. Na asa direita do nariz e pequena cicatriz no lábio superior;
- membro inferior esquerdo: 2 cicatrizes operatórias, uma com 8 cm. na face anterior do joelho e outra com 3 cm no 1/3 inferior da face anterior da perna, ambas com tecido retráctil devido à 2ª intervenção. Limitação dos movimentos do joelho, quando se força a flexão.
- que lhe determinaram, após a recuperação, uma IPP de 20%;
- registando ainda as seguintes alterações:
- a nível funcional:
- quanto à postura, deslocamento e transferências:
- não consegue correr e sente dores no joelho quando permanece muito tempo de pé;
- fenómenos dolorosos: dores na perna esquerda, ao nível do joelho, que se agravam quando faz exercício físico e dores na região lombar, ocasionais, quando acorda;
- como ainda, hipersensibilidade na língua, após sutura. Formigueiros nos pés.
- a nível situacional:
- actos da via diária: dificuldades em subir e descer escadas;
- vida profissional ou de formação: dificuldades em permanecer muito tempo de pé e quando está sentado com a perna imobilizada.
F- O embate da viatura no corpo do E………. só não produziu neste lesões mortais em virtude do agente da GNR-BT fazer uso de capacete no momento do embate, que amorteceu a sua queda, e pela pronta assistência a que foi submetido.
G- Após o atropelamento referido em C, o cabo E………. foi transportado, pelos Bombeiros Voluntários da ………., para o Hospital de ……….., em Amarante, onde lhe prestaram os primeiros socorros e lhe diagnosticaram uma fractura na tíbia esquerda e traumatismo da face.
H- Contudo, a gravidade das lesões, determinou que o militar E………., nesse mesmo dia, fosse encaminhado para o Hospital de ………., no Porto, tendo, de seguida, sido transferido para o Hospital Militar do Porto, onde permaneceu internado desde 08/11/2003 até 25/11/2003.
I- No Hospital Militar, o cabo E………., em 14/11/2003, foi sujeito a uma intervenção cirúrgica à tíbia esquerda ( encavilhamento com targon ).
J- Em 27/12/2004, E………., foi novamente operado no referido Hospital Militar, a fim de lhe ser extraída “prótese metálica interna da tíbia esquerda”, tendo sido submetido a uma terceira intervenção, em 16/02/2005, por problemas surgidos com a cirurgia anterior.
K- O acidente que vitimou o agente E……… foi qualificado pela GNR como “acidente em serviço”.
L- Em consequência das lesões sofridas, o cabo E………. esteve ausente do serviço, numa primeira fase, entre 08/11/2003 e 25/02/2004, nomeadamente, porque internado até 25/11/2003 e, enquanto convalescente no domicílio desde 26/11/2003 até 25/02/2004.
M- Em 26/02/2004, o militar E………. retomou o serviço, ficando, contudo, dispensado do serviço de escala por um período de 30 dias para fazer fisioterapia, por não se encontrar totalmente curado.
N- Durante o período em que esteve de baixa/convalescença, o cabo E………. auferiu vencimentos no montante de 5.399,71 Euros.
O- Nesse mesmo período, por estar ausente do serviço, deixou de auferir suplementos, no montante de 620,62 Euros, tendo a G.N.R ressarcido o mesmo de tal quantia em Agosto de 2005.
P- Em virtude das duas operações que fez, o cabo E………., em 26/12/2004, deu entrada no Hospital Militar, onde permaneceu internado até 27/12/2004, tendo entrado de convalescença no domicílio em 28/12/2004 até 05/02/2005.
Q- Em 15/02/2005 voltou novamente a ser internado no Hospital Militar do Porto, tendo-lhe sido dada alta em 21/02/2005 e, em 22/02/2005, entrou novamente de convalescença, tendo retomado o serviço em 30/04/2005.
R- No período compreendido entre 26/12/2004 e 30/04/2005, o militar E……… auferiu vencimentos no total de 6.089,45 Euros.
S- Durante esse período deixou de auferir suplementos no montante global de 1.051,44 Euros, que lhe foram repostos em Outubro de 2005.
T- A GNR suportou as despesas hospitalares no valor de 4.244,35 Euros, sendo a quantia de 55,36 Euros suportada com os Bombeiros Voluntários da ………., a quantia de 670,80 Euros com o Hospital de ……….., em Amarante, e a quantia de 3.518,19 Euros com o Hospital Militar do Porto.
U- Do primeiro internamento a que foi sujeito o agente E………., no período de 08/11/2003 a 25/11/2003, a que respeitam as despesas documentadas nas facturas n.ºs ……… e ……… de 30/11/2003, do Hospital Militar do Porto, foram estas liquidadas e suportadas pela ADMG.
V- Foram, igualmente, suportadas pela GNR as despesas relativas ao período de internamento do cabo E………. de 26/12/2004 a 27/12/2004 e 15/02/2005 a 21/02/2005, cujos valores ascendem ao montante total de 3.404,05 Euros, documentadas nas facturas n.ºs ………, ………, ………, ……… e ………, datadas de 31/12/04, 31/03/05 e 28/02/05, do Hospital Militar Regional n.º 1 (Hospital Militar ……….) do Porto.
W- o arguido não tem antecedentes criminais.
*
Não se apuraram outros factos para além dos que antecedem e, designadamente, que:
1º- nas circunstâncias de tempo e de lugar referidas em A a patrulha constituída pelo cabo E……… e pelo soldado F………. se encontrasse em serviço de fiscalização de trânsito;
2º- nas circunstâncias relatadas em B tivesse sido o agente E………. quem se tivesse apercebido da aproximação da viatura de matrícula ..-..-BG e que tivesse constatado que o seu condutor não fazia uso de cinto de segurança e que fosse, nesse contexto, que ele tivesse feito paragem àquela viatura;
3º- nas circunstâncias relatadas em C o arguido tivesse visto o agente F………. a fazer o sinal de paragem referido em B;
4º- o arguido não tivesse parado ao sinal de paragem que lhe foi feito pelo agente F………. e, bem assim, ao posterior sinal de paragem que lhe foi feito pelo agente E………. para se furtar à autuação decorrente de circular com a viatura automóvel sem seguro de responsabilidade civil automóvel;
5º- o arguido, ao invés de parar ao sinal do agente F………. e, bem assim, ao posterior sinal de paragem que lhe foi feito pelo agente E………., tivesse imprimido maior aceleração à viatura e a tivesse direccionado no sentido do ofendido E………. e que tivesse sido nesse contexto que tivesse ido embater no último;
6º- nas circunstâncias relatadas em C o arguido tivesse empreendido a fuga convicto de que tinha provocado a morte do agente E……….;
7º- o arguido tivesse direccionado o veículo, a que imprimiu maior aceleração e intensificou a velocidade, no sentido do agente da BT-GNR, bem sabendo que tinha este a virtualidade de, naquelas circunstâncias, colher o agente e causar-lhe lesões graves e mortais, mas não obstante, se tivesse conformado com esse resultado como consequência da sua actuação e tivesse prosseguido a sua condução embatendo violentamente no agente E……….;
8º- ao actuar da forma descrita em C o arguido tivesse agido com o propósito primeiro de tirar a vida a E………. e tivesse representado e se tivesse conformado, como consequência necessária da sua conduta, a morte do agente da GNR-BT;
9º - o arguido tivesse agido motivado pelo receio de ser sancionado pelas infracções em que incorria na condução do seu veículo, actuando no sentido de obstar à actuação pelo agente da BT-GNR;
10º- O arguido tivesse actuado de forma deliberada, livre e conscientemente, muito embora conhecesse o carácter proibido da sua descrita conduta.
IV
Apreciando a questão suscitada pelo recorrente.

