Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRP00029895 | ||
Relator: | SANTOS CARVALHO | ||
Descritores: | DEPÓSITO BANCÁRIO CONTA DE DEPÓSITO CHEQUE DESCONTO DEPÓSITO REVOGAÇÃO BANCO RESPONSABILIDADE | ||
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Nº do Documento: | RP200011130050652 | ||
Data do Acordão: | 11/13/2000 | ||
Votação: | UNANIMIDADE COM 1 DEC VOT | ||
Tribunal Recorrido: | T J VIANA CASTELO 1J | ||
Processo no Tribunal Recorrido: | 428/98 | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO. | ||
Decisão: | REVOGADA. | ||
Indicações Eventuais: | O ACÓRDÃO TEM MUITAS CITAÇÕES DOUTRINAIS E JURISPRUDENCIAIS DE BASTANTE INTERESSE. | ||
Área Temática: | DIR COM - TIT CRÉDITO. DIR CIV - DIR CONTRAT. | ||
Legislação Nacional: | CCIV66 ART406 N1 ART762 N2. | ||
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Sumário: | I - O depósito bancário de disponibilidades monetárias é um contrato pelo qual um particular entrega uma quantia pecuniária a um banco, que poderá dela dispor livremente, obrigando-se a restituí-la, mediante solicitação, e de acordo com as condições estabelecidas. II - O contrato de depósito bancário, para além de contrato unilateral, é um negócio real pois se exigem entregas ao banco das quantias que se depositam. III - Na modalidade de depósito à ordem o depositante pode solicitar ao banco a entrega total das quantias depositadas quando quiser, em qualquer momento e independentemente de aviso prévio. IV - Se o titular de conta de depósito à ordem (que emitiu um cheque entregando-o ao portador, que o apresentou no banco sacado para ser descontado e depositado na sua conta, como foi) em ordem escrita anterior revogou o cheque, o estorno da respectiva quantia feito na conta do portador é válido e produz efeitos, não podendo a entidade bancária ser responsabilizada pelo pagamento ao portador do cheque da respectiva importância. | ||
Reclamações: | |||
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Decisão Texto Integral: | Acordam no Tribunal da Relação do Porto: 1. José........ demandou Álvaro........ e o Banco............. (então, Banco ...........), pedindo que os RR fossem condenados a pagarem-lhe (ou o 2º R. a repor na conta de depósito à ordem aberta em nome dele, na agência de ........) a quantia em numerário de Pte. 3 100 000$00, acrescida de juros legais, contados da data em que o referido montante foi debitado na conta em causa, 98.01.14, até à data do pagamento efectivo (ou reposição). 2. Alegou em síntese: (a) É dono e legítimo portador do cheque nº ..., 97.12.30, no montante da quantia do pedido, sacado pelo R. Álvaro... sobre o .../......; (b) Tal cheque foi preenchido pelo 1º R. e entregue ao A. para pagamento do preço de dois prédios urbanos; (c) Depositou-o então na conta que ele A. tinha aberta no banco - 2º R., dentro do prazo legal de apresentação, i. é, 98.01.07, e foi creditado nela o montante respectivo; (d) Todavia, em 98.01.14, o ..., alegando revogação do cheque pelo R. Álvaro..., estornou a quantia e devolveu o cheque ao A., apondo-lhe, no verso, a nota cheque cancelado; (e) Simultaneamente emitiu uma nota de débito do mesmo montante, que notificou ao A., acto consumado; (f) Mas, não tinha sido autorizado a emiti-la, nem o A. rubricou a dita nota; (g) Por outro lado, o R. Álvaro... dera a instrução de revogação, em 97.12.29; (h) Ora, nos termos do art. 32º LUC, a revogação só produz efeitos depois do fim do prazo de apresentação; (i) Por sua vez, o R. Álvaro..., ao emitir a instrução de revogação do cheque, ainda que não respeitando o prazo da lei, não tinha para isso qualquer fundamento, nem de facto, nem de direito; (j) Tendo pretendido apenas eximir-se ilegitimamente da obrigação que assumiu perante o A. 3. Na contestação disse o 1º R.: (a) O A. não estava autorizado a apresentar a pagamento o cheque em causa, que representava apenas garantia do pagamento do preço de uma transacção imobiliária, titulada por contrato promessa que não cumpriu; (b) Notificou-o, por carta registada com a/r, de que já não lhe interessava o negócio; (c) Por conseguinte, o A. deveria ter-lhe devolvido o cheque, em vez de o ter posto em circulação. 4. E o 2º R. acrescentou que o montante lançado a crédito na conta do A. o foi por mero lapso do balcão, contrariando a revogatória do cheque, ordem do 1º R., a qual já tinha aceite, circunstância fundadora de improcedência. 5. Ficou provado: (a) O A. e o R. Álvaro... são clientes do Banco... Portugal/.............; (b) O A. é portador do cheque nº ..., 97.12.30, no montante de Pte. 3 100 000$00, sacado pelo R. Álvaro... sobre o então ... (hoje, ... Portugal), conta nº ..., de que ele é titular, na agência de ...........; (c) Tal cheque foi preenchido pelo R. Álvaro... e entregue ao A.; (d) Em 98.01.07, o A. depositou o cheque em questão numa conta dele, aberta no banco R., agência de ......., com o nº ...; (e) O balcão do banco R. creditou na conta do A. a quantia de montante do cheque referido, nesse dia 98.01.07; (f) Em 98.01.14, o banco R., alegando revogação do cheque pelo R. Álvaro..., retirou da conta do A. a sobredita quantia de pte. 3 100 000$00, e devolveu-lhe o cheque, apondo-lhe, no verso, a nota cheque cancelado; (g) Para fundamentar a retirada da quantia de montante desse cheque, da conta do A., o banco R. preencheu uma nota de débito de igual montante; (h) Nessa nota de débito, o banco R. apôs, no campo destinado à autorização do titular da conta, a rubrica que nela consta, sem autorização do A.; (i) O R. Álvaro... dera instruções escritas ao banco R., em 97.12.29 de revogação do dito cheque; (j) Instruções essas que o banco aceitou; (k) A conta do A. esteve creditada pelo montante de Pte. 3 100 000$00 de 98.01.07/14; (l) O cheque em causa destinava-se a pagar a quantia acordada entre o A. e o R. Álvaro... pela transacção de dois imóveis, na sequência de contrato promessa, celebrado pelos mesmos, em 97.06.27; (m) Devendo porém a quantia do montante do cheque ser paga na data da celebração da escritura, a realizar até finais 12.97; (n) O cheque exibe, no verso, um carimbo com a seguinte inscrição: devolvido por cheque cancelado; ............; ...- Banco...... , seguida de duas assinaturas ilegíveis; (o) O Banco........, aceitou a ordem de revogação escrita dada pelo R. Álvaro..., em 97.12.29; (p) O banco R., por lapso, lançou a crédito, e disponibilizou na conta do A., o correspondente em numerário ao montante do cheque em questão; (q) Tal montante nunca foi porém debitado na conta do R. 5.1 A convicção dos julgadores formou-se a partir do original do cheque, junto pelo A.; das notas bancárias que ao movimento deste dizem respeito; de comunicação do 1º R., cliente do banco, para cancelamento; e do texto do contrato promessa; mas, no fundamental, a partir do depoimento do gerente do balcão de ............ que confirmou as operações bancárias efectuadas, reconhecendo tudo ter ficado a dever-se a um lapso do banco que, no prazo disponível (24 horas), não anulou o saldo contabilístico constante da conta do A. (e após a inscrição a crédito do montante do cheque), permitindo assim que tal montante ficasse consolidado como saldo superavit. 