Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0720998
Nº Convencional: JTRP00040156
Relator: VIEIRA E CUNHA
Descritores: CONHECIMENTO OFICIOSO
EXECUÇÃO
CAUÇÃO
JUROS
Nº do Documento: RP200703200720998
Data do Acordão: 03/20/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: PROVIDO EM PARTE.
Indicações Eventuais: LIVRO 244 - FLS 86.
Área Temática: .
Sumário: I - A manifesta falta ou insuficiência do título executivo pode ser conhecida oficiosamente até ao despacho em que se ordene a venda, salvo se tiver sido objecto de embargos.
II - Nem todo o crédito contestado é crédito ilíquido, excepto na parte em que o devedor obteve ganho de causa
III - O DL 262/83 de 16 de Junho criou um regime específico de juros moratórios para as obrigações cambiárias, podendo ser exigida a indemnização correspondente aos juros legais, aos juros civis a que alude o art. 559.º do CC.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acórdão do Tribunal da Relação do Porto

Os Factos
Recurso de agravo interposto na acção com processo executivo e forma ordinária nº…/01, do .º Juízo Cível de Vila do Conde.
Exequentes/Agravados – B………. e mulher C………. .
Executados/Agravantes – D………. e mulher E………. .

Os Exequentes demandaram os Executados, apresentando como título executivo uma letra, pelos Executados assinada no lugar do “aceite” e pelos Exequentes assinada no lugar do “sacador”.
Tal letra titulava a importância de Esc. 3.657.428$00, com data de vencimento para 18/6/01.
No que respeita a taxa de juro, no requerimento executivo peticionou a Exequente a taxa legal de 12%, que respeita a transacções comerciais, tal como fixado pela Portaria nº262/99 de 12 de Abril.
Os ora Agravantes deduziram embargos de executado, com fundamento no preenchimento abusivo da letra dada à execução, embargos esses que se encontram definitivamente julgados, com trânsito, e nos quais a quantia exequenda foi fixada em Esc. 3.458.428$00.

Despacho Recorrido
A Mmª Juiz “a quo”, no pressuposto de que “o douto acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça versou tão só sobre o capital e é reportado à data da instauração da presente execução”, concluiu serem devidos juros de mora desde a citação.
Decidiu assim que, sobre a quantia exequenda, no montante fixado pelo S.T.J., se vencessem juros moratórios à taxa legal supletiva para as transacções comerciais, a contar da citação.

Conclusões do Recurso de Agravo (resenha)
I – A decisão do Supremo Tribunal de Justiça, que versava sobre a pretensão dos Recorrentes em não serem devedores e, portanto, não serem condenados no pagamento de qualquer quantia, capital e juros, estes também devidamente impugnados em sede de embargos, concedeu parcialmente a revista, julgando-se extinta a execução relativamente à quantia que excede Esc. 3.458.428$00, o equivalente a € 17.250,57.
II – Não há lugar ao pagamento de qualquer juro, pois tal situação só existe para uma situação de mora e em que existe benefício do devedor com o dinheiro na sua posse, o que não é o caso.
III – Os Executados prestaram caução no processo, no início da execução, e desde essa data que estão desembolsados da quantia exequenda, pelo que não se vislumbra qualquer norma legal que determine que os Executados paguem duas vezes por um período em que já não tinham a quantia exequenda na sua posse.
IV – Tal depósito rende juros e são esses juros a que os Exequentes terão direito e que lhes será liquidado aquando do levantamento.
V – O decurso do tempo não pode penalizar os Executados, quer porque o recurso foi julgado parcialmente procedente, quer porque tinha efeito devolutivo.
VI – Não existe qualquer dúvida sobre a qualificação da dívida como civil e a taxa a aplicar será sempre de 4%.
VII – Também pelo exposto, a decisão recorrida viola o disposto nos artºs 559º C.Civ., 102º §3º C.Com., artº 4º D.-L. nº262/83 de 16/6 e 17º nº2 D.-L. nº329-A/95.

Por contra-alegações, como questão prévia, os Agravados invocam que, não tendo os Executados impugnado a taxa de juro peticionada na execução nos embargos que deduziram, é extemporânea a presente impugnação.
No mais, pugnam pela confirmação do decidido.

Factos Apurados
Encontram-se provados os factos supra resumidamente descritos e relativos à alegação das partes, na acção e no recurso, bem como à tramitação do processo, para além do teor da decisão judicial impugnada.

