Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRP00040054 | ||
Relator: | PAULA LEAL DE CARVALHO | ||
Descritores: | ACIDENTE DE TRABALHO DESCARACTERIZAÇÃO DE ACIDENTE CULPA EXCLUSIVA | ||
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Nº do Documento: | RP200702120646273 | ||
Data do Acordão: | 02/12/2007 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO. | ||
Decisão: | NEGADO PROVIMENTO. | ||
Indicações Eventuais: | LIVRO 41 - FLS. 86. | ||
Área Temática: | . | ||
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Sumário: | Para que se verifique a exclusão da responsabilidade emergente de acidente de trabalho é necessária a prova de que ocorreu um acto ou omissão temerários em alto e relevante grau por parte do sinistrado, injustificada pela habitualidade ao perigo do trabalho executado, pela confiança na experiência profissional ou pelos usos e costumes da profissão e, além disso, que o acidente tenha resultado exclusivamente desse comportamento. | ||
Reclamações: | |||
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Decisão Texto Integral: | Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação do Porto: I. Relatório: B…………….. e C………….., patrocinados pelo Ministério Público, intentaram a presente acção declarativa de condenação, com processo especial emergente de acidente de trabalho, contra Companhia D…………., SA e E………….., Ldª pedindo a condenação das RR, ou de qualquer uma delas, a pagarem-lhes: (a) a cada um dos AA., a pensão anual e vitalícia de 171.780$00, com início em 27.01.00, obrigatoriamente remível; (b) a quantia de 510.400$00 a título de despesas de funeral; (c) a quantia de 5.400$00 de despesas de transporte; (d) os juros de ora à taxa legal sobre as quantias pedidas. Para tanto, alegam m síntese que: no dia 26.01.00 seu filho F………… foi vítima de um acidente, que descrevem, quando trabalhava para a 2ª ré, tendo em consequência do memo sofrido lesões que lhe causaram a morte. * A Ré seguradora contestou alegando que o acidente se ficou a dever a negligência grosseira do sinistrado e à falta de condições de segurança por parte da Ré entidade patronal, concluindo pela improcedência da acção ou, quando assim se não entenda, pela sua condenação apenas em via subsidiária. A Ré entidade patronal contestou alegando, em suma, que não violou qualquer regra de segurança, sendo que a Ré Seguradora é a única responsável pela reparação do acidente por força do contrato de seguro que com ela celebrou. * Proferido despacho saneador, foi elaborada especificação e questionário. * Procedeu-se a julgamento, com gravação da prova, respondeu-se à matéria do questionário e foi proferida sentença que condenou: (a) a ré, entidade patronal, a pagar aos AA. a pensão global, anual e vitalícia, de €5.604,28, com início em 27.01.00, a ratear entre os dois beneficiários legais, cabendo assim a cada um deles a quantia de €2.802,14, acrescida de subsídio de férias e subsídio de natal, no valor de 1/14 cada; (b) A Ré Seguradora, subsidiariamente, a pagar a cada um dos AA. a pensão de €560,43; (c) A Ré entidade patronal e, subsidiariamente, a Ré Seguradora, a pagarem aos AA. a quantia de €2.545,86 de despesas de funeral, €26,94 de despesas de transporte e os juros sobre as quantias em dívida, á taxa legal. * A Seguradora veio arguir a nulidade de tal sentença e interpor recurso, na sequência do que, esta Relação, por Acórdão de 07.07.05 (cfr. fls. 492 e segs. dos autos), decidiu anular o julgamento e actos posteriores, incluindo a sentença, mais ordenando ao tribunal a quo que formulasse quesitos adicionais nos termos nela sugeridos, procedesse a julgamento quanto a essa matéria e, a final, proferisse sentença, sem prejuízo de poder alargar o julgamento a outros artigos da base instrutória, e tão somente para evitar contradições. * Após baixa dos autos à 1ª instância e em cumprimento do ordenado no mencionado Acórdão, foram aditados à base instrutória os quesitos mencionados no despacho de fl. 506, tendo-se ainda determinado a exclusão da al. O) da matéria de facto assente dos factos referidos no sobredito acórdão, bem como do anterior quesito 7º . Procedeu-se à audiência de discussão e julgamento, respondeu-se à matéria aditada à base instrutória, que não foi objecto de reclamações e proferiu-se