Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0343904
Nº Convencional: JTRP00036448
Relator: FERNANDO BAPTISTA
Descritores: ARMA PROIBIDA
MUNIÇÃO
Nº do Documento: RP200312030343904
Data do Acordão: 12/03/2003
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recorrido: 2 J CR STA MARIA FEIRA
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE.
Área Temática: .
Sumário: Não comete o crime do artigo 275 n.4 do Código Penal de 1995 aquele que transporta até um posto policial, para ali as entregar, munições próprias para arma proibida.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: 1. RELATÓRIO:

Acordam na Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto

Nos autos de processo comum colectivo n.º .../01.0PAVFR, do 2º Juízo Criminal do Tribunal de Santa Maria da Feira, mediante acusação do M.º P.º, foi o arguido NELSON..., viúvo, pedreiro, nascido a 25/09/50, em Fornos, Santa Maria da Feira, filho de José... e de Helena..., com residência na Rua..., n.º ..., ..., S. João da Madeira, julgado pela prática, em autoria material, dos seguintes crimes:
- Um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelas disposições conjugadas dos art.ºs 131º e 132º, n.ºs 1 e 2, als. g) e i), do Código Penal;
- Dois crimes de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos art.ºs 143º, n.º 1, e 146º, com referência ao art.º 132.º n.º 2, als. g) e i), do mesmo Código;
- Dois crimes de omissão de auxílio, p. e p. pelo art.º 200º, n.ºs 1 e 2, do mesmo diploma legal;
- Três crimes de detenção de armas proibidas, p. e p. pelos art.ºs 275º, n.ºs 1 e 3 do C. Penal, com referência ao art.º 3º, n.º 1, do DL n.º 207-A/75, de 17 de Abril, e art.º 6º da Lei n.º 22/97 de 27/6;
- Um crime de detenção de munições próprias de arma proibida, p. e p. pelo n.º 4 do art.º 275º do C. Penal, com referência ao artº 3º n.º 2 al. c) do citado Dec-Lei n.º 207-A/75.
O Instituto da Solidariedade e Segurança Social/Centro Nacional de Pensões deduziu pedido civil contra o arguido/demandado, reclamando que o mesmo seja condenado a pagar-lhe a quantia de Esc. 137.800$00 (e que corresponde ao montante pago a Hélder..., filho da falecida Madalena..., a título de auxílio com as despesas relacionadas com o seu funeral), acrescida dos respectivos juros legais de mora, vencidos desde a data da sua notificação e até integral pagamento.
Efectuado o julgamento, foi proferido acórdão que julgou a acusação parcialmente procedente e, em consequência:
Absolveu o arguido da acusação no que toca aos crimes de omissão de auxílio, p. e p. pelo art.º 200º, n.ºs 1 e 2, do C. Penal; a dois crimes de detenção de armas proibidas, p. e p. pelos art.ºs 275º, n.ºs 1 e 3 do C. Penal, com referência ao art.º 3º, n.º 1, do Dec-Lei no 207A/75, de 17 de Abril; e a um crime de detenção de munições próprias de arma proibida, p. e p. pelo n.º 4 do art.º 275º do C. Penal, com referência ao n.º 2 al. c) do citado Dec-Lei n.º 207-A/75.
E condenou o arguido:
Na pena de 12 (doze) anos de prisão pela prática de crime de homicídio qualificado.
Na pena de 1 (um) ano de prisão, pela prática de cada um dos dois aludidos crimes de ofensa à integridade física qualificada.
Na pena de 10 (dez) meses de prisão pela prática de um crime de detenção ilegal de arma.
Em cúmulo jurídico foi condenado na pena única de 14 anos de prisão.
Julgou procedente o pedido de indemnização civil deduzido pelo Instituto da Solidariedade e Segurança Social contra o arguido/demandado, condenando este a pagar àquele a quantia de Esc. 137.800$00 (cento e trinta e sete mil e oitocentos escudos) acrescida de juros de mora, vencidos, desde 2/10/2001, e vincendos, à taxa legal de 7%, e até ao seu integral pagamento.
Condenou o arguido, nas custas do processo quanto à parte criminal.
Condenou o arguido/demandado nas custas quanto à parte civil.
Declarou perdidos a favor do Estado, os instrumentos que se encontram apreendidos à ordem destes autos e a que se reportam os autos de exame de fls. 103, 118/150 e 149.
Ordenou se restitua ao arguido o motociclo que se encontra apreendido e a que se reporta o auto de exame de fls. 149.

Inconformado, o Digno Magistrado do M.º P.º interpôs recurso, que motivou e concluiu nos termos que constam de fls. 599 a 561.

Ao aludido recurso do MºPº respondeu o arguido nos termos de fls. 667 a 672, com as conclusões juntas a fls. 671 e verso.

Também o arguido interpôs recurso (fls. 617 ss), que motivou, formulando as conclusões juntas a fls. 658 verso a 664 verso.

A esse recurso do arguido responderam o M.º P.º (fls.714 ss) e os Assistentes (fls. 699 ss), com conclusões juntas, respectivamente, a fls. 720 e 709 a 711.

Nesta Relação, o Ex.mo PGA emitiu douto parecer no sentido de que o arguido não cometeu o crime que o M.º P.º na 1ª Instância defende ter cometido, que os crimes de homicídio e de ofensa à integridade física são simples e não qualificados, e ainda que o arguido deve beneficiar da atenuação especial da pena.

Colhidos os vistos dos Ex.mos Desembargadores Adjuntos e efectuada a audiência com observância do formalismo legal, foi proferido por este Tribunal da Relação o Acórdão de fls. 745 ss., no qual, dando-se parcial provimento aos recursos do M.º P.º e do arguido Nelson..., se decidiu revogar o acórdão recorrido na parte em que condenou o arguido na pena única de 14 anos de prisão, condenando-se este na pena única de 11 (onze) anos e 8 (oito) meses de prisão.
No mais, foi mantido o acórdão recorrido (cfr. fls. 766 verso).

Deste acórdão interpôs o arguido recurso para o S.T.J. (cfr. fls. 807 a 821), pedindo, em síntese, que fosse declarado nulo o acórdão recorrido, por procedência das nulidades invocadas - designadamente por omissão de pronúncia - reenviando-se o processo para novo julgamento ou, caso assim se não entendesse, que a pena fosse especialmente atenuada e, por consequência, a pena a aplicar ao arguido não fosse superior a 3 anos de prisão e sempre suspensa na sua execução (cfr. fls. 821).

O S.T.J. proferiu o acórdão de fls. 835 ss., decidindo nos seguintes termos:
“Em conformidade, julgando-se procedente o recurso, decide-se:
Declarar nulo o douto acórdão do Tribunal da Relação, por força do disposto no artº 379º, nº1, al. c), do CPP, em virtude de se não ter pronunciado sobre a questão, levantada na motivação do recurso interposto pelo arguido Nelson..., de o douto acórdão da 1ª instância não conter, em violação do disposto no artº 374º, nº2, do CPP, a exposição dos motivos que consideraram ter considerado como não provados factos constantes da contestação do arguido;
Revogar o aliás douto acórdão do Tribunal da Relação na parte em que não conheceu a nulidade do acórdão da 1ª instância, prevista na al. a) do artº 379º, referido ao artº 374º, ambos do CPP, resultante de haver considerado como não provados numerosos factos alegados pelo arguido na contestação, mediante uma declaração genérica, sem enumeração específica desses factos no acórdão.
Determinar, em conformidade, que seja proferido novo acórdão pelo Tribunal da Relação, que conheça da questão referida na alínea a) e no qual, reconhecendo a nulidade mencionada na alínea, determine que o Tribunal de 1ª instância supra essa nulidade, mediante o cabal cumprimento do disposto no citado artº 474º, nº2, enumerando especificadamente os factos que considere provados ou não provados, com referência à contestação, e expondo, nos termos prescritos naquela disposição legal, os motivos dessa decisão.
Declarar prejudicado o conhecimento das restantes questões colocadas no presente recurso.”.


