Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRP000 | ||
Relator: | JOAQUIM GOMES | ||
Descritores: | PROVA POR RECONHECIMENTO MEIOS DE PROVA | ||
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Nº do Documento: | RP20100922125/08.4GAPRD.P1 | ||
Data do Acordão: | 09/22/2010 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | REC. PENAL. | ||
Decisão: | PROVIDO. | ||
Indicações Eventuais: | 1ª SECÇÃO. | ||
Área Temática: | . | ||
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Sumário: | I- É criminalmente atípica a obtenção de fotografias ou filmagens, mesmo sem consentimento do visado, sempre que exista justa causa nesse procedimento, designadamente quando as mesmas estejam enquadradas em lugares públicos, visem a realização de interesses públicos ou que hajam ocorrido publicamente. Porém, II- A violação da disciplina legal do reconhecimento de pessoa [147º CPP] conduz a que as fotografias ou filmagens adquiridas para o processo não possam valer como prova. III- Constitui valoração ilícita de prova o reconhecimento pessoal do arguido efectuado mediante o visionamento dos fotogramas captados por um sistema de videovigilância sem que se seguisse a “homologação” dessa identificação perante o MºPº, na fase de inquérito, ou se concedesse a possibilidade desse visionamento pela defesa, ou mesmo pelo Tribunal e pela acusação. | ||
Reclamações: | |||
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Decisão Texto Integral: | Recurso n.º 125/08.4GAPRD.P1 Relator: Joaquim Correia Gomes; Adjunta: Paula Guerreiro. Acordam, em Conferência, na 1.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto I.- RELATÓRIO 1. No PC n.º 125/08.4GAPRD do 1.º Juízo Criminal do Tribunal de Paredes, em que são: Recorrente/Arguida: B……… Recorrido: Ministério Público Recorrida/Demandante: C……… por sentença de 2010/Fev./09, a fls. 188-197, foi a arguida condenada, para além de taxa de justiça e custas, pela prática, como autora material e na forma consumada, de um crime de dano da previsão do art. 212.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 100 (cem) dias de multa à taxa diária de €5 (cinco) euros, bem como a pagar à demandante a quantia de € 4.425,74, respeitante a danos patrimoniais e € 250 a título de danos não patrimoniais, acrescidas dos respectivos juros vincendos e vencidos desde a citação. 2.- A arguida interpôs recurso por fax expedido em 2010/Mar./03, a fls. 242 e ss., pugnando que seja declarada a nulidade da prova produzida, absolvendo-se a recorrente, concluindo, resumidamente, que: 1.º) A sentença baseia-se no depoimento das testemunhas de acusação que sustentam o referido depoimento no visionamento de um filme proveniente de um sistema de videovigilância de um edifício, mas cuja prova é nula [1-5]; 2.º) Resulta do Relatório de informação junto a fls. 91 e 92 que os discos rígidos entregues à GNR foram devolvidos sem que fosse possível retirar qualquer fotograma ou visionamento dos mesmos, encontrando-se os mesmos danificados, não tendo qualquer autoridade judicial visto o que constava nos mesmos [6-10]; 3.º) A requerida assim como as testemunhas tiveram acesso ao conteúdo de videovigilância que lhe são estritamente proibidos, sendo o seu visionamento ilegal [11-13]; 4.º) A única testemunha imparcial, o Sr. D…….. admite que “não permitem ver bem a cara da pessoa que estava a levar a cabo a pintura do veículo …” [14]; 5.º) Não era possível que as outras testemunhas reconhecessem a recorrente [15-17] 6.º) A prova produzida não tem valor jurídico uma vez que o conhecimento dos que depuseram foi obtido de forma indirecta e ilícita violando a Lei n.º 67/98, de 16/Out., mais concretamente os seus art. 15.º, n.º 1, al. a), b), c) e e), bem como o disposto nos art. 26.º, n.º 2 da Constituição e 80.º do Código Civil, sendo tal prova nula [18-26]; 7.º) Também foi violado o princípio "in dubio pro reo" contido no art. 26.