Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRP000 | ||
Relator: | JOSÉ IGREJA MATOS | ||
Descritores: | FIANÇA OBRIGAÇÃO FUTURA NULIDADE DA FIANÇA | ||
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Nº do Documento: | RP2017031424453/15.3T8PRT-A.P1 | ||
Data do Acordão: | 03/14/2017 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | CONFIRMADA | ||
Indicações Eventuais: | 2ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º757, FLS.118-121) | ||
Área Temática: | . | ||
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Sumário: | I - A fiança destina-se, nos termos do nº1 do artigo 627º Código Civil, a garantir a satisfação do direito de crédito, ficando o fiador pessoalmente obrigado perante o credor mesmo que a obrigação possa ser futura ou condicional. II - Por força da responsabilidade imposta por tal garantia, exige-se que a fiança seja sempre determinável na medida em que o fiador tem direito a saber quais os contornos exactos da sua obrigação e do compromisso que assume. III - Estando em causa numa fiança a garantia de obrigações futuras, a mesma só será válida se for possível, em cada momento, determinar o seu objecto o que terá de ser feito em concreto a partir do que do contrato consta e do que, em função do mesmo, é reclamado ao fiador. | ||
Reclamações: | |||
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Decisão Texto Integral: | Acordam no Tribunal da Relação do Porto Processo 24453/15.3T8PRT-A.P1 Recorrente(s): B… e C…; Recorrido(s): D…, Lda. Tribunal Judicial da Comarca do Porto - Juízo Central Cível de Vila Nova de Gaia I – Relatório A decisão em causa nos autos incidiu sobre uma invocada nulidade da fiança em causa nos autos e que foi invocada pelo ora recorrentes na sua contestação.Nos termos do douto despacho em crise constante de fls., 46 e 47 dos presentes autos julgou-se improcedente a deduzida excepção de nulidade da fiança. No essencial, tal improcedência baseou-se no que segue: No contrato os recorrentes assumiram a qualidade de fiadores escrevendo-se na cláusula 1º do contrato que “ o fiador garante, pessoal, solidária e ilimitadamente à D…, como principal pagador, o cumprimento integral de todas as obrigações e responsabilidades do cessionária, emergentes do contrato de cessão de exploração do estabelecimento comercial que esta acaba de celebrar com a D…, pelo prazo contratual estabelecido e suas prorrogações” Mais se exarou (cláusula 3.ª) que: “ a fiança não se extingue ainda que a situação patrimonial da devedora se agrave em termos de pôr em risco eventuais direitos dos fiadores contra aquela e subsistirá durante todas as prorrogações do contrato mencionado na cláusula primeira” Na presente situação a Autora cede a exploração dum posto de abastecimento de combustíveis à 1ª Ré fornecendo – lhe á consignação combustível que depois factura á 1ª Ré que assim tem de o pagar. O contrato relativo ao posto de abastecimento do Olival tem a data de 01.02.2008 e o de …, ambos em Vila Nova de Gaia, data de 04.08.2011, ambos em renovação automática e sucessivas por períodos de um ano. Nos dois contratos consta que os ora Réus B… e C… são gerentes da 1ª Ré. Segundo a decisão apelada, o que se exige no art. 280º, nº 1 do C.C. é que a obrigação seja determinável; no caso concreto, os fiadores podem determinar o âmbito concreto da sua obrigação, pois está em causa o contrato que foi celebrado com a Autora onde se descreve que o seu objecto é o fornecimento de produtos combustíveis, com indicação dos descontos que incidem sobre os mesmos pelo que, ao adquirir produto, fica determinado o valor da dívida. A questão de os preços poderem flutuar não retira a possibilidade de determinação. Por fim, os fiadores são gerentes da 1ª Ré, empresa que acordou contratar o fornecimento dos combustíveis pelo que, existindo essa ligação directa com a gestão da empresa, podem saber quais as dividas da 1ª Ré, assim determinando a amplitude da obrigação enquanto fiadores. Deste modo, conclui-se que, por força destas três circunstâncias, as fianças em causa são determináveis e por isso não sofrem do vício de indeterminabilidade à luz das cláusulas transcritas e do seu respectivo teor. * Os Réus não se conformaram com o decidido e deduziram o presente recurso apresentando as seguintes conclusões:1ª Nos contratos de cessão de exploração, as fianças prestadas não se encontram determinadas nos elementos essenciais, quer quanto ao valor quer quanto ao prazo. 