Remetidos os autos a esta Relação, aí, por acórdão de fls. 872 a 874, foi proferida a seguinte
“DECISÃO:
Nestes termos, acordam os juizes da 1ª Secção Criminal desta Relação em declarar nulo o acórdão proferido pela 1ª Instância, nos termos conjugados do nº 2 do artº 374º e alínea a) do nº 1 do artº 379º do CPP, que deverá ser substituído por outro que enumere especificadamente os factos que considere provados ou não provados, com referência à contestação, e expondo, nos termos prescritos naquela disposição legal, os motivos dessa decisão, designadamente expondo os que determinaram ter considerado como não provados factos constantes da contestação do arguido, assim dando integral cumprimento ao douto acórdão do Supremo Tribunal de Justiça”


Reenviado o processo à 1ª instância, foi proferido o novo acórdão - de fls. 910 a 966 -, no qual, em cumprimento do determinado nos antecedentes Acs. do STJ e Relação, se supriram os vícios ali apontados, sendo que a decisão proferida foi exactamente igual à que havia sido proferida no 1º acórdão de fls. 517 a 564, qual seja:
Julgou a acusação parcialmente procedente e, em consequência:
- Absolveu o arguido da acusação no que toca aos crimes de omissão de auxílio, p. e p. pelo art.º 200º, n.ºs 1 e 2, do C. Penal; a dois crimes de detenção de armas proibidas, p. e p. pelos art.ºs 275º, n.ºs 1 e 3 do C. Penal, com referência ao art.º 3º, n.º 1, do Dec-Lei no 207A/75, de 17 de Abril; e a um crime de detenção de munições próprias de arma proibida, p. e p. pelo n.º 4 do art.º 275º do C. Penal, com referência ao n.º 2 al. c) do citado Dec-Lei n.º 207-A/75.
- E condenou o arguido:
Na pena de 12 (doze) anos de prisão pela prática de crime de homicídio qualificado.
Na pena de 1 (um) ano de prisão, pela prática de cada um dos dois aludidos crimes de ofensa à integridade física qualificada.
Na pena de 10 (dez) meses de prisão pela prática de um crime de detenção ilegal de arma.
Em cúmulo jurídico foi condenado na pena única de 14 anos de prisão.
Julgou procedente o pedido de indemnização civil deduzido pelo Instituto da Solidariedade e Segurança Social contra o arguido/demandado, condenando este a pagar àquele a quantia de Esc. 137.800$00 (cento e trinta e sete mil e oitocentos escudos) acrescida de juros de mora, vencidos, desde 2/10/2001, e vincendos, à taxa legal de 7%, e até ao seu integral pagamento.
Condenou o arguido, nas custas do processo quanto à parte criminal.
Condenou o arguido/demandado nas custas quanto à parte civil.
Declarou perdidos a favor do Estado, os instrumentos que se encontram apreendidos à ordem destes autos e a que se reportam os autos de exame de fls. 103, 118/150 e 149.
Ordenou se restituísse ao arguido o motociclo que se encontra apreendido e a que se reporta o auto de exame de fls. 149.


Não se conformando com o assim decidido, o Magistrado do Ministério Público interpôs recurso, que motivou, apresentando as seguintes
“CONCLUSÕES:
1. O arguido, no dia 13 de Abril de 2000, detinha duas munições para arma de calibre 38 SPECIAL (9 mm.), por detonar, com as inscrições G.I.L. e GECO, sendo uma perfurante e outra normal (pontos 7-12 e 7-15 da matéria de facto provada).
2. As munições que o arguido detinha são proibidas, pois são munições próprias para pistolas ou para revólveres, sempre de calibre superior ao permitido por lei para cada uma dessas armas.
3. O arguido detinha estas munições em momento temporal distinto daquele em que adquiriu a pistola 6,35 mm e daquele em que a utilizou para causar a morte de Madalena..., respectivamente no terceiro trimestre de 2000 e em 4 de Janeiro de 2001 (pontos 7-20 e 7-21 da matéria de facto provada).
4. O arguido agiu com dolo, pois tinha consciência e vontade de deter munições de arma proibida. Aliás, a circunstância de ter entregue essas munições no posto da P.S.P. é reveladora desse dolo.
5. Se bem que o bem jurídico protegido com a incriminação da conduta é o mesmo, foi, no entanto, violado em momentos temporais distintos, pelo que houve uma pluralidade de resoluções autónomas de cometimento do crime, devendo sobre estas incidir uma pluralidade de juízos de censura, de acordo com o disposto no artigo 30º, n.º 1, do Código Penal.
6. Pelo exposto, deveria o arguido igualmente ter sido condenado pelo crime de detenção de munições próprias de arma proibida, previsto e punido pelo artigo 275º, n.º 4, do Código Penal, com referência às disposições conjugadas dos artigos 4º, do Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março e 3º, n.º 1, alíneas a) e b) e 2, alínea c), ambos do Decreto-Lei n.º 207A/75, de 17 de Abril.
7. Não é qualquer circunstância que diminui a ilicitude ou a culpa que dará lugar a uma atenuação especial da pena. Terá de ser uma circunstância que diminua por forma acentuada a ilicitude do facto ou a culpa do agente, só esta deverá conduzir a um efeito atenuante especial da pena.
8. No relatório junto aos autos não se diz que o arguido agiu com imputabilidade diminuída. Refere-se, isso sim, que o homicídio foi o corolário de um quadro psicopatológico de ansiedade, de angústia, de sofrimento, com sentimentos depressivos, de revolta e de humilhação.
9. E em lado nenhum daquele relatório se aponta que, mesmo assim, o arguido fosse incapaz de avaliar a ilicitude do facto ou para se determinar de acordo com essa avaliação ou ainda que se verificasse uma comprovada incapacidade sua para se deixar influenciar pelas penas.
10. Na verdade, o seu comportamento, se bem que motivado por aqueles sentimentos, aponta para um processo crescente de agressões contra a sua ex-mulher que veio a culminar na morte desta.
11. O Tribunal a quo não deveria, com base na conclusão do relatório médico-legal, ter atenuado especialmente as penas, mas deveria ter considerado essa atenuante para efeitos de atenuação geral, nos termos do artigo 71º, do Código Penal, aproximando a pena concreta por cada um dos crimes cometidos do limite mínimo da moldura
penal abstracta.
12. Ao não proceder desta forma, o Tribunal violou as disposições dos artigos 3º, n.º 1, 275.º, n.º 4, 71º, n.º 1 e 2 e 72º, todos do Código Penal.

Nestes termos, deve a decisão proferida pelo Tribunal a quo ser revogada no tocante as duas matérias a que o presente recurso se encontra limitado, e substituída por outra que condene o arguido conforme se expôs”.


Respondeu o arguido (fls. 1192 ss) ao aludido recurso do Mº Pº, formulando as seguintes
“CONCLUSÕES

“I. O Mistério Público está legalmente inibido de recorrer, quando os fundamentos respectivos já foram, no mesmo processo, objecto de parecer desfavorável à procedência, proferido por Superior Hierárquico, nos termos da al. a) do artº 59º do Estatuto do Ministério Público na redacção da Lei nº 60/98, de 27.08, nos termos desta norma a posição do Ministério Público junto deste Tribunal da Relação está definitivamente definida naquele douto parecer.
Por essa razão e nestes termos, o recurso não devia ter sido admitido, mas uma vez que foi, não deve este Tribunal dele conhecer.

II. Na sequência de um recurso para o Supremo Tribunal de Justiça interposto apenas pelo arguido, não pode nunca resultar a agravação das penas aplicadas, seja no próprio Tribunal Superior, seja em qualquer dos Tribunais por onde o processo na sequência daquele recurso, vier a passar.
A pretensão do Ministério Público viola o nº 1 do artº 409º, sendo que a interpretação deste normativo implícita no recurso a que ora respondemos, corresponde à violação de uma garantia nuclear de defesa do arguido e restringe gravemente o direito ao recurso, sendo por isso inconstitucional face ao disposto no nº1 do artº 32º da C.R.P.”.

III. As conclusões 1) a 6) estão totalmente viciadas por um erro crasso na apreciação da prova, detectável pela mera leitura das participações de fls. 42 e 48 e pelo auto de apreensão cautelar de fls. 50, todas dos autos, bem como pelos esclarecimentos prestados em audiência pelos agentes que elaboraram as mesmas, aos quais não foi dada a devida atenção.
Da conduta de um cidadão que, ao deparar com a presença da P.S.P. à porta da sua residência, ali chamada para parar com as desavenças familiares que estariam a ocorrer, se queixa de que a mulher e os filhos o estariam a ameaçar e que detêm na sua posse duas armas de calibre proibido, não sabendo aonde, mas entregando duas munições alegadamente pertencentes àquelas armas, para prova do facto,
não é legítimo presumir
que o arguido tivesse aquelas munições na sua posse, para o efeito de por tal o condenar, mas antes terem elas resultado de uma busca frustrada, feita pelo arguido, no sentido de encontrar as armas, sendo que quer estas, quer as munições, não estavam na sua posse.
Andou pois bem o Tribunal recorrido ao absolver o arguido, muito embora por razões diversas daquelas que na sentença são apontadas.