º, da Constituição, sendo certo que as referidas imagens não foram visionadas em audiência de julgamento onde efectivamente se produz prova [27-31]. 3. O Ministério Público respondeu em 2010/Mai./06, a fls. 271-277, pugnando pela improcedência do recurso. 4. Nesta Relação o ilustre PGA emitiu parecer a fls. 285-287, sustentando que recurso merece provimento, porquanto foi valorada prova proibida [125.º do C. P. P:], destacando-se do mesmo o seguinte: -- os depoimentos que sustentaram a convicção do tribunal têm de considerar-se indirectos nos termos do art. 129.º, n.º 1 e 2 do C. P. P., equiparando-se o visionamento das imagens captadas por terceiros “à leitura de documento de autoria de pessoa diversa da testemunha”. -- o tribunal recorrido não se certificou quer da legalidade do sistema de videovigilância, quer da impossibilidade legal de visionamento das imagens por parte das pessoas que depuseram em face da Lei n.º 76/98, de 26/Out., nomeadamente os seus art. 14.º e 15.º 5.- Cumpriram-se os vistos legais, colheram-se os vistos legais nada obstando que se conheça deste recurso. * O objecto deste recurso reconduz-se à valoração do depoimento das testemunhas que teve por base o visionamento das imagens do sistema de videovigilância.* II.- FUNDAMENTAÇÃO* * 1.- A sentença recorrida Na parte que aqui releva, transcrevem-se as seguintes passagens: “II -Fundamentação – Resultou provado com interesse para a decisão da causa que: No dia 2 de Fevereiro de 2008 a ofendida C…….. estacionou o seu veículo marca “Citroën Jumper” de cor branca e com inscrição do logótipo da sua sociedade “E…….” e com matrícula ..-AT-.., junto à sua residência na Rua ……, em frete ao edíficio ….., em Paredes. Cerca das 21h00 desse mesmo dia a arguida munida de tinta vermelha e de forma não concretamente apurada pintou de vermelho várias partes do aludido veículo, designadamente, o vidro dianteiro e lateral e o capô. Em consequência da sua actuação a arguida causou à ofendida C…….. um prejuízo patrimonial que ascende a €4.425,74 ainda não ressarcido decorrente de ter tido que pintar novamente o veículo. A arguida agiu voluntária, livre e conscientemente, com intenção concretizada de estragar a pintura do veículo pertencente à ofendida C…….., não obstante saber que o mesmo lhe não pertencia e que agia contra a vontade da sua legítima dona. Tinha perfeita consciência que a sua conduta era proibida e sancionada por lei. A demandante, em consequência da sobredita actuação da arguida/demandada sentiu mal-estar, humilhação e desconsideração. Nada consta no certificado de registo criminal da arguida ……………………………………… Não resultaram não provados quaisquer factos com interesse para a decisão da causa. C – Motivação de Facto e Exame Crítico das Provas I -Quanto à factualidade provada: O Tribunal formou a sua convicção assente no depoimento da testemunha F…….. ex-marido da arguida e actual companheiro da assistente que de forma franca, expedita e absolutamente credível, revelou que na sequência de ter sido alertado no dia seguinte de manhã por vizinhos da situação do veículo e após ter verificado o seu estado tal como documentado nas fotografias juntas aos autos, diligenciou por obter o visionamento das filmagens das câmaras de vigilância existentes no edifício. Mais afirmou de igual modo que tendo conseguido o pretendido visionamento reconheceu sem qualquer dúvida a sua ex-mulher a levar a efeito a pintura do carro, ainda que não tivesse podido vislumbrar a forma como foi aquela efectuada, designadamente se o foi com tinta spray, resultando da própria filmagem a hora a que tal ocorreu, sendo certo que aconteceu em dia de anos da sua mãe e quando ele e a assistente foram a casa daquela, tendo saído e entrado pela garagem (e por isso não tendo detectado logo o seu estado). Do respectivo depoimento coerente, corroborado pela demais prova produzida