1. O Tribunal a quo, depois de concluir pela absolvição do arguido do crime de que vinha acusado, apreciou e fundamentou a responsabilidade do FGA pelo pedido de indemnização civil, nos seguintes termos:

“Do pedido de indemnização cível.
O Digno Magistrado do Ministério Público, em representação do Estado Português, deduziu o pedido de indemnização cível contra FUNDO DE GARANTIA AUTOMÓVEL e B………. pedindo a condenação destes a pagar ao Estado, através do Comando Nacional da GNR, a quantia de 20.809,68 Euros, acrescida de juros de mora desde a notificação até ao seu efectivo e integral pagamento.
O pedido indemnizatório em referência funda-se no instituto da responsabilidade civil por factos ilícitos, cujo regime jurídico se encontra enunciado no art. 483º e seguintes do Código Civil, em função do qual o direito indemnizatório que estatui está condicionado à verificação dos seguintes pressupostos legais cumulativos: o facto voluntário do agente, a ilicitude, a imputação do facto ao lesante (culpa), o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano.
No caso em análise, em função do quadro factuológico apurado não é possível concluir ter o demandado B………. infringido qualquer regra estradal e, por conseguinte, que aquele tenha agido ilicitamente na condução que desenvolvia quando atropelou o agente E………. .
Ao invés, a matéria apurada evidencia claramente que o agente E………. agiu ilícita e negligentemente, ao posicionar-se em frente do veículo tripulado pelo demandado B………., numa zona entre curvas, quando este último veículo seguia em movimento a uma distância de si entre 20 a 30 metros.
Assim, é inquestionável que o próprio lesado contribuiu com culpa para o eclodir do acidente em apreço.
A questão que se coloca é a de saber se foi a violação daquele dever objectivo de cuidado da parte do lesado a causa única e exclusiva que determinou o eclodir do acidente dos autos.
Na verdade, conforme se sustenta nos Acs. do STJ, de 04/10/2007, RLJ 137º, pág. 35 e de 15/08/2008, Proc. 10793/2007.7, in base de dados do ITIJ, “a concorrência entre culpa do lesado e o risco da utilização do veículo não é afastada pelo disposto no art. 505º, só sendo excluída quando o acidente for unicamente devido a facto do lesado ou de terceiro, ou quando resulte exclusivamente de causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo (só assim fazendo sentido a ressalva constante da parte inicial do art. 505º).
Ora, no caso em análise, se é certo que o lesado contribuiu com culpa para o eclodir do seu atropelamento, nada nos autos permite afirmar que o dito atropelamento se tenha ficado a dever única ou exclusivamente à conduta do lesado E………., no sentido de esta ter sido, por si só idónea para a sua produção.
Na verdade, o atropelamento deu-se junto a um entroncamento, numa zona entre curvas, de onde é lícito concluir que, para a produção do mesmo concorreu inevitavelmente a aptidão para a criação de riscos típica dos veículos motorizados, reconhecidamente máquinas perigosas, por natureza.
Note-se que, no caso concreto, desconhece-se, além do mais, a velocidade a que seguia o demandado B………. quando o lesado E………. lhe fez paragem, o que de per si, não nos permite concluir que o comportamento negligente do último tenha sido a causa única ou exclusiva do atropelamento.
Acresce que, conforme observa Calvão da Silva, in RLJ 137º, pág. 34, in anotação ao Ac. do STJ. de 04/10/2007, mesmo «em caso de dúvida deve prevalecer a concorrência entre o risco do veículo e o facto do lesado», pelo que “ só havendo prova certa e segura do facto da vítima ou de terceiro (ou de força maior) como causa única e exclusiva do acidente é que não haverá lugar ao concurso do risco próprio do veículo com o facto do lesado.
Concluído que está que, no caso em análise, nos deparamos com uma situação de concurso de culpa e risco, importa agora, nos termos do disposto no art. 570º do Cód. Civil, fixar em que medida deve ser reduzida a indemnização devidas pelos danos sofridos pelo lesado E………., limitando-se nesta medida a responsabilidade dos demandados pelos danos emergentes do atropelamento em apreço.
Ponderando os diferentes interesses envolvidos, bem como as consequências danosas resultantes do acidente, afigura-se-nos equitativo reduzir a indemnização em 40%.

Assim, estando a responsabilidade pelo risco do demandado limitada a 40% dos danos emergentes do atropelamento do agente E………., tal significa que aquele se encontra obrigado a pagar ao Estado a quantia de Es. 8.323,88 Euros (20.809,68 Euros x 40%).
Não beneficiando o veículo atropelante (de matrícula nacional) de seguro válido e eficaz à data do atropelamento, pela satisfação desta indemnização é igualmente e solidariamente responsável o demandado do F.G.A. nos termos do disposto no art. 21º, n.ºs 1 e 2 do Dec. Lei n.º 522/85, de 31/12, descontada que seja em relação a este a franquia de 299,28 Euros a que alude o n.º 3 do dito art. 21º”.

2. A decisão recorrida assenta na interpretação que no ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 4.10.2007[1] e da anotação a este mesmo acórdão de Calvão da Silva, na RLJ nº 137º, fls. 34, é feita do artigo 505º, do Código Civil, para graduar, à luz do artigo 570º, do mesmo diploma, a responsabilidade pelo risco, do FGA.
E fê-lo, considerando não exclusiva a responsabilidade do lesado na produção do acidente.

2.1. Diz o artigo 505º, CCivil:
Sem prejuízo do disposto no artigo 570º, a responsabilidade fixada pelo nº 1 do artigo 503º[2] só é excluída quando o acidente for imputável ao próprio lesado ou a terceiro, ou quando resulte de causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo.

E, por sua vez, o artigo 570º:
1. Quando um facto culposo do lesado tiver concorrido para a produção ou agravamento dos danos, cabe ao tribunal determinar, com base na gravidade das culpas de ambas as partes e nas consequências que delas resultaram, se a indemnização deve ser totalmente concedida, reduzida ou mesmo excluída.
2. Se a responsabilidade se basear numa simples presunção de culpa, a culpa do lesado, na falta de disposição em contrário, exclui o dever de indemnizar.

2.2. Ora, o dito acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 4.10.2007, põe em causa a bondade da interpretação clássica daquela disposição – artigo 505º, do CC -, e faz uma opção clara por uma interpretação actualista da responsabilidade pelo risco, nomeadamente à luz das directivas comunitárias sobre esta matéria, admitindo a concorrência da responsabilidade pelo risco com a conduta culposa do lesado, no intuito de proteger situações que, pese embora a culpa do lesado, esta culpa é por vezes diminuta e noutras resulta de comportamentos mecânicos, de distracção, de comportamentos de crianças ou de inimputáveis.
2.3. Decidiu-se, a propósito, naquele acórdão:
“…
2. De acordo com a jurisprudência e a doutrina tradicionais, inspiradas no ensinamento de Antunes Varela, em matéria de acidentes de viação, a verificação de qualquer das circunstâncias referidas no art. 505º do CC – maxime, ser o acidente imputável a facto, culposo ou não, do lesado – exclui a responsabilidade objectiva do detentor do veículo, não se admitindo o concurso do perigo especial do veículo com o facto da vítima, de modo a conduzir a uma repartição da responsabilidade: a responsabilidade pelo risco é afastada pelo facto do lesado.