Fundamentos
O conhecimento do presente recurso conduz-nos à análise das questões suscitadas pelas partes, a saber:
- se a decisão judicial impugnada (proferida na execução, como decisão de um incidente suscitado pelos Executados) não é recorrível, porque não haja sido suscitada a questão, ora abordada no recurso, relativa aos juros peticionados na execução, pela via dos embargos entretanto julgados com trânsito;
- se a decisão do Supremo Tribunal de Justiça, versou sobre a pretensão dos Recorrentes em não serem devedores e, portanto, não serem condenados no pagamento de qualquer quantia, capital e juros, logo não podendo os Exequentes repristinar tal questão dos juros;
- se não há lugar ao pagamento de qualquer juro, pois tal situação só existe para uma situação de mora, em que existe benefício do devedor com o dinheiro na sua posse, o que não é o caso, pois os Executados prestaram caução no processo e o recurso tinha efeito devolutivo;
- se não há lugar ao pagamento de qualquer taxa superior à dos juros civis - 4%.
Vejamos de seguida.
I
A primeira questão, suscitada que foi pelos Agravados, merece resposta negativa.
Isto é: pelo facto de uma determinada questão concreta relativa ao sentido e limites do título executivo (a possibilidade de exigência de juros a uma determinada taxa) não ter sido suscitada em embargos de executado, não é por esse facto que o juiz se encontra impedido de dela conhecer.
A matéria ficou clara face ao disposto no artº 820º C.P.Civ., proveniente da reforma de 95, quando previa e estabelecia que “ainda que não tenham sido deduzidos embargos, pode o juiz, até ao despacho que ordene a realização da venda ou das outras diligências destinadas ao pagamento, conhecer das questões a que alude o nº1 do artº 811º-A que não haja apreciado liminarmente”.
Em tais questões se incluem a manifesta falta ou insuficiência do título (artº 811º-A nº1 al.a) C.P.Civ.).
Ora, da insuficiência do título executivo pode resultar a extinção parcial da execução, como agora resulta ainda mais claramente do mesmo artº 820º C.P.Civ.03 (redacção proveniente da reforma da acção executiva).
A divergência doutrinal anterior à reforma de 95, relativa à possibilidade de consideração de pressupostos afectando as partes ou o objecto da execução, encontrando-se transcorrida a fase do despacho liminar e a possibilidade de oposição à execução, tem hoje assim um interesse meramente informativo ou histórico – cf., em sentidos opostos, pela impossibilidade, Anselmo de Castro, A Acção Executiva, Singular, Comum e Especial, 1ª ed., pgs. 96 a 98, e, pela possibilidade, Ac.S.T.J. 7/10/92 Bol.420/426.
Obviamente que, se a concreta questão dos juros ou da respectiva taxa tivesse sido suscitada por embargos de executado, encontrar-se-ia precludida a possibilidade do respectivo conhecimento, transitada a decisão dos embargos – p.e., neste sentido, Ac.R.P. 22/11/99 Bol.491/329.
Saliente-se também que sempre seria manifestamente impossível invocar caso julgado formal, ou a preclusão do conhecimento, relativamente a questões postas no recurso pelos Agravantes e que apenas são suscitadas pela decisão dos embargos (e exigidas pela respectiva interpretação) – v.g., saber se a decisão fez caso julgado sobre juros exigidos ou saber se os Executados, tendo deduzido embargos, se não encontram em mora.
Trata-se aí de questões manifestamente novas, com relação à petição executiva, e sobre as quais cabia pronúncia, por força, à Mmª Juiz “a quo”.
II
Saber agora se a decisão do Supremo Tribunal de Justiça, versou sobre a pretensão dos Recorrentes em não serem devedores e, portanto, não serem condenados no pagamento de qualquer quantia, capital e juros, logo não podendo os Exequentes repristinar tal questão dos juros.
Tal afirmação não é, com o devido respeito, manifestamente verdadeira, o que se retira do próprio conteúdo do acórdão daquele Alto Tribunal.
A única questão conhecida teve a ver com o preenchimento ou não preenchimento abusivo da letra.
A exigência de juros, a contar da citação, não foi conhecida nos embargos, directa ou indirectamente, pelo que não se encontrava a Mmª Juiz “a quo” impedida de dela conhecer.
Já questão diversa será a de saber se não há mora dos Executados, seja porque tiveram vencimento (parcial) na execução, seja porque prestaram caução no processo e o recurso tinha efeito devolutivo.
Em primeiro lugar, aquilo que os embargos decidiram foi a questão relativa ao preenchimento da letra, que deveria ter sido feita pelo valor de Esc. 3.458.428$00, e não pelo valor de Esc. 3.657.428$00.
Como se sabe, o portador pode reclamar contra o obrigado os juros, a contar da data do vencimento (artº 48º §2º L.U.L.L.).
Tanto bastava para afastar, no caso, a questão do vencimento parcial como obstaculizador da exigência de juros.
A questão não desmerece, porém, outros considerandos.
Quanto à mora do devedor, já se considerou, na exegese do disposto no artº 805º nº3 1ª parte C.Civ., consensualmente aplicável à responsabilidade contratual, que se está perante um crédito ilíquido pura e simplesmente se existe contestação do valor pedido e se vem a apurar que a dívida era inferior ao inicialmente pedido – ut Ac.R.C. 13/6/95 Bol.448/447 ou Ac.R.P. 8/5/00 Bol.497/439.
Não somos porém desse entendimento.
Nem todo o crédito contestado é um crédito ilíquido, excepto na parte em que o devedor obteve ganho de causa – na parte restante estamos perante um crédito líquido (ou em que a falta de liquidez será imputável ao devedor), só assim se garantindo a seriedade da contestação do crédito e se conciliando os interesses de credor e devedor.
