Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0424278
Nº Convencional: JTRP00037268
Relator: MÁRIO CRUZ
Descritores: INQUÉRITO JUDICIAL
GERENTE
SOCIEDADE COMERCIAL
Nº do Documento: RP200410190424278
Data do Acordão: 10/19/2004
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: PROVIDO.
Área Temática: .
Sumário: I - O Código das Sociedades Comerciais não limita o direito à informação através de inquérito judicial aos sócios não gerentes ou não administradores.
II - Também um sócio gerente pode requerer a abertura de inquérito judicial.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I. Relatório

B....., solteira, maior, residente na Rua...., ....., ....., instaurou Inquérito Judicial previsto no art. 216.º-1 do CSC e no art. 1479.º do CPC

contra

1.º C....., Ld.ª, com sede na Av....., .....,
2.º D.....,
3.º E.....,
4.º F....., e
5.º G.....,
sendo os quatro últimos gerentes comerciais com domicílio profissional na sede da 1.ª Requerida,

pedindo

- que fosse ordenado inquérito judicial à Requerida, a fim de serem averiguados os seguintes factos:

a) Verificação da existência da deliberação em que assentou o acto praticado pelos gerentes F..... e E....., no Contrato de Trespasse realizado em 30-10-2002, junto sob o Doc. n° 8, com identificação dos gerentes que efectivamente autorizaram a sua realização.
b) Verificação dos motivos da não participação da Requerente nessa eventual deliberação, quando é certo ser titular de participação no capital correspondente a 50%, com apuramento da responsabilidade de cada um dos 2°, 3°, 4° e 5° Requeridos nessa irregularidade.
c) Verificação da conformidade do preço de (EUR) 325.000 com o valor dos bens do Activo Imobilizado que foram abrangidos pelo trespasse.
d) Verificação da situação da posição financeira da 1.ª Requerida à data do trespasse, com indicação das suas responsabilidades vencidas para com Terceiros, designadamente, dívidas ao Estado (IVA, IRC e Contribuições para a Segurança Social) e a credores comuns.
e) Verificação se foi feita prévia comunicação do trespasse à Administração Tributária, nos termos do art. 82° do Código de Procedimento e de Processo Tributário, ou se existe certidão comprovativa da inexistência de dívidas tributárias, bem como se foi feita comunicação do mesmo ao senhorio, apurando-se a data em que produziu efeitos no processamento das rendas.
f) Apreciação sobre se foi adequada, em termos da situação económica e financeira da 1.ª Requerida, a realização do trespasse, e dos motivos que conduziram à sua realização, com apuramento da responsabilidade de cada um dos Requeridos na prática desse acto.
g) Verificação da exactidão e do meio de pagamento do preço do trespasse, na quantia de (EUR) 325.000, com obtenção de cópia do extracto da Conta de Disponibilidades (Bancos ou Caixa) onde foi relevada a entrada do preço do trespasse.
h) Análise aos acontecimentos subsequentes à realização do trespasse, com verificação, após confirmação obtida de terceiros sobre os saldos das suas contas, se o produto do trespasse foi utilizado no pagamento de dívidas ou despesas da 1.ª Requerida, e, no caso afirmativo, o que pagou.
i) Verificação da regularização da operação do trespasse nos livros e registos contabilísticos da 1.ª Requerida.
j) Verificação do Activo e Passivo da 1.ª Requerida, imediatamente após a realização do trespasse, e na sua situação actual, com obtenção dos extractos dos movimentos das contas de Bancos respeitantes a esse período e apuramento do destino dado pelos Requeridos ao preço de (EUR) 325.000,00 que declararam ter recebido da trespassária.”
Mais requereu, que, ao abrigo do art. 1479.º do CPC,
k) fossem os Requeridos gerentes impedidos de exercer funções de gerência na 1.ª Requerida e de permanecer nas suas instalações,
l) e autorizada a Requerente a, por si só, vincular essa sociedade e praticar todos os actos que forem necessários ou convenientes para a realização do objecto social.

