Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRP00041447 | ||
Relator: | LUÍS GOMINHO | ||
Descritores: | SEGREDO DE JUSTIÇA | ||
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Nº do Documento: | RP200806110842068 | ||
Data do Acordão: | 06/11/2008 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | REC. PENAL. | ||
Decisão: | NEGADO PROVIMENTO. | ||
Indicações Eventuais: | LIVRO 318 - FLS. 326. | ||
Área Temática: | . | ||
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Sumário: | Com vista à validação da decisão do Ministério Público que determinou a aplicação do segredo de justiça, na fase de inquérito, em nome do interesse da investigação, é necessário que se indiquem naquela decisão os elementos concretos de onde se concluiu pela existência de tal interesse, a fim de o juiz de instrução poder ajuizar da bondade dessa conclusão. | ||
Reclamações: | |||
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Decisão Texto Integral: | Recurso n.º 2068/08 (Relator: L. Gominho) Acordam, em conferência, na Secção Criminal da Relação do Porto: I – Relatório: Inconformado com o despacho aqui melhor constante de fls. 21 (24 no original), em que o Mm.º Juiz do …..º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Santo Tirso não validou o despacho proferido pelo Ministério Público no sentido da exclusão da publicidade nos autos com o NUIPC …./08.3PASTS, no qual se investiga o eventual cometimento de um crime de maus-tratos, veio aquele Órgão Auxiliar da Administração da Justiça interpor o presente recurso, instruindo-o com as seguintes conclusões: 1ª - Tratando-se de um inquérito por eventual crime de maus-tratos, em que o Ministério Público, em obediência a Directiva do Procurador-Geral da República, determinou a aplicação do segredo de justiça, não pode nem deve o Juiz de Instrução Criminal, sem mais, não validar essa determinação. 2.ª - Com efeito não pode ignorar as indicações sobre politica criminal constantes da Lei n.º 17/2006, de 23 de Maio, e as funções que nesse âmbito atribui ao Ministério Público e ao Procurador-Geral da República e os objectivos, prioridades e orientações de política criminal para o biénio de 2007-2009 (Lei n.º 51/2007), entre os quais se situa a prioridade e eficácia na investigação dos crimes de maus tratos e da promoção da protecção das vítimas especialmente frágeis.
3.ª - Assim, e a Directiva invocada pelo Ministério Público no despacho de aplicação do segredo de justiça, apresenta-se também, face às dificuldades criadas pela Lei n.º 48/2007, como um instrumento de concretização dos objectivos da politica criminal, estabelecidos para este biénio e não como um acto voluntarista, infundamentado e desproporcional, que a decisão recorrida pudesse ignorar, apesar do papel que desempenhara no falado despacho não validado.
4.ª - A Directiva teve em conta as alterações introduzidas pela Lei n.º 48/207 em fase de investigação, que justificam, pelas implicações na forma como o Ministério Público deverá dirigir o inquérito e exercer a acção penal, a adopção de orientações adequadas a garantir uma actuação uniforme desta magistratura, tendo em conta o seu carácter unitário e hierarquizado, designadamente quanto ao segredo de justiça quando visam, como no caso, crimes cuja investigação eficaz é prioritária, não só pelo perigo de reincidência que significam, como pelas lesões das vítimas vulneráveis, cuja protecção foi tida igualmente como prioritária.
13.ª - Com esse conhecimento o agente, para além do risco de repetição dos eventos, está em condições de fazer pressão sobre a vítima e muitas vezes sobre as testemunhas, podem facilmente perturbar a eficácia do inquérito, além de perturbar a vítima, normalmente muito frágil neste tipo de crimes.
14.ª - Por todas estas razões deveria o M.º Juiz a quo ter validado a determinação do Ministério Público de aplicar ao presente inquérito o segredo de justiça.
Termos em que deve ser dado provimento ao recurso e validada aquela determinação.