3. Esta corrente doutrinal e jurisprudencial, conglobando na dimensão exoneratória do art. 505º, e tratando da mesma forma, situações as mais díspares – nas quais se englobam comportamentos mecânicos dos lesados, ditados por medo ou reacção instintiva, factos das crianças e dos inimputáveis, comportamentos de precipitação ou distracção momentânea, etc. – e uniformizando as ausências de conduta, as condutas não culposas, as pouco culposas e as muito culposas dos lesados, conduz, muitas vezes, a resultados chocantes.

4. Mostra-se também insensível ao alargamento crescente, por influência do direito comunitário, do âmbito da responsabilidade pelo risco, e da expressa consagração da hipótese da concorrência entre o risco da actividade do agente e um facto culposo do lesado, que tem tido tradução em recentes diplomas legais, que exigem, como circunstância exoneratória, a culpa exclusiva do lesado, bem como à filosofia que dimana do regime estabelecido no Cód. do Trabalho para a infortunística laboral.

5. O texto do art. 505º do CC deve ser interpretado no sentido de que nele se acolhe a regra do concurso da culpa do lesado com o risco próprio do veículo, ou seja, que a responsabilidade objectiva do detentor do veículo só é excluída quando o acidente for devido unicamente ao próprio lesado ou a terceiro, ou quando resulte exclusivamente de causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo.

7. A este resultado conduz uma interpretação progressista ou actualista do art. 505º, que tenha em conta a unidade do sistema jurídico e as condições do tempo em que tal norma é aplicada, em que a responsabilidade pelo risco é enfocada a uma nova luz, iluminada por novas concepções, de solidariedade e justiça.

8. Ademais, na interpretação do direito nacional, devem ser tidas em conta as soluções decorrentes das directivas comunitárias no domínio do seguro obrigatório automóvel e no direito da responsabilidade civil, já que as jurisdições nacionais estão sujeitas à chamada obrigação de interpretação conforme, devendo interpretar o respectivo direito nacional à luz das directivas comunitárias no caso aplicáveis, mesmo que não transpostas ou incorrectamente transpostas.

2.3.1. Diga-se que no caso deste acórdão foi considerada a concorrência entre o risco do veículo e culpa de uma menor, do seguinte modo:
“…não obstante a actuação contravencional da menor, que manifestamente contribuiu para o acidente, a matéria de facto apurada permite também concluir que a estrutura física (as dimensões, a largura) do veículo automóvel, na ocasião timonado por uma condutora inexperiente, habilitada há menos de seis meses, está inelutavelmente ligada à ocorrência do acidente”.

3. No entanto, esta posição ainda não se encontra consolidada, dando, sim, os primeiros sinais de afirmação[3].
Com efeito, para além dos votos de vencido assinalados na nota antecedente, o recente acórdão do mesmo Supremo Tribunal de Justiça de 20.1.2009, proferido no processo nº 08A3807, podendo ser consultado em www.dgsi.pt.jstj (Relator Conselheiro Salazar Casanova), pronuncia-se sobre esta questão, nos seguintes termos[4]:

“9[5]. O paradigma da incompatibilidade da culpa com o risco tem vindo a ser abalado por força de novos progressos no campo da doutrina e da jurisprudência, procurando afastar a interpretação, tida por não actual, que exclui do âmbito do artigo 505.º do Código Civil a responsabilidade pelo risco: veja-se o referido Ac. do S.T.J. de 4-10-2007 anotado por Calvão da Silva na R.L.J., Ano 137.º, 49/64.

10. Admitindo-se o concurso do facto do lesado ou de terceiro, já não com a culpa do dono ou do condutor, mas com o risco do veículo, a interrogação que se suscita é a de saber como se preenche ou densifica agora, para efeitos de exclusão da responsabilidade pelo risco, a expressão “ quando o acidente for imputável ao próprio lesado” (artigo 505.º do Código Civil).

11. O significado desta expressão era entendida no sentido de que não é só o facto culposo do lesado ou de terceiro a excluir a responsabilidade do dono do veículo. É que “a fórmula legal deve considerar-se equivalente a ‘acidente devido a facto do lesado ou de terceiro. E, assim, a responsabilidade do dono poderá ser excluída mesmo que o lesado ou terceiro sejam inimputáveis. O que importa é que o facto do lesado ou de terceiro seja a única causa do acidente ou, por outras palavras, que este seja unicamente devido àquele facto […]” (Código Civil Anotado, Mário de Brito, Vol II, 1972, pág. 216).

12. Antunes Varela considera “para que o acidente deva considerar-se imputável ao próprio lesado ou a terceiro, não é necessário que o facto por estes praticado seja censurável ou reprovável. A lei quer abranger todos os casos em que o acidente é devido a facto do lesado ou de terceiro, ainda que qualquer deles seja inimputável[…] ou tenha agido sem culpa; basta, noutros termos, que o acidente tenha sido causado por facto da autoria de um ou outro, posto que sem culpa do autor.

13. Para a exacta compreensão do preceito, importa considerar que não é um problema de culpa que está posto no artigo 505.º mas apenas um problema de causalidade: trata-se de saber se os danos verificados no acidente devem ser juridicamente considerados, não como um efeito do risco próprio do veículo, mas sim como uma consequência do facto praticado pela vítima ou por terceiro” (Código Civil Anotado, Vol I, 4ª edição, pág. 518).

14. No entanto, a partir do momento em que se adopte o entendimento de que aquele preceito não exclui o concurso da culpa do lesado com o risco - a leitura actualizada do preceito no entendimento de Calvão da Silva é esta: “sem prejuízo do disposto no artigo 570.º (leia-se, sem prejuízo do concurso da culpa do lesado e, ‘a fortiori’, sem prejuízo do concurso de facto não culposo do lesado), a responsabilidade objectiva do detentor do veículo só é excluída quando o acidente for devido (com culpa ou sem culpa) unicamente ao próprio lesado ou a terceiro, ou quando resulte exclusivamente de causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo” (ver R.L.J., Ano 137.º, pág. 152) - a partir desse momento, dizíamos, continua a importar analisar a sequência naturalística do próprio acidente de modo a verificar se dela resulta, não obstante a actuação da vítima, a intervenção, no processo causal do acidente, dos riscos próprios do veículo.

15. Por exemplo, no caso tratado no mencionado Ac. do S.T.J. de 4-10-2007 em que a vítima era uma criança de 10 anos de idade que, conduzindo uma bicicleta, surge de um entroncamento à direita do veículo automóvel de tal modo que, sem aguardar a passagem do automóvel, entrou na metade direita da estrada, cortando a linha de marcha e tornando o acidente inevitável, fácil é verificar que a “culpa” do acidente seria atribuível ao condutor do velocípede só que o Tribunal deu igualmente como provado que “à data do acidente a condutora do veículo Renault tinha pouca experiência, pois só estava habilitada a conduzir veículos automóveis desta categoria desde o dia 3-3-1998” (o acidente ocorreu no dia 30-8-1998).

16. Por tal razão, considerando que “dentro dos riscos próprios do veículo cabem ‘além dos acidentes provenientes da máquina de transporte, os ligados ao outro termo do binómio que assegura a circulação desse veículo (o condutor)’”, o Tribunal considerou surpreender “no caso concreto - enquanto factores que contribuíram para a verificação do acidente - a conjugação do perigo do próprio veículo com a inexperiência da sua condutora, potenciadora desse perigo”.

17. E muito incisivamente referiu-se no mencionado aresto que “não se quer significar - não é demais reafirmá-lo, para que dúvidas não restem - que esta inexperiência se tenha projectado no domínio da culpa, em termos de ligar a qualquer conduta negligente por acção ou omissão) da condutora do Renault; quer-se apenas dizer que esta falta de experiência, condicionando inevitavelmente o total e absoluto domínio das ‘artes’ da condução não deixou de se repercutir, em sede de causalidade, no processo dinâmico que levou à eclosão do evento lesivo”.