Para o efeito, alegou em síntese,

- Ser titular de 50% das quotas da sociedade 1.ª Requerida, e que os demais Requeridos são titulares dos restantes 50%,
- E ter a Requerente intentado contra os demais uma acção de indemnização por ter sido ilegalmente afastada da gerência da sociedade 1.ª Requerida, a qual veio a terminar com transacção judicial homologada em 2002.04.17, na qual todos os Requeridos se obrigaram solidariamente a pagar à Requerente € 25.000,00, em prestações, reassumindo a ora Requerente as funções de gerência.
- Como os Requeridos só pagaram a 1.ª prestação a Requerente instaurou execução dessa Sentença para cobrança do seu crédito, tendo sido penhorado à 1.ª Requerida o seu estabelecimento comercial designado “H.....”, restaurante brasileiro.
- No decurso da execução veio no entanto a saber que naquele local já se encontrava uma outra empresa, i.é, “I....., Ld.ª”,
- Pelo que tentou saber o que se havia passado e obter esclarecimentos pertinentes a tal negócio, dado que continuava a deter 50% do capital da empresa,
- Mas foi impedida de obter tais informações, sendo ainda empurrada e insultada, mais lhe sendo dito que não iria receber nada, apesar da Sentença do Tribunal.
- Soube entretanto que, por contrato particular, com data de 30 de Outubro de 2002, os Requeridos F..... e E..... “haviam trespassado” à referida sociedade “I....., Ld.ª” o aludido estabelecimento comercial e restaurante pertencentes à 1.ª Requerida, com todos os elementos que o integram, designadamente o direito ao arrendamento e trespasse, sendo essa entidade que está a usufruir das respectivas instalações, equipamentos e empregados, inclusive dos seus gerentes, que ali trabalham agora, diariamente, para a “trespassária”
- A referida alienação pôs fim à actividade da empresa de que a Requerente é sócia com 50% do capital, sem que tivesse havido deliberação social alguma, sem que a própria Requerente tivesse sido ouvida nem achada nesse negócio,
- Pretendendo pois conhecer informações pertinentes que o estatuto de sócia com 50% do capital lhe permite e assegura,
- Dadas as circunstâncias relatadas e de ter também conhecimento da existência de dívidas ao Fisco e a credores,
- Entende a Requerente que é de presumir que a informação pretendida sobre a actividade e negócios da sociedade lhe não será prestada, pelo que é aí que radica a necessidade do presente inquérito e lhe ser entregue a gerência da sociedade, com impedimento dos demais gerentes.

O M.º Juiz, no entanto, indeferiu liminarmente a petição, sustentando que aos sócios gerentes não é reconhecido o direito de pedirem inquérito judicial, ao invés do que se passa com os sócios não gerentes a quem seja recusado o acesso a essa informação ou lhes seja fornecida informação insuficiente, ou quando forem invocadas suspeitas de práticas susceptíveis de fazerem incorrer o seu autor em responsabilidade nos termos da lei.

Inconformada com a decisão, veio a Requerente a interpor recurso.

Este foi admitido como agravo, com subida imediata e efeito suspensivo, ao mesmo tempo que ordenou a citação dos Requeridos para os termos da causa.
A Requerente-agravante apresentou então as suas alegações de recurso.
O M.º Juiz manteve o despacho recorrido, ordenando consequentemente a subida dos autos.
..................................

II. Âmbito do recurso.

Vamos começar por transcrever as conclusões apresentadas pelo apelante nas suas alegações de recurso, já que, de acordo com o disposto nos arts. 684.º-3 e 690.-1 do CPC., é através delas que o âmbito do recurso fica delimitado.

Assim:

“1. Na sua qualidade de sócia titular de 50% do capital da 1.ª Requerida, embora seja também gerente nominal dessa sociedade, a Requerente pediu informações e esclarecimentos sobre um “trespasse” que se realizou sem a sua intervenção ou conhecimento.
2. A recorrente só formalmente é gerente da 1.ª Requerida, estando em conflito com esta e com os demais Requeridos, há vários anos.
3. A recorrente não obteve as informações e esclarecimentos que pediu, tendo também sido impedida de aceder aos escritórios da 1.ª Requerida a fim de efectuar a consulta de documentos e inspecção de bens sociais, para confirmar a realização do trespasse.
4. Assim, por estarem verificados os requisitos enunciados no art. 216.º do CSC, a recorrente tem legitimidade para requerer, como requereu, enquanto sócia, o inquérito judicial.
5. Ao decidir em contrário, e ressalvando sempre melhor opinião, a douta decisão recorrida violou a disposição legal acima citada.
Termos em que deve ser concedido provimento ao presente agravo e revogada a decisão recorrida, ordenando-se a substituição da mesma por outra em que se determine o prosseguimento dos autos de inquérito, como é de lei e de Justiça.”
............................