I – 2.) Não coube resposta ao recurso interposto. * Seguiram-se os dos Exm.ºs Desembargadores que proferem a presente decisão.* Tendo então lugar à conferência.Cumpre apreciar e decidir: III – 1.) Conforme decorre das conclusões que antecedem, a questão que importa decidir no presente recurso, concentra-se na discussão da bondade do mencionada decisão judicial que não validou a sujeição dos autos ao segredo de justiça anteriormente determinado por despacho do Ministério Público. III – 2.) É o seguinte, o conteúdo do despacho recorrido: «Despacho proferido a fls. 11 pelo Ministério Público de sujeição dos presentes autos a segredo de justiça: Embora se compreenda a tomada de posição por parte do Ministério Público, atento o respectivo dever de ofício, decorrente da invocada circular da Procuradoria Geral da República, a verdade é que não se vislumbra qualquer motivação factual concreta para tal despacho, sendo certo que por referência ao interesse da vítima, existem outros meios de reacção e de protecção aos mesmos que não contendem com a possibilidade de defesa por parte do arguido, não se vislumbrando - até porque não fundamentada de facto – qualquer possível lesão para a investigação decorrente da publicidade dos autos. Em conformidade com o exposto e nos termos do art.º 86.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, não julgo válido o despacho proferido pelo Ministério Público a fls. 07. Notifique o Ministério Público.» Porque este, basicamente, faz apelo às deficiências de fundamentação encontradas no referido despacho de fls. 7 para justificar aquela sua posição, não será despiciendo conhecer, também, o seu teor: «Atenta a determinação efectuada na Directiva de 09/01/2008, definida por sua Excelência o Conselheiro Procurador-Geral da República (remetida com o Ofício-Circular n.° 5/2008 de 15/01/2008) no sentido de que “Sempre que esteja em causa investigação relativa aos crimes previstos no artigo 1.º, alíneas j) a m) do Código de Processo Penal (...) o Ministério Público determinará, no início do Inquérito, a sujeição deste a segredo de justiça …”, nos termos do disposto no artigo 86.°, n.º 3, do Código de Processo Penal. Dado que o crime em investigação nos presentes autos (cfr. art. ° 152º-A do Código Penal) é punível com pena de prisão até 5 anos, tratando-se, pois, - atenta ainda a natureza dos bens jurídicos protegidos pela incriminação, - da "criminalidade violenta" a que alude o art.º 1.°, j), do Código de Processo Penal, a publicidade destes autos seria, em concreto, lesiva para os interesses da investigação e do ofendido. Determino a aplicação a estes do segredo de justiça - cfr. Art. 86.°, n.º 3, do Código de Processo Penal. Para os efeitos previstos na parte final desse número, apresente os autos ao Meritíssimo JIC no prazo aí previsto.» III – 3.1.) Não cabe aqui por em causa que o crime de maus-tratos previsto no art. 152.º-A do Cód. Penal, e de cuja investigação cuidam os presentes autos, ao ser sancionado com pena de prisão de um a cinco anos, integra a definição legal do conceito de “criminalidade violenta” agora perfilhado pela al. j) do art. 1.º do Código Processo Penal, já que em razão da alteração legislativa que lhe foi introduzida pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, aí se passaram a incluir as condutas dolosas dirigidas nomeadamente contra a integridade física, que forem puníveis com pena de prisão de máximo igual ou superior à indicada. De igual modo, o invocado papel actualmente cometido pela Lei n.º 17/2006, de 23 de Maio (Lei Quadro da Política Criminal), ao Exm.º Sr. Procurador-Geral da República e ao Ministério Público em matéria de execução da política criminal, não traduz também domínio que a este título seja susceptível de concitar quaisquer dúvidas relevantes. De harmonia com o art. 11.º, n.º 1, daquele diploma, “O Ministério Público, nos termos do respectivo Estatuto e das leis de organização judiciária, e os órgãos de polícia criminal, de acordo com as correspondentes leis orgânicas, assumem os objectivos e adoptam as prioridades e orientações constantes da lei sobre política criminal”. E de acordo com o respectivo art. 13.