sentença que condenou: I – A co-R. E………., LDª a pagar aos AA.: a pensão global, anual e vitalícia de € 5 712,10, com em início em 27 de Janeiro de 2000, a ratear entre os 2 beneficiários legais, cabendo, assim, a cada um deles a quantia de € 2.856,05, acrescida de subsídio de férias e subsídio de Natal, no valor de 1/14 cada, pensão essa que foi actualizada até 01.12.05, inclusive; II –A co-R. D………., subsidiariamente, a pagar a cada um deles a pensão de € 565,97; III - A co-R. empregadora e, subsidiariamente, a co- R. Seguradora a pagarem aos AA.: € 2.545,86 de despesas de funeral; € 26, 94, a título de despesas com transportes e juros sobre todas as quantias em dívida, à taxa legal. * Inconformadas, vieram as RR. apelar da referida sentença, pretendendo a revogação da decisão recorrida e alegando nas respectivas conclusões que: I - A Ré Entidade Patronal: «PRIMEIRA É manifesto que a decisão recorrida faz uma errada apreciação da matéria de facto e consequente interpretação das normas aplicadas. Com efeito, não obstante a invocada falta de condições de segurança, tal não é suficiente para afastar a culpa exclusiva do sinistrado na produção do acidente. SEGUNDA Na verdade, atendendo aos factos dados como provados, nomeadamente nos pontos 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 16 e 17 e aos depoimentos prestados pela 1ª e 2ª, há que concluir, e deveria ter ficado como provado, que o sinistrado teve um comportamento censurável, indesculpável, temerário e inútil, exclusivamente imputável a este, que resultou no referido acidente. TERCEIRA Ou seja, não foi o facto de a pinha dentada e a corrente da cremalheira não terem protecção que originou o acidente dos autos, mas antes o comportamento indesculpável do sinistrado. O que denota uma negligência grosseira por parte deste. Negligência esta que tem de ser apreciada não à luz da falta de condições de segurança mas em relação ao comportamento adoptado pelo sinistrado, que agiu com total menosprezo pela falta de condições de segurança e total desrespeito por toda a experiência profissional adquirida. QUARTA De acordo com o disposto no artigo 7º, alínea b), da Lei n.º 100/97, não há direito a reparação quando o acidente provier exclusivamente de negligência grosseira do sinistrado. QUINTA Por tudo isto, é manifesto que a sentença recorrida violou o disposto nos artigos 7º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 100/97, na medida em que faz uma errada interpretação e aplicação desta norma, devido a uma errada apreciação da matéria de facto.». II – A Ré Seguradora: A. - A questão que se coloca à apreciação deste Venerando Tribunal é a de saber se o acidente ocorreu por negligência grosseira do sinistrado, situação integradora de descaracterização do acidente - cfr. art.7, n.º1, al. b), da Lei n.º100/97, de 13 de Setembro. B. - Relativamente a esta hipótese, descaracterização do acidente, na vertente supra referida, é indúbio que o comportamento do sinistrado integra inequivocamente o conceito de negligência grosseira, constante da citada disposição legal, porquanto o assumiu, voluntária, conscientemente e sem qualquer justificação, um comportamento temerário, desafiando o perigo sem que nenhuma razão existisse para tanto, não havendo, por isso, lugar a reparação. C. - O sinistrado conhecia perfeitamente o estado da máquina onde ocorreu o acidente, e por conseguinte, a inexistência de qualquer dispositivo de protecção da pinha dentada e da corrente da cremalheira e, ainda assim, de forma voluntária e sem qualquer causa justificativa, decidiu debruçar-se e estender-se sobre a mesa da máquina para apanhar a fita métrica que estava, precisamente, em cima da corrente da cremalheira, quase no lado, oposto ao seu, originando assim que a pinha dentada lhe apanhasse a roupa, arrastando-o para a morte. D. - Assim, o sinistrado, não obstante ter perfeito conhecimento da falta de condições de segurança da máquina, designadamente no que concerne à inexistência de qualquer dispositivo de segurança de protecção dos seus elementos mecânicos, repudiou por completo tal situação e, consequentemente, adoptou o comportamento que conduziu ao acidente. E. - Deste modo, no caso dos autos, a negligência grosseira do sinistrado reporta-se ao acto de agir com total menosprezo pela evidente falta de condições de segurança, facto que era do seu perfeito conhecimento. F. - A jurisprudência e doutrina dominantes consideram que a “negligência grosseira” se deverá traduzir num comportamento demonstrativo do incumprimento da elementar diligência usada pela generalidade das pessoas, segundo um padrão objectivo, fornecido pelo procedimento habitual de um homem de sensatez média, muito embora não possa desligar-se esse plano abstracto da avaliação casuística do comportamento do sinistrado, de acordo com as circunstâncias do caso concreto - neste sentido Ac. do S.T.J., de 12.05.89, in B.M.J., n.