Em face de tais conclusões, vemos que se encontra suscitada uma única questão, que consiste em determinar se o pedido de inquérito judicial é meio processual adequado para o sócio gerente, alegadamente impedido/ameaçado de aceder à informação da sociedade pelos outros sócios gerentes com os quais se encontra incompatibilizado, poder vir a obter informação sobre os negócios, livros e documentos, e de, cumulativamente com esse pedido,
- conseguir impedir o acesso daqueles às instalações,
- retirar-lhes o poder de gerência,
- e conseguir ele próprio poder vir a vincular a sociedade e praticar todos os actos que forem necessários ou convenientes para a realização do objecto social.
..................................

III. Fundamentação

Os factos a ter em consideração para a análise do recurso são os já atrás relatados.
Importa por isso avançar para a apreciação da questão suscitada.

O direito à informação societária é um direito reconhecido ao sócio de uma determinada sociedade, de poder aceder à informação verdadeira, completa e elucidativa sobre a gestão da sociedade de que é sócio, com possibilidade de consulta da respectiva escrituração, livros e documentos na sede social.
O art. 214.º do CSC consagra o direito dos sócios à informação. No mesmo artigo estão previstas as condições do seu exercício, âmbito e objecto, cuja regulação pode no entanto ser feita através do contrato social em determinadas condições, e que o próprio artigo enuncia, e para o qual se remete.

O art. 573.º do CC, por sua vez, refere que “A obrigação de informação existe, sempre que o titular de um direito tenha dúvida fundada acerca da sua existência ou do seu conteúdo e outrem esteja em condições de prestar as informações necessárias.”

Desta forma, quando um sócio pretende obter informações da sociedade em que participa e as referidas informações lhe não são fornecidas pelos órgãos societários próprios ou lhe tenham sido fornecidas informações presumivelmente falsas, incompletas ou não elucidativas (cfr. 292.º do CSC), pode vir a obter essas informações através de acção judicial adequada ao exercício do direito social visado.
Assim, se o objectivo é obter informações sobre a gestão ou situação da sociedade e esteja alegada a negação de tais informações (ou a sua presumível falsidade, insuficiência ou não elucidação) por parte dos órgãos responsáveis, o meio judicial adequado próprio, é o processo de inquérito- art. 216.º do CSC, que remete a respectiva regulação para o art. 292.º e ss. do mesmo Código, e cujo ritualismo processual se encontra previsto nos arts. 1479.º e ss. do CPC.

O CSC, no entanto, e salvo o devido respeito, não limita o direito à informação, através de inquérito judicial aos sócios não gerentes ou não administradores, como parece resultar da douta decisão recorrida [Abílio Neto, Código Comercial -Código das Sociedades Comerciais - Legislação Complementar, Anotados, 10.ª ed., 1991, pg.499, em primeira anotação ao art. 214.º do CSC
No mesmo sentido o Ac. do STJ de 10 de Julho de 1997, como resulta da leitura integral do mesmo, e que se mostra publicado na CJ do STJ, ano V-1997- tomo II-pgs. 166-167, não obstante o sumário (que não é de autoria dos subscritores do Acórdão), dizer o contrário, por manifesto lapso de redacção ou de transposição.
A nossa posição encontra-se também sustentado no Ac. RL de 26 de Novembro de 1992, CJ, ano XVII-1992-tomo V-pgs 129-131
Mais recentemente, em 1 de Fevereiro de 2000, pronunciou-se esta Relação no sentido por nós propugnado, no processo 1595/99, e em que foi Relator o Desembargador Gonçalves Vilar, sumário 883, Sumários de Acórdãos deste no Tribunal da Relação, Boletim n.º 9, pg. 15.
E também desta Relação, e mesmo sentido, o Ac. de 2 de Dezembro de 2002, de que foi Relator o Desembargador Pinto Ferreira, in CJ, 2002-tomo V, pg. 188.].
Se há alguém que tem que estar devida e completamente habilitado e a par dos negócios da sociedade são os respectivos membros dos corpos sociais, entre os quais os directores, administradores ou gerentes, que, por qualquer razão, aleguem exclusão, secretismo, barreiras, ou obstáculos ao exercício da sua actividade por parte dos outros membros, ou que alegadamente sejam por eles impedidos de exercer os direitos de administração ou gerência, ou de aceder à documentação da sociedade.