18. Evidencia-se, assim, que foi produzida prova da intervenção no processo causal do acidente de um concretizado risco próprio do veículo (artigo 503.º,nº1 do Código Civil).

19. Este conceito indeterminado de risco próprio do veículo pode sofrer uma amplitude menor, consoante seja associado à projecção na máquina dos desgastes sofridos com a mera usura do tempo, ou maior, se for associado à circulação rodoviária de veículos especialmente quando postos em confronto com sinistrados pedestres que não podem deixar de utilizar as vias públicas, situação inerente à condição humana de vida contemporânea.

20. Então, a ser assim, o risco próprio do veículo confundir-se-ia com o seu próprio dinamismo, o carácter perigoso residiria no seu uso (“risco-actividade”- como refere Dario Martins de Almeida in Manual de Acidentes de Viação, 1980, pág. 315), o que nos conduziria a uma noção de “risco próprio do veículo” equivalente à ideia de que o risco próprio do veículo é inerente ao perigo da circulação e, por conseguinte, encontra-se sempre presente num acidente de circulação rodoviária.

21. Ou seja, se em determinados sinistros rodoviários é constatável um risco próprio concretizado, como sucedeu no acórdão já mencionado, em muitos outros, para não dizer na sua grande maioria, o risco susceptível de ser considerado outro não é senão o risco próprio da actividade de circulação de veículos automóveis cuja perigosidade objectiva é inegável.

22. O processo causal do acidente parece dever ser analisado, quando há culpa do lesado e não se provou a culpa do lesante condutor do veículo, de modo a constatar se o risco de circulação do veículo deve ser excluído em razão da gravidade da culpa do sinistrado projectada no processo causal.

23. Afastado há mais de duas décadas o entendimento, que levou a intenso debate na doutrina e na jurisprudência, que via na circulação rodoviária uma actividade perigosa a impor uma presunção de culpa pelos danos causados ao detentor do veículo (artigo 493.º, n.º2 do Código Civil), afastamento consagrado com o Assento n.º 1/80, de 21 de Novembro de 1979 in Diário da República n.º 24 de 1-1-1980 que excluiu os acidentes de circulação terrestre da previsão do artigo 493.º, n.º2 do Código Civil, hoje, numa outra perspectiva, reacende-se a questão de saber se, no âmbito da sinistralidade rodoviária, não devemos considerar, porque sempre presente o risco, necessariamente presumida a causalidade determinada pelo risco.

24. Tal presunção seria ilidível mediante a prova de que o acidente foi devido unicamente ao próprio lesado ou a terceiro ou exclusivamente a causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo (artigo 505.º do Código Civil).

25. Assim sendo, não apenas nos casos em que se demonstra, como sucedeu no mencionado acórdão de 4-10-2007, uma causa concreta de risco, talvez se possa ir mais longe considerando que o risco não deve ser excluído precisamente quando ocorrem situações em que, existindo uma conduta objectiva desrespeitadora dos deveres de cuidado (criança que, brincando num jardim junto à faixa de rodagem, se atravessa à frente de um veículo para apanhar a bola que para ali se escapou ou o caso do adulto que para escapar a uma vaga de mar que se projecta sobre o passeio entra inadvertidamente na faixa de rodagem também se atravessando à frente de uma viatura: ver a discussão deste caso em Acidentes de Viação e Responsabilidade Civil, Américo Marcelino, pág. 332 e segs), não é imputável ao lesado um juízo de culpa intenso (ou nem isso, no caso da criança) sendo contudo inegável que o processo causal do acidente em qualquer dos casos é imputável unicamente ao próprio lesado.

26. Parece, assim, justificar-se um novo quadro normativo em que o processo causal do acidente, ainda quando comprovadamente imputável ao lesado, admita a concorrência do risco do veículo lesante que se presumiria sempre que fosse reduzida a culpa do lesado ou sempre que o lesado não fosse passível de um juízo de censura seja em razão da idade ou de outra causa.

27. Encontramo-nos num plano do direito a constituir como salienta José Carlos Brandão Proença ao evidenciar os pontos essenciais da sua proposta de alteração do artigo 505.º do Código Civil que tem em vista conceber um regime “mais flexível e adaptado à fragilidade de certos lesados” (“Culpa do Lesado”, Comemorações dos 35 Anos do Código Civil e dos 25 Anos da Reforma de 1977, Vol. III, Direito das Obrigações, pág. 139/151)[6].

28. No quadro actual do direito positivo afigura-se seguir a orientação contrária “à tese clássica” segundo a qual toda e qualquer culpa mesmo a culpa leve ou levíssima, (desvalorizando a inerência de pequenos descuidos à circulação rodoviária) do lesado exclui a responsabilidade objectiva do detentor do veículo” (Calvão da Silva, anotação ao Ac. do S.T.J. de 1-3-2001 in R.L.J., Ano 134.º, pág. 116/117).

29. Essa orientação contrária implica “a aceitação do concurso da culpa do lesado com o risco próprio do veículo, permitindo ao juiz sopesar suas gravidades e contributos causais e assim moldar o an e o quantum respondeatur” (loc. cit. pág. 117).

30. Numa formulação ulterior do seu pensamento, o autor admite que “a seguradora pode opor ao lesado, não só a falta de responsabilidade do detentor do veículo segurado - acidente devido unicamente à vítima ou a terceiro, ou acidente exclusivamente devido a causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo (artigo 505.º)-, mas também um comportamento voluntário grave e indesculpável, doloso ou imprevisível do lesado nas circunstâncias do caso concreto. Cabe ao juiz nacional, na apreciação individual da conduta do lesado em cada caso específico, ter presente o escopo das Directivas europeias - garantia de indemnização suficiente da vítima a um nível elevado de protecção do consumidor - e a jurisprudência comunitária de apenas em circunstâncias excepcionais se poder reduzir (não desproporcionadamente) a extensão da indemnização do lesado” (ver R.L.J., Ano 137.º, pág. 159/160).

31. Sentimos, o que julgamos compreensível, alguma dificuldade na compatibilização, face ao quadro legal em vigor, da ideia de que, sendo o acidente devido unicamente à vítima no plano causal, ainda assim seja atribuível uma indemnização à vítima quando esta, pela sua pouca idade, não é passível de um juízo de censura; idêntica dificuldade se encontra nos casos em que ocorre uma culpa leve do lesado (o adulto que, fugindo de um agressor, invade a faixa de rodagem, atravessando-se súbita e inesperadamente diante do veículo que circulava lentamente e observando todas as regras de trânsito) atentas as circunstâncias que originaram o acidente, mas sendo indiscutivelmente a causa do acidente alheia ao risco próprio da viatura, aceitando-se que a ideia de risco próprio com o amplo alcance anteriormente indicado.

32. Admite-se, à luz da lei que nos rege e aceitando a possibilidade de concorrência de risco com culpa, que aquele deve considerar-se verificado quando se evidencia um risco próprio concretizado a concorrer com o facto causal do lesado ou quando a actuação culposa do lesado projectada no próprio acidente não permite dizer que o acidente foi exclusivamente causado pelo lesado. Assim, por exemplo, um atropelamento de peão fora da passadeira próxima do local de atravessamento, só por si, não obstante a culpa do lesado, não permite afirmar que o acidente é unicamente devido ao lesado. No entanto, este entendimento não resolve os casos em que, não havendo culpa ou sendo esta diminuta - o caso da criança que atravessa a estrada em correria para agarrar a bola - se constata que o acidente resultou exclusivamente da conduta do lesado, não se evidenciando a interferência de nenhum risco próprio do veículo.