º387, pág.400. G. - Tal equivale a dizer que se exige um comportamento temerário, audacioso, em que a vitima tenha conhecimento e consciência dos riscos, e, além disso, seja indiferente aos mesmos, ou os desafie, ou seja, é necessário que estejamos, pelo menos, perante uma situação de negligência consciente do sinistrado. H. - Quanto à temeridade do comportamento do sinistrado, entende a Recorrente que a matéria apurada não deixa qualquer margem para outra qualquer resposta que não seja afirmativa, pois, sendo o sinistrado trabalhador experiente, tinha necessariamente conhecimento que o mais leve contacto do corpo ou da roupa com a pinha dentada em movimento, acarretaria o risco de ser apanhado e arrastado para a serra. I. - Não obstante, o sinistrado, por qualquer razão só de si conhecida, para apanhar a fita métrica (que se encontrava em cima da corrente da cremalheira, quase no lado oposto do local onde se encontrava), optou por se debruçar sobre a mesa da serra, ou seja, próximo da pinha dentada e da corrente da cremalheira - que se achavam injustificadamente em movimento -, em vez de contornar a máquina, como impunha a mais elementar prudência J. - Que o comportamento foi igualmente desnecessário e inútil, também não sobejam quaisquer dúvidas, salientando-se que os termos útil e necessário não são usados, nesta sede, com referência ao resultado que adviria do comportamento que o sinistrado realizava e do possível benefício para a entidade patronal, mas, ao invés, reportam-se ao acto de agir de determinada forma, no sentido da necessidade de tal comportamento. L. - Na verdade, verifica-se que não existia - nem sequer foi alegado, como era ónus do A. - qualquer razão válida ou facto justificativo para que o sinistrado adoptasse aquele comportamento, em vez de contornar a máquina. M. - Por último, a exclusividade do comportamento do sinistrado como causa do acidente resulta do facto de que o sinistro jamais se teria verificado se o falecido, para apanhar a fita métrica, simplesmente contornasse a máquina, já que toda e qualquer tentativa de o fazer debruçado sobre a mesa da serra equivaleria a criar uma situação de enorme, real e iminente risco, como, infelizmente, se veio a verificar. N. - Assim, impõe-se, sem sombra de dúvidas, a conclusão de que o comportamento do sinistrado integra o conceito de negligência grosseira, porquanto assumiu, voluntária, conscientemente e sem qualquer justificação, um comportamento temerário, desafiando o perigo sem que nenhuma razão existisse para tanto, o que é conducente à descaracterização do acidente, enquanto sinistro laboral, nos termos do supra citado art.7º, n.º1, als. a) e b) da Lei n.º100/97, não dando, por isso, lugar a reparação. O. - Ao assim não ter considerado, a sentença em crise fez, neste particular, uma errónea interpretação do condicionalismo fáctico subjacente ao acidente dos autos e, por isso, realizou uma deficiente interpretação e aplicação do direito impendente, designadamente, art.7º, n.º1, als. a) e b) da Lei n.º100/97 - que violou -, devendo por isso ser revogada e substituída por outra que, interpretando e aplicando devidamente a mencionada disposição legal, absolva a Recorrente do pedido. * O Recorrido contra-alegou, terminando no sentido da confirmação da sentença recorrida. * Colhidos os vistos legais, cumpre decidir. * II. Matéria de facto provada na 1ª instância: 1- oS AA. B………….. e C…………., nascidos em 17/01/1939 e 04/05/1941, respectivamente, são pais do sinistrado F…………. – cfr. documentos de fls. 72, 73 e 66, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido ( al. A) da matéria de facto assente ). 