A afirmação de que não é admitida a abertura de inquérito judicial quando requerida por um sócio gerente só se justifica – salvo o devido respeito – quando não há conflitualidade entre os gerentes ou com os demais órgãos sociais.
A explicação parece-nos óbvia:
Se não há conflito, a gerência não tem que pedir ao Tribunal que investigue, através de inquérito judicial, os actos dos próprios requerentes, nem faz sentido que seja requerido o acesso à informação e a documentos que estão em poder deles próprios ou aos quais ele livremente aceda ou possa aceder...
É que o Tribunal só deve ser chamado a intervir quando há litígios, ofensas de direitos ou deveres, ou obstáculos inultrapassáveis ao exercício duns e doutros.

Daí que, salvo o devido respeito, nos pareça não ser a mais correcta a posição formulada pelo M.º Juiz, de que ao caso não caberia processo de inquérito judicial [Na decisão recorrida cita o M.º Juiz diversa Doutrina e Jurisprudência onde pretende ver alicerçada a sua posição:
Cita Raúl Ventura, in Sociedades por Quotas, Comentário ao CSC, vol. I-1987, pag 286 e Coutinho de Abreu, in Curso de Direito Comercial, vol II, Das Sociedades, Almedina, pgs. 260 e ss., bem como dois Acórdãos do STJ (um de 97.07.10, in CJ do STJ, II-pgs. 166 e 167 e outro de 96.05.23, in CJ do STJ-1996-tomo II, pg. 86) e um da RL (Acórdão de 2002.02.07, CJ, 2002-tomo I-103.
No entanto, e salvo o devido respeito, a posição sustentada por Raúl Ventura, negando ao sócio gerente o direito de pedir inquérito judicial, funda-se na desnecessidade de o vir a solicitar, porque o direito lhe está reconhecido até com maior amplitude. Ora, como o próprio Il. Prof. reconhece, por vezes “pode surgir algum conflito entre gerentes”, o que pode criar algumas dificuldades. Segundo esse Il. Professor, mesmo assim não será bastante para accionar o 216.º do CSC - exercendo o direito à informação através do inquérito judicial . Defende este Il. Professor que, mesmo nesses caos, esses problemas se resolvem por outros processos, que não o de inquérito. Para isso recorreu à comparação da redacção do actual art. 216.º do CSC, com a constante do Anteprojecto. Na redacção final ficou referido que pode o sócio pedir inquérito judicial (com isso pretendendo concluir que, dessa maneira, ficaram afastados os sócios gerentes ).
Este argumento, salvo o devido respeito, convence-nos precisamente do contrário: O art. 216.º do CSC, ao fazer alusão ao “sócio” (retirando a expressão “sócio não gerente” utilizada no Anteprojecto), foi para poder ser alargado o âmbito do inquérito a qualquer sócio (gerente ou não), e não para excluir de tal direito o sócio gerente. Esta nossa posição não é de resto original, encontrando-nos em total sintonia com a interpretação que a esse respeito foi feita no Ac. da RL de 2 de Dezembro de 1992, referindo parecer muito mais realista a posição sustentada por Abílio Neto in “Notas Práticas ao Código das Sociedades Comerciais, pg. 305.
Não vemos, na verdade, por que não possam resolver-se através do inquérito judicial - ainda que este esteja limitado ao período de tempo em que o sócio gerente esteve ou se encontre impedido de acesso à escrita, documentos, livros, negócios, ou outras informações por parte dos outros sócios gerentes que alegadamente lhe impedem o acesso às respectivas instalações, tanto mais que, no seio deste processo, atenta a sua natureza de “jurisdição voluntária”, podem ser decretadas medidas diferentes das que foram peticionadas, designadamente de afastamento de outros sócios gerentes e de investidura do sócio afastado, como aliás defendemos no corpo do Acórdão.