IV. Resulta dos autos e mormente do relatório de perícia médico-legal, até na parte transcrita na motivação, ter o arguido agido não em uma qualquer circunstância, mas antes em estado de afecto, provocado por uma ofensa injusta e imerecida, com foros de gravidade socialmente atendível e relevante, a determinarem, por isso, uma compreensível emoção violenta e um estado de desespero, no qual o arguido obsessivamente só vivência aquela problemática. Havia pois que ter enquadrado o homicídio no art.º 133º do C. Penal, por a ele corresponder a correcta subsunção jurídico-penal, levando-se em conta o restante circunstancialismo para a medida de pena a aplicar naquela moldura, a qual deveria, então sim, fixar-se muito próximo dos limites mínimos. Se tal normativo não existisse, aí sim, ter-se-ia de fazer operar a atenuação especial da pena, mas em termos efectivos (o que não foi feito na sentença sob recurso) até porque do próprio relatório consta expressamente não haver “espaço” para grande culpabilidade, atenta a carga obnubilante dos sentimentos de revolta e de injustiça do arguido.

Termos em que:
deve o recurso ser rejeitado, dele não se conhecendo, nos termos da conclusão I;
Deve o recurso ser liminarmente inferido por a sua improcedência ser legalmente impossível;
No caso de assim se não entender,
- Devem, em qualquer caso, improceder “in totum” as conlusões apresentadas”


Da mesma forma, o arguido recorreu do dito acórdão da 1ª instância, que motivou, apresentando as seguintes
“CONCLUSÕES:
I. Declarada pelo STJ, procedente a conclusão onde se argui a violação do princípio do contraditório e a subsequente nulidade e inconstitucionalidade - nºs 1 e 5 da CRP - daí decorrente, por não resultar, do Acórdão recorrido, ter-se ele debruçado, exercendo actividade investigatória, sobre todo o objecto do processo, mandado por isso baixar o processo, a fim de serem danados os aludidos vícios, tal só pode acontecer em uma nova audiência de julgamento, em que seja plenamente respeitado aquele princípio do contraditório e assegurada a garantia de defesa do arguido dele emergente, bem como as, também elas, garantias de defesa decorrentes dos princípios da oralidade, imediação e continuidade da audiência.
Verifica-se ter o Acórdão recorrido desobedecido à ordem do Tribunal Superior e cometido a nulidade constante da alínea d) do artº 120º do C.P.Penal, in fine, pois a diligência que se omitiu - audiência de julgamento com produção de prova em ordem a ser exercida a actividade investigatória que se não mostrou feita no anterior Acórdão - era essencial à descoberta da verdade; mostram-se também violados o nº 2 do artº 327º, nº 1 do artº 355º, já que mais do que nulas são ineficazes, nos termos do nº 6 do artº 328º do C.P.Penal, as provas produzidas há dezoito meses atrás, não tendo por isso qualquer valor probatório, seja para declarar como provado ou como não provado seja que facto for. A nova deliberação tomada pelo Colectivo, em ordem a declarar como não provados os factos que antes não mencionara, importa uma interpretação inconstitucional das supra referidas normas, por violação dos nºs 1 e 5 do artº 32º da CRP.

II. Na sequência de um recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, interposto apenas pelo arguido, não pode nunca resultar a gravação das penas aplicadas, seja no próprio Tribunal Superior, seja no Tribunal da 1ª Instância, para onde o processo baixou.
Mostra-se violado o nº 1 do artº 409º do C.P.Penal, sendo que a interpretação deste normativo implícita na decisão recorrida viola uma garantia nuclear de defesa do arguido e restringe gravemente o direito ao recurso, sendo por isso inconstitucional face ao disposto no nº 1 do artº 32º da C.R.P..

III. Dos documentos juntos aos autos e dos depoimentos ali oralmente prestados, numa apreciação legal da prova, de acordo com o princípio “in dubio pro reo” deve:
corrigir-se o ponto 7-2 dos factos provados no sentido de que o foi com proventos auferidos pelo arguido na Suíça que os bens do casal, nomeadamente imóveis foram adquiridos (retirando-se a expressão “sobretudo”);
Dar-se por provado:
a)- Que o património do casal estava avaliado em cerca de Esc. 50.000.000$00 (cinquenta milhões de escudos);
ou pelo menos,
a1) que era constituído pelos bens móveis e imóveis que constam da relação de bens de fls. 409 a 415 dos autos;
Que a mulher do arguido, aproveitando-se do facto de ele não saber ler nem escrever e de estar física e mentalmente debilitado o levou a um escritório de advogados onde este assinou uns papéis sem imaginar para o que fossem;
ou pelo menos
b1) Que devido à sua debilidade física e psicológica (f. p. 7-11) e à sua susceptibilidade (relatório de fls. 511) o arguido subscreveu, em circunstâncias não concretamente apuradas, as procurações e alguns dos documentos constantes de fls. 405 a 429 dos autos, não tendo consciência do fim a que se destinavam;
c) Que apenas tempo não apurado após os acontecimentos de 13 de Abril de 2000, com o auxílio de interpostas pessoas, veio a saber como e para quê foram utilizados os aludidos documentos;
d) Que procurou, entre outras pessoas, obter explicações da advogada que formalmente o representou na escritura, sem sucesso;
e) Que tudo se passou à volta do mesmo escritório de advogados, que representavam as duas partes, não obstante a existência de interesses antagónicos;
f) Aos quais o arguido nunca pagou um tostão de honorários, o que também nunca lhe foi pedido;
Que nunca recebeu as tornas referidas na escritura de partilhas, de que nunca lhe prestaram contas, tendo tudo sido feito à sua revelia e o arguido despojado de todo o seu património;
Em consequência, deve retirar-se do início do ponto 7-6 a alusão ao facto de terem sido os “desentendimentos conjugais” que culminaram no processo ali referido.
Alterar-se a redacção dos pontos 7-10 a 7-15, a qual deverá passar a ser a seguinte:
7-10 - Contudo, porque entre outros factos não concretamente apurados, a mulher do arguido não lhe prestava auxílio, as relações entre eles foram-se deteriorando cada vez mais.
7-11 - Deverá manter a actual redacção, alterando-se no entanto o momento a partir do qual o arguido passou a padecer do que ali se relata, para o momento referido em 7-5;
7-12 - No dia 13 de Abril, pelas 19 horas, quando o arguido pretendia entrar em casa, foi impedido pela mulher e pelos filhos, dizendo aquela que estava em divórcio e que a casa era dela. O arguido dirigiu-se à P.S.P., que entretanto acorrera ao local, tendo comunicado que a mulher e os filhos lhe proibiram a entrada em sua casa e o ameaçaram, conforme auto de denúncia de fls. 48, que aqui se dá por reproduzido, tendo na altura entregue voluntariamente as duas munições referidas no auto de apreensão de fls. 50, examinadas a fls. ....
7-13 – Nesse mesmo dia, pelas 20.45 horas, o arguido dirigiu-se ao Posto da P.S.P. em Santa Maria da Feira, afirmando que havia sido agredido pelos seus filhos e pela sua mulher no interior da residência que alegava ser também de sua propriedade, os quais, de seguida, o puseram fora da dita residência, onde efectuou a denúncia que consta de fls. 48, aqui se dá por reproduzido.
7-14 - Na sequência dos factos que se terão passado no interior daquela residência e que precederam a deslocação do arguido ao Posto da P.S.P. nos termos referidos no ponto anterior, o arguido, em circunstâncias não concretamente apuradas, que se encontrava munido de uma navalha cujas características também não foi possível apurar, vibrou, com a lâmina aberta da mesma ....
7-15 - Algum tempo após os momentos referidos em 7-12, 7-13 e 7-14 (13 de Abril de 2000) quando descobriu a forma como fora feita a partilha, o arguido começou a instar com frequência a Madalena, pedindo-lhe satisfações sobre a forma como aquela ocorrera, que lhe desse a parte dele, ou ao menos uma das casas, tendo chegado por uma vez a usar de violência.
Retirar-se do ponto 7-16, na parte final, “e também com vista a evitar as constantes discussões e ameaças provocadas por aquele” e acrescentar-se, a final “..., pessoa de provecta idade e baixa condição económica e social”.
Alterar-se a primeira parte do ponto 7-17 o qual passará a ter a seguinte redacção:
7-17 “Abandono esse com o qual o arguido nunca se conformou, pois viu-se sem absolutamente nada do património que conseguiu, aumentando, de dia para dia, a sua revolta e o seu estado de «abatimento».
- Alterar-se a redacção da parte inicial do ponto 7-19, que deverá ser a seguinte:
7-19 Foi então que o arguido introduziu o guarda chuva, que trazia consigo - e cujas demais características não foi possível apurar - por aquela janela, atingindo a zona do olho esquerdo.
- Alterar-se a redacção do ponto 7-32, que passará a ser a seguinte:
7-32 - De qualquer das vezes acima referidas o arguido agiu num quadro psicopatológico com marcada angústia, depressão e ansiedade, motivado por muito acentuados sentimentos de revolta e de injustiça, os quais, muito embora obnubilassem a sua consciência de que cada uma daquelas condutas era proibida por lei, não a faziam perder de todo, querendo, com a supra referida limitação, quando agrediu a Madalena ofendê-la na sua integridade física, e, quando disparou contra ela, tirar-lhe a vida.