2- No dia 26 de Janeiro de 2000, pelas 11 horas, quando trabalhava, com a categoria de indiferenciado, por conta, sob as ordens, direcção e fiscalização da co-R E…………, Ldª, o sinistrado foi vítima de um acidente ( al. B) da matéria de facto assente ). 3- Apesar de ser um trabalhador indiferenciado, o sinistrado trabalhava habitualmente com uma serra mecânica desdobradora, desempenhando essas funções com competência e conhecimentos técnicos ( al. C) da matéria de facto assente ). 4- Essa serra tem mais de 20 anos (resposta ao quesito 6º ). 5- Aquando do acidente, o sinistrado tinha procedido ao ajustamento e preparação da serra desdobradora para iniciar um trabalho de serragem de madeira (al. D) da matéria de facto assente). 6- O sinistrado foi com o seu colega de trabalho, G…………., preparar, no chão, umas peças de madeira para uma paleta, que se encontrava a cerca de cinco metros da serra que estava em movimento ( al. E) da matéria de facto assente ) . 7- A certa altura, o sinistrado precisou de medir as peças de madeira e dirigiu-se até junto da serra para apanhar a fita métrica que se encontrava em cima da corrente de cremalheira, quase no lado oposto da mesa da serra ( al. F) da matéria de facto assente ) . 8- Por que a mesa da serra tem cerca de 1, 20 m de largura ( profundidade) e 0,92m de altura, sendo o sinistrado de estatura baixa, teve necessidade de se debruçar sobre a mesa para alcançar a fita métrica ( al. G) da matéria de facto assente ) . 9- Foi nessa ocasião que a pinha dentada, no seu movimento circular, apanhou e enrolou a roupa do sinistrado, puxando-o em direcção à serra (al. H) da matéria de facto assente) . 10- Em consequência do acidente, o sinistrado sofreu as lesões crânio-encefálicas e ao nível do tórax, examinadas e descritas no relatório de autópsia, que foram causa directa e necessária da sua morte, no dia 26 de Janeiro de 2000 – cfr. docs. De fl.s 184 a 186 e 71, cujo teor se dá por reproduzido (al. I) da matéria de facto assente) . 11- O sinistrado foi autopsiado no Gabinete Médico Legal de Guimarães e foi sepultado no cemitério de Arco de Baúlhe, concelho de Cabeceiras de Basto (al. J) da matéria de facto assente). 12- À data do acidente, o sinistrado auferia a retribuição de Esc. 63 800$00 por 14 meses, acrescida de 10 500$00 por 12 meses a título de subsídio de alimentação e de 10 500$00 por 12 meses a título de outros subsídios ( al. k) da matéria de facto assente ). 13- A Co- R. E……….., Ldª , tinha a sua responsabilidade por acidente de trabalho transferida para a co R. D…………, SA, por meio de acordo de seguro, titulado pela apólice nº 1060444, e pela retribuição de Esc. 63 800$00 por 14 meses, acrescida de 10 500$00 por 11 meses a título de subsídio de alimentação e de 10 500$00 por 12 meses a título de outros subsídios ( al. L da matéria de facto assente ) . 14- A serra desdobradora onde ocorreu o acidente referida nos nºs 3º, 4 e 5, não dispunha de qualquer dispositivo de protecção da pinha dentada e da corrente da cremalheira (al. M) da matéria de facto assente ). 15- Em consequência dos factos descritos no número anterior o sinistrado foi atingido pela máquina (resposta ao quesito 7º). 16- O sinistrado, não tendo a classificação profissional de “ serrador” era um trabalhador calmo, sensato, diligente e tinha os conhecimentos profissionais necessários para trabalhar com a serra, conhecendo bem os riscos de acidente que o trabalho com a serra envolvia ( al. N ) da matéria de facto assente ) . 17- O sinistrado acabou por optar por debruçar-se em cima da mesa da serra para apanhar a fita métrica, em vez de contornar a dita serra ( al. O da matéria de facto assente ). 18- O A. B……….., à data do acidente encontrava-se desempregado (resposta ao quesito 1º ). 19 -A A. C……….. ocupa-se das lides domésticas, não exercendo qualquer profissão remunerada ( resposta ao quesito 2 º ) . 20 -O sinistrado vivia em comunhão de mesa e habitação com os AA e contribuía em cada mês para o sustento do agregado familiar (resposta ao quesito 3º ) . 21- Nas deslocações obrigatórias a Tribunal, o A B………… despendeu a quantia de Esc. 3240 $00 e A C………… a quantia de Esc. 2160$00 ( resposta ao quesito 5º ) . 