º, “compete ao Procurador-Geral da República, no âmbito dos inquéritos e das acções de prevenção da competência do Ministério Público, emitir as directivas, ordens e instruções destinadas a fazer cumprir a lei sobre política criminal” (n.º 1). Da mesma maneira que “cabe ao Ministério Público identificar os processos abrangidos pelas prioridades e orientações constantes das leis sobre política criminal” (n.º 2). Como lei-quadro que é, trata de forma genérica o travejamento do objecto e limites dessa política, regulamenta a iniciativa, aprovação e alteração das leis sobre política criminal, e disciplina depois a sua execução. Do respectivo articulado, respigaremos pelo eventual interesse que possa revestir para a solução do caso presente, a alusão em como “a definição de objectivos, prioridades e orientações, nos termos da presente lei, não pode prejudicar o princípio da legalidade, e a independência dos tribunais” (art. 2, al. a), e o de que as orientações sobre pequena criminalidade não dispensam “a verificação casuística, pelas autoridades judiciárias competentes, dos requisitos gerais e da oportunidade da aplicação de cada instituto” (art. 6.º, n.º 2). Seja como for, segredo de justiça e/ou exclusão da publicidade, são pontos a que aí não se mostra efectuada qualquer referência. A Lei n.º 51/2007, de 31 de Agosto, por seu turno, em cumprimento da anterior, veio a definir os objectivos, prioridades e orientações de política criminal para o biénio de 2007/2009. Percorrendo o seu articulado, podemos também constar que não é efectuada qualquer menção à exclusão da publicidade, seja em relação aos crimes constantes do catálogo legal geral, seja dos mencionados no art. 4.º da referida lei, ou mesmo sequer, que seja esboçada a perspectiva da sua utilização como instrumento de concretização dos objectivos da política criminal. É certo que entre os objectivos específicos da mesma, figuram no art. 2.º, al.ª a), o “prevenir, reprimir e reduzir a criminalidade violenta, (…) incluindo o homicídio, a ofensa à integridade física grave, a violência doméstica, os maus-tratos…”, ou ainda, o “promover a protecção de vítimas especialmente indefesas, incluindo crianças e adolescentes, mulheres grávidas e pessoas idosas, doentes e deficientes. De igual modo, os crimes de violência doméstica e maus-tratos figuram entre os crimes de prevenção prioritária (cfr. art. 3.º, al. a), e mais abaixo, nos de investigação prioritária (art. 4.º, al. a). Mas em todo o caso, é tudo o que quanto a eles, fundamentalmente se dispõe. De forma congruente com a lei anterior, prevê-se de forma expressa, que “compete ao Procurador-Geral da República aprovar directivas e instruções genéricas destinadas a fazer cumprir as prioridades previstas no artigo 4.º”, mas como acima já se referiu, este é um aspecto que não está aqui em discussão. III – 3.2.) Numa outra vertente agora totalmente diferenciada, não está em causa também, a possibilidade conferida pelo actual art. 86.º, n.º 3, do Cód. Proc. Penal, de “sempre que o Ministério Público entender que os interesse da investigação ou os direitos dos sujeitos processuais o justifiquem, pode determinar a aplicação ao processo, durante a fase de inquérito, do segredo de justiça”. É certo que depende da validação do juiz de instrução criminal. Mas essa circunstância não pode fazer obscurecer uma outra, a de que na sua conformação actual, aquele preceito traduz uma alteração radical do tratamento dado à publicidade do processo em relação ao regime anteriormente em vigor. É que, embora a publicidade fosse um valor caro ao Legislador de 1998, aquela normalmente só se atingia a partir da decisão instrutória, ou se esta não tivesse lugar, a partir do momento em que já não podia ser requerida. Com a alteração produzida pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, o segredo de justiça, como regime-regra, basicamente “cessou”. III – 3.3.) Tal como os Autores o consignam, a justificação para a exclusão da publicidade em processo penal, gravitou sempre em torno de duas grandes coordenadas: Por um lado, “a circunstância da sociedade dos nossos dias e da criminalidade frequentemente organizada e transnacional, tornar necessário ou pelos menos conveniente uma fase de investigação da notícia do crime que decorra com reserva da publicidade de modo a evitar que os criminosos frustrem a descoberta da verdade, escondendo ou destruindo as provas”, e por outro, “a defesa da honra e a paz do suspeito, que tem o direito de ser tratado como presumido inocente enquanto não for condenado, ou pelo menos enquanto não forem recolhidas provas que indiciem fortemente a sua eventual responsabilidade” (Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Verbo, 2.