6. Com base na matéria dada como assente, a sentença recorrida absolveu o 1º R. do pedido e condenou o banco recorrente; também como litigante de má-fé: (a) O banco não tem qualquer direito de crédito sobre o A.; e mesmo que o tivesse, não podia exercer a compensação desse crédito, debitando sem mais a conta do devedor; (b) Por virtude da transferência da propriedade do dinheiro para o banco é este quem responde em casos de extravio ou outra anomalia: o crédito do depositante mantém-se intacto; (c) Se o lapso apontado não cria qualquer direito de crédito sobre o titular da conta creditada, também não o criará, em princípio, sobre o titular da conta a debitar (1º R.): como regra, o pagamento feito pelo devedor (o banco), a terceiro, sem o consentimento do credor (o depositante), é irrelevante; (d) A acção proposta circunscreve-se porém ao incumprimento de um dever decorrente do contrato de depósito, pelo que o direito que o A. vem exercer (ao exigir a reposição do montante indevidamente retirado da conta dele) tem como sujeito passivo único o próprio banco: a intervenção do 1º R., titular da conta a debitar, é de todo estranho ao âmbito contratual desta acção; (e) Ao retirar dinheiro da conta do cliente, aqui A., o banco R., executou uma operação bancária para qual não estava mandatado nem autorizado; (f) Ora, os contratos são para cumprir, e para cumprir dentro dos parâmetros da boa-fé (arts. 227º e 762º CC); (g) E se os princípios da boa-fé e da confiança presidem à formação e execução de todos os contratos, relativamente aos contratos bancários mais se acentuam tais exigências… , impondo-se que os deveres de lealdade e de probidade assumam aí muito maior peso do que na generalidade dos contratos; (h) Daí que seja legítimo esperar, em aspectos delicados como os da acreditação de assinaturas ou do cumprimento de ordens de revogação de cheques, que estas entidades se façam representar por funcionários devidamente preparados; (i) Como legítimo é esperar, perante lapsos e indícios decorrentes de um normal funcionamento, que os bancos saibam assumir em tempo as suas responsabilidades; (j) O peso e a credibilidade das instituições de crédito não se compagina pois com a postura arbitrária da agência do R. no momento em que efectuou a retirada do numerário da conta do A.; (k) Mas menos se compagina com a postura processual assumida neste caso… a todos os títulos censurável (art. 456º CPC). 7.Concluiu o recorrente: (a) Não ocorreu violação de um dever decorrente do contrato de depósito; (b) É que não chegou a existir depósito irregular; (c) Para ter ocorrido um depósito irregular (que remete para as normas do mutuo), teria que ter havido transferência do numerário, inserto no cheque, para o banco; (d) Ora, tal não sucedeu; (e) Com efeito, a conta do sacador nunca foi debitada; (f) Logo, não aconteceu transferência da propriedade do respectivo numerário, pelo que o Ap.o não se tornou credor do Ap.e; (g) Acresce que o Ap.o é dono e legítimo portador do cheque em questão; (h) Facto que confirma a impossibilidade de ter ocorrido transferência de dinheiro da conta do sacado para o beneficiário do cheque (Ap.o); (i) Contrariamente ao que defende o Tribunal recorrido, o depositante não tem o domínio sobre a coisa objecto de depósito irregular: se assim fosse, o risco pelo perecimento correria por conta do depositante; (j) E, como se sabe, com a transferência da propriedade do dinheiro, o risco pelo perecimento corre por conta do banco depositário; (k) Por outro lado, o sacador do cheque (co-R.) deu ordem de revogação do mesmo, tendo-a aceite o Ap.e; (l) Em parte alguma, e bem (tendo em conta o que ensina a melhor doutrina), o Tribunal recorrido censura a aceitação da ordem de revogação; (m) Todavia, não retirou daí a correspondente consequência, ou seja: o cheque não poderia ser pago; (n) Pelo contrário, parece entender que o Ap.e devia ter pago o cheque , apesar de aceite a ordem de revogação dada pelo sacador; (o) É que, só de acordo com esta perspectiva se percebe que o Tribunal recorrido tenha concebido que ocorreu um depósito irregular; (p) Mas está dado como provado que o crédito na conta do Ap.o se deveu a um lapso do banco, e que a conta do sacador nunca foi debitada; (q) Apesar disso, o tribunal recorrido condenou o Ap.e na indemnização pedida, e em 10 unidades de conta, como litigante de má-fé; (r) Ao decidir como decidiu, deu porém guarida ao abuso de direito; (s) Na verdade, nos termos da promessa de compra e venda, outorgada entre o Ap.o (promitente vendedor) e o co-R. Álvaro... (promitente comprador), o cheque em causa só poderia ser apresentado a pagamento no dia da celebração da escritura; (t) Acontece que a escritura se não realizou, e que dos autos não resulta que tenha sido resolvida a promessa, com possibilidade de embolso do sinal pelo Ap.o, (circunstância que possibilitaria também a apresentação a pagamento do cheque); (u) Razão pela qual, o Tribunal, absolveu do pedido, e bem, o co-R.; (v) O quadro factual retratado evidencia pois uma clara actuação de má-fé, mas por parte do Ap.o, que apresentou o cheque a pagamento, sabendo que não o podia fazer; (w) Para de seguida tentar tirar partido dum lapso do Ap.e, com a finalidade de receber uma quantia a que contratualmente não tem direito; (x) Esta actuação configura nitidamente abuso de direito; (y) Em suma, a decisão do Tribunal recorrido fez errada interpretação da matéria de facto comprovada, e concebeu erradamente os efeitos de revogação de um cheque, violando os arts. 334º e 1215º CC, por não ter sancionado a conduta abusiva do Ap.o; (z) Por último, embora não se possa falar em compensação, pois do que se tratou foi de o banco corrigir um lapso, sempre se dirá que ela é possível entre créditos de natureza fungível e exigíveis (como é o caso do crédito do titular da conta e do banco sobre este); (aa) No depósito bancário há que distinguir o depósito irregular (coisas fungíveis) do depósito de bens ou valores determinados (de coisas infungíveis); (bb) No depósito irregular, o banco torna-se proprietário do dinheiro depositado, com a comitante obrigação de devolução; (cc) Logo, não há qualquer dever de custódia, contrariamente ao que defende o julgador: a única obrigação que impende sobre o banco depositário, enquanto mutuário, é a de devolver a quantia que lhe foi entregue pelo depositante (mutuante), quando a devolução for exigível; (dd) Diversamente se passam as coisas no depósito de coisas infungíveis: aqui não há qualquer transferência da propriedade do depositante para o depositário; (ee) O domínio da coisa continua na titularidade do depositante, consequentemente o banco não pode utilizar o bem; (ff) Do exposto resulta, diversamente do que ocorre com o depósito irregular, que no depósito de coisa ou valores determinados há um dever de custódia, de guarda, e de restituição, a que o banco se mostra adstrito; (gg) Também, por aqui, a decisão do Tribunal recorrido se mostra enfermar de erro na interpretação das normas legais ligadas ao instituto da compensação. (hh) A sentença recorrida deve ser revogada, para que o Ap.e seja absolvido do pedido, condenando-se antes o Ap.o como litigante de má-fé. 8.Nas contra alegações disse o Ap.o: (a) É infundada a alegação do recorrente; (b) Esquece que o alegado lapso, e o facto de a conta do co-R. Álvaro... não ter sido debitada, são problemas que se situam no plano res inter alios; (c) Trata-se de uma relação entre o co-R. Álvaro... e o banco, a que o A. é de todo alheio, não podendo uma instituição de crédito deixar de assumir responsabilidades para com este; (d) De outro modo preverter-se-ia a relação de confiança no depósito bancário, ficando aberta a porta para que os bancos nunca a assumissem pelos seus erros, o que seria intolerável; (e) Ora, o que é certo é que o recorrente, bem ou mal (mas bem), creditou a conta do A. por quantia que considerou disponível; (f) E uma vez creditada a conta, estava o banco impossibilitado de a debitar sem autorização do titular; (g) Tal como o reconheceu ao sentir necessidade de emitir e assinar, ainda que sem autorização, uma nota de débito; (h) Por outro lado, as causas da emissão do cheque, e as eventuais vicissitudes a elas inerentes, são de todo alheias à boa decisão da causa, pois respeitam à relação entre o co-R. Álvaro... e o A., enquanto a relação jurídica controvertida respeita ao contrato de depósito celebrado entre o recorrente e o recorrido, que aquele incumpriu; (i) O banco, ao aceitar o cheque depositado pelo A., e ao creditar o respectivo montante, como saldo disponível, na conta do recorrido, aceitou a transferência daquele valor, assumindo a sua propriedade e responsabilidade pela sua guarda; (j) E uma vez creditada a conta, o banco está obrigado a mantê-la assim, efectuando nela apenas os movimentos que lhe forem ordenados pelo titular, ou por este autorizados; (k) Aliás é de todo despropositado falar-se de compensação, pois inexiste qualquer crédito do banco para com o A.; (l) De resto, o banco, ao debitar ilegalmente a conta do A., não invocou qualquer crédito, que não tinha, essencial à compensação; (m) Deve a decisão recorrida ser confirmada. 