22- Frustrou-se a tentativa de conciliação – cfr. autos de fls. 88 a 89, cujo teor se dá por reproduzido ( al P. da matéria de facto assente ) . * Como é sabido, nos termos do disposto nos artºs 684º nº 3 e 690º nºs 1 e 3 do CPC, aplicáveis ex vi do disposto nos artºs 1º nº 2 al. a) e 87º do CPT, as conclusões formuladas pelo recorrente delimitam o objecto do recurso. E, daí, que uma das questões a apreciar se prenda com a alteração da matéria de facto. Com efeito, pretende a Recorrente Entidade Patronal que seja dado como provado que «o sinistrado teve um comportamento censurável, indesculpável, temerário e inútil, exclusivamente imputável a este, que resultou no referido acidente».. A alicerçar essa pretensão, alega a Recorrente que tal se concluiria dos pontos 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 16 e 17 e aos depoimentos prestados pela 1ª e 2ª testemunhas. Dispõe o artº 690º-A, nº 1, do CPC que, «Quando se impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) Quais os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b) Quais os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida.». No caso, a mencionada Recorrente não especifica qualquer ponto concreto da matéria de facto provada que considere incorrectamente julgado, sendo que, afinal e embora o refira em sede de alteração da matéria de facto, o que pretende é que se conclua que o acidente se ficou a dever, exclusivamente, a negligência grosseira do sinistrado. Por outro, o que a referida recorrente qualifica como facto(s) que, em seu entender, deveria(m) ser dado(s) como provado(s) - que o sinistrado teve um comportamento censurável, indesculpável, temerário e inútil, exclusivamente imputável a este, que resultou no referido acidente-, mais não é do que matéria exclusiva e puramente conclusiva, que, porventura, se retiraria de outra factualidade susceptível de integrar tais conceitos e que comporta ela, já, a solução jurídica a dar ao caso. Tal matéria não é, assim, matéria de facto passível de, como tal, ser dada como assente (cfr. artº 646º nº 4 do CPC). Deste modo, e nesta parte, improcedem as conclusões de recurso. * III. Do Direito: 1. Como já referido, nos termos do disposto nos artºs 684º nº 3 e 690º nºs 1 e 3 do CPC, aplicáveis ex vi do disposto nos artºs 1º nº 2 al. a) e 87º do CPT, as conclusões formuladas pelo recorrente delimitam o objecto do recurso. E, daí, que a única questão a apreciar em ambos os recursos se prenda com a da descaracterização do acidente de trabalho de que foi vítima o sinistrado por, alegadamente, resultar exclusivamente de negligência grosseira sua. A sentença recorrida entendeu, em síntese, que: (a) o acidente em apreço configurava um acidente de trabalho, (b) que o mesmo decorreu da violação, por parte da Recorrente empregadora, das regras de segurança, que se impunham e (c) que, por essa razão, não proveio exclusivamente de negligência grosseira do sinistrado, pelo que não deverá, nos termos do artº 7º, nº 1, al. b), da Lei 100/97, de 13.09, ser descaracterizado. As Recorrentes não puseram em causa nem a existência do acidente e sua caracterização, face ao disposto no artº 6º da mencionada Lei, como acidente de trabalho, nem a violação, por parte da Ré empregadora, das regras de segurança que se impunham na e para a protecção do equipamento mecânico utilizado, ou seja, que a serra desdobradora onde ocorreu o acidente não dispunha de qualquer dispositivo de protecção da pinha dentada e da corrente da cremalheira, questões estas que, assim, se encontram assentes. O que as mesmas, afinal, questionam é a existência do nexo causal entre tal violação e a ocorrência do acidente, pois consideram que, pese embora o referido, este ocorreu, exclusivamente, em consequência de comportamento grosseiramente negligente do sinistrado. 