2ª A recorrente C… não é nem nunca foi gerente da Ré E…, nem exerce, nem nunca exerceu, de facto ou de direito, as funções de gerente. 3ª A referência à qualidade de gerente, constante nos contratos, não comprova tal qualidade. 4ª Nos contratos, juntos aos autos, consta erradamente a qualidade de gerente da recorrente, C…. 5ª No art. 12º da contestação, vem alegado que a recorrente C… assinou o contrato de exploração na qualidade de sócia. 6ª Em 14º da contestação vem impugnado o contrato de exploração, impugnação essa que se estende à referência de qualidade de gerente da recorrente C…. 7ª O reconhecimento das assinaturas da recorrente C… é efectuado na qualidade individual e ainda como sócia. 8ª Em nenhum dos reconhecimentos efectuados resulta a assinatura da recorrente C…, na qualidade de gerente da Ré, E…. 9ª O registo comercial constitui presunção legal relativa (júris tantum) da existência da situação jurídica nos termos em que a inscrição a define “ex vi” do artigo 11º do CRC. 10ª À presunção legal é aplicável o regime do nº 1 do artigo 350º do C.C., sendo que a parte que dela beneficia está isenta de provar o facto presumido, cumprindo á parte contrária o ónus de demonstrar que o facto afirmado/conhecido não basta para produzir o efeito que a lei lhe atribui assim ilidindo aquela ficção probatória. 11ª O douto despacho em crise vem suportado num pressuposto – a qualidade de gerente da recorrente C… – que não se encontra comprovado e não se verifica. 12ª No contexto dos articulados, justificar-se-ia, na gestão inicial do processo, os procedimentos destinados ao aperfeiçoamento dos articulados e ordenado a junção de documentos com vista a permitir a apreciação de excepções dilatórias ou do conhecimento, no todo ou em parte, do mérito da causa no despacho saneador (C. P. Civil, art. 590, nº 2, alíneas b) e c) ) dada a relevância da qualidade da recorrente C… na Ré E…, para os efeitos da fiança. 13º O âmbito da fiança não se encontra determinado nem é determinável. 14º Não estão alegados nem provados factos que definam os critérios da determinabilidade, nomeadamente e, em concreto que: i) a recorrente C… dispusesse de meios que lhe permitisse conhecer, aquando da fiança e até posteriormente a dimensão das obrigações assumidas no âmbito da fiança, ii) que tivesse especial conhecimento das relações e operações comerciais afiançadas, iii) que fosse detentora de elementos que lhe permitissem saber até onde iriam as suas responsabilidades, iv) que tivesse uma especial relação com a afiançada que lhe permitisse dominar o estado da dívida, v) que estivesse em posição de conhecer a relação da qual nasceu a obrigação jurídica em questão, como também, estivesse em condições de controlar os efeitos daí produzidos, vi) que estivesse em condições de por termo aos contratos e suas renovações, por qualquer forma admitida em direito, uma vez que a sua posição minoritária no capital social da afiançada e ausência de funções executivas nesta, não lhe conferiam tal faculdade. 