33. Para não ser assim, importaria então que a lei ressalvasse todos os casos em que, apesar de se reconhecer que a conduta do lesado constituiu o facto causal do acidente, o único dele determinante, ainda assim a indemnização pelo risco fosse atribuída por não resultar a conduta do lesado de uma actuação culposa grave. Por outras palavras: a responsabilidade pelo risco seria excluída apenas quando o lesado tivesse incorrido em culpa grave que fosse determinante de conduta à qual unicamente se deveu o acidente.

34. Podia ir-se ainda mais longe de jure condendo sustentando que, dada a vulnerabilidade das crianças, dos peões, ciclistas e outros utilizadores não motorizados das estradas, a responsabilidade pelo risco devia ser sempre tomada em consideração independentemente da sua contribuição para o processo causal do sinistro ser inteiramente atribuível à conduta daqueles; quanto aos demais, a responsabilidade concorrente pelo risco não podia deixar de se considerar afastada se o acidente lhes fosse exclusivamente devido.

35. Uma actuação culposa origina normalmente o desencadear do acidente unicamente imputável ao próprio lesado. Mas não é forçoso que assim seja. Um peão que atravessa uma via de intenso tráfego sem se certificar da distância que o separa dos veículos que nela transitam e respectiva velocidade, desrespeita, sem dúvida, o normativo constante do artigo 104.º do Código da Estrada de 1994 (preceito em vigor à data do acidente a que corresponde o artigo 101.º após a revisão introduzida pelo Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro) mas isso não significa, provando-se apenas que se deu o atropelamento naquelas condições, que o processo causal que originou o acidente lhe seja unicamente imputável. Por isso, situações que, à luz do entendimento pretérito, conduziriam à não responsabilização da seguradora, entidade para a qual o risco foi transferido precisamente porque, havendo culpa do lesado, o risco não podia com esta concorrer, agora importam consequência contrária: a co-responsabilização do garante do risco por não se ter provado que o acidente foi unicamente devido à conduta do lesado.

36. No entanto, aproveitando o exemplo dado que se aproxima do caso em apreço, se se provar que o peão, para além da travessia naquelas condições, se atravessou à frente do veículo cortando a curta distância a sua linha de marcha, impossibilitando-lhe qualquer manobra de recurso, então está preenchida a previsão constante do mencionado artigo 505,º, 2ª parte, pois o acidente resultou de uma conduta culposa que, no âmbito do processo causal, foi unicamente devida ao sinistrado.


42. Mas considerar que o risco imanente à circulação rodoviária gera uma culpa mitigada em cada acidente, seja qual for a culpa que efectivamente ocorreu determinativa do processo causal concreto, tal entendimento traduzir-se-ia, a nosso ver, na introdução sub-reptícia de uma presunção juris et de jure de ocorrência de risco, o que a lei não consente.

43. Como se viu, não se afigura que à luz do nosso direito positivo seja admissível uma interpretação que considere beneficiarem os sinistrados não motorizados de uma presunção juris et de jure de culpa mitigada e que, por tal motivo, deva sempre considerar-se que o acidente não foi unicamente devido à sua actuação culposa ainda que se prove exactamente o contrário.

Concluindo:

I- Se o acidente for unicamente devido a actuação culposa exclusiva do lesado, a responsabilidade pelo risco deve considerar-se excluída nos termos do artigo 505.º do Código Civil.
II- Admitindo-se a concorrência da culpa com o risco no processo causal do acidente, isso não significa considerar-se o risco causalmente verificado apenas porque o acidente se verificou entre um veículo motorizado e o peão sinistrado a partir do momento em que se provou que o acidente foi exclusivamente imputável a este último.
III- Se um peão inicia a travessia da faixa de rodagem à saída de um túnel destinado exclusivamente ao trânsito automóvel, atravessando-se subitamente e à frente do condutor que não se pôde desviar dada a proximidade entre ambos, a responsabilidade pelo risco do condutor do veículo motorizado está afastada pois tais factos comprovam que o acidente é imputável exclusivamente ao sinistrado”.

4. Relevante ainda para uma melhor compreensão desta problemática, é o teor do voto de vencido do supra referenciado acórdão de 4.10.2007, do Conselheiro João Bernardo, nos seguintes termos:

«I - Votei o acórdão, conquanto me pareça - ressalvada sempre a muita consideração - que não é facilmente conciliável a culpa do lesado com o risco, entendido este nos termos tradicionais.
Creio que se poderia ir mais além, conforme passo a, sumariamente, expor.
II – A responsabilidade civil foi regulada no nosso Código Civil no prisma do atingimento do agente, na sua esfera patrimonial. O património deste merece, à partida, tutela, mas situações há em que o seu comportamento justifica que tal património seja atingido com a obrigação de indemnização. Em primeira linha, porque agiu com culpa e produziu danos a outrem e, em segunda linha, porque assumiu um risco do qual derivou a produção também de danos a outrem.
Daí a redacção – entre muitos e pensando já no caso dos acidentes de viação - dos artigos 483.º, n.º1 (“Aquele que com dolo ou mera culpa violar…fica obrigado a indemnizar…”) e 503.º do Código Civil (“Aquele que tiver a direcção efectiva de qualquer veículo…, Aquele que conduzir veículo por conta de outrem…”)
III – Este modo de ver as coisas e no que respeita aos acidentes de viação com veículos, sofreu profunda alteração de origem comunitária.
Passou-se a encarar esta problemática na perspectiva da vítima, tendo-se conjugado tal perspectiva com o alcance social do seguro obrigatório.
Assim, muito exemplificativamente:
“ A institucionalização do seguro obrigatório… revelou-se uma medida de alcance social, inquestionável, que, com o decurso do tempo, apenas impõe reforçar e aperfeiçoar, procurando dar uma resposta cabal aos legítimos interesses dos lesados em acidente de viação” - preâmbulo do Decreto-Lei n.º522/85, de 31.12;
“Considerando que os montantes até à concorrência dos quais o seguro é obrigatório devem permitir, em toda e qualquer circunstância, que seja garantida às vítimas uma indemnização suficiente, seja qual for o Estado membro onde o sinistro ocorra”- considerandos da Directiva do Conselho de 30.12.1983 (84/5/CE);
“Considerando que deve ser garantido que as vítimas de acidentes de veículos automóveis recebam tratamento idêntico…” – considerandos da Directiva do Conselho de 14.5.1990 (90/232/CEE);
“Considerando que, no sector da responsabilidade civil automóvel, a protecção dos interesses dos sinistrados que podem reclamar uma indemnização diz respeito a todos e que, por conseguinte, é conveniente velar por que os sinistrados não sejam prejudicados ou sujeitos a maiores incómodos…” considerandos da Directiva do Conselho de 8.11.1990 (90/618 CEE);
“É efectivamente adequado completar o regime instituído pelas Directivas … a fim de garantir que as pessoas lesadas por acidentes de viação recebam tratamento idêntico… isso implica a concessão à pessoa lesada do direito de acção directa contra a empresa de seguros…”- considerandos da Directiva do Parlamento Europeu e do Conselho de 16.5.2000 (2000/26/CE);
Toda esta ideia básica de protecção da vítima se vem acentuando, nomeadamente, com a 5.ª Directiva (transposta, como as demais, para a ordem jurídica interna) e pelo Decreto-Lei n.º291/07, que vai revogar aquele Decreto-Lei n.º 522/85, de 31.12.
IV – Este modo de encarar a realidade dos acidentes com veículos a motor, que foi sendo recebida na ordem jurídica interna, não constitui plenamente o reverso da medalha, cujo verso corresponde à visão que deixámos expressa em II.
Se encararmos a problemática na perspectiva da vítima, vêm ao de cima muitas realidades que a visão do nosso Código Civil deixara obnubiladas. Referimo-nos, por exemplo, aos casos em que o acidente é originado pela vítima, mas sem que se lhe possa assacar culpa (porque é inimputável em razão de anomalia psíquica ou da idade, sendo a “culpa in vigilando”, de todo, desadequada para ser aqui adaptada) ou em que a culpa é leve. E, noutro âmbito, na perspectiva do lesado, passou a ser incompreensível que haja lugar a indemnização se o dono do veículo tinha a direcção efectiva dele, utilizando-o no seu próprio interesse e não a haja – da seguradora – se tais requisitos não se verificarem, como, por exemplo, no caso de furto.
V – Por outro lado, esta protecção ao lesado é bem compreensível.
Os acidentes com veículos constituem, nas sociedades modernas, a principal causa de morte ou de lesões graves numa longa fase da vida do ser humano. A este depara-se-lhe uma realidade que constitui – na perspectiva que aqui nos interessa dos acidentes e suas consequências – um desvalor particularmente intenso, que justifica que a ideia de indemnização se vá afastando do modo como o acidente se deu, relegando, nomeadamente, para menor importância, a questão da culpa ou dos fins por que o condutor pôs o veículo em movimento. É na própria circulação dos veículos, encarada no seu todo, que se vai procurar, cada vez mais, a razão de ser da indemnização. O acidente em si representará uma concretização já com esse “pano de fundo”.
E, tanto assim é, que noutras ordens jurídicas, com expressão mais acentuada na Lei francesa de 5.7.1985, a Lei Badinter - toda ela redigida na perspectiva da vítima de acidentes de circulação em que esteja implicado um veículo terrestre a motor - se vêm favorecendo claramente os lesados.
Por outro lado, e como já se salienta no texto do acórdão, em muitos domínios da nossa vida social, os legisladores vêm assumindo protecção dos lesados, atenta a realidade que subjaz à eclosão de danos. Os acidentes de trabalho, a responsabilidade do produtor, os acidentes com aeronaves, os casos de lesões graves resultantes directamente de actos intencionais de violência são alguns dos exemplos em que o lesado, pela via da indemnização, beneficia dum regime legal favorável, desligado da culpa de quem indemniza e, muitas vezes, dele próprio.
Sendo certo que, em muitos dos casos assim contemplados, estão em causa situações bem menos delicadas do que, por exemplo, a nossa. Basta pensar-se na culpa do acidentado de trabalho que não perde, por isso o direito à indemnização (a não ser nos casos de culpa grosseira) e na eclosão do acidente de viação aqui em causa em que uma menor, de dez anos, conduzindo um velocípede sem motor, não “respeita”(?) um sinal de aproximação de estrada com prioridade.
VI - No nosso país, à parte o recebimento das directivas, o legislador tem-se mantido imóvel perante a enormidade que atingiu a circulação automóvel, comparada com a do tempo em que se conceberam as disposições do Código Civil.
Justifica-se, então, uma interpretação actualista de tais disposições legais, imposta, aliás, atento todo o quadro que vimos traçando, pelo artigo 9.º. n.º1 parte final do mesmo código. E impulsionada, não só pelas disposições de origem comunitária, como também pelos Acórdãos do TJCE citados no texto do nosso acórdão.
VII – Só que, da visão actualista, resulta, a meu ver, por um lado, algum rompimento com o próprio conceito de risco que emerge das disposições de tal código (atente-se, por exemplo, no artigo 8.º, n.º2 do Decreto-Lei n.º 522/85) e, por outro, a minoração da importância da culpa do lesado, remetendo-a apenas para um dos critérios, de entre vários, que o tribunal deve ter em conta para decidir (vejam-se os referidos Acórdãos do TJCE).
A fonte da indemnização já não se irá buscar, dogmaticamente, ou à culpa ou ao risco, mas brota logo, alimentada pela enormidade que constitui a circulação de veículos conjugada com as regras do seguro obrigatório. Repare-se, por exemplo, na técnica usada na mencionada Lei Badinter. Parte-se logo da indemnização às vítimas de acidentes de circulação e, depois, como excepção, surge a culpa grave do lesado (“faute inexcusable”), aliás, não relevante nos casos em que os acidentados têm menos de 16 (e tenhamos presente o nosso caso…) ou mais de 70 anos ou sejam titulares de incapacidade de, pelo menos, 80%. Não se procurou um estribo na culpa ou em risco (que nem é sequer ali referido) para se indemnizar.
VIII – Efectuado o mencionado rompimento, já não se coloca, com acuidade, a questão da concorrência entre culpa e risco. Ultrapassar-se-ia, deste modo, a dificuldade que referimos em I.
IX – Todavia, assim raciocinando, abrimos campo a um mar de incertezas, sobre os parâmetros de protecção ao lesado. Desde a sua inimputabilidade, em razão da idade ou de anomalia psíquica, passando pela afectação não culposa da sua capacidade de atenção como a resultante da influência de medicamentos ou de provecta idade, e seguindo para a maior vulnerabilidade do peão e do ciclista nos acidentes com veículos a motor, sem olvidar os casos em geral de culpa leve ou não exclusiva, tudo serve, ou pode servir, para restabelecer, pela via indemnizatória, um equilíbrio entre os intervenientes em acidentes de viação que estava comprometido à partida.
O TJCE já vem tutelando, nos sobreditos arestos, protecção especial aos transportados no veículo acidentado. As suas palavras – nomeadamente nos considerandos – inculcam a ideia de que é de estender tal protecção a outros casos.
Situam-se, pois, “prima facie”, em sede de direito comunitário os critérios de protecção dos lesados em acidentes de viação.
Daí que entenda que se justificaria, no presente caso – e ressalvada, mais uma vez, a muita consideração – o reenvio prejudicial.
Não se lançando mão do reenvio, entendo que o presente acidente se situa, gritantemente, entre os merecedores de protecção da lesada. Era uma criança de 10 anos, que circulava de bicicleta e que colidiu com um automóvel. A sua idade não permitirá mesmo que se fale, com propriedade, em desrespeito pelo sinal de prioridade ou, latamente, em culpa dela. Terá havido “culpa in vigilando” – cujos contornos não resultam dos factos - mas, como já referimos, esta é manifestamente desadequada para tutelar estes casos.
Por isso, votei o acórdão.»