2. Ao caso, considerando que o acidente em apreço ocorreu aos 26.01.2000, é aplicável o regime constante da Lei 100/97 (LAT), de 13.09. Dispõe o artº 7º, nº 1, al. b), do citado diploma que: «1 – Não dá direito à reparação o acidente: a) ( ….); b) Que provier exclusivamente de negligência grosseira do sinistrado; c) (...) ». Por sua vez, o artº 8º, nº 2, do DL 143/99 (RLAT), de 30.04, diploma que veio regulamentar a LAT, refere que se «entende por negligência grosseira o comportamento temerário em alto grau, que não se consubstancie em acto ou omissão resultante da habitualidade ao perigo do trabalho executado, da confiança na experiência profissional ou dos usos e costumes da profissão.». Para que o direito à reparação seja, de harmonia com a citada alínea b), excluído, é, assim, necessária a verificação cumulativa de dois requisitos: Que o acidente provenha de negligência grosseira do sinistrado; Que essa negligência grosseira seja, exclusivamente, a causa do acidente. Quanto ao primeiro dos requisitos, a negligência consubstancia-se na omissão de um dever de objectivo de cuidado ou diligência adequado, segundo as circunstâncias concretas de cada caso, a evitar a produção de um determinado evento. Porém, a negligência pode assumir gravidade diferente, sendo usual a distinção entre a negligência consciente e inconsciente e, em função da intensidade da ilicitude (a violação do cuidado objectivamente devido) e da culpa (violação do cuidado que o agente é capaz de prestar segundo os seus conhecimentos e capacidades pessoais), entre a negligência lata ou grave, leve e levíssima. Na negligência consciente, o agente prevê a produção do resultado lesivo como possível, mas por leviandade, precipitação, desleixo ou incúria crê na sua não verificação; na inconsciente, o agente, por inconsideração, descuido, imperícia ou ineptidão, não concebe a possibilidade do resultado lesivo se verificar, podendo e devendo embora prevê-lo e evitar a sua verificação. Exigindo a lei, como pressuposto da descaracterização, a negligência grosseira, «o legislador está a afastar implicitamente a simples imprudência, inconsideração, irreflexão, impulso leviano que não considera os prós e os contras. (…). A negligência lata ou grave confina com o dolo e parece ser, sem dúvida, a esta espécie de negligência que se refere o legislador ao mencionar a negligência grosseira: é grosseira, porque é grave e por ser aquela que in concreto não seria praticada por um suposto homo diligentissimus ou bonus pater-familias.» - cfr. Carlos Alegra, in Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, Regime Jurídico Anotado, 2ª edição, a págs. 63. Como se refere no Ac. do STJ de 29.11.05, proferido na Revista nº 1924/05-4 (Proc. nº 124/2000., do TT Porto, 1º Juízo, 3ª Secção), «a figura da negligência grosseira corresponde a uma negligência particularmente grave, qualificada, atento, designadamente, o elevado grau de inobservância do dever objectivo de cuidado e de previsibilidade da verificação do dano ou do perigo.». Mas, para a descaracterização do acidente, não basta a verificação da negligência grosseira da parte do sinistrado. É necessário, ainda, que o acidente provenha, exclusivamente, dessa negligência, isto é, que dela provenha sem concurso de qualquer outro acto ou omissão imputável, mormente, à entidade empregadora. Ora, se esta houver violado regras ou normas de segurança, designadamente não adoptando as medidas de segurança que, legalmente, se impunham e se essa violação concorrer, exclusiva ou concomitantemente, para a produção do acidente, está, necessariamente, afastado o requisito da exclusividade da culpa do sinistrado na produção do evento. Assim e em conclusão, «para que se verifique a apontada exclusão da responsabilidade emergente de acidente de trabalho é necessária a prova de que ocorreu um acto ou omissão temerários em alto e relevante grau por parte do sinistrado, injustificada pela habitualidade ao perigo do trabalho executado, pela confiança na experiência profissional ou pelos usos e costumes da profissão, e, além disso, que o acidente tenha resultado exclusivamente desse comportamento.» - Ac. do STJ acima mencionado (o sublinhado é nosso). Por outro lado, e conforme é aliás entendimento uniforme da jurisprudência, a culpa, exclusiva e grosseira, do sinistrado na produção do acidente, consubstancia factualidade impeditiva da responsabilidade infortunística, pelo que à entidade responsável por essa reparação (seguradora e/ou entidade patronal) incumbe o ónus de alegação e prova da mesma – artº 342º, nº 2, do Cód. Civil. 