É que na verdade, o processo de investidura em cargo social para o sócio gerente que se mostre impedido do respectivo exercício – que se encontra previsto nos 1500.º e 1501.º do CPC - e para o qual o Ac. do STJ de 1997.07.01, BMJ,469-570 aponta, pode mostrar-se, - e mostra-se no caso em presença – como naturalmente insuficiente para a situação aqui pretendida, pois a simples investidura no exercício do cargo pode não ser suficiente para a informação integral dos negócios da sociedade durante o período da sua gerência para a qual foi alegadamente impedida de exercer o poder de facto, além de que importa não perder de vista que o objectivo da Requerente vai muito para além da simples investidura na gerência de facto, dado que pretende também ver suspensos os demais sócios gerentes, situação que o processo de investidura em cargos sociais, por si mesmo, não contempla, mas que o de inquérito judicial permite que o Juiz adopte como resultado daquele – art. 1482.º do CPC.
Como sublinhou o Conselheiro Roger Lopes no seu voto de vencido no Ac. do STJ de 1996.05.23, o sócio gerente acumula os direitos correspondentes aos de um simples sócio com os direitos e deveres dos sócios gerentes, encontrando-se por isso, na sua inteira disponibilidade a escolha do meio processual que tenha por mais adequado ao quadro de facto porventura existente.
Não tivemos oportunidade de consultar Coutinho de Abreu, pelo que não sabemos se avança com alguma explicação ou justificação mais forte que a utilizada por Raúl Ventura, da qual – como já dissemos – discordamos relativamente às situações de conflito entre sócios gerentes de facto e sócios gerentes impedidos por aqueles de intervirem na vida da sociedade, e que por isso pretendem estar a par da situação da sociedade relativamente ao período em que foram compulsivamente afastados pelos demais sócios gerentes, pois que só com um conhecimento real e efectivo de determinado tipo de negócios é que o sócio gerente, abusiva ou ilegalmente privado do exercício desse direito, poderá estar em condições para participar activamente nos negócios da sociedade, dando-lhe o necessário seguimento ou para poder impugnar ou questionar as deliberações tomadas contra os interesses da sociedade ou de alguns sócios.
De referir também:
- Que a alusão ao sustentado no Ac. do STJ de 97.07.10, e no qual a douta Sentença recorrida se pretende também estribar, encontra-se errada, porque o Acórdão sustenta precisamente contrário. Por manifesto lapso de quem redigiu o sumário desse Acórdão para a CJ ou por manifesto lapso de transposição dactilográfica de quem a efectuou, ficou a constar do sumário respectivo precisamente o contrário do que foi sustentado no texto do Acórdão
- Que o Ac.do STJ de 96.05.23 não contempla o impedimento do sócio gerente, por parte dos outros sócios, de poder aceder livremente aos livros e documentação da sociedade, e no qual o pedido de inquérito é formulado por quem ainda exerce de facto poder de gerência. (Concordamos inteiramente que é vedado o pedido de inquérito de um sócio gerente afastado ao período da sociedade relativamente ao período em que ele exerceu livremente a gerência, mas discordamos de que não possa pedir inquérito judicial aos actos praticados pelos demais gerentes durante o período em que ele esteve impedido de exercer de facto esse seu múnus.
- Que o Ac. da RL de 2002.02.07 se apoia essencialmente em Raúl Ventura, mas que, conforme já acima fizemos referência, não vemos que esteja adaptado à situação de o pedido de informação partir de sócio gerente impedido de aceder ao conhecimento dos negócios da sociedade, documentos, livros, etc. por parte de outros sócios gerentes.].