9.O recurso está pronto para julgamento. 10.Baseando-se na diversidade de planos [Cita em abono ac STJ, 93.10.19, Sub Judice-Novos Estilos, 10/173.] em que se situam, por um lado, a propriedade do capital mutuado, correspondente ás quantias disponibilizadas pelo titular nas contas de depósito bancário, que é do banco [Neste sentido citou Pires de Lima, RLJ, ano 101, p. 368.] e, por outro, o domínio genérico sobre o saldo, que pertence ao depositante, por fim tendo tido em consideração a causa do contrato [Idem, ac STJ, 86.06.17, BMJ 358/565] (segurança das economias dos particulares), a sentença recorrida concluiu que, inscrito nesse saldo um determinado montante, ainda que por erro contabilístico, não pode ser estornado, por decisão unilateral da instituição bancária. Exigida autorização do titular da conta, que não ocorreu, o estorno é então ilegal, e o lançamento deve manter-se. Pelo contrário, defende o recorrente que assim seria apenas no caso de ter havido depósito na conta de uma quantia firme, ou legitimada. Tendo havido revogação válida do cheque depositado (ou não tendo entrado este em circulação), que por isso não foi debitado na conta a que dizia respeito, tal não ocorreu. Logo, a manter-se o lançamento, estar-se-ia perante uma situação de locupletamento à custa alheia, proibida em direito. 11.Comecemos por uma revisão da literatura jurídica sobre os contratos bancários. Entre o banqueiro e o seu cliente não é, em regra, celebrado um único negócio jurídico; pelo contrário, iniciada uma relação, ela tende a prolongar-se no tempo, intensificando-se, mesmo, com a prática de novos e mais complexos negócios; esta relação bancária, de natureza complexa, mutável mas sempre presente, constitui um dos aspectos mais marcantes e mais característicos do Direito Bancário material (Cordeiro, António Menezes, O “Contrato Bancário Geral”, in Estudos de Direito Bancário, aut. divs, Coimbra Editora, 1999, pp. 11/19.). Historicamente foi ensaiada, e em primeiro lugar pela doutrina alemã, uma explicação mediante o recurso ao contrato bancário geral: este contrato surgiria com a aceitação, pelo cliente, das cláusulas oferecidas pelo banqueiro que assim passavam a ter natureza contratual. Explicava-se deste modo a relação complexa entre o banqueiro e o cliente e esclarecia-se, de par, a natureza das cláusulas contratuais gerais, frequentes no sector bancário. Mas a relação bancária complexa estabelecida entre o cliente e o banqueiro apresentava, por sua vez, a virtualidade de provocar o aparecimento de novos contratos: daí ter-se considerado, depois, o contrato bancário como um contrato de angariação de negócios (A. Koch, 1932), um contrato promessa (id., 1933), ou um contrato normativo (Von Brunn, 1956). Entretanto, a natureza exacta do contrato bancário geral não chegou a ser esclarecida pela doutrina, tendo sido o referente utilizado porém pela jurisprudência, principalmente no pós - 2ª Guerra, para apoiar decisões que giraram sobretudo em volta dos deveres gerais do banqueiro: dever de tratamento cuidadoso, dever de informação, dever de prevenir quanto a riscos, dever de sigilo (Ainda que quanto a este último dever se tenha procurado já apoio jurídico positivo na boa fé.). O conceito, ainda que impreciso, permitia atribuir jurisdicidade a uma relação de confiança entre as partes. E dessa relação advinham para o banqueiro, para além dos deveres elencados já, deveres de acompanhamento e acautelamento dos interesses do cliente. No que diz respeito à articulação entre o contrato bancário geral e os diversos contratos bancários que depois fossem concluídos entre o banqueiro e o cliente, chegou a ser defendido que estes últimos nem seriam verdadeiros contratos: assumiriam o perfil de meras instruções dadas pelo cliente ao banqueiro. Noutras versões, o contrato bancário geral, fixando todavia os deveres do banqueiro, apenas dava lugar a um quadro no qual, de seguida, se concretizariam os diversos contratos singulares. Numa e noutra das concepções deixou-se sempre salva para o banqueiro a decisão de celebrar contratos futuros, o que levou à dúvida sobre se o contrato bancário geral preenchia os requisitos de um verdadeiro contrato: não assentava num consenso destinado a instituir uma relação duradoira entre as partes que fosse fonte de novos contratos (Canaris, 1988). Surgiu por isso a doutrina da relação legal, base de responsabilidade pela confiança, propondo Canaris, neste domínio, a utilização do modelo da relação obrigacional legal sem dever de prestação primário, desenvolvido, p. ex. em Larenz (Larenz, Karl, Lehrbuch des Schuldrechts, I- Allgemeiner Teil, 14ª ed. (1987), pp. 104 ss. (td. Castelhana, Derecho de Obligaciones, I, 1958): para além das prestações derivadas da obrigação comum pactuada pelas partes, a regra da boa fé implica que os contratantes fiquem adstritos a certos deveres de cuidado e de protecção, por forma a que não haja a emergência de danos para cada qual. Em situações de proximidade negocial, as partes podem prejudicar-se mutuamente; surge assim um dever legal de não o fazer (Canaris, Bankvertragsrecht, I, 3ª ed. (1988), pp. 12 ss., cit. Menezes Cordeiro, op. cit., p. 16.). Menezes Cordeiro rejeitou esta posição: a doutrina dos deveres de protecção unitários destina-se apenas a suprir as insuficiências estruturais do sistema alemão de responsabilidade aquiliana (Menezes Cordeiro considera dispensável o recurso à boa fé para a protecção dos créditos contra terceiros: o art. 483º/1 CC garante, sem distinções, a protecção aquiliana a todos os direitos subjectivos, com inclusão dos créditos, vd. aut. cit., A Boa Fé no Direito Civil, I, 1984, p. 647); tais insuficiências, não afectando o Direito português, tornam dispensável a congeminação de específicas obrigações legais: a relação bancária complexa … exprime sequências de actos e de negócios celebrados entre o banqueiro e o seu cliente, mas em que ambos conservam plena liberdade. Porém, prosseguiu o Autor: entre o banqueiro e o cliente estabelece-se uma relação social e económica que tende a ter continuidade, em que ambas as partes são portadoras de deveres de conduta, derivados de boa fé, dos usos ou dos acordos parcelares que concluam. E todos esses deveres surgem num conjunto certeiramente identificável. Quando se inicia um relacionamento bancário (normalmente pela abertura de conta) ambas as partes têm intenção de continuidade: o banqueiro existe para desenvolver a sua actividade e, por isso, tem uma vontade explícita de celebrar novos negócios bancários, enquanto o cliente pretende justamente obter do banqueiro os inúmeros produtos de tipo bancário que hoje em dia se mostram imprescindíveis. Há uma clara fenomenologia