15ª Encontram-se verificados critérios de indeterminabilidade, tais como: i) Garantia ilimitada, quer quanto ao valor quer quanto ao prazo, ii) a não extinção da fiança, ainda que a situação patrimonial da devedora se agrave em termos de pôr em risco eventuais direitos dos fiadores contra aquela e subsistirá durante todas as prorrogações do contrato mencionado na cláusula primeira, iii) a exclusividade de venda pela afiançada de lubrificantes e combustíveis líquidos fornecidos pela beneficiária da fiança, iv) o respeito do preço de venda ao público fixados pela beneficiária da fiança, v) as constantes oscilações dos preços dos combustíveis, extremamente influenciadas por razões politicas, económicas e fiscais, conhecidas sob o efeito de surpresa. Terminam os apelantes peticionando que o recurso mereça inteiro provimento e, em consequência seja declarada a nulidade das fianças prestadas por indeterminabilidade. Foram produzidas contra-alegações pela apelada ré onde termina requerendo a confirmação da decisão proferida. II – Factos Provados Os factos apurados são os que constam do relatório que antecede.III – Delimitação do objecto do recurso; questões a apreciar. O objecto do recurso é delimitado, no essencial, pelas conclusões das alegações dos recorrentes. Assim, temos em causa nos autos, essencialmente, a questão de apurar da alegada nulidade da fiança em causa nos autos. IV -Fundamentação de direito. Os recorrentes entendem que, nos contratos de cessão de exploração em apreço nos autos, as fianças prestadas não se encontram determinadas nos elementos essenciais, quer quanto ao valor quer quanto ao prazo. Alegam ainda que a apelante C…, embora sócia da ré E… Lda. nunca foi, nem é gerente da mesma.Num breve enquadramento legal temos que a fiança é uma forma de garantia especial das obrigações, por via da qual, nos termos do nº1 do artigo 627º CC, “o fiador garante a satisfação do direito de crédito, ficando pessoalmente obrigado perante o credor”, embora, nos termos do nº2 do mesmo artigo, “a obrigação do fiador é acessória da que recai sobre o principal devedor” e, de acordo com o nº2 do artigo 628º, “não obsta o facto de a obrigação ser futura ou condicional”. Em termos conceptuais, é crucial que uma fiança seja determinável na medida em que o fiador tem direito a saber quais os parâmetros da sua obrigação e do compromisso que vai assumir. Quanto aos requisitos de validade, impõe a norma do artigo 280º do CC, no nº1, que “é nulo o negócio jurídico cujo objecto seja física e legalmente impossível, contrário à lei ou indeterminável” e, no nº2, que “é nulo o negócio contrário à ordem pública, ou ofensivo dos bons costumes”. Ainda no que diz respeito à determinabilidade do objecto do negócio, o artigo 400º do mesmo código, estabelece, no seu nº1, que “a determinação da prestação pode ser confiada a uma outra pessoa das partes ou a terceiro; em qualquer dos casos deve ser feita segundo juízos de equidade, se outros critérios não tiverem sido estipulados” e, no seu nº2, que “se a determinação não puder ser feita ou não tiver sido feita no tempo devido, sê-lo-á pelo tribunal, sem prejuízo do disposto acerca das obrigações genéricas e alternativas”. Assim, por força do artigo 280º, é nulo o negócio jurídico cujo objecto seja indeterminável; mas é válido o negócio jurídico com objecto indeterminado, que seja determinável com recurso à forma prevista no artigo 400º do CC (cfr. A. Varela “Das Obrigações em Geral”, 5ª ed., vol. I, página 762). Em termos jurisprudenciais, foi proferido, em 23/01/2001, o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência nº4/2001 que veio decidir, relativamente à fiança, que “é nula, por indeterminabilidade do seu objecto, a fiança de obrigações futuras, quando o fiador se constitua garante de todas as responsabilidades provenientes de qualquer operação em direito consentida, sem menção expressa da sua origem ou natureza e independentemente da qualidade em que o afiançado intervenha”. A presente fiança diz-se “omnibus” na medida em que visa garantir as obrigações provenientes de determinado tipo de relações jurídicas (cfr. Calvão da Silva, “Estudos de Direito