3. Feitas tais considerações importa, apreciar o caso vertente, para o que releva a seguinte factualidade provada: - Apesar de ser um trabalhador indiferenciado, o sinistrado trabalhava habitualmente com uma serra mecânica desdobradora, que tem mais de 20 anos (nºs 3 e 4). - Aquando do acidente (no dia 26.01.2000), o sinistrado tinha procedido ao ajustamento e preparação da serra desdobradora para iniciar um trabalho de serragem de madeira ( nº 5) . - O sinistrado foi com o seu colega de trabalho, G………….., preparar, no chão, umas peças de madeira para uma paleta, que se encontrava a cerca de cinco metros da serra que estava em movimento ( nº6) . - A certa altura, o sinistrado precisou de medir as peças de madeira e dirigiu-se até junto da serra para apanhar a fita métrica que se encontrava em cima da corrente de cremalheira, quase no lado oposto da mesa da serra (nº 7) . - Por que a mesa da serra tem cerca de 1, 20 m de largura ( profundidade) e 0,92m de altura, sendo o sinistrado de estatura baixa, teve necessidade de se debruçar sobre a mesa para alcançar a fita métrica (nº 8) . - Foi nessa ocasião que a pinha dentada, no seu movimento circular, apanhou e enrolou a roupa do sinistrado, puxando-o em direcção à serra (nº9). - Em consequência do acidente, o sinistrado sofreu as lesões crânio-encefálicas e ao nível do tórax, que foram causa directa e necessária da sua morte, no dia 26 de Janeiro de 2000 (nº 10). - A serra desdobradora onde ocorreu o acidente não dispunha de qualquer dispositivo de protecção da pinha dentada e da corrente da cremalheira, em consequência do que o sinistrado foi atingido pela máquina (nºs 14 e 15). - O sinistrado acabou por optar por debruçar-se em cima da mesa da serra para apanhar a fita métrica, em vez de contornar a dita serra (nº 17). - O sinistrado, não tendo a classificação profissional de “ serrador” era um trabalhador calmo, sensato, diligente e tinha os conhecimentos profissionais necessários para trabalhar com a serra, conhecendo bem os riscos de acidente que o trabalho com a serra envolvia (nº 16). - O sinistrado desempenhava as suas funções com competência e conhecimentos técnicos (nº 3). Importa referir que as respostas aos quesitos aditados na sequência do anterior acórdão desta Relação e que tinham por objecto saber se «o sinistrado, ao debruçar-se sobre a máquina, se desequilibrou e caiu sobre a mesma» e «se foi em consequência desse desequilíbrio que se deu o acidente», matéria esta correspondente à versão dos factos apresentada pela Recorrente entidade patronal na sua contestação, receberam resposta negativa. Perante tal factualidade, temos como certo que para a ocorrência do acidente concorreram duas causas: o facto de o sinistrado, para apanhar a fita métrica que se encontrava em cima da corrente de cremalheira, quase no lado oposto da mesa da serra, se ter debruçado sobre a mesa, tendo a pinha dentada apanhado e enrolado a sua roupa, puxando-o em direcção à serra, como decorre dos nºs 8 e 9 da matéria de facto provada; e o facto da serra desdobradora onde ocorreu o acidente não dispor de qualquer dispositivo de protecção da pinha dentada e da corrente da cremalheira, em consequência do que o sinistrado foi atingido pela máquina, como decorre dos nºs 14 e 15 dessa matéria. No que se reporta ao comportamento do sinistrado que, em vez de se ter debruçado sobre a mesa da serra, a poderia ter contornado assim evitando ou, pelo menos, minimizando o risco de ser colhido pela pinha dentada, afigura-se-nos que ele se consubstancia num comportamento negligente na medida em que o sinistrado, conhecedor da máquina e dos seus riscos, poderia ter previsto tal consequência. Porém, mesmo que, porventura, se entendesse que tal negligência assumiria a forma grosseira, a verdade é que o comportamento do sinistrado não foi a causa única ou exclusiva da ocorrência do acidente em apreço. Com efeito, e como se diz na sentença recorrida, a propósito da violação das regras de segurança por parte da Recorrente empregadora, o disposto nos artºs 40º (1) e 44º, nº 1 (2), da Portaria nº 53/71, de 03/02, com as alterações introduzidas pela Portaria nº 702/80, de 22/09 e no artº 18º, nº 1 (3), do DL nº 82/99, de 16.03, impunham que a máquina onde ocorreu o acidente dispusesse de dispositivos de protecção, aí previstos, da pinha dentada e da corrente da cremalheira, dispositivos esses que não existiam, o que, como provado ficou, determinou que o sinistrado tivesse sido colhido pela máquina e que, assim e igualmente, concorreu para a produção do acidente. Refira-se que, nos