contratual (Cordeiro, António Menezes, op. cit., p. 17), mas da relação bancária não resulta qualquer dever de celebrar novos contratos: qualquer das partes pode, a todo o tempo, pôr termo à relação; qualquer novo negócio que uma proponha à outra pode ser objecto de rejeição, livre (Deve atender-se evidentemente aos limites contratuais ou aos que resultam da boa fé.). Ora, uma das características da moderna contratação é a de admitir deveres de diligência, de acompanhamento, de disponibilidade para negociar e mesmo de negociação sem que, por este último, se entenda a obrigação de concluir qualquer contrato (Cordeiro, António Menezes, Convenções Colectivas de Trabalho e Alteração das Circunstâncias, 1995). Por outro lado, segundo o disposto no art. 762º/2 CC, os deveres acessórios dos contratos, impostos pela boa fé, vinculam as partes a regras de segurança, de informação e de lealdade. No direito bancário, qualquer contrato vai propiciar uma concretização bancária da boa fé; …um contrato comercial (e, para mais, bancário) é sempre complementado pelas cláusulas contratuais gerais e pelos usos [Id., O “Contrato Bancário Geral”, cit. p.18]. Assim, conclui, agora, Menezes Cordeiro: (1) A relação bancária geral existe e tem origem contratual, embora seja complementada pela lei e pelos usos; (2) Consumado um contrato duradoiro entre o banqueiro e o cliente há, entre ambos, deveres de lealdade, com especial incidência sobre o profissional (justamente o banqueiro); (3) Podemos afirmar que a relação bancária geral surge com o contrato de abertura de conta; (4) Tem, para além do que as partes exprimam, o conteúdo que lhe advém dos usos e das cláusulas contratuais gerais, utilizadas na actividade bancária. 12.O depósito bancário de disponibilidades monetárias, terminologia utilizada pelo legislador português [Vd. art. 1º, DL 430/91, 2.11.], é um contrato pelo qual um particular entrega uma quantia pecuniária a um banco, que poderá dela dispor livremente, obrigando-se a restitui-la, mediante solicitação, e de acordo com as condições estabelecidas[Vd. ac STJ, 77.07.07, BMJ 269/137; ac RL 83.03.17, CJ, VIII, II/116: está-se … em face de uma relação jurídica negocial (contratual) constituída entre o depositante (Tradens) e o banco (Accipiens), que obriga este a restituir àquele (ou a entregar a quem o mesmo ordenar), de uma só vez ou por partes, o montante depositado, sendo a restituição devida em género (apenas em género); ac STJ 86.06.17, BMJ, 358/567; ac RC, 88.12.13, CJ, XIII, V/81; ac RP, 90.04.05, CJ, XV, II/228; ac RC 91.10.29, CJ, XVI, IV/123;Ferreira, Manuel Cavaleiro de, Depósito Bancário, Simulação, Falsificação, Burla, in Scientia Iuridica, XIX, Braga, 1970, pp. 46 ss.: no contrato de depósito bancário o depositante entrega ao banco uma determinada quantia, que este se obriga a reembolsar, nas condições de prazo e remuneração ajustadas; Seixas, Jaime, Depósito à Ordem, Depósito com Pré-aviso, Depósito a Prazo e Poupança-Crédito (emigrantes), Almedina, Coimbra, 1983: depósito bancário - a recepção, por parte das instituições de crédito, de disponibilidades monetárias ou outras análogas (cheques e vales do correio), que aplicam, de uma maneira geral, em operações activas de crédito (empréstimos), por sua própria conta e risco.] [Vd. Vasseur, Michel, Droit et Economie bancaires-les opérations de banque, Fáscicle III, Les Cours de Droit, Paris, 1988-1989, p.1334: ..., obrigando-se também a cumprir as ordens que o cliente lhe der.]. Cada depósito bancário corresponde à abertura de uma conta que exprime contabilisticamente o depósito efectuado[Vd. Xavier, Vasco da Gama Lobo & Coelho, Maria Ângela, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 5 de Março de 1987-Depósito Bancário a prazo, levantamento antecipado-Anotação, RDE, 14 (1988) p. 304, nota 27; Juglart, Michel & Ippolito, Benjamin, Banques et Bourses, in Traité de Droit Commercial, 7, 3ª ed., Montchrestien, Paris, 1991,p. 160: a conta é, por um lado, do ponto de vista material, um quadro de créditos e de débitos recíprocos de duas pessoas … ; e do ponto de vista jurídico, uma convenção pela qual o saldo dos créditos e dos débitos se realizará por compensação, obrigando-se o banco, por seu turno, a colocar os seus serviços à disposição do seu cliente (cobranças, pagamentos, transferências…); Canaris, op. cit., p. 104: do ponto de vista factual, a conta representa a soma de um documento de registo (lançamento), juridicamente podemos encará-la como um registo de comércio, e sobretudo a conta caracteriza a posição jurídica do cliente face ao banco.]. E é este contrato de abertura de conta que vai dar aos sucessivos movimentos um enquadramento jurídico comum, permitindo que se efectuem sem dificuldades: o cliente será titular de uma conta para onde, salvo vontade em contrário deste, serão levados os créditos adquiridos contra ele pelo banco (em virtude da entrega de fundos ou execução de mandatos), podendo dispor do saldo credor da mesma, através de reembolsos em dinheiro, ou através de meios de pagamento especificamente bancários (cheques e transferências). Graças à conta aberta, as operações procedem de uma única causa (o contrato originalmente celebrado com o banco), em lugar de serem fragmentadas numa série de depósitos, empréstimos ou reembolsos sucessivos, que exigiriam de cada vez que se verificasse um novo concurso de vontades [Vd. Ryn, Jean Van & Heenen, Jacques, Principes de Droit Commercial, 4, 2ª ed., Èmile Bruylant, Bruxelas, 1988, pp. 335/6; ac STJ, 91.01.24, BMJ, 403/447: é num só contrato, como que num bloco indivisível, que o banco e o cliente fundem todos os créditos de que reciprocamente são titulares, de modo que, se o saldo é credor, o banco apenas deve tal saldo e não cada uma das parcelas, em numerário ou não, que foram sucessivamente creditadas ao cliente; porém, se o saldo é devedor, é o cliente que o deve; assim, ao abrir-se uma conta, mesmo de depósito à ordem, tacitamente é estipulado entre o banco e o cliente que o 1º se obriga a manter à disposição do 2º não propriamente a soma das quantias por este depositadas, mas o saldo credor em cada momento operado a seu favor.]. Da característica dupla disponibilidade das quantias depositadas podem retirar-se os direitos e obrigações das partes: (1) O banco tem o direito de utilizar os fundos depositados; (2) O cliente tem o direito de exigir a restituição dos fundos; (3) As obrigações que resultam do contrato de depósito bancário estão a cargo do banco; (4) Este é obrigado a restituir a quantia depositada, quando o depositante o solicitar, ou no termo do prazo acordado; (5) Restituição na mesma espécie monetária do valor depositado [Vd. art. 207º CC, uma vez que se trata de depósito de coisa fungível.], que pode ser satisfeita mediante a remessa de fundos ao cliente ou através do cumprimento de ordens de pagamento, emitidas por este (cheques, transferências bancárias). O contrato de depósito bancário, para além de um contrato unilateral [Vd., em contrário, Principe, Ângela- La Responsabilità della Banca nei Contratti di Custodia, Quaderni di BBTC, 4, Milão, Giuffrè, 1983, p. 28: se aprofundarmos a estrutura do contrato, resulta que nem sempre corresponde à realidade a convicção de que sobre o depositante não incida qualquer obrigação…; no contrato de depósito bancário não surge somente a obrigação a cargo do banco de restituir o tantundem, mas também necessariamente a cargo do depositante a obrigação de deixar a coisa à disposição do depositário pelo tempo determinado no contrato ou por aquele necessário à finalidade para a qual a coisa foi entregue.], uma vez que dele só resultam obrigações para o banco, é um negócio real porque se exigem, além das declarações de vontade das partes, práticas de certos actos materiais: entregas ao banco das quantias que se depositam. É com estas que se produzem os efeitos próprios do contrato, só a partir desses momentos, havendo transferência do risco [Vd. art. 796º CC: se já existir acordo das partes, mas não tiver sido efectuada a entrega, o risco da perda de derivação da coisa corre por conta do depositante.]