Verificou-se, no apuramento da matéria de facto dada por provada a violação do princípio “in dubio pro reo”, por sistemática negação indevida do seu uso, pois o Tribunal, face a uma prova dúbia ou inconclusiva, dá como provados os factos alegados pela acusação, optando sempre pela tese desta em detrimento da tese da defesa, ainda para mais sendo esta a mais plausível, num juízo de normalidade, face àqueles mesmos factos e com ele o princípio “nulla poena sine culpa” .
O supra referido princípio implicaria a opção pela tese do arguido, no aspecto particular para que os factos antagónicos apontam, bem como a correcta interpretação dos art.ºs 13º e n.º 1 do art.º 71º do C. Penal, 368º, n.º 2 e n.º 1 do art. 369º do C. P., os quais se mostram violados, e de cuja errónea interpretação decorre ainda a violação da 1ª parte do n.º 2 do art.º 32º da CRP, o n.º 1 desta norma e ainda os art.ºs 1º, 13º n.º 1 e 25º da mesma Lei Fundamental.
Além disso, valorou-se uma prova que mais de que nula é inexistente, no caso do ponto 7-19, o que, violando o art.º 355º do C.P.P., configura outra inconstitucionalidade, razão porque a correcta interpretação do princípio e das normas vindos de referir impõe alteração da matéria de facto nos termos supra indicados.

IV- A existência de dúvida, por mais séria, sobre o preenchimento de uma circunstância agravante da incriminação, deve sempre dá-la por não preenchida. Não integra a agravante qualificativa da al. i) do n.º 2 do art.º 132º a actuação do agente motivado por disfuncionalidade psíquica, influenciado por factos iatrogénicos, de grande desatino, numa obsessão de sentimentos de revolta e de injustiça. Não pode ser considerado meio particularmente perigoso, para o efeito de integrar a al. g) daquela norma, a utilização de uma normal pistola ou faca, nem de um mero guarda chuva. Não integra o conceito de arma proibida, para o efeito de qualificação como crime de perigo comum, o previsto na mesma al. g), o uso de uma arma de calibre 6,35 mm, ainda que não manifestada nem registada.
Tendo o acórdão recorrido qualificado um homicídio por entender ter o arguido agido com frieza de ânimo, reflexão sobre os meios empregados, e nele ter incorrido na prática de um crime de perigo comum, o crime deve ser desqualificado, se, a final, se verificar que a acção levada a cabo não integra aquelas circunstâncias. Bem assim, em relação às circunstâncias que integrariam o crime de ofensas à integridade física qualificada.
- Foi feita um interpretação ilegal e inconstitucional do n.º 3 do art. 275º e da al. g) 1 in fine, do n.º 2 do art. 132º do C. Penal, violando-se o art.º 1º do mesmo Código e o n.º 1 do art.º 29º da C.R.P., ao considerar susceptível de interpretação extensiva o conceito definido na primeira daquelas normas de arma proibida; não se observou o n.º 3 do art.º 9º do C. Civil, por via do qual se deveria ter dado o competente relevo interpretativo ao n.º 3 do art.º 275º do C. Penal e ao art.º 6º da lei n.º 22/97 de 27/06. Fez-se também uma errada interpretação e subsequente aplicação das als. g) e i) do n.º 2 do art.º 132º, do art.º 146º e dos art.ºs 131º e 146º, todos do Código Penal, já que, face à factualidade apurada, deveriam ter sido, pelo menos, estas as normas aplicadas.

V- A imputabilidade diminuída que se reconhece ao arguido, dando-a por provada na sentença e por ela se lhe aplicando a atenuação especial da pena, arreda definitivamente a hipótese de se lhe imputar a prática dos crimes previstos nos art.ºs 146º e 132º do C. Penal, já que estes pressupõem, precisamente, uma culpa agravada a qual o arguido não tem, bem ao contrário, pois o que se deu por provado é que ela é diminuída.
- Verifica-se assim uma incorrecta interpretação daqueles artigos 146º e 132º, bem como dos art.ºs 131º e 143º, todos do C. Penal, para onde deveria ter apontado o enquadramento jurídico-penal dos factos.

VI- A emoção violenta a que se refere o art.º 133º do C. Penal não exige uma proporcionalidade directa rigorosa - que não pode existir entre um qualquer facto e a morte dolosa de outrem - mas tão-só um mínimo de gravidade ou peso da emoção, que compreensivelmente, à luz do agente normalmente fiel ao direito, se admita como passível de impedir o cumprimento normal das suas intenções. Para que esta ocorra, não é necessário que a reacção do agente se desenvolva imediatamente após ter sofrido o acto injusto, devendo levar-se em conta, mormente para o desespero, o “peso da ruminação” ou a “humilhação prolongada”, susceptível de gerar estados de angústia, depressão e revolta, sendo no entanto necessário que o agente actue enquanto perdure esse estado.
Age com emoção violenta e desespero, o arguido que, após ter estado cerca de 12 anos emigrado na Suíça, onde, com muito esforço, angariou meios para adquirir um património, constituído, entre outros bens, por quatro imóveis, se vê um dia, sem aviso prévio, compelido a abandonar um daqueles imóveis, a casa onde habitava com a família, com a notícia de que aquele e todos os outros bens pertenciam à mulher, nada sendo dele, na sequência de uma procuração que supostamente outorgara três anos antes; que após isso passa a perseguir a mulher, pedindo-lhe satisfações sobre a forma como as coisas haviam sido feitas, pedindo-lhe que lhe dê ao menos uma casita, não obtendo por resposta senão: “Põe-te a andar. Não quero nada contigo”, e, na sequência de uma dessas respostas lhe dá quatro tiros, às 12 horas, num dos sítios mais movimentados da cidade, indo entregar-se à polícia a dizer que desgraçara a sua vida.
- Verificou-se, in casu, uma incorrecta interpretação do art.º 133º do Código Penal, onde “cabia” de forma paradigmática, a actuação do arguido.

VII- Atentos os factos de o arguido ser delinquente primário, pessoa bem vista e considerada no meio em que vive, onde sempre manteve bom comportamento e onde de bom grado será acolhido, não suscitando qualquer alarme social, mas antes pena por ser considerado uma vítima, não ter em si qualquer perigosidade, estar perfeitamente integrado socialmente, a sua culpa ser diminuta, e a cessação - embora trágica - do efeito que produziu o efeito criminoso, não sendo atentas estas circunstâncias de prever que o arguido volte a delinquir, a pena a aplicar-lhe, por cada um dos crimes porque foi condenado, deve ficar muito próxima dos limites mínimos, não ultrapassando, em cúmulo, os dois anos e seis meses, a qual deverá ser suspensa na sua execução.
- Foram violados, na sentença recorrida, os n.ºs 1 e 2 do art.º 41º, os n.ºs 1 e 2 do art.º 71º e o n.º 1, in fine, do art.º 77º, todos do C. Penal, os quais impunham a fixação da pena muito próxima dos seus limites mínimos, quer as parcelares, quer a única, bem como o n.º 1 do art.º 50º e o art.º 70º do mesmo Código, os quais impunham que a pena assim encontrada fosse suspensa na sua execução.