termos do artº 5º, nº 1, do citado DL 82/99, os equipamentos de trabalho devem satisfazer os requisitos mínimos de segurança constantes do capítulo II. Também o artº 56º da referida Portaria 53/71 dispõe que «Os órgãos de maquinas e as correspondentes zonas de operação devem estar protegidos por forma eficaz, sempre que possam constituir perigo para os trabalhadores.». Por sua vez, de harmonia com o artº 273º nºs 1 e 2, al. a), do Código do Trabalho, na senda aliás do artº 8º do DL 441/91, de 14.11 (por aquele revogado), o empregador deverá assegurar aos trabalhadores as condições de segurança em todos os aspectos relacionados com o trabalho, devendo designadamente, «proceder, na concepção das instalações, dos locais e processos de trabalho, à identificação dos riscos previsíveis, combatendo-os na origem, anulando-os ou limitando os seus efeitos, por forma a garantir um nível eficaz de protecção.» No caso, a Recorrente empregadora, bem como a seguradora, não põem em causa quer a inexistência de dispositivos de protecção da máquina em questão, quer a obrigação legal da existência de tais dispositivos, questionando apenas o comportamento do sinistrado de se debruçar sobre a mesa para apanhar a fita métrica, que consideram consubstanciar negligência grave e ser causa exclusiva do acidente. Se é certo, como dizem as Recorrentes, que a decisão do sinistrado de se debruçar sobre a mesa para apanhar a fita métrica lhe é, exclusivamente, imputável, já não o é a afirmação de que esse comportamento haja sido a causa exclusiva da produção do acidente. Com efeito, e como referido, este decorreu, também, do facto de a pinha dentada e da corrente cremalheira não disporem dos necessários dispositivos de segurança. E a colocação destes dispositivos incumbia à Ré empregadora que, para além da obrigação específica prevista nos referidos diplomas, tem também a obrigação legal de proporcionar e assegurar aos seus trabalhadores a execução do trabalho em condições de segurança, por ela zelando, procedendo à identificação dos riscos previsíveis e combatendo-os ou minimizando-os – cfr. artº 273º do Código do Trabalho. Ou seja, se o sinistrado poderia e/ou deveria ter previsto o risco do seu comportamento e, em consequência, se poderia e/ou deveria ter contornado a mesa para apanhar a fita métrica, a Ré empregadora poderia e deveria ter providenciado pelo cumprimento da legislação em matéria de segurança do equipamento em questão, colocando os dispositivos de protecção no mesmo, sendo que, no caso e como provado ficou – cfr. nº 15 da matéria de facto provada – o sinistrado foi colhido pela máquina em consequência da inexistência de tais dispositivos de protecção. Aliás, às RR, porque sobre elas recaia o respectivo ónus, incumbia a prova de que, ainda que esses dispositivos de protecção estivessem colocados, o sinistrado, por virtude do seu comportamento, sempre teria sido colhido pela máquina, prova essa que não foi feita. Assim, e em conclusão, improcedem todas as conclusões de ambos os recursos, acrescentando-se, apenas e no que se reporta ao recurso da Ré Seguradora, que também esta, na sua contestação, entendeu e defendeu que o acidente em apreço se ficou a dever à falta de protecção da máquina, pelo que mal se compreende que considere ter-se o mesmo ficado a dever, exclusivamente, a culpa do sinistrado. * IV. Decisão Em face do expôsto, acorda-se em negar provimento a ambos os recursos, confirmando-se integralmente a decisão recorrida. Custas dos recursos interpostos pelas Recorrentes seguradora e empregadora por cada uma delas, respectivamente. Porto, 12 de Fevereiro de 2007 Paula Alexandra Pinheiro G. Leal S. M. deCarvalho José Carlos Dinis Machado da Silva Maria Fernanda Pereira Soares _________ (1) Cujo nº1 refere que «Os elementos móveis de motores e órgãos de transmissão, bem como todas as partes perigosas das máquinas que accionem, devem estar convenientemente protegidos por dispositivos de segurança, a menos que a sua construção e localização sejam de molde a impedir o seu contacto com pessoas ou objectos.». (2) Cujo nº 1 refere que «Os protectores e os resguardos devem ser concebidos, construídos e utilizados de modo a assegurar uma protecção eficaz que interdite o acesso à zona perigosa durante as operações;(…)» |