. Na modalidade de depósito à ordem, que é a que interessa ao caso, o depositante pode solicitar ao banco a entrega total das quantias depositadas quando quiser, em qualquer momento e independente de aviso prévio [Vd., Gonçalves, Luís da Cunha, Comentário ao Código Comercial Português, II, Lisboa, 1916, p. 382; Coelho, José Gabriel Pinto, Operações de Banco, RLJ, 81 (1948) nº 2875, p. 19; Uria, Rodrigo, Derecho Mercantil, 18ª ed., Marcial Pons, Madrid, 1991 p. 767: a principal característica deste depósito está no facto de o banco se obrigar a prestar ao depositante um serviço de caixa contínuo.]. Temos agora de ver que os depósitos bancários desempenham uma função da maior importância na actividade bancária, que é de interesse público, sendo os bancos auxiliares da vida financeira do Estado e um instrumento da actuação deste na vida económica [Vd. Camanho, Paula Ponces, Do contrato de Depósito Bancário, Almedina, Coimbra, 1988, p. 104 e p. 112; vd. tb. Luis, Alberto, O Problema da Responsabilidade Civil dos Bancos por Prejuízos que Causem a Direitos de Crédito, in ROA, 59 (XII, 1999), III, p. 913: …a disciplina dos depósitos bancários é, sem dúvida nenhuma, de ordem pública, como tal reconhecida no art. 104º CRP - o sistema financeiro é estruturado por lei, de modo a garantir a formação, a captação e a segurança das poupanças; a jurisprudência do Supremo Tribunal têm-se pronunciado no mesmo sentido, designadamente nos Acórdãos de 79.01.25 e 80.05.22.]. Na verdade, as instituições bancárias obtêm a maior parte dos recursos com o que financiam as operações activas a que se dedicam, através deles [Se nos primórdios, na Babilónia e na Grécia, o papel institucional daquilo que hoje são os bancos era o de colocar em segurança os fundos que os proprietários não utilizavam e não queriam conservar consigo com receio de furto ou outros perigos, mas permitindo que esses fundos dos depositantes pudessem ser utilizados, na contemporaneidade foi este último aspecto que se tornou hegemónico.]. 13.Uma das qualificações com mais partidários na doutrina [Vd. Carneiro, José Gualberto de Sá, anotação ao Ac RL, 68.07.24, RT, 87º, Porto, 1969, pp. 89 ss.; Varela, J. M. Antunes, Depósito Bancário, in Revista da Banca, 21, Janeiro/Março 1992, pp. 46, 65 e 66; Gonçalves, Luís da Cunha, op. cit., pp.382/2; Cochat-Osório, Depósitos Bancários – Compensação, in Revista da Banca, 13, Janeiro/Março 1990, pp. 86/7.] e na jurisprudência [Vd. ac RL, 82.03.18, CJ, VII, III/97; ac STJ, 86.06.17, BMJ 358/365: o contrato de depósito bancário, visando a segurança e conservação do dinheiro entregue, é um contrato de depósito irregular, através do qual se opera a transferência da propriedade desse dinheiro, pois o banco pode utilizar-se dele, consumindo-o; ac STJ, 79.07.19, BMJ, 289/345; ac STJ, 91.10.08, BMJ 410/805; ac STJ, 80.07.08, BMJ, 299/366: os depósitos bancários são designados irregulares, não só porque podem existir sem a prévia entrega de valores ao depositário, mas principalmente porque este é obrigado a restituir, não as próprias coisas recebidas, mas sim uma soma equivalente, visto o dinheiro ser uma coisa essencialmente fungível; ac STJ, 85.07.23, BMJ, 349/529; ac STJ, 93.10.19, BMJ, 430/475: através do contrato de depósito, na circunstância bancário, um cidadão entrega algo seu a uma instituição bancária, na medida da confiança que o comportamento e a solvabilidade dessa instituição lhe transmita, para que o guarde ou movimente mas (elemento sine qua non) lhe restitua em valor, nos termos do mesmo contrato; é o chamado contrato de depósito irregular a que se reportam os art.s 1205º e 1206º CC, na medida em que o objecto material desse contrato é uma coisa fungível, como dinheiro corrente; ac STJ, 95.02.09, CJ (STJ),m III, I/76; ac STJ, 96.03.21, CJ, (STJ) IV, II/83; ac RL, 80.04.22, CJ, V, II/230; ac RL, 83.03.17, CJ, VIII, II/114; ac RL, 83.06.09, CJ, VIII, III/152; ac RL, 94.05.26, CJ, XIX, III/105; ac RL, 95.06.27, CJ, XX, III/136; ac RP, 89.10.12, CJ, XIV, IV/216; ac RP, 94.10.10, BMJ, 440/544; ac RP, 97.03.04, CJ, XXII, II/191; ac RC, 91.09.17, CJ, XVI, IV/101; ac RC, 96.11.19, CJ, XXI, V/17; ac RC, 96.12.03, CJ, XXI, V/36; ac RE, 89.11.09, CJ, XIV, V/260;] considera-o um verdadeiro contrato de depósito, por ser marcado por uma função de custódia, invocando-se nomeadamente a génese histórica do instituto. Depósito irregular, visto que o depositário do numerário é obrigado a restituir somente o tantundem. Ainda assim, a obrigação de guarda e conservação da coisa teria aqui um recorte específico: corresponderia ao dever de aplicação, segundo as regras da arte, da soma depositada, enquanto a transmissão da propriedade da quantia para o banco surge como meio técnico do exercício da obrigação[Vd. Camanho, Paula Ponces, op. cit., p. 153.]. Contra a tese do depósito irregular, os defensores da teoria do mútuo argumentam: por um lado, é logo identificável um outro interesse do cliente, porventura mais relevante, no sentido de beneficiar do serviço de caixa que lhe é assegurado pelo banco, e um interesse principal do banco em receber as quantias disponibilizadas, para com elas poder financiar operações activas; por outro lado, o cliente nada retribui ao banco pela custódia do numerário (pelo contrário, é o banco que satisfaz juro ao cliente). Para Hamel, a qualificação como depósito irregular imporia o dever de o depositário conservar sempre nas caixas o montante igual ao das somas depositadas, podendo ser responsabilizado por abuso de confiança, caso contrário. Ora, ao banco é licito justamente dispor das somas depositadas para financiamento de operações activas [Vd. Hamel, Joseph, Le Droit du Banquier de refuser l´overture d´un compte, 1959, pp. 6/12.]. Além disso, consideram alguns autores que, no depósito irregular, a possibilidade de compensação é excluída, enquanto que no depósito bancário ela é admitida [Vd. Escarra, Jean, Principes de Droit commerciale, VI, Sirey, Paris, 1937, p. 255.]. Todavia esta crítica não procede face ao ordenamento jurídico português, pois o art. 852º CC, não exclui a possibilidade de compensação nos casos de depósito, contrariamente ao que sucedia no código de Seabra [Vd. art. 764º/4. Na vigência do Código Antigo, Pinto Coelho e Vaz Serra (vd., quanto a este autor, Compensação, BMJ 31/52, pp. 91/3) defendiam a impossibilidade da compensação.]