5.
Da leitura que fazemos dos dois arestos citados e do voto de vencido igualmente transcrito, parece-nos que, em tese geral e como princípio a seguir, é de aceitar o concurso do risco próprio do veículo com eventual culpa do lesado.
5.1. E é assim que, tendo por base ou pano de fundo o nosso ordenamento jurídico e mais concretamente o disposto no artigo 505º do CC, no acórdão de 4.10.2007 “se acolhe a regra do concurso da culpa do lesado com o risco próprio do veículo, ou seja, que a responsabilidade objectiva do detentor do veículo só é excluída quando o acidente for devido unicamente ao próprio lesado ou a terceiro, ou quando resulte exclusivamente de causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo”.
5.2. Que no acórdão de 20.1.2009 se “admite, à luz da lei que nos rege e aceitando a possibilidade de concorrência de risco com culpa, que aquele deve considerar-se verificado quando se evidencia um risco próprio concretizado a concorrer com o facto causal do lesado ou quando a actuação culposa do lesado projectada no próprio acidente não permite dizer que o acidente foi exclusivamente causado pelo lesado”.
Mas logo se dizendo ou prevenindo que “este entendimento não resolve os casos em que, não havendo culpa ou sendo esta diminuta - o caso da criança que atravessa a estrada em correria para agarrar a bola - se constata que o acidente resultou exclusivamente da conduta do lesado, não se evidenciando a interferência de nenhum risco próprio do veículo”.
5.3. Que no voto de vencido se chama a atenção para o facto de, apesar da existência e recebimento das directivas, “o legislador ter-se mantido imóvel perante a enormidade que atingiu a circulação automóvel, comparada com a do tempo em que se conceberam as disposições do Código Civil”.
Que se justifica uma interpretação actualista de tais disposições legais, imposta pelo artigo 9.º, n.º1, parte final do Código Civil. Impulsionada, não só pelas disposições de origem comunitária, como também pelos Acórdãos do TJCE citados no texto do acórdão.
E que, efectuado este rompimento, já não se coloca, com acuidade, a questão da concorrência entre culpa e risco
Mas que assim raciocinando, se abre campo a um mar de incertezas, sobre os parâmetros de protecção ao lesado. “ Desde a sua inimputabilidade, em razão da idade ou de anomalia psíquica, passando pela afectação não culposa da sua capacidade de atenção como a resultante da influência de medicamentos ou de provecta idade, e seguindo para a maior vulnerabilidade do peão e do ciclista nos acidentes com veículos a motor, sem olvidar os casos em geral de culpa leve ou não exclusiva, tudo serve, ou pode servir, para restabelecer, pela via indemnizatória, um equilíbrio entre os intervenientes em acidentes de viação que estava comprometido à partida”.

6. Conscientes de que apenas pela via legislativa, do direito a constituir, se atingirá uma maior clarificação e determinação das situações em que a responsabilidade pelo risco deve concorrer com a conduta imputável ao lesado na produção do acidente (com culpa grave, diminuta ou mesmo sem culpa – inimputabilidade), cremos que é desde já possível admitir, na fixação da indemnização - à luz da dita interpretação actualista que leva em conta o novo paradigma da responsabilidade pelo risco, a função social que deve representar o seguro obrigatório e a nova concepção de justiça ou solidariedade que pode e deve ser feita, por esta via, sendo o lesado geralmente a parte mais débil -, um concurso entre a conduta/culpa do lesado[7] e a responsabilidade pelo risco, nas situações em que seja ainda possível evidenciar ou concretizar um risco próprio do veículo[8].
Foi o que ocorreu exactamente no caso do acórdão de 4.10.2007.
7.
Subsumindo esta posição ao caso dos presentes autos, cumpre agora valorar os factos que o tribunal a quo conseguiu apurar e que deu como assentes sobre o modo como ocorreu o acidente.
Já sabemos que o tribunal a quo entendeu que “…é inquestionável que o próprio lesado contribuiu com culpa para o eclodir do acidente em apreço”.
E colocou a questão de saber “ se foi a violação daquele dever objectivo de cuidado da parte do lesado a causa única e exclusiva que determinou o eclodir do acidente dos autos”, concluindo que:
“Ora, no caso em análise, se é certo que o lesado contribuiu com culpa para o eclodir do seu atropelamento, nada nos autos permite afirmar que o dito atropelamento se tenha ficado a dever única ou exclusivamente à conduta do lesado E………, no sentido de esta ter sido, por si só idónea para a sua produção.
Na verdade, o atropelamento deu-se junto a um entroncamento, numa zona entre curvas, de onde é lícito concluir que, para a produção do mesmo concorreu inevitavelmente a aptidão para a criação de riscos típica dos veículos motorizados, reconhecidamente máquinas perigosas, por natureza.
Note-se que, no caso concreto, desconhece-se, além do mais, a velocidade a que seguia o demandado B………. quando o lesado E………. lhe fez paragem, o que de per si, não nos permite concluir que o comportamento negligente do último tenha sido a causa única ou exclusiva do atropelamento”.
Parece-nos que os factos provados não permitem ir tão longe como o foi o tribunal a quo.
Na verdade, a situação em si não permite evidenciar, individualizar ou concretizar um risco próprio do veículo, quer inerente a este quer ao seu condutor[9].
O que os factos dizem é que se trata de uma situação perfeitamente normal na circulação de um veículo, na estrada. Existirem no local curvas e um entroncamento, é igualmente normal para a circulação de qualquer veículo.
O eventual risco que daí possa advir não será um risco inerente à circulação do veículo, como máquina perigosa que é, mas simplesmente a uma má concepção da estrada, por apresentar curvas umas perto das outras, não ser suficientemente larga ou não sinalizar devidamente o entroncamento. A ter que se falar em risco ou risco acrescido, esse risco será imputável ao responsável pela via de circulação e não ao titular ou condutor do veículo.
Por sua vez, na decisão recorrida releva-se o desconhecimento da velocidade do veículo para daqui concluir que a conduta do lesado não pode ser considerada como a única na produção do sinistro.
Este raciocínio assenta em premissa errada e está, consequentemente, viciado.
O desconhecimento da velocidade concreta não pode permitir tal conclusão.
O inverso, seria possível, ou seja, a velocidade excessiva já permitiria imputar ao condutor alguma responsabilidade ou então considerar como não exclusiva, a do lesado.
Estamos a decidir casos concretos, pelo que só os factos conhecidos e apurados podem ser valorados, já não qualquer facto não provado ou negativo, como aconteceu no presente caso.
O que deve ser valorado para aquilatar da culpa ou agravar o risco, é a velocidade concreta, excessiva ou desajustada para o local, imprimida ao veículo. Não o facto de não se saber a velocidade.
O que resulta da situação concreta dos autos é que estamos, não perante um risco inerente à situação em si, mas tão só perante o risco generalizado da circulação de uma máquina a motor como é o veículo automóvel.
Já no que respeita à conduta do lesado, entendemos que o tribunal a quo não retirou da mesma todas as consequências em termos de culpa.
O que se sabe é que os dois agentes estavam no local, não em fiscalização de trânsito, mas sim em serviço por um anterior caso de contra-ordenação. Pretendiam apurar a exacta localização de um marco para identificar melhor o local da infracção de outro processo[10].
E foi quando o lesado E………. procurava o dito marco hectométrico, que ocorreram os factos.
Não resulta dos autos como é que qualquer dos dois agentes se apercebeu que o condutor do veículo de matrícula ..-..-BG não fazia uso do cinto de segurança, como é que eles comunicaram entre si a revelar esse facto, pois estavam a alguma distância um do outro, o certo é que o tribunal a quo dá como assente que “ o agente E………. …ao aperceber-se que o colega F………., que se encontrava a 20/30 metros atrás de si, atento o sentido de marcha Lixa/Amarante, tinha feito sinal de paragem à viatura de matrícula ..-..-BG, que circulava no sentido Lixa/Amarante, cujo condutor não fazia uso do cinto de segurança, fez-lhe sinal de paragem.
Ao volante deste veículo circulava o arguido…e foi embater no agente E………. no início da curva para a direita da via, atento o sentido de marcha Lixa/Amarante, colhendo-o na hemifaixa de rodagem direita da via, atento o seu sentido de marcha, já próximo da linha divisória dos sentidos de trânsito da faixa de rodagem…”.
Ou seja, a uma distância de cerca de 20/30 metros, o agente E………., com o intuito de mandar e fazer parar o veículo de matrícula ..-..-BG, coloca-se à frente do mesmo!
Independentemente de ter feito ou não sinal de paragem ao condutor do veículo, não faz sentido que o agente se atravesse à frente do mesmo, a uma tão curta distância. Foi este facto que determinou que o agente tivesse sido colhido na hemifaixa de rodagem direita da via, atento o seu sentido de marcha, já próximo da linha divisória dos sentidos de trânsito da faixa de rodagem.
O risco para a circulação deste veículo foi deliberadamente criado pela vítima que, conscientemente, se colocou à sua frente, a uma curta distância, de um modo inesperado e imprevisível. Imprevisibilidade que foi criada pelo próprio lesado. E não se trata de um lesado qualquer. Trata-se de um agente da GNR, com experiência na circulação dos veículos, do perigo e risco que estes representam para a circulação de um modo geral e abstracto e que tem o dever de prever como causa necessária e directa da sua conduta, o seu atropelamento.
Diferente seria se porventura o agente, no dito exercício das suas funções, quando procurava o marco hectométrico, tivesse sido colhido junto à berma da estrada! Ou se um peão fosse colhido se circulasse a pé junto à berma. Situações em que se compreende admissível integrá-las no denominado risco de circulação próprio do veículo.
O tribunal a quo decidiu que “…a matéria apurada evidencia claramente que o agente E………. agiu ilícita e negligentemente, ao posicionar-se em frente do veículo tripulado pelo demandado B………., numa zona entre curvas, quando este último veículo seguia em movimento a uma distância de si entre 20 a 30 metros.
Assim, é inquestionável que o próprio lesado contribuiu com culpa para o eclodir do acidente em apreço”.
Ora, o tribunal a quo apenas não deu o passo seguinte que é o de concluir que o acidente em causa se deveu a culpa exclusiva do lesado, o agente E………. .
Para além da conduta deste, não se vislumbra nos autos qualquer facto adicional que possa ter contribuído, a qualquer título, para a produção do acidente. A conduta do lesado foi aqui determinante e única para que o acidente tivesse ocorrido. Claro que a circulação do veículo foi imprescindível para a dita ocorrência. Pode até dizer-se que é idónea a produzir os danos que produziu. Mas não o foi, no caso concreto, como causa agravada de risco. Se o agente se tivesse atirado de um prédio de vários andares, de certeza que ia sofrer os mesmos ou mesmo maiores danos, consoante o número do piso escolhido.
E outros exemplos se poderiam dar, no sentido de realçar que não foi o risco concreto representado pelo veículo que esteve na origem deste acidente mas tão só a conduta do agente, podendo chegar-se a danos equivalentes se a sua conduta tivesse ocorrido com outro bem, ainda que, na prática, não represente o perigo ou risco que representa uma viatura em circulação.
8.
Assim se conclui que, pese embora a interpretação actualista feita no acórdão recorrido à luz do aresto do Supremo Tribunal de Justiça de 4.10.2007 e da posição que se deixou expressa sobre esta matéria, in casu, não faz sentido imputar ao recorrente qualquer responsabilidade a título de risco, pois o acidente deve-se a culpa exclusiva do lesado.
9. Apesar de o recurso ter sido apresentado apenas pelo Fundo de Garantia Automóvel, uma vez que este e o arguido ou demando B………. foram condenados solidariamente no pedido, ao abrigo do artigo 402º, nº 2, alínea c), do CPP, o resultado do recurso aproveitará também a este.