e bem assim pelas regras da experiência, resulta ainda não ter sido possível remover a pintura aplicada, o que implicou pintar novamente todo o veículo e repor as letras relativas ao estabelecimento da assistente. O visionamento da filmagem respeitante à actuação da arguida é ainda corroborado pela sua ex-sogra e testemunha G…… e bem assim pela testemunha D………, prestador de serviços no prédio residência então e agora da assistente. A testemunha D…….. confirmou a existência de câmaras de vigilância no aludido prédio, designadamente, nas entradas e garagens, devidamente aprovadas, e que solicitado o visionamento das imagens pela testemunha F………, e uma vez obtido o consentimento do administrador, aquele logo identificou a sua ex-mulher. Por outro lado, o facto da testemunha D…….. ter revelado não permitirem as imagens ver bem a cara da pessoa que estava a levar a cabo a pintura do veículo, em nada contende com o depoimento da testemunha F…….. que foi peremptório em afirmar ter reconhecido aquela com quem foi casado e com quem privou de forma naturalmente próxima, sendo certo que resulta das mais básicas regras da experiência e normalidade que conhecemos e identificamos a imagem de alguém que nos é próximo não só pela face, mas também pela forma de vestir, de andar, de se movimentar e quando é também certo, segundo a mesma testemunha que o local é bem iluminado por luz pública. Acresce que a postura reconhecidamente animosa da arguida perante a assistente, actual companheira do seu ex-marido e perante este, ao invés de simplesmente a “indicar” como suspeita “natural”, corrobora na íntegra a sua identificação e é reveladora do móbil da sua actuação. O tribunal atendeu ainda às fotografias juntas aos autos a fls. 7 e ss. e identificadoras do veículo e dos respectivos estragos. Às facturas de fls.80, 81 e 82, corroboradas elas declarações da assistente e da testemunha F…….. quanto ao valor da pintura e dizeres publicitários. E bem assim nos depoimentos das testemunhas F……. e G…….. quanto ao incomodo, mal-estar e humilhação sofridos pela assistente em consequência da actuação da arguida. E ao CRC junto aos autos quanto à ausência de antecedentes criminais da arguida. Quanto à intenção da arguida, não resultando dos autos que a mesma não seja pessoa medianamente dotada, a mesma sabia que ao pintar o veículo em questão da forma como o fez tal era susceptível de provocar os estragos que efectivamente provocou, o que quis.” * 2.- Os fundamentos do recurso.O regime de proibições de prova no âmbito do processo penal, encontra-se essencialmente regulado pelo preceituado nos art. 125.º, 126.º, do Código Processo Penal[1], os quais devem ser conjugados com as garantias constitucionais de defesa, consagradas no art. 32.º, da Constituição (C. Rep.), como seja a nulidade da prova imposta pelo seu n.º 8, bem como com as disposições específicas que disciplinam a obtenção do meio de prova. Por outro lado, a prova realizada na audiência de julgamento está sujeita ao princípio do contraditório, não só como decorrência das garantias de defesa (32.º, n.º 5 C. Rep.), mas também como uma das dimensões exigidas pelo direito a um processo equitativo (20.º, n.º 4 C. Rep.; 10.º, DUDH; n.º 14.º, n.º 1 PIDCP; 6.º, n.º 1 CEDH; 47.º § 2 CDFUE). Deste regime podemos assentar que a realização da justiça penal, num Estado de Direito Democrático, como pretende ser o nosso, deve sempre assentar no respeito e garantia dos direitos fundamentais dos cidadãos, mormente da preservação da dignidade humana. Assim, logo o citado art. 32.º, n.º 8 da C. Rep. é claro ao preceituar que “São nulas todas as provas obtidas mediante tortura, coacção, ofensa da integridade física ou moral da pessoa, abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações.” No mesmo sentido se situa o preceituado no art. 126.