. Assim, o contrato de depósito bancário apresenta-se estruturalmente idêntico ao mútuo: o fim económico do consenso é verdadeiramente a possibilidade de o banco se servir dos fundos disponibilizados pelos clientes, não lhe cabendo, como prestação essencial, a custódia [Vd. Ferrara Jr., F., Le Banche et le Operazione di Banca, Firenze, 1940, p. 324, onde se defende que, mesmo nos contratos de depósito, não faz a custódia parte deles, ou seja, da causa jurídica do contrato: o depositário para se colocar em condições de restituir, deve custodiar a coisa; a custódia é uma actividade teleológica ou de natureza instrumental, que o depositário deve observar para cumprir a sua obrigação; não é mais do que uma atitude particular da obrigação de restituir, faltando-lhe autonomia. Em sentido paralelo, vd. Inzitari, Bruno, Il danaro come “unità ideale”: conseguenze su circolazione e pagamento, in Tratatto di Diritto Cormmerciale e di Diritto Publico dell´Economia (org. Francesco Galgano), VI, Cedam, Pádoa, 1983, p. 51: não é possível conceber o depósito bancário como uma relação contratual com vista à custódia; esta … representa unicamente um meio para satisfazer o interesse do depositante à restituição da coisa; …um dos resultados da evolução não pode ser senão a acentuação da marginalização do aspecto da detenção fisico-material do dinheiro e, desta forma, da custódia.], à qual faltam, em espécie, os elementos dominantes: permanência no depositante da propriedade do dinheiro depositado e obrigação de o banco restituir o mesmo. No depósito bancário, tal como no mútuo, o mutuante transfere para o mutuário, i. é, o banco, a propriedade do objecto, que é constituído por coisas fungíveis, com a consequência de, em ambos os casos, quem receber a quantia não ser obrigado a restituir a coisa recebida, mas somente o equivalente. E referindo-se a obrigação de restituir à mesma espécie monetária, então o banco só terá de conservar em caixa os montantes que a experiência mostre serem suficientes para o reembolso. Por fim, tal como no mútuo, o cliente (mutuante) recebe frequentemente juro pelas quantias depositadas no banco. No que diz respeito ao depósito à ordem, a teoria do mútuo sofreu uma crítica de relevo: o montante dos fundos depositados varia constantemente, não podendo atribuir-se ao cliente a vontade de fazer um novo empréstimo ao banco de cada vez que o montante é creditado na sua conta, dado que esta inscrição é levada a efeito em virtude do contrato de abertura [Vd. Ryn, Jean Van & Heenen, Jacques, op. cit., loc. cit.]. Perante estas dificuldades, têm-se defendido a impossibilidade de reconduzir a uma única natureza jurídica o contrato de depósito bancário, devendo atender-se à função económica que desempenha, caso a caso. Os autores que defendem esta posição têm o depósito à ordem como contrato de depósito irregular e os depósitos a prazo como contrato de mútuo. No entanto, nem sequer é possível, segundo a prática, afirmar a absoluta indisponibilidade dos depósitos a prazo antes do seu vencimento: não parece, por consequência, ter utilidade pensar a natureza jurídica do contrato a partir da disponibilidade dos montantes depositados. Outra visão do problema aponta para o estabelecimento de uma relação complexa (contrato misto), presente um depósito irregular e simultaneamente um mútuo: a causa do contrato não será única, considerado o ponto de vista do cliente ou do banco. Porém, ainda que possam ser diferentes os interesses das partes no contrato, a causa é sempre uma só, tal como acontece quer no mútuo quer no depósito: no primeiro, não está em questão apenas o interesse do depositante em colocar em segurança o objecto do depósito; ao lado deste interesse, pode surgir o interesse do depositário (depósito oneroso) no recebimento do preço do serviço; no segundo, o interesse não é somente do mutuário, o mutuante satisfaz o interesse próprio de cobrar juros. 14.No ordenamento português, o contrato de depósito bancário não se encontra expressamente previsto na lei, muito embora existam diplomas que regulam as várias espécies de depósito [Vd. DL 430/91, 02.11; tb. DL 269/94, 25.10 (contas poupança – condomínio), DL 323/95, 29.11 (contas poupança – emigrante), DL 138/86, 14.06 (contas poupança – reformado) e DL 382/89, 06.11 (contas poupança – habitação).]. O art. 362º CCom., nem o contém na enumeração das operações de banco, mas o art. 406º do mesmo diploma, que prevê a situação em que o depositário pode servir-se da coisa entregue, para si ou para os seus negócios (como é o caso do depósito bancário), manda aplicar as regras do empréstimo mercantil, contidas nos arts. 394º ss. CCom.: aponta para a qualificação do contrato como mútuo [Vd. Coelho, José Gabriel Pinto, op. cit., nº 2883, p. 146. Entende ser duvidoso que o art. 406º Ccom. abranja os depósitos em dinheiro e mesmo que tal aconteça só se refere ao depósito feito em poder de qualquer outra pessoa, não ao depósito bancário, que é contemplado no art. 407º do mesmo código: com esta disposição especial o Código Comercial Português consagrou efectivamente, no dizer de Hamel, a independência do depósito bancário em relação ao depósito de direito comum.], tanto mais que o art. 407º do diploma reza: os depósitos feitos em banco… regular-se-ão pelos respectivos estatutos, em tudo quanto não se achar prevenido neste capítulo e demais disposições aplicáveis (o capítulo é justamente o que se refere ao contrato de depósito). A doutrina nacional que, como vimos, também defende a tese do depósito irregular [Vd. Carneiro, José Gualberto de Sá, anotação ao Ac RL, 68.07.24, RT, 87º, Porto, 1969, pp. 89 ss.; Varela, J. M. Antunes, Depósito Bancário, in Revista da Banca, 21, Janeiro/Março 1992, pp. 46, 65 e 66; Gonçalves, Luís da Cunha, op. cit., pp.382/2; Cochat-Osório, Depósitos Bancários – Compensação, in Revista da Banca, 13, Janeiro/Março 1990, pp. 86/7.], pronuncia-se ainda pela qualificação de contrato atípico [Anote-se a posição singular de Vasco Lobo Xavier e Ângela Coelho, op. cit., p. 300, que consideram o contrato de depósito bancário como figura sui generis, não enquadrável nem no contrato de depósito comum nem no contrato de mútuo, constituindo um contrato que, forjado primeiro na prática bancária, e posteriormente reconhecido pelo legislador como contrato nominado, ostenta características próprias que não permitem inclui-lo em qualquer dos modelos de contrato de direito comum.], não se podendo enquadrar naquela figura (falta do elemento guarda e conservação da coisa), nem nos contratos de mútuo (falta da característica do prazo[Vd. Athaíde, Augusto & Branco, Luís, Direito Bancário, I, Lisboa, 1990, pp. 322/3. Referindo-se ao art. 407º Ccom.: esta excepção parece atribuir carácter atípico ao depósito bancário de dinheiro, reconhecendo a lei não ser possível enquadrar esta figura … nos conceitos de depósito irregular ou de mútuo. Concluem: o depósito bancário em dinheiro … , em que avulta o aspecto da dupla disponibilidade … será regulado, antes de mais, pelo convencionado pelas partes e supletivamente pelas regras aplicáveis ao mútuo que sejam compatíveis com a possibilidade conferida ao depositante de, a qualquer momento, exigir a restituição de fundos.]), e, por fim, de contrato de mútuo [Vd. Coelho, José Gabriel Pinto, op. cit.; Carvalho, Carlos Manuel Ferreira de, Prontuário do Bancário, Enciclopédia Comercial/Bancária, 5ª ed., Castelo Branco, 1992. Camanho, Paula Ponces, op. cit.], nomeadamente no que diz respeito aos depósitos à ordem: o facto de nestes depósitos o cliente (mutuante) poder exigir a restituição imediata da quantia entregue não é impeditivo da qualificação; na verdade, o art. 1148º /1.2 CC. reveste natureza supletiva, podendo as partes, fixando o momento do vencimento da obrigação de restituição, e retomando o art. 777º /1 CC., convencionar a restituição imediata da quantia mutuada a pedido do mutuante sendo que, nestes casos, o preceituado na primeira disposição legal citada não terá aplicação[Vd. Camanho, Paula Ponces, op. cit., p. 250.]