VIII- Não obstante a pena que venha a ser encontrada na procedência das conclusões II (alteração da matéria de facto) e V (integração da actuação do arguido no crime previsto no art.º 133º e no art.º 143º, ambos do C. Penal, seja sensivelmente a mesma, deve sempre sê-lo, por assim ser a sua correcta subsunção. Neste caso, a pena única encontrada, nos termos e pelas razões expostas na precedente conclusão, não deverá andar longe dos dois anos de prisão, a qual, pelas mesmas razões, deverá ser suspensa na sua execução.

Termos em que devem julgar-se procedentes as invocadas nulidades, declarando-se nulo o Acórdão, e, em conformidade com a determinação do Supremo Tribunal de Justiça e as normas e princípios legais aplicáveis, ordenar a renovação da produção de toda a prova em audiência de julgamento, pública e contraditória, após o que o Colectivo deliberará sobre os factos, antes não considerados, que considere ou não provados.
Ainda que assim se não entenda, sempre o acórdão deverá ser declarado nulo, na parte em que agrava a sanção, aplicada por esse Tribunal, ao arguido, nulidade esta que contudo se sanará, alterando-se a matéria de facto nos termos requeridos e fundamentando-se a mesma alteração, como que se concluirá pela integração da actuação do arguido nos termos propostos na conclusão VI, a que se aplicará pena inferior a três anos, suspensa na sua execução.
Ainda que assim se não entenda,
Sempre a medida da pena encontrada não poderá ser superior a três anos de prisão e também sempre, suspensa na sua execução, com o que se fará a requerida e esperada
JUSTIÇA”


Responderam o Ministério Público e os assistentes, apresentando as seguintes conclusões:

A)- O Mº PÚBLICO (fls. 1151 a 1153):
“1) O Tribunal a quo, ao lavrar o Acórdão ora recorrido, limitou-se a cumprir o que lhe foi ordenado pelo Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, constante de fls. 872 a 874, transitado em julgado - o qual, em cumprimento do ordenado pelo Supremo Tribunal de Justiça no Acórdão proferido em 4 de Dezembro de 2002, constante de fls. 835 a 867, declarou nulo o anterior acórdão proferido pela 1ª instância - que consta de fls. 517 a 565 - nos termos conjugados do nº 2 do artº 374º e al. a) do nº 1 do artº 379º do C.P.P.

2) Assim, e porque o anterior não foi anulado, o Tribunal Colectivo não tinha que efectuar novo julgamento - mas apenas lavrar novo Acórdão, como fez, com observância do ordenado pelo Tribunal da Relação, socorrendo-se para o efeito da prova constante dos autos e produzida oralmente na audiência de julgamento - a qual ficou registada em suporte magnético.

3) Por isso, não colhe a argumentação do recorrente de que tais provas são ineficazes, nos termos do artº 328º, nº6, do C.P.P. - por terem sido produzidas há 18 meses - já que o campo de aplicação desse preceito é limitado aos casos em que as declarações produzidas em audiência não são registadas em Acta ou suporte magnético.

4) No caso "sub judice", a prova documental continua nos autos; e a produzida oralmente na audiência encontra-se registada e foi apreciada pelo Tribunal Colectivo - como o poderá ser pelo Tribunal superior - continuando, assim, válida e eficaz toda a prova produzida.

5) Daí que também não se verifique qualquer nulidade, nem qualquer interpretação inconstitucional dos preceitos citados pelo recorrente.

6) Também não se vislumbra neste caso violação do princípio da proibição de "reformatio in pejus", plasmado no artº 409º do C.P.P., já que o acórdão da Relação do Porto não produziu efeitos, em consequência da declaração de nulidade, ordenada pelo Tribunal superior.

7) Além disso, o STJ não modificou as sanções que haviam sido aplicadas ao arguido pelo referido Acórdão da Relação - nem sequer se pronunciou sobre elas - determinando a nulidade desse acórdão por razões meramente formais.

8) O acórdão recorrido descreve especificadamente os factos provados e não provados - designadamente aqueles que haviam sido alegados na contestação - e dele constam claramente (do ponto 8.2) a forma e as provas em que o Colectivo alicerçou a sua convicção.

9) Por imperativo legal (artº 127º do C.P.P.) a prova não é apreciada "de acordo com o princípio in dubio pro reo,", mas antes segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador.

10) Contrariamente ao pretendido pelo recorrente, não se vislumbram quaisquer razões válidas para alterar ou aditar os factos dados como provados e não provados pelo Tribunal Colectivo.

11) O Acórdão recorrido é claro quanto à interpretação e subsunção aos factos nas normas legais relativamente aos crimes de homicídio qualificado, ofensas à integridade física qualificadas e detenção ilegal de arma, pelo que não existe qualquer ilegalidade.

12) Admitindo que o comportamento do arguido foi motivado num quadro psicopatológico de ansiedade, de angústia, de sofrimento, com sentimentos depressivos de revolta e de humilhação, não se demonstra que o homicídio esteja numa relação de causalidade, na perspectiva de um cidadão médio, com o seu estado, já que podia ter reagido de outra forma em relação àquilo que o perturbava, e que exista uma estrita contemporaneidade entre essas circunstâncias e a morte da Madalena..., pelo que a actuação do arguido não pode ser enquadrada no homicídio privilegiado.

13) Consequentemente, pelo que se deixa escrito, atenta a posição já assumida no Recurso oportunamente interposto pelo Ministério Público, e a moldura penal aplicável aos crimes imputados ao recorrente - designadamente ao de homicídio qualificado - nunca tal pena poderá ser igual ou inferior a três anos de prisão - ficando assim prejudicada a eventual suspensão da sua execução, nos termos do artº 50º nº 1, do C. Penal.

14) Contudo, e ainda que se considere que não se vislumbram razões para atenuação especial da pena - pelos fundamentos já expendidos naquele Recurso - atentas as circunstâncias que rodearam a prática dos fatos, a culpabilidade do arguido e as demais circunstâncias previstas no artº 71º do Código Penal, entendemos que as penas a aplicar a cada um dos crimes imputados ao arguido se deverão situar próximo do respectivo limite mínimo, e, em cúmulo jurídico, pouco acima dos 14 anos de prisão.


Nestes termos, não deve o recurso interposto pelo arguido Nelson... merecer provimento, assim se fazendo Justiça.”


B)- OS ASSISTENTES (fls. 1168 a 1171):

“Não existem as pretensas nulidades invocadas pelo recorrente.

2) O Acórdão recorrido deu integral cumprimento, e nos seus precisos termos, ao decidido no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 0411212002 e, subsequentemente por Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, e que foi que o Tribunal de 1ª Instância enumerasse no Acórdão especificadamente os factos que considere provados ou não provados, com referência à contestação, e expondo, nos termos prescritos naquela disposição legal, os motivos dessa decisão.

3) O Supremo Tribunal de Justiça não ordenou a repetição do julgamento, nem este tinha que ser repetido.

4) Não é aplicável o artigo 328º, nº 6, do C.P.Penal que se refere a situações de adiamento da audiência enquanto está a decorrer a discussão da causa, ou seja, antes do encerramento da discussão, e no caso a discussão foi encerrada, após o que foi proferido Acórdão pela Primeira Instância a fls. 517 a 565 dos autos.

5) O Acórdão recorrido proferido pela Primeira Instância não viola o artigo 409º do C.P.Penal , cuja proibição aí contida é imposta ao Tribunal Superior nos casos aí previstos.

6) O Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça revogou o anterior Acórdão do Tribunal da Relação do Porto que alterara a pena para onze anos e oito meses de prisão, não tendo fundamento falar em "reformatio in pejus".

7) O arguido construiu uma tese ou teoria que não tem suporte real nem verdadeiro, ao procurar justificar e fundar o assassinato que cometeu na pessoa da sua ex-mulher na data de 4 de Janeiro de 2001, na violação por esta dos seus deveres de cooperação, respeito e assistência e do valor dos bens a partilhar.

8) Trata-se de uma fundamentação, no mínimo estranha e anti-social pois o arguido estava separado judicialmente de pessoas e bens da vítima Madalena... desde 17 de Março de 1997, tendo, inclusive, estado presente e participado na segunda conferência presidida pelo sr. Juiz daquele processo.