ª Ed., Vol. II, pág.ª 21). Não que estes valores tenham sido totalmente postergados com a maximização agora conferida ao princípio da publicidade (aqui entendido como garantia de transparência da justiça e mais fácil fiscalização da legalidade do procedimento). É que por via da excepção (“o processo penal é, sob pena de nulidade, publico, ressalvadas as excepções previstas na lei” – art. 86.º, n.º1), foi mantida a possibilidade de qualquer daquelas finalidades asseguradas pelo segredo de justiça ainda assim ser prosseguida mediante determinação do juiz de instrução criminal, precedendo requerimento do arguido, ofendido e assistente, ou validação da determinação nesse sentido efectuada, tratando-se do Ministério Público. III – 3.4.) Desta forma entendida a ossatura essencial da questão que temos em presença, afigura-se-nos poderem-se extrair de modo lógico para a sua solução, as seguintes premissas jurídicas: - Pretender pela interposição de uma fonte administrativa, consagrar na prática a exclusão da publicidade para um catálogo genérico de crimes, é algo que a lei claramente não pretendeu, nem é esse o sentido da intervenção que admitiu à intervenção do Ministério Público nessa matéria. Não só aquela exclusão terá de manter-se como excepção (art. 86.º, n.º1, do Cód. Proc. Penal), como tanto o n.º 2, como o n.º 3, do mencionado artigo exigem que tal determinação seja aferida processo a processo (respectivamente, “o juiz de instrução pode, (…) determinar, por despacho irrecorrível, a sujeição do processo (…)”, e “sempre que o Ministério Público entender (…), pode determinar aplicação ao processo (…)”. É que se outra fosse a vontade da lei, assim o diria. - Depois, como é bom de ver, toda esta problemática, no fundo, terá que se dirimir em torno da fundamentação assumida pelo despacho determinativo. III – 3.4.) No caso, qual foi a eleita: O chamado “direito circulatório” traduzido na Directiva do Exm.º Sr. Procurador-Geral da República? Já está dito que vincula o Exm.º magistrado recorrente, que não o tribunal. Alguma prioridade da política criminal determinada por qualquer das fontes legislativas acima mencionadas? Também está esclarecido que não contêm nenhuma referência atinente ao segredo de justiça como meio de as atingir. O ser a publicidade dos autos “em concreto, lesiva para os interesses da investigação e do ofendido? Aqui sim, já estamos perante um princípio de fundamentação, conforme à letra do art. 86.º. Só que, a tanto se quedou a justificação apresentada pelo Ministério Público. Pegando nas próprias palavras do Digno recorrente, na validação da decisão em apreço, cabe ao juiz de instrução criminal “com bom senso e parcimónia, verificar se do seu ponto de vista de juiz das liberdades, existem elementos concretos que permitam afirmar o carácter excessivamente gravoso, desproporcionado daquela determinação” – estamos de acordo. Só que, como é óbvio, mister se torna fornecer-lhe esses elementos concretos para que o mesmo possa aferir da efectividade dessa lesão dos interesses da investigação ou do ofendido. É que se a nível de recurso, ainda se argumentou em termos de experiência comum, que neste tipo de situações, frequentemente, a vítima reside com o agente e é dele dependente, pelo que corre graves riscos quanto este se apercebe que foi apresentada queixa contra ele, que existe o risco de repetição dos eventos, que o denunciado está em condições de fazer pressão sobre a vítima e muitas vezes sobre as testemunhas..., do respectivo despacho determinativo nada disso se fez constar. Pelo que, nessa conformidade, não vemos razões para endereçar censura ao despacho recorrido. IV – Decisão: Nos termos e com os fundamentos indicados, acorda-se pois em julgar improcedente o recurso interposto pelo Ministério Publico, assim se confirmado a decisão recorrida. Sem custas. Elaborado em computador. Revisto pelo Relator, o 1.º signatário. Porto, 11 de Junho de 2008 |