IV
Decisão
Por todo o exposto, decide-se:
1. Conceder provimento ao recurso do recorrente/Fundo de Garantia Automóvel e, consequentemente, absolve-se o mesmo do pedido em que foi condenado.
2. O resultado deste recurso aproveitará também ao demando B………. .

Sem custas.

Porto, 04.03.2009
Luís Augusto Teixeira
José Alberto Vaz Carreto

___________________
[1] Proferido no processo nº 07B1710, consultável em www.dgsi.pt.jstj.
[2] Diz este artigo, o seguinte:
“Aquele que tiver a direcção efectiva de qualquer veículo de circulação terrestre e o utilizar no seu próprio interesse, ainda que por intermédio de comissário, responde pelos danos provenientes dos riscos próprios do veículo, mesmo que este não se encontre em circulação”.
[3] O ac. de 4.10.2007, teve dois votos de vencido.
Por sua vez, por acórdão de 21.1.2009, do Supremo Tribunal de Justiça, proferido no processo 08B3404, é reafirmada aquela posição, sendo relator o mesmo Conselheiro, Santos Bernardino, mas tendo igualmente um voto de vencido.
[4] Posição também adoptada no ac. do mesmo tribunal de 2.7.2008, processo nº 08P2156, in www.dgsi.pt.jstj, sendo Relator o Conselheiro Santos Cabral.
[5] Apesar de ainda extenso, entende-se que é de aqui reproduzir, no essencial, o teor do acórdão, pois só assim se possibilita um melhor conhecimento das posições em confronto, das interrogações colocadas e caminho possível ou desejável a seguir.
[6] Brandão Proença sustenta, para além do mais, o seguinte:
- Que “ a sintonização do disposto no artigo 505.º com a redacção dada às normas equivalentes dos outros sectores específicos da responsabilidade pelo risco implica a subjectivização da conduta do lesado (binómio imputabilidade/culpa), afastando a sua pura configuração causal”
- Que se justifica um sistema de reparação automática para danos corporais no caso de sinistros com crianças de menos de 10 anos de idade.
- Que “ só a culpa grave do lesado, tida por causa única do acidente, deve constituir causa exoneratória no círculo dos danos corporais (transportado sem cinto de segurança, que conheça a embriaguez do seu transportador, que suba ou desça do comboio em andamento, do peão que prescinda da passadeira/passagem aérea para atravessar noutro local e em via de tráfego intenso). Evita-se, assim, que os pequenos descuidos, as desatenções ou os comportamentos reflexos funcionem a favor das seguradoras e que a culpa leve dos vigilantes seja considerada como facto de terceiro”.
[7] Nas situações em que não se pode apurar ou imputar a produção do acidente a culpa única e exclusiva do lesado.
[8] Deixando, para já, de fora, aquelas situações em que se considera a responsabilidade pelo risco como sempre inerente à própria circulação dos veículos, que estará sempre presente, que será sempre de relevar para efeitos de indemnização, abstraindo da conduta do lesado, em que “o acidente em si representará uma concretização já com esse “pano de fundo””.
[9] Nomeadamente a sua inexperiência como condutor.
[10] Refere-se na decisão recorrida: “…os quais referiram, unanimemente, que, em Novembro de 2003, se encontravam na EN.., em ……., devidamente fardados, quando um automobilista praticou uma contra-ordenação.
Porém, a fim de levantarem o respectivo auto e porque necessitassem de saber o quilómetro em que se tinha verificado aquela contra-ordenação, decidiram procurar o marco hectométrico localizado nas imediações do local onde aquela ocorrera, tendo para o efeito montado nos respectivos motociclos, dirigiram-se na EN .., no sentido Lixa/Amarante, contornaram uma rotunda sita após o local onde se veio a verificar o acidente e fizeram o percurso inverso, acabando por estacionar os respectivos motociclos junto do entroncamento que dá acesso a ………., localizado à sua direita, atento o sentido de marcha Amarante/Lixa.
Após, apearam-se de tais motociclos, tendo a testemunha E……… atravessado a EN .., em cuja berma direita, atento o sentido de marcha Amarante/Lixa, andou à procura do dito marco hectométrico, tendo realizado esta operação com o capacete na cabeça colocado”.