9) O arguido é uma pessoa consciente, inteligente, plenamente lúcida, bem conhecedora do que quis e quer e sempre soube, como sabe, defender e acautelar os seus interesses.

10) Os problemas de ansiedade e de agitação psicomotora do arguido que lhe são atribuídos mas que não lhe diminuem a imputabilidade, só surgiram após a separação de facto e a separação judicial de pessoas feita entre o arguido e a vítima Madalena..., como, aliás, de pode ver dos documentos que, para o efeito, juntou aos autos.

11) É do conhecimento público e geral que as reacções psicológicas das do tipo que o arguido sofreu, ocorrem muitas vezes após uma separação dos cônjuges, sem que isso represente, signifique ou provoque imputabilidade diminuída aos cônjuges separados.

12) As partilhas feitas entre o arguido e a vítima Madalena... foram acordadas entre os dois, depois de se terem separado judicialmente de pessoas e bens na data de 17 de Março de 1997, tendo estabelecido unicamente entre eles a divisão dos bens e dinheiros, bem como as formas e o modo de pagamento das tomas que entenderam por devidas, sem a interferência de quem quer que fosse.

13) Os poderes que o arguido conferiu à Dr.ª Isabel... foram tão-somente para esta o representar na outorga da escritura de partilha e não foram os de partilhar, negociar as partilhas, proceder ao preenchimento de quinhões, nem os de proceder a pagamento ou receber dinheiros ou qualquer outra coisa.

14) É do conhecimento geral que constitui uma prática habitual e normal que, em partilhas feitas entre maiores e por acordo entre os interessados, fiquem a constar da escritura notarial ou do inventário, somente os prédios, excluindo-se bens móveis e dinheiros, sendo comum que a adjudicação dos bens imóveis, na escritura, seja feita pelos respectivos valores matriciais e patrimoniais dos bens imóveis constantes das respectivas inscrições nas Finanças.

15) O arguido diz que nunca deu poderes a ninguém para se separar judicialmente de pessoas e bens mas, para além das reuniões que teve no escritório de advogados, para além do acordo que deu ao teor dos documentos em que prestou a sua rubrica em todas as folhas bem como a sua assinatura, o arguido esteve presente na segunda conferência do processo, na data de 17-03-1997, presidida pelo Sr. Dr. Juiz António Manuel...., como resulta da leitura da respectiva acta.

16) O arguido nunca foi doente nem sofreu de doença crónica ou grave e foi sempre ele quem tratou os seus assuntos na Suíça, para onde emigrou sozinho, sem ninguém que o ajudasse ou orientasse durante os 12 anos em que ali viveu, revelando, com isso, ser uma pessoa saudável, inteligente, bem sabendo o que queria e quer e como fazer para conseguir o que queria e quer e onde, até, pessoalmente negociou e contratou um empréstimo num Banco, o que revela, por si só, a sua plena capacidade de entender, decidir e agir.

17) O arguido pretende pôr no mesmo “saco” um processo de separação judicial de pessoas e bens com uma partilha, mas não revela em que é que o escritório de advogados interveio na partilha.

18) O arguido diz que “nunca pagou um tostão de honorários ou despesas ao escritório de advogados com referência à escritura de partilha do casal e que tal nunca lhe foi pedido”, o que é verdade, mas omite voluntária e conscientemente que o escritório de advogados nunca lhe poderia pedir qualquer quantia porque nunca tratou dessas partilhas, o que o arguido bem sabe.

19) Não é qualquer circunstância que diminui a ilicitude ou a culpa que pode dar lugar a uma atenuação especial da pena.

20) O arguido avaliou a ilicitude do facto e determinou-se de acordo com a avaliação que fez, integrando-se, aqui, o crescendo de agressões que praticou contra a vítima Madalena..., pelo que não foi com uma imputabilidade diminuída que o arguido praticou os crimes.

21) A conclusão do relatório médico-legal deveria conduzir o Tribunal a quo a considerar a existência de uma atenuação geral das penas pela prática dos vários crimes, nos termos do artigo 71º do Código Penal, mas nunca a atenuação especial das penas.

22) Acresce que a arma que o arguido transportava consigo e que usou para cometer o crime é uma arma perigosa.

23) As circunstâncias em que o crime ocorreu e a arma utilizada na consumação do crime, classificam-no como crime grave, não podendo admitir-se que seja classificado como crime privilegiado.

24) A sentença recorrida está devidamente fundamentada.”

Terminam pedindo a negação de provimento ao recurso do arguido.


Nesta Relação, o Ex.mo PGA emite douto parecer no sentido de que:
- Devem ser desatendidas as conclusões I e II da motivação do recurso do arguido;
- Quanto ao demais, remete para o teor do parecer exarado a fls. 729 ss., no qual, em suma, se sustenta que o arguido não cometeu o crime que o M.º P.º na 1ª Instância defende ter cometido, que os crimes de homicídio e de ofensa à integridade física são simples e não qualificados, e ainda que o arguido deve beneficiar da atenuação especial da pena.


Foram colhidos os vistos e teve lugar a audiência nos termos legais.
Cumpre apreciar e decidir.