. A jurisprudência, para alem dos acórdãos que defendem a tese do depósito irregular [Vd. ac RL, 82.03.18, CJ, VII, III/97; ac STJ, 86.06.17, BMJ 358/365: o contrato de depósito bancário, visando a segurança e conservação do dinheiro entregue, é um contrato de depósito irregular, através do qual se opera a transferência da propriedade desse dinheiro, pois o banco pode utilizar-se dele, consumindo-o; ac STJ, 79.07.19, BMJ, 289/345; ac STJ, 91.10.08, BMJ 410/805; ac STJ, 80.07.08, BMJ, 299/366: os depósitos bancários são designados irregulares, não só porque podem existir sem a prévia entrega de valores ao depositário, mas principalmente porque este é obrigado a restituir, não as próprias coisas recebidas, mas sim uma soma equivalente, visto o dinheiro ser uma coisa essencialmente fungível; ac STJ, 85.07.23, BMJ, 349/529; ac STJ, 93.10.19, BMJ, 430/475: através do contrato de depósito, na circunstância bancário, um cidadão entrega algo seu a uma instituição bancária, na medida da confiança que o comportamento e a solvabilidade dessa instituição lhe transmita, para que o guarde ou movimente mas (elemento sine qua non) lhe restitua em valor, nos termos do mesmo contrato; é o chamado contrato de depósito irregular a que se reportam os art.s 1205º e 1206º CC, na medida em que o objecto material desse contrato é uma coisa fungível, como dinheiro corrente; ac STJ, 95.02.09, CJ (STJ),m III, I/76; ac STJ, 96.03.21, CJ, (STJ) IV, II/83; ac RL, 80.04.22, CJ, V, II/230; ac RL, 83.03.17, CJ, VIII, II/114; ac RL, 83.06.09, CJ, VIII, III/152; ac RL, 94.05.26, CJ, XIX, III/105; ac RL, 95.06.27, CJ, XX, III/136; ac RP, 89.10.12, CJ, XIV, IV/216; ac RP, 94.10.10, BMJ, 440/544; ac RP, 97.03.04, CJ, XXII, II/191; ac RC, 91.09.17, CJ, XVI, IV/101; ac RC, 96.11.19, CJ, XXI, V/17; ac RC, 96.12.03, CJ, XXI, V/36; ac RE, 89.11.09, CJ, XIV, V/260;], e havendo todavia decisões que acolhem a tese do contrato específico[Ac RL 79.02.02, CJ, IV, I/131: o depósito bancário é um contrato específico, cuja regulamentação, para além das regras próprias, é integrada pelos preceitos aplicáveis das formas contratuais do depósito irregular e do mútuo, em função dos interesses em presença dos depositantes e dos depositários, atenta a especial natureza do comércio bancário; Ac RC, 91.10.29, CJ, XVI, IV/123, onde o depósito bancário é tido por contrato inominado; Ac RP, 93.10.21, BMJ 430/513, no mesmo sentido do anterior.], tem outrossim defendido a teoria do mutuo [Ac RL, 68.07.24, BMJ 179/205,; ac STJ, 69.05.16, BMJ, 187/145: na ausência de critério legal é prevalecente a doutrina de que o depósito bancário tem a natureza jurídica de um verdadeiro mútuo de dinheiro; ac STJ, 75.03.18, BMJ 245/507; ac STJ, 95.06.20,BMJ 448/371.]. 15. Vaz Serra, p. ex. afirma que o deposito irregular se distingue do mútuo pelo seu fim económico, pois é predominantemente realizado no interesse do dador [Vd. Serra, Adriano Paes da Silva Vaz, Anotação ao Ac. STJ, 61.03.18, RLJ 94 (1961/62), 3213, pp.379/0. Cita em abono ac STJ, 93.10.19, Sub Judice-Novos Estilos, 10/173.]. Na verdade, só o critério do fim principal do contrato se mostra apto para a distinção, perante a analogia estrutural dos contratos, no dizer de Antunes Varela [Varela, J. M. Antunes, op. cit. p. 48.], e a neutralidade, digamos assim, dos preceitos que definem o mútuo e o depósito irregular, nos quais podem enquadrar-se uns e outros [Vd. desde logo o art.1206º CC, mandando aplicar ao deposito irregular as normas relativas ao mútuo. Pareceria não existir qualquer interesse na qualificação do deposito bancário como mútuo ou deposito irregular, todavia, o regime dos dois contratos, mesmo em face da remissão, que é feita na medida do possível, apresenta diferenças em alguns aspectos: ao depósito irregular são aplicáveis, em principio, as normas reguladoras do contrato de depósito com excepção das que são afastadas pela natureza especial que as partes imprimiram à obrigação de restituir, Pires de Lima & Antunes Varela, Código Civil Anotado, II, p.785.]. Tendo em consideração que os depósitos bancários constituem a principal fonte de financiamento dos bancos; que estes são actores dominantes da vida financeira dos estados; e que por isso o cliente mais procura o banco para usufruir do leque de serviços que este proporciona, (nomeadamente para ter acesso privilegiado ao crédito, ou mesmo com intuito de investimento), menos do que para guarda das quantias depositadas, teremos de concluir que o deposito bancário opera, desde logo, no interesse de ambas as partes, mas trata-se, em boa verdade, de uma operação que interessa ao depositário, ao depositante e à própria organização social como entidade produtora de riqueza e bem estar [Ac. RL, 79.02.02, CJ, IV, I/131.]. E sendo difícil apurar qual é o interesse prevalecente no contrato, tem defendido a doutrina que, nestes casos, deverá considerar-se um mútuo, pondo o acento tónico na coincidência da satisfação dos interesses do accipiens e do tradens, na mesma direcção do giro argentário. 16. Esta posição convence-nos dada a hodierna decadência das preocupações de segurança e custódia metálica. Afasta-se deste modo a pertinência de uma das traves argumentativas da sentença recorrida. Porém, segundo o provado, aquilo que o A. disponibilizou nem sequer foi uma quantia em dinheiro [Tenha-se em conta a natureza de negócio real do contrato de depósito bancário: é com a entrega de dinheiro que ocorre a transferência do risco, ibi pp. 12/13.], tendo entregue apenas ao banqueiro um cheque para ser cobrado, e fazendo apelo ao desígnio comum de obter os benefícios dos serviços proporcionados pelos bancos. É neste recorte do caso que teremos de investigar, agora com apelo aos deveres consignados pela lei e porventura pela boa fé, concretização de qualquer contrato de direito bancário (nomeadamente dos de abertura de conta), se pode proceder a tese sentencial. 17.Sob este ponto de vista, terão de enfrentar-se as questões prévias, de saber se na verdade a revogação do cheque foi operante; enfim, se há, para além disso, elementos que nos permitam aceitar não ter sido mesmo lançado na circulação. A primeira questão, quer vê-la resolvida o Ap.o na lei, pelo art. 32º LUC: a revogação do cheque só produz efeitos depois de findo o prazo de apresentação. Todavia, a emissão de um cheque não titula qualquer pretensão do tomador contra o banco sacado, e sendo aquele estranho à convenção de cobertura, mediante a qual os fundos disponíveis são utilizados por meio de cheque, não tem o banco sacado obrigação legal de lho pagar [Vd. Ac. STJ, 77.12.20, RDE, IV, 2 (Jul/Dez), 1978, pp.457/471, e Ac STJ, 89.05.10, BMJ 387/598. Esta concepção partiu de parecer da autoria de Ferrer Correia & António Caeiro, base da anotação ao Ac. STJ citado em 1º lugar, vd. id.& id., Recusa de Pagamento de Cheque pelo Banco Sacado - Responsabilidade do Banco face ao Portador, RDE cit.. Em contrário, vd. Luis, Alberto, op. cit., p. 899: o referido parecer, …não relevou o papel da actividade bancária de intermediação no crédito, nem a função de pagamento dos cheques que incumbe aos bancos sacados, nem o sentido da disciplina dos títulos de crédito que, naquilo que apresenta de desvios do direito comum, é o resultado de um mais intenso favor creditoris e de um correspondente sacrifício do devedor; e revela, além disso, a finalidade de facilitar a circulação e o emprego do título de crédito; …o cheque é um meio de pagamento criado para imprimir à provisão uma destinação específica que não pode ser modificada pelo sacador dentro do prazo de apresentação e que é vinculante para o banco na base da convenção de cheque…, porque este aceitou com a convenção de cheque a obrigação de obedecer à ordem do sacador nos limites da disponibilidade; é certo que a obrigação do banco não é de natureza cambiária: é uma obrigação extracambiária, sim, mas que tem o seu fundamento na convenção de cheque, cujo relevo não pode ser limitado às partes nela intervenientes, dado que tem o seu pressuposto legal no próprio ordenamento e na dinâmica do cheque; como diz G. Ferri, a execução da ordem por parte do banco deixa de ser um facto interno, e necessariamente assume relevo jurídico também