A ser assim, interessava definir então qual o meio processual adequado a impedir a continuação de negação de informação ao sócio gerente (a quem tal informação é supostamente negada ou impedido de a obter pelos demais sócios gerentes), de tal modo que se pusesse no bom caminho o correcto exercício das funções sociais por parte de todos os seus membros ou viesse a ser exercido o poder na sociedade de acordo com o escopo da própria sociedade, na observância de todos os legais direitos e deveres dos membros responsáveis por ela.

Ora é aqui que convém trazer à colação que o próprio inquérito judicial se não esgota numa pura investigação da sociedade, na medida em que o art. 216.º do CSC, remetendo a sua regulação para o art. 292.º do mesmo Código, prevê, no seu n.º 2, que o Juiz pode, conforme o disposto no CPC, ordenar:
a) a destituição de pessoas cuja responsabilidade por actos praticados no exercício de cargos sociais tenha sido apurada;
b) a nomeação de um administrador ou director;
c) a dissolução da sociedade (...)

O n.º 3 enuncia, por outro lado, que o administrador ou director nomeado pode, conforme for determinado pelo Tribunal:
a) ....
b) assegurar a gestão da sociedade, se, por causa de destituições fundadas na alínea a) do n.º anterior, for caso disso;
c) praticar os actos indispensáveis para reposição da legalidade.

A alínea c) do n.º 3 (do art. 292.º do CSC), por sua vez, tem o seu natural desenvolvimento no n.º 4 do mesmo artigo, pois aí vem referido que “o Juiz pode suspender os restantes administradores ou directores que se mantenham em funções (leia-se aqui “gerentes”, ex vi da remissão estabelecida no art. 216.º-2 do mesmo Código) ou proibi-los de interferir nas tarefas confiadas à pessoa nomeada.”

Donde, se não conseguir ver uma razão forte, subsistente e fundada para negar liminarmemte ao sócio gerente - alegadamente impedido pelos demais sócios gerentes de exercer os seus direitos (entre os quais, a faculdade de obter informação e de aceder aos poderes de gestão da sociedade) – a faculdade de cumulativamente com o pedido de investigações no inquérito judicial à sociedade, formular, como corolário dessa investigação (art. 292.º-2 do CSC) ou mesmo como medida cautelar a adoptar na pendência desse processo investigativo (art. 1481.º do CPC), o pedido de suspensão dos poderes de gerência dos outros membros e do pedido de autorização para esse mesmo Requerente poder, só por si, praticar e obrigar a sociedade nos actos que seja indispensável assumir.
Se devem ser atendidos na íntegra aos pedidos formulados pela Requerente (designadamente o de suspender da gerência os demais sócios gerentes e de ficar ela Requerente com o poder de, só por si, obrigar a sociedade), são pedidos a considerar, entre os tantos outros que a Requerente formulou, e que o M.º Juiz, em devido tempo, após as indispensáveis diligências, devidamente ajuizará.- art. 1482.º do CPC.

De trazer à colação também que os processos destinados a tutelar o exercício de direitos sociais constituem uma secção própria (secção XVII- art. 1479.º- 1501.º) do capítulo XVIII – arts. 1409.º a 1507.º-D, do título IV, livro III do CPC.
Basta por isso lembrar que se inserem entre os processos de jurisdição voluntária, onde a latitude de investigação do Tribunal é livre, e em que as providências a tomar não obedecem a critérios de legalidade estrita, devendo antes adoptar-se em cada caso, a solução que se julgue mais conveniente e oportuna, sendo certo que, nos termos do art. 1481.º do CPC, “Durante a realização do inquérito, pode o Tribunal ordenar as medidas cautelares convenientes para garantia dos interesses da sociedade, dos sócios ou dos credores sociais, sempre que se indicie a existência de irregularidades ou a prática de quaisquer actos susceptíveis de entravar a investigação em curso, aplicando-se com as necessárias adaptações, o preceituado quanto às providências cautelares.”
Donde, dever ainda ter-se em consideração que, nos termos do art. 392.º do CPC, e na fase do inquérito, o Tribunal não está adstrito à providência concretamente Requerida, pelo que a pode extravasar, adaptando o processo, designadamente através da autorização da cumulação de providências a que caibam formas de procedimento diversos (como a investidura em cargos sociais), nos termos dos n.ºs 2 e 3 do art. 31.º, ou seja, sempre que nela haja interesse relevante ou quando a apreciação conjunta das pretensões seja indispensável para a justa composição do litígio, adaptando o processo.

Em face do exposto, afigura-se-nos que a decisão recorrida, ao indeferir liminarmente o pedido de inquérito judicial não fez a interpretação que se nos afigura como sendo a mais correcta relativamente ao âmbito de aplicação do art. 216.º do CSC..

Justificar-se-á, portanto, o provimento do agravo.
...............................

IV. Deliberação

No provimento do agravo, revoga-se a não obstante douta decisão recorrida, ordenando-se a sua substituição por outra que - admitindo o inquérito judicial como o meio processual próprio para que se possa atingir e contemplar os objectivos pretendidos pela Requerente – dê seguimento ao processo.
Sem custas.
*
Porto, 19 de Outubro de 2004
Mário de Sousa Cruz
Augusto José Baptista Marques de Castilho
Maria Teresa Montenegro V C Teixeira Lopes