Não existe, aliás, outra ratio legis para a 2ª parte daquele nº3 do artº 805º, aplicável à responsabilidade por facto ilícito ou pelo risco – não se deve deixar na disponibilidade do devedor o momento do cumprimento e da consequente mora, prevenindo aliás prolongadas e injustificáveis litigâncias.
Neste sentido, veja-se o Ac.S.T.J. 27/4/06 Col.II/59 (pontos IV e V) e demais doutrina aí citada.
III
Quais as consequências do facto de os Executados terem prestado caução nos termos do artº 818º nº1 C.P.Civ.95, ou seja, para efeitos de obterem a suspensão da execução?
Vejamos: ao contrário do que os Agravantes dão a entender, a caução não é um sucedâneo ou uma verdadeira alternativa ou substituição do pagamento em execução.
Pese embora o respectivo montante seja determinado pela quantia que previsivelmente o embargado-exequente venha a ter direito no processo, incluindo juros vencidos e vincendos (ut Ac.R.C. 4/12/90 Bol.402/678 ou Ac.R.C. 25/11/86 Bol.361/614), ela visa apenas garantir o exequente contra os riscos de suspensão da execução, designadamente as eventuais manobras delapidatórias patrimoniais, levadas a cabo pelo devedor-executado no seu património, durante um tempo de suspensão mais ou menos longo (Ac.R.C. 25/10/94 Col.V/32). E tanto assim é que “não basta a garantia da penhora para que a execução deixe de prosseguir; bem ou mal, a lei exige outra garantia especial, que é a caução; pelo mesmo motivo esta nem sequer é dispensada quando o crédito exequendo esteja coberto por garantia real” (cf. Lopes-Cardoso, Manual, 3ªed., pg. 304).
Desta forma, a caução cumpre a missão que lhe é assinada, em paralelo ou sem prejuízo do apuramento da verdadeira quantia exequenda, com o acréscimo dos juros, o que apenas será efectuado na conta final.
Isto se afirma sem prejuízo de a doutrina aceitar que a execução pode prosseguir com o pagamento pelo depósito (ou garantia bancária) dada em caução – cf. Ac.S.T.J. 16/12/87 Bol.372/408 (Eliseu Figueira).
Improcede assim este segmento do recurso.
Quanto ao facto de os recursos interpostos nos embargos terem sido recebidos com efeito meramente devolutivo, tal não poderia contender ou afectar a execução suspensa, nos termos do artº 818º nº1 C.P.Civ. – o Exequente nunca poderia, desta forma, ter logrado pagamento mais cedo e, dessa forma, ter evitado o vencimento de juros.
IV
Vejamos finalmente se será devida taxa superior à dos juros civis.
Nesta matéria entendemos que a razão se encontra com os Agravantes.
Na verdade, o D.-L, n.º 262/83 de 16 de Junho criou um regime específico de juros moratórios para as obrigações cambiárias ao estabelecer, no seu artº 4º que “o portador de letras, livranças ou cheques, quando o respectivo pagamento estiver em mora, pode exigir que a indemnização correspondente a esta consista nos juros legais”.
Estes juros legais são os juros civis, a que alude o artº 559º C.Civ., na redacção que lhe foi dada pelo DL 200-C/80, de 24 de Junho.
E se é verdade que o referido D.-L. 262/83, alterando o artº 102º C.Com., introduziu nesta norma um §3º, prevendo que possa ser fixada por portaria uma taxa supletiva de juros moratórios relativamente aos créditos de que sejam titulares empresas comerciais singulares ou colectivas, também não é menos verdade que isso só pode querer significar que foi intenção do legislador estabelecer, no que respeita aos juros moratórios, um regime distinto para as obrigações cambiárias - o do citado artº 4º.
A questão prende-se com a natureza dos títulos de crédito e os princípios da abstracção e da literalidade que os enformam, e ainda pelo facto de a aplicação da referida taxa supletiva ser determinada pela natureza da actividade desenvolvida pelo credor e estar, por isso, intimamente ligada à relação jurídica causal ou subjacente à emissão do título de crédito cambiário.
Esta orientação tornou-se largamente maioritária nos tribunais portugueses depois da publicação do artigo de Barbosa de Melo, A Preferência de Lei Posterior em Conflito com Normas Convencionais, in Col.Jur. 84/IV/11, e ainda mais se impôs com a publicação do Assento S.T.J. nº 4/92 de 17 de Fevereiro, in D.R. I-A s. de 17/12/92, o qual fixou a seguinte doutrina: “Nas letras e livranças, emitidas e pagáveis em Portugal, é aplicável, em cada momento, aos juros moratórios a taxa que decorre do disposto no artigo 4º do Decreto-Lei nº. 262/83, de 16 de Junho, e não a prevista nos nºs. 2 dos artigos 48º e 49º da Lei Uniforme sobre Letras e Livranças”.
Estes dois momentos doutrinais consideram basicamente que, com a entrada em vigor do D.-L. nº 262/83, estes últimos preceitos legais citados, da L.U.L.L., deixaram de vincular jure gentium o Estado Português, estando excluídos da nossa ordem interna por força da cláusula de recepção geral do direito internacional pactício na nossa ordem interna, consagrada no artº 8º da CRP.
Ora, valendo os assentos, na actualidade, como acórdãos uniformizadores de jurisprudência, não nos encontramos em condições de questionar o bem fundado daquele citado acórdão uniformizador, até porque as circunstâncias objectivas ou legais que o enformaram não sofreram qualquer espécie de modificação (cf. Ac.S.T.J. 9/3/00 Bol.495/276, designadamente o voto de vencido dele constante).
Assim, estando em causa a execução de título cambiário, o direito de acção dos agravados-sacadores, apenas permite, no que concerne aos juros de mora, a exigência do seu pagamento à taxa legal fixada para os juros civis, à data do seu vencimento (18/6/2001), ou seja, 7% e 4% ao ano, nos termos do artº 559º nº1 C.Civ., conjugado com o teor das Portarias nº263/99 de 12 de Abril (para juros legais fixados à taxa de 7%) e nº291/2003 de 8 de Abril, para a taxa referida de 4%.
Assim, tudo ponderado, não pode deixar de proceder o último dos invocados segmentos de recurso.