2. FUNDAMENTAÇÃO:
2.1. Factos provados:
O Tribunal Colectivo considerou assente a seguinte factualidade, mantendo-se a enumeração ali feita para mais facilmente ser confrontada com o recurso do arguido:
7-1 O arguido casou com Madalena..., no dia 1 de Março de 1975 e passou a residir com ela em Santa Maria da Feira.
7-2 Alguns anos depois, o arguido emigrou para a Suíça, onde trabalhou durante vários anos na construção civil, enquanto aquela sua mulher continuou a residir em Portugal, cuidando dos 2 filhos, então menores, do casal e administrando os bens (nomeadamente imóveis) que foram sendo adquiridos, sobretudo com os proventos auferidos pelo arguido naquele país estrangeiro.
7-3 Durante o tempo em que o arguido permaneceu emigrado na Suíça, deslocava-se, por regra, pelo menos, uma vez a Portugal, para gozar as férias junto daquela sua família.
7-4 Porém, mais tarde, e depois de ter trabalhado durante vários anos naquele país (cerca de 12 anos), o arguido decidiu regressar definitivamente a Portugal, tendo o agregado familiar fixado a sua residência na Rua..., n.º ..., nesta cidade de Santa Maria da Feira.
7-5 As relações entre casal (e até entre o arguido e o seu filho mais velho, o Helder) que até então já não eram as melhores, a partir daí foram-se deteriorando progressivamente, originando, nomeadamente, constantes discussões.
7-6 Desentendimentos conjugais esses que vieram a culminar numa separação judicial, por mútuo consentimento de pessoas e bens, entre o arguido e aquela sua mulher Madalena, decretada por sentença de 17 de Março de 1997, do entretanto extinto Tribunal de Círculo de Santa Maria da Feira, transitada em julgado em 7 de Abril de 1997 (e após o respectivo requerimento nele ter dado entrada em Julho de 1996) - e nos demais termos constantes dos documentos juntos a fls. 405 a 422 destes autos.
7-7 No dia 4/4/2000, no 1º Cartório Notarial de Santa Maria da Feira, foi realizada a escritura pública de partilha de bens que compunham o património do casal, nos termos constantes dos documentos juntos a fls. 431 a 434 destes autos - e cujo teor aqui se dá igualmente por reproduzido -, sendo certo que nessa partilha o arguido figurou como estando representado pela Dr.ª Isabel..., através de um procuração que esta exibiu e a Ex.ma Dr.ª notária que presidiu ao acto declarou arquivar.
7-8 Porém, o arguido nunca aceitou de bom grado tal separação da esposa Madalena, e fundamentalmente a partilha que foi efectuada dos bens que constituíam o património comum do casal, tendo-se sentido “traído” e prejudicado, nomeadamente no que concerne a este último acto.
7-9 Todavia, e não obstante tal separação, o arguido foi continuando, ainda durante bastante tempo, a viver na mesma casa em que então residia todo o agregado familiar (muito embora dormindo separados).
7-10 Contudo, e sobretudo devido aos factos referidos em 7-8 e ainda por, no seu entender, se sentir desprezado pela família, as relações entre o arguido e a aludida Madalena foram-se deteriorando cada vez mais, com constantes discussões, passando aquele a perseguir a última, a fazer-lhe frequentes ameaças, e a adoptar atitudes de violência para com ela e a pedir-lhe satisfações sobre a forma como ocorreu a partilha dos bens do casal.
7-11 A partir, sobretudo, dos momentos aludidos em 7-6 a 7-8, o arguido passou a ter, nomeadamente, crises de ansiedade e alguns transtornos de personalidade, que o levaram, algumas vezes, a frequentar consultas médicas, e nomeadamente do foro psiquiátrico (chegando a estar internado no departamento de psiquiatria do Hospital de Aveiro).
7-12 E foi assim que, no dia 13 de Abril do ano 2000, por volta 19h a 20h, o arguido, na residência referida em 7-4, na sequência de mais uma discussão com a aludida Madalena, munindo-se, inopinadamente, de uma navalha, e cujas demais características não foi possível apurar, vibrou, com a lâmina aberta da mesma, um golpe na região hipogástrica da Madalena, causando-lhe ferida puntiforme na região hipogástrica, que lhe deixou cicatriz estrelada na linha média do terço inferior da região hipogástrica, com cerca de 10 mm de diâmetro, e demandou para tratamento, directa e necessariamente, 10 dias de doença, com incapacidade para o trabalho.
7-13 Agressão essa que o arguido pôs termo por, entretanto, os seus dois filhos - o Hélder que, se encontrava numa sua oficina de serralharia mesmo junto àquela residência e que ao ouvir os primeiros gritos se precipitou, a correr, para o seu interior, e o Alberto, que se encontrava então no interior da habitação, a ouvir música, dentro do seu quarto, com a testemunha Sérgio... - terem comparecido no local, separando os seus pais, tendo para o efeito o 1º chegado ainda, com vista a atingir tal desiderato, a empurrar o arguido, o qual então abandonou o local instigado por aqueles, e sem prestar qualquer assistência àquela sua mulher.
7-14 Assistência essa que, porém, aqueles seus dois filhos de imediato prestaram à sua mãe, tendo ainda providenciado, conjuntamente com elementos da PSP que entretanto ali compareceram, pela sua condução ao Hospital de S. Sebastião, nesta cidade, para tratamento médico-cirúrgico.
7-15 Ao abandonar a aludida residência, na sequência de tais factos, o arguido dirigiu-se ao Posto da Polícia de Segurança Pública de Santa Maria da Feira, onde efectuou a denúncia que consta de fls. 42 - e cujo teor aqui se dá por inteiramente por reproduzido - contra sua esposa e aqueles seus filhos Hélder... e Alberto..., e entregou duas munições para arma de calibre 38 SPECIAL (9 mm), por detonar, com as inscrições “G.F.L.” e “GECO”, sendo uma perfurante e outra normal, que o arguido trazia na sua posse.
7-16 A partir de tal data, o arguido abandonou definitivamente a sobredita habitação - impelido pela sua mulher Madalena e também por aqueles seus filhos, com fundamento de que mesma era só pertença desta última, em consequência do processo de partilhas acima referido, e também, com vista a evitar as constantes discussões e ameaças provocadas por aquele -, passando, desde então, o mesmo a viver em casa de sua mãe.
7-17 Abandono esse com o qual o arguido também nunca se conformou, aumentando de, dia para dia, a sua revolta e o seu estado de “abatimento”.
7-18 Assim, no dia 24 de Abril do ano 2000, cera das 11h00, no lugar de..., freguesia de..., desta comarca, o arguido fez sinal de paragem à referida Madalena, quando esta seguia ao volante do seu automóvel, tendo, mais uma vez, começado a discutir com ela por causa dos problemas acima referidos (separação, partilhas e abandono de casa); mantendo-se sempre a mesma no interior do veículo automóvel, com a janela do lado do condutor semi-aberta.
7-19 Foi então que de imediato, e sem que nada o fizesse prever, o arguido introduzindo o guarda-chuva, que trazia consigo, - e cujas demais características não foi possível apurar - por aquela janela, e espetando a parte pontiaguda e metálica do mesmo na zona do olho esquerdo da aludida Madalena, causando-lhe ferida corto-contusa na região do canto externo do olho esquerdo, que deixou cicatriz linear na região do ângulo externo desse olho, orientada transversalmente, com cerca de 9 mm de comprimento, e lhe determinou, directa e necessariamente, cinco dias de doença.
7-20 Por sua vez, em data não concretamente apurada, mas situada no 3º trimestre do ano 2000, o arguido adquiriu a um indivíduo que não foi possível identificar, pelo preço de 35.000$00, uma pistola de defesa, com as inscrições “SALVE”, de marca F.T., Modelo GT 28, de calibre 6,35 mm, de cor cromada, com punhos em baclite de cor preta e com cano de 5,5 cms de comprimento, e passou a andar acompanhado dessa arma, apesar de saber que ela não estava registada nem manifestada, e que não possuía licença de uso e porte de arma de defesa.
7-21 Por fim, no dia 4 de Janeiro de 2001, cerca das 12h00, o arguido, dirigiu-se ao Posto de Abastecimento de Combustíveis da “BP”, sito na Av...., nesta cidade, conduzindo o ciclomotor de matrícula 1-SM-..-.., de sua pertença, e levando no bolso a pistola supra referida e ainda a faca de cozinha que se encontra melhor descrita no auto de exame directo de fls. 103.
7-22 Já próximo dessas bombas de combustível o arguido avistou, estacionado, o automóvel da referida Madalena..., e logo deduziu que a mesma estaria por perto.
7-23 Decidiu então esperar ali pela referida Madalena para, mais uma vez, tirar satisfações com ela.
7-24 Tendo a Madalena chegado cerca de cinco minutos depois, o arguido logo se aproximou dela interpelando-a sobre o facto de o ter “expulsado” da sua residência, ao que a mesma lhe retorquiu “que não queria nada com ele”, e continuou o seu caminho em direcção ao automóvel seguindo de costas voltadas para o arguido.
7-25 Nessa altura, o arguido decidiu tirar-lhe a vida com a pistola que trazia no bolso, cujo carregador estava devidamente municiado.
7-26 Para o efeito, sacou do bolso a pistola de calibre 6,35 mm, supra referida, com seis balas no carregador, e quando a referida Madalena se encontrava muito próximo de si, e a uma distância que não foi possível concretamente apurar, mas que nunca ultrapassaria os cerca de 4/5 metros, e de costas voltadas para o mesmo, o arguido apontou essa pistola na direcção das costas da Madalena e disparou, de seguida, quatro tiros nessa direcção, com o propósito de a atingir com as balas e assim lhe tirar a vida, tal como veio a suceder.
7-27-1 De facto, um dos projécteis, animado de grande força viva, entrou na linha média da região dorsal direita, correspondente ao 5º espaço intercostal do corpo da aludida Madalena, percorreu a região dorsal esquerda, fracturou a omoplata do mesmo lado - na direcção de baixo para cima, da direita para esquerda e ligeiramente de trás para a frente, após muito provável ricochete em alguma costela ou vértebra - e ficou incrustado na face posterior da cabeça do úmero esquerdo;
7-27-2 Outro dos projécteis disparados pelo arguido entrou pela região deltoideia esquerda, perfurou o 3º espaço intercostal médio esquerdo e o pulmão esquerdo, indo alojar-se na aorta torácica, perfurando-a, lesões estas que motivaram a presença de um extenso hemotórax bilateral - na direcção de cima para baixo, da esquerda para a direita e ligeiramente da frente para trás;
7-27-3 O terceiro projéctil entrou pela face lateral esquerda do tórax, pelo 10º espaço intercostal, atravessou o hemidiafragma esquerdo, lacerou o baço, perfurou o lobo esquerdo do fígado e foi alojar-se sob o hemidiafragma direito na direcção, sensivelmente, horizontal nos planos longitudinal e anteroposterior e da esquerda para a direita.
7-28 Tais lesões, descritas no relatório de autópsia junto a de fls. 128 a 134, determinaram, directa e necessariamente, a morte de Madalena... - que foi devida a hemorragia interna aguda, consecutiva às já referidas perfuração do pulmão esquerdo, da aorta torácica, do baço e do fígado.
7-29 Ao ouvirem tais disparos, as testemunhas Pedro... e Marco... (que se encontravam então no interior do Bar denominado “B...” - respectivamente como empregado e como cliente -, situado próximo daquele local, e ao vislumbrarem por uma das janelas desse estabelecimento dois vultos, sendo deles uma mulher e um outro, o arguido, ainda com a arma na mão) precipitaram-se, de imediato, a correr, para ao local e em direcção à Madalena, que se encontrava aos gritos. De imediato ajudaram esta a sentar-se - só se apercebendo do sangue que saía do seu corpo, após lhe terem tirado o casaco, ao mesmo tempo que a mesma dizia que ia morrer e que tinha sido o seu marido o autor de tais disparos -, prestando-lhe todo o socorro então possível, ao mesmo tempo que solicitaram a um agente da PSP, que compareceu entretanto no local, que providenciasse pela comparência de uma ambulância que a transportasse ao hospital, tal como veio a acontecer pouco depois (onde, todavia, viria a falecer, no Bloco Operatório do Hospital S. Sebastião, desta cidade, pelas 15H00 daquele mesmo dia, e em consequência das lesões acima descritas).
7-30 Após ter efectuado os referidos disparos, o arguido aproximou-se do seu ciclomotor, pondo o respectivo motor em funcionamento e afastando-se do local.
7-31 Momentos depois, e após ter escondido aquela pistola - muito embora tivesse vindo, mais tarde, a revelar o seu esconderijo - foi apresentar-se na esquadra da PSP desta cidade, dizendo para o seu comissário que “tinha cometido uma desgraça e desgraçado a sua vida”.
7-32 De qualquer das vezes acima referidas o arguido agiu sempre de forma livre e consciente, bem sabendo que cada uma daquelas suas condutas era proibida por lei, querendo das duas primeiras vezes em que agrediu a Madalena ofendê-la na sua integridade física, e da última vez que contra ela disparou tirar-lhe a vida.
7-33 O arguido não tem antecedentes criminais.
7-34 Na comunidade em que vive, sempre foi uma pessoa “bem vista” e considerada, mantendo em relação à mesma bom comportamento.
7-35 Confessou uma parte dos factos, deles se revelando pesaroso (nomeadamente no que concerne à morte da mulher).
7-36 Após ter regressado a Portugal, e sobretudo durante o período de 19/5/1998 a 18/5/1999, trabalhou na Fábrica Nacional de Tubos Metálicos Oliva, SA.
7-37 Depois desta última data passou a trabalhar como pedreiro da construção civil, auferindo uma remuneração mensal média de cerca de Esc. 80.000$00.
7-38 É o mais novo dos dois filhos tidos pelos seus pais.
7-39 Frequentou a escola a partir dos 7 anos de idade, a qual abandonou aos 14 anos, sem grande aproveitamento, numa altura em que terá frequentado a 3ª classe, e revelando sempre grandes dificuldades de aprendizagem.
7-40 Começou a trabalhar desde então, inicialmente como sapateiro e depois como operário e depois ainda como pedreiro.
7-41 Mais tarde, cumpriu o serviço militar, vindo posteriormente a casar, como acima já ficou exarado, com a falecida Madalena.
7-42 No exame pericial que foi efectuado às suas faculdades mentais, concluiu-se pela sua imputabilidade, muito embora o Sr. perito responsável pelo relatório de tal exame seja de opinião que deve tratar-se de uma “imputabilidade atenuada”.
7-43 A Madalena... era beneficiária do Centro Nacional de Pensões com o n.º..., e utente do SNS com o n.º....
7-44 A titulo de subsídio do pagamento das despesas do funeral da falecida Madalena o Instituto da Solidariedade e Segurança Social/Centro Nacional de Pensões pagou ao filho daquela, Hélder..., a quantia de Esc. 137.800$00.