º, ao enunciar os métodos proibitivos de prova, indicando como um deles, que para aqui releva, “as provas obtidas mediante intromissão na vida privada”. No que concerne à valoração da prova obtida por reproduções mecânicas, no qual se inserem as relativas aos sistemas de videovigilância, haverá ainda que atender ao disposto no art. 167.º, n.º 1 segundo o qual as mesmas “só valem como prova dos factos ou coisas reproduzidas senão forem ilícitas, nos termos da lei penal” – o seu n.º 2 acrescenta que “Não se consideram, nomeadamente, ilícitas para os efeitos previstos no número anterior as reproduções mecânicas que obedecerem ao disposto no título iii deste livro”. Deste art. 167.º, n.º 1, resulta assim uma nítida modelação ou influência do direito penal no regime de proibição das provas.[2] Nesta conformidade, podemos desde já concluir que o regime da legalidade da prova, enquanto “imperativo de integridade judiciária”, que tanto versa sobre os meios de prova[3] (título ii), como os meios de obtenção de prova[4] (título iii), vem assim comprimir o princípio da livre apreciação da prova decorrente do art. 127.º, estabelecendo as correspondentes proibições de produção ou de valoração de prova. Por outro lado e como segunda conclusão, tratando-se de prova proibida, a mesma deve ser oficiosamente conhecida e declarada em qualquer fase do processo, surgindo como autênticas nulidades insanáveis, a par daquelas que expressamente integram o catálogo do art. 119.º. A propósito da utilização do sistema de videovigilância como meio de prova já se entendeu que “Os fotogramas obtidos por câmaras de vídeovigilância, instaladas nas proximidades de postos de combustível, ou de centros de lavagens, para protecção dos seus bens e da integridade física de quem aí se encontra, eventualmente sem licenciamento da Comissão Nacional de Protecção de Dados, não constituindo a sua obtenção crime de devassa da vida privada, nem crime de devassa por meio informático, não constituem provas obtidas por método proibido” [Ac. R. P. de 2008/Mar./26 (CJ II/223); seguindo no mesmo sentido o Ac. R. L. de 2009/Mai./28 (CJ III/135)].[5] E isto porque de acordo com a Lei n.º 67/98, só o não cumprimento intencional das obrigações relativas à protecção de dados, designadamente a omissão das notificações ou os pedidos de autorização a que se referem os artigos 27.º e 28.º, constituem o crime da previsão do art. 43.º dessa lei, pois tratando-se de uma conduta negligente haverá apenas a contra-ordenação cominada no antecedente artigo 37.º. Por sua vez, o direito à imagem, que se encontra constitucional (26.º da C. Rep.) e legalmente (79.º, n.º 1 C. C.) consagrado, poderá ser restringido por exigências de policia ou de justiça (18.º, n.º 2 C. Rep., 70.º, n.º 2 C. C.), sendo o único limite para essa justa causa a inviolabilidade dos direitos humanos e, como tal, a inadmissibilidade de atentados intoleráveis à liberdade, dignidade e à integridade moral das pessoas, como será o direito ao respeito pela vida privada destas (12.º, da DUDH; 8.º da CEDH; 17.º do PIDCP; 26.º da C. Rep.). Assim, temos como criminalmente atípica, face ao preceituado no art. 199.º, n.º 2 do Código Penal, a obtenção de fotografias ou de filmagens, mesmo sem consentimento do visado, sempre que exista justa causa nesse procedimento, designadamente quando as mesmas estejam enquadradas em lugares públicos, visem a realização de interesses públicos ou que hajam ocorrido publicamente [Ac. STJ de 2001/Jun./20 (CJ (S) II/221); Ac. R. C. de 2002/Abr./17 (CJ III/40), Ac. R. L. de 2001/Nov./28 (CJ V/138); Ac. da R. G. de 2004/Mar./29 (recurso n.º 1680/03-2)[6]; Ac. da R. Porto, de 2005/Nov./16 (CJ V/216)]. A jurisprudência do TEDH tem seguido o mesmo caminho ao entender que fotografar uma pessoa durante uma manifestação, com vista a identificá-la em futuras manifestações ou a exibição de fotografias tiradas a um suspeito em ocasião de um anterior inquérito policial não constitui uma violação da respectiva vida privada, designadamente do seu direito à imagem [Decisão de 1973/Out./12, na sequência da queixa n.