perante o portador, o qual recebeu o cheque precisamente no pressuposto da existência e do cumprimento da convenção entre sacador e banco; o vínculo de destinação torna-se eficaz para o sacador no momento da emissão do cheque, e para o banco no momento da apresentação – momento em que a provisão deve subsistir para que o banco seja obrigado perante o sacador e o possuidor do cheque; e porque é decisivo para o sacador o momento da emissão, daí resulta que os eventos posteriores relativos à pessoa do sacador não modificam a situação criada com a emissão do cheque; neste sentido, dispõe o art. 33º LUC que a morte do sacador ou a sua incapacidade posterior à emissão do cheque não invalidam os efeitos deste; como se vê, é a própria lei que tutela os efeitos do cheque, em homenagem à função económica do título; deste modo, não pode o banco arbitrariamente, nem mediante contra-ordem do sacador e dentro do prazo de apresentação, frustrar a destinação dada à provisão mediante a emissão do cheque; o banco será, por isso, responsável perante o portador, se lhe recusar o pagamento. Ainda que a elegância da tese a torne sedutora, parece não colher, tendo-se em consideração a cesura estabelecida no regime do cheque pela entrada em vigor dos arts. 8º e 9º, Lei 114/97, 16.09; De qualquer modo, o cheque pode desempenhar, para além da função de pagamento, outras funções, como a função creditícia, embora através do seu uso irregular, dissimulador da normal função solutória, o que acontece, por exemplo, com a pós-datação, Pires, José Maria, op.cit., p. 37.]. Por conseguinte, a ineficácia comprovada da revogação do cheque em questão apenas joga nas relações entre o emitente e o tomador, que dispõe assim de acção cambiária, ou de responsabilidade civil, apenas contra este último. Ora, o recorrente recebeu a ordem de não pagamento do cheque no dia anterior à data nele aposta, e de apresentação. Não debitou o montante correspondente na conta do emitente. Donde, tem de se deduzir que não satisfez a ordem de pagamento, devolvido alias o cheque, com aposição, no verso, da menção e motivo da recusa (segundo o formalismo), continuando pois o Ap.o como portador legítimo do mesmo. Assim sendo, a escrituração de montante idêntico na conta do A., não tem justificação. Trata-se de lapso, tal como resulta da matéria comprovada. E esta conclusão a que chegamos dispensa-nos de enfrentar a segunda questão, inútil para boa solução do caso, se bem que o convénio de suspensão inicial da entrada em circulação de um cheque, se válido, não seja oponível ao banco sacado: por conseguinte, não procederia o invocado argumento, na ausência da procedência do primeiro. Ora, se a estrutura jurídica do contrato de depósito bancário (à ordem) impõe que o titular da conta possa movimentar livremente o saldo contábil disponível, certo é que pressupõe que esse seja um saldo exacto, consolidado: as operações de estorno, aceites segundo a prática comum [Tem toda a pertinência, neste domínio, o exemplo trazido à colacção, nas alegações do recurso, do lançamento a crédito (mas também se poderia falar do lançamento a débito) numa conta errada.], destinam-se justamente a acertar, com verdade, o dito saldo. Voltando a Menezes Cordeiro: podemos afirmar que a relação bancária, surgida com o contrato de abertura de conta, tem, para além do que as partes exprimam, o conteúdo que lhe advém dos usos e das cláusulas contratuais gerais, utilizadas na actividade bancária. E não se esqueça que os bancos têm um genérico dever, imposto por lei, de manter em boa ordem o arrumo e a escrituração dos livros, que reflicta a realidade das operações a que se dedicam. Aquilo que sucedeu, segundo o provado, foi portanto o resultado de uma reconfiguração verdadeira e em boa ordem dos lançamentos na conta do A.: este não podia exigir que o cheque lhe fosse pago pelo recorrente contra a ordem do titular da conta sobre a qual foi emitido. A actuação do recorrente foi por isso não só lícita, como legítima, não ofendeu os deveres impostos pela boa fé, inscrevendo-se no modelo contratual da abertura de conta ou do depósito bancário, e em benefício dos interesses, que em seu favor, este regula pontualmente. Seguiu enfim o corolário da regra pacta sunt servanda, vertido no art. 406º/1 CC, contrariamente ao concebimento da decisão recorrida. E outro modo de ver, ou seja o modo de ver sentencial, produz, sem dúvida, uma cobertura de uma deslocação patrimonial não autorizada na lei e, no limite, a deriva para um locupletamento à custa alheia. Este discorrer, por outro lado, elide a pertinência do argumento proibição da compensação, também utilizado na sentença de 1ª Instância (desde logo, por não deter o A. um crédito sobre o banco), mas não vá sem se dizer que, ainda assim, a estrutura básica da figura poderia estar presente: acaso se pudesse dizer que o A. tinha um crédito em numerário sobre o recorrente, por simples efeito formal da inscrição escritural errónea, também este tinha um contra-crédito, fundado em substancial enriquecimento sem causa, no qual a medida do empobrecimento coincide com a medida da vantagem não lícita, i. é, crédito e contra-crédito de iguais montantes. Porém, neste caso, o crédito do banco não é exequível (teria de haver sentença declarativa, ou reconhecimento expresso do cliente, que a matéria provada nega), outra das especificações para a possibilidade da compensação[Vd. art.847CC. Os pressupostos da compensação legal, e só esta estaria em jogo, são: a reciprocidade dos créditos, a validade, exigibilidade e exequibilidade do contra crédito, a fungibilidade do objecto, a existência e validade das prestações. A compensação pode resultar de acto unilateral de um dos credores/devedores, só se podendo dar, nestes casos, se se verificarem os requisitos do art. 847º CC; nesta hipótese, a lei prescinde do acordo de ambos os interessados... mas a compensação não opera automaticamente, sendo necessária a declaração de uma das partes à outra para se tornar efectiva (art.848º/1 CC); traduz-se num verdadeiro direito potestativo...; nada impede que o banco opere a compensação de um credito que tem sobre um cliente com o credito deste, decorrente de um deposito bancário que o mesmo tem no banco, desde que verificados os pressupostos de que a lei faz depender a possibilidade de compensação, Camanho, Paula Ponces, op. cit., p. 216 e p. 247.]. Enfim procedem as conclusões do recurso, não havendo evidentemente lugar à condenação por litigância de má fé. Mas isto não quer dizer que o Ap.o haja, por sua vez, de ser condenado sequer por lide temerária: tendo proposto a acção contra o banco e contra Álvaro .........., o propósito que evidencia é apenas o de pleitear por aquilo que reputou ser-lhe devido (o pagamento do cheque, tema apropriado a um litígio [Anote-se aqui que a absolvição de Álvaro .......... só não está em debate, por não ter sido interposto recurso, pelo Ap.o. De qualquer modo, o A. sempre poderia louvar-se na posição de Alberto Luis: Ac. RL, 79.02.02, CJ, IV, I/131.]), e na dúvida sobre a clara definição da situação envolvida, a opção de êxito contra um ou contra outro, se não é de mera prudência, é pelo menos de uma cautela não censurável. 18.Atento o exposto, visto o já citado art. 406º/1 CC, e o artº 762º/2 do mesmo Código, decidem dar provimento à apelação, revogando a sentença recorrida, e substituindo-a por esta em que se absolve o banco R. do pedido. 19.Custas pelo Ap.o, sucumbente. Porto, 13 de Novembro de 2000 António Augusto Pinto dos Santos Carvalho José Ferreira de Sousa António de Paiva Gonçalves (Votei a decisão, sem prejuízo de poder rever a minha posição após uma mais ampla reflexão sobre a matéria). |