2.2. Factos não provados:
O tribunal Colectivo considerou não provado qualquer outro facto dos que foram descritos na acusação pública ou ao longo dos diversos artigos da contestação - do arguido, e nomeadamente:
I- Que na 2ª agressão acima descrita sob o n.º 7-18 o arguido tivesse usado a faca de cozinha examinada a fls. 103 destes autos.
II- Que a então sua mulher Madalena tivesse também emigrado com o arguido para a Suíça.
III- Que o arguido tivesse adquirido a Custódio... a pistola que utilizou nos disparos que provocaram a morte da aludida Madalena.
IV- Que o posto de abastecimento de combustíveis onde o arguido se dirigiu no seu ciclomotor, aquando dos factos que vieram a precipitar a morte, fosse da “ELF”.
V- Que o arguido seja ou fosse inimputável, por anomalia psíquica, aquando da prática de qualquer um dos factos acima descritos, estando impedido de avaliar a ilicitude da sua conduta, ou que não tivesse agido, nessa altura, de livre vontade e consciente de que praticava factos proibidos por lei, ou que não os pudesse evitar.
VI- Que tivesse sido o arguido que sozinho tivesse angariado todo o património do extinto casal que formou com a falecida Madalena (muito embora, convenha realçar, na matéria de facto dada como assente tinha sido dado como provado que os bens, e nomeadamente os imóveis, que compunham o património dito casal foram adquiridos sobretudo com os proventos auferidos pelo arguido na Suíça, enquanto aquela cuidava dos então dois filhos menores do casal e administrava os bens do casal - cfr nº 7-2).
VII- Que tais bens tenham sido adquiridos pelo arguido, na Suíça, através de um esforço imenso, sem horas de descanso, a trabalhar de noite e de dia.
VIII- Que antes de emigrar para a Suíça o arguido e a falecida Madalena vivessem com dificuldades económicas.
IX- Que enquanto o arguido permaneceu na Suíça a falecida Madalena e os filhos do casal levassem, à custa do arguido, em Portugal uma vida desafogada, sem que nunca tivessem trabalhado.
X- Que o arguido viesse a casa sempre que podia e que, nessa altura, viesse sempre carregado dos mais variados bens para apetrechar a sua casa tais como: televisores, vídeos, aparelhagem e máquina de costura.
XI- Que o arguido tivesse mesmo, a pedido daquela sua mulher, chegado “a contrair um empréstimo na Suíça supostamente para fazer obras num prédio de ambos na Rua... - vindo a saber mais tarde que esse dinheiro nunca foi gasto mas sim depositado numa conta bancária e, entretanto, desviado não se sabe para onde" (sic).
XII- Que alguns dos imóveis tivessem também sido adquiridos pelo arguido com o recurso algum dinheiro emprestado, em que ficou fiadora uma prima da mulher.
XIII- Que o património do casal (referente aos imóveis) formado pelo arguido e pela falecida Madalena estivesse avaliado (antes do regresso do arguido a Portugal e ou mesmo antes das partilhas) em cerca de esc. 50.000.000$00.
XIV- Que o arguido tivesse decidido regressar ao seu país natal, em virtude de já não se sentir nada bem do sistema nervoso, tendo então sucessivas e graves crises convirá deixar claro ou realçar que a descrição deste e dos outros factos a seguir descritos como não provados relacionados, quer com o estado físico-psíquico do arguido, quer no que concerte ao seu relacionamento com a sua então mulher e filhos do casal, se fará sem prejuízo do que a tal propósito -já ficou exarado na matéria dos factos dados como assentes e nomeadamente nos nºs 7-5, 7-6 e 7-10, 7-11, 7-13, 7-16 e 7-17).
XV- Que as crises de ansiedade que o arguido foi sendo acometido quando regressou a Portugal o deixassem de "rastos", sem poder caminhar, levando a cair para o lado e a "desfalecer", ficando num estado de debilidade psíquica.
XVI- Que o arguido passasse então a ser um estorvo e um empecilho para a aquela sua mulher, e que esta se revelasse, de dia para dia, insensível aos cuidados e ao estado de saúde do arguido, deixando de cozinhar, de lavar, de passar a ferro para ele e de lhe prestar qualquer outra assistência, e nomeadamente de lhe dar a medicação de que precisava, ou sequer de avisar os seus outros familiares sobre o seu estado.
XVII- Que quando lhe davam as crises ansiosas a mulher, nunca tivesse ajudado o arguido, fechando-o em casa, e nem água lhe dando.
XVIII- Que a falecida mulher o arguido "apodasse" este de bêbedo, sabendo que ele estava doente.
XIX- Que o arguido tivesse faltado a sucessivas consultas de acompanhamento psiquiátrico, por andar então absolutamente desnorteado e por não ter quem o acompanhasse, esquecendo-se de a elas comparecer.
XX- Que sem algo que o justificasse, a mulher e os próprios filhos provocassem, de forma sistemática, o arguido, ameaçando-o ainda de morte, não hesitando mesmo em "chegar a vias de facto", através de agressões que o arguido respondia, e que fossem elas que tivessem dado origem às queixas referidas na acusação