º 5877/72; Decisão de 1993/Nov./29, resultante da queixa n.º 20524]. * No entanto, o que sucedeu nestes autos não corresponde à exibição em audiência de julgamento de qualquer fotograma captado por um sistema de videovigilância, mas antes o reconhecimento pessoal efectuado por diversas testemunhas, que foram as únicas que tiveram acesso a tal meio de prova, porquanto o mesmo ficou danificado antes que qualquer órgão de policia criminal ou autoridade judicial tivesse acesso ao mesmo.Muito embora o nosso sistema de prova não esteja sujeito ao princípio da tipicidade, mas apenas ao da legalidade (125.º), não existindo sequer nenhuma norma que regule a prova atípica ou inominada, como sucede com outros diplomas congéneres[7], o certo é que toda a prova, com particular incidência naquela que não se encontra legalmente disciplinada, se encontra sujeita à preservação dos direitos fundamentais.[8] Ora o Código de Processo Penal apenas começou por regular o reconhecimento presencial de qualquer pessoa, sujeitando-o à disciplina do art. 147.º, que, na fase de inquérito ou de instrução, compreende a sua validação por parte da autoridade judicial que dirige a correspondente fase, ou seja o Ministério Público (263.º, 267.º) ou o juiz de instrução (288.º) [Ac. TC n.º 395/2004]. A violação destes procedimentos no reconhecimento presencial conduzia (147., n.º 4) e conduz (147.º, n.º 7) a que essa aquisição processual não pudesse nem possa valer como prova. Após a Revisão de 2007 (Lei n.º 48/2007, de 29/Ago.) o reconhecimento por fotografia, filmes ou gravações passou a estar legalmente regulado no art. 147.º, n.º 5 e nos seguintes termos: “O reconhecimento por fotografia, filme ou gravação realizado no âmbito da investigação criminal só pode valer como meio de prova quando for seguido de reconhecimento efectuado nos termos do n.º 2”. Mais se acrescentou no seu n.º 6 que “As fotografias, filmes ou gravações que se refiram apenas a pessoas que não tiverem sido reconhecidas podem ser juntas ao auto, mediante o respectivo consentimento”, reportando-se este assentimento à pessoa que não seja arguida, pois se o for está sempre sujeita a este meio de prova (272.º, n.º 2)[9]. Nesta conformidade, qualquer tipo de reconhecimento, seja presencial, seja por fotografia, filme ou gravação, está vinculado à disciplina do citado art. 147.º, designadamente do seu n.º 7, segundo o qual “O reconhecimento que não obedecer ao disposto neste artigo não tem valor como meio de prova, seja qual for a fase do processo em que ocorrer”. Por outro lado, o recurso ao princípio da livre apreciação da prova (127.º) não pode infringir nem esta regulação legal nem os direitos fundamentais dos cidadãos, designadamente o exercício do contraditório, como decorrência das suas garantias de defesa ou como dimensão do seu direito a um processo equitativo. E isto porque muito embora, segundo o disposto no art. 127.º, o tribunal seja livre na formação da sua convicção, existem algumas restrições legais ou condicionantes estruturais que o podem comprimir. Tais restrições existem no valor probatório dos documentos autênticos e autenticados (169.º), no efeito de caso julgado nos Pedido de Indemnização Cível (84.º), na prova pericial (163.º) e na confissão integral sem reservas (344.º). Aquelas condicionantes assentam essencialmente no princípio da legalidade da prova (32.º, n.º 8 C. Rep.; 125.º e 126.º) e no princípio “in dubio pro reo”, enquanto emanação da garantia constitucional da presunção de inocência (11.º, n.º 1 DUDH; 6.º, n.º 2 da CEDH; 14.º, n.º 2 PIDCP; 48.º n.º 1 CDFUE; 32.º, n.º 2, C. Rep). O Tribunal Constitucional chegou mesmo a considerar que “é claramente lesivo do direito de defesa do arguido, consagrado no nº 1 do artigo 32º da Constituição, interpretar o artigo 127º do Código de Processo Penal no sentido de que o princípio da livre apreciação da prova permite valorar, em julgamento, um acto de reconhecimento realizado sem a observância de nenhuma das regras previstas no artigo 147º do mesmo diploma” [Ac. 137/2001].[10] No caso em apreço, podemos constatar que o reconhecimento pessoal da arguida, mediante o visionamento dos fotogramas captados por um sistema de videovigilância, foi efectuado sem que se seguisse a “homologação” dessa identificação perante o Ministério Público, que dirige a fase de inquérito, ou se concedesse a possibilidade desse visionamento pela defesa, possibilitando-lhe o pleno exercício do contraditório, ou mesmo pelo Tribunal e pela acusação, representado pelo Ministério Público. Tal reconhecimento pessoal não obedeceu à disciplina legal do reconhecimento de pessoas (147.º) e infringiu tanto o princípio constitucional do contraditório (32.º, n.º 5 C. Rep.), como o direito fundamental que toda a causa seja julgada mediante um processo equitativo (20.º, n.º 4 C. Rep.; 10.º, DUDH; 14.º, n.º 1 PIDCP; 6.º, n.º 1 CEDH; 47.º § 2 CDFUE). Como esse meio de prova foi fulcral na formação da convicção do tribunal, não havendo qualquer outro donde decorra a possibilidade de determinação da culpabilidade da arguida, seria completamente inútil reenviar o processo para determinação dos efeitos da não valoração dessa prova e da sua subsequente inquinação probatória, restando, na procedência do recurso, absolver a arguida. * III.- DECISÃO* * Nos termos e fundamentos expostos, concede-se provimento ao recurso interposto pela arguida B……… e, em consequência, revoga-se a sentença recorrida, absolvendo-se a mesma tanto da prática, como autora material e na forma consumada, de um crime de dano da previsão do art. 212.º, n.º 1, do Código Penal, bem como do pedido de indemnização cível que contra si foi formulado pela demandante C………. Sem tributação, ficando as custas do pedido de indemnização cível a cargo da demandante (446.º, n.º 1 C. P. C.; 520.º, al. a) C. P. C.) Notifique. Porto, 22 de Setembro de 2010 Joaquim Arménio Correia Gomes Paula Cristina Passos Barradas Guerreiro _______________ [1] Doravante são deste Código os artigos a que se fizerem referência, sem indicação expressa da sua origem. [2] COSTA ANDRADE, Manuel, “Sobre as Proibições de Prova em Processo Penal”, Coimbra, Coimbra Editora, 1992, p. 136, quando se refere ao “primado da vertente substantiva”; LAMAS LEITE, André em “As Escutas Telefónicas – Algumas reflexões em redor do seu regime e das consequências processuais derivadas da respectiva violação”, Revista da FDUP, n.º 1, 2004, p. 15, quando alude ao direito processual alemão e à “dimensão substantiva de protecção de bens jurídicos”, que tem como destinatários os órgãos policiais, as autoridades judiciárias, mas também os cidadãos em geral. [3] Correspondem aos elementos que servem para formar a convicção relativamente aos factos sujeitos a julgamento. [4] São os instrumentos de que se servem as autoridades judiciárias para investigar e recolher a prova. [5] Também acessíveis em www.colectaneadejurisprudencia.com e www.dgsi.pt . [6] Divulgado em www.dgsi.pt . [7] Como sucede com o Código de Processo Penal Italiano que no seu art. 189.º, respeitante à “Prove non disciplinate dalla legge” sujeita a mesma ao crivo da idoneidade da prova (i) e da liberdade moral da pessoa na obtenção da prova (ii) [8] MEDINA SEIÇA, Alberto, “Legalidade da prova e reconhecimentos “atípicos” em processo penal: Notas à margem de jurisprudência (quase) constante”, em “Liber Discipulorum para Jorge de Figueiredo Dias”, Coimbra, Almedina, 2003, p. 1408. [9] ALBUQUERQUE, Paulo Pinto “Comentário ao Código de Processo Penal”, Universidade Católica Editora, 2.ª Edição, 2008, p. 413. [10] Acessível em www.tribunalconstitucional.pt . |