Comercial”, página 332). Nos autos, obviamente, estão em causa obrigações futuras pelo que, conforme indicamos acima, nomeadamente por força do acórdão 4/2001, este tipo de fianças só serão válidas se existirem elementos que permitam determinar o seu objecto o que terá de ser feito em concreto a partir do que do contrato consta. Donde, tendo em conta o caso dos autos, anotemos o texto do contrato, na parte em que os ora recorrentes declararam prestar a fiança, e que é o seguinte: “o fiador garante, pessoal, solidária e ilimitadamente à D… como principal pagador o cumprimento integral de todas as obrigações e responsabilidades do cessionário, emergentes do contrato de cessão de exploração do estabelecimento comercial que esta acaba de celebrar com a D… pelo prazo contratual estabelecido e suas prorrogações.” Deste modo, a fiança tem como objecto o contrato de cessão de exploração do estabelecimento comercial que a 1ª Ré “E…, Lda.” celebrou com a D… o qual está perfeitamente determinado; ninguém o nega. Na petição inicial o que a D… reclama são combustíveis fornecidos à E…, Lda. cujo pagamento do preço respectivo se encontra alegadamente por ser prestado. Sendo assim, o objecto da acção respeita a dívidas decorrentes do contrato de cessão de exploração sendo que tais obrigações pecuniárias, plasmadas nas facturas juntas aos autos e que totalizam o montante de €48.382,91, encontram-se devidamente identificadas e delimitadas. Por fim, os fiadores são justamente sócios dessa 1ª Ré, empresa que acordou contratar o fornecimento dos combustíveis, pelo que, existindo essa ligação directa com a gestão da empresa, sempre poderiam saber quais as dividas da 1ª Ré, assim determinando a amplitude da obrigação enquanto fiadores, como se afirma na douta sentença. De qualquer modo, no caso atinente aos presentes autos nem sequer existirá essa indagação na medida em que as obrigações reclamadas dizem respeito a concretos e específicos fornecimentos de combustível cujas quantidades, montantes e datas concernentes são definidos nas facturas emitidas pela apelada. Finalmente, como se aventa nas contra-alegações, não se vislumbra que o facto de a ré C… poder não ser gerente da 1ª ré tenha repercussão nas suas obrigações enquanto fiadora; na verdade, a mesma é indubitavelmente sócia da empresa em causa e, por outro lado, ainda que o não fosse, a sua prestação (fiança) obedeceu aos requisitos legais para a respectiva constituição e dela não se exoneraria por eventualmente não gerir a sociedade afiançada. Assim, em síntese conclusiva, apresentando-se como válida a fiança em termos contratuais e na parte que releva para os presentes autos e que diz respeito ao montante nestes peticionado correspondente a combustível alegadamente não pago à autora, improcede o recurso deduzido, devendo manter-se a decisão interlocutória recorrida. * Resta proceder à sumariação do presente acórdão nos termos do artigo 663º, nº7 do CPC:I) A fiança destina-se, nos termos do nº1 do artigo 627º Código Civil, a garantir a satisfação do direito de crédito, ficando o fiador pessoalmente obrigado perante o credor mesmo que a obrigação possa ser futura ou condicional. II) Por força da responsabilidade imposta por tal garantia, exige-se que a fiança seja sempre determinável na medida em que o fiador tem direito a saber quais os contornos exactos da sua obrigação e do compromisso que assume. III) Estando em causa numa fiança a garantia de obrigações futuras, a mesma só será válida se for possível, em cada momento, determinar o seu objecto o que terá de ser feito em concreto a partir do que do contrato consta e do que, em função do mesmo, é reclamado ao fiador. V – Decisão Pelo exposto, decide-se julgar totalmente improcedente o recurso formulado, confirmando-se a decisão apelada.Custas pelos apelantes. Porto, 14 de Março de 2017 José Igreja Matos Rui Moreira Fernando Samões |