Resumindo a fundamentação:
I – Face ao disposto no artº 820º C.P.Civ., na redacção de 95, o juiz pode conhecer da manifesta falta ou insuficiência do título, como questão a que alude o nº1 do artº 811º C.P.Civ.95, até ao despacho em que ordene a venda ou das outras diligências destinadas ao pagamento, salvo se a questão tiver sido conhecida em embargos de executado; em tais questões de conhecimento ainda possível se engloba a possibilidade de exigência de juros, a contar da citação, sobre a quantia exequenda.
II – Nem todo o crédito contestado é um crédito ilíquido, excepto na parte em que o devedor obteve ganho de causa – na parte restante estamos perante um crédito líquido (ou em que a falta de liquidez será imputável ao devedor), só assim se garantindo a seriedade da contestação do crédito e se conciliando os interesses de credor e devedor.
III – A caução cumpre a missão que lhe é assinada no artº 818º nº1 C.P.Civ.95, em paralelo ou sem prejuízo do apuramento da verdadeira quantia exequenda, com o acréscimo dos juros, o que apenas será efectuado na conta final.
IV - O D.-L, n.º 262/83 de 16 de Junho criou um regime específico de juros moratórios para as obrigações cambiárias ao estabelecer, no seu artº 4º que “o portador de letras, livranças ou cheques, quando o respectivo pagamento estiver em mora, pode exigir que a indemnização correspondente a esta consista nos juros legais”; estes juros legais são os juros civis, a que alude o artº 559º C.Civ.

Com os poderes conferidos pelo disposto no artº 202º nº1 da Constituição da República Portuguesa, acorda-se neste Tribunal da Relação:
No parcial provimento do agravo, revogar o despacho recorrido, apenas na parte em que determinou que a obrigação exequenda vença juros a uma taxa superior à taxa dos juros legais, nos termos do artº 559º nº1 C.Civ.
Custas por Agravantes e Agravados, em ambas as instâncias, na proporção em que decaem.

Porto, 20 de Março de 2007
José Manuel Cabrita Vieira e Cunha
José Gabriel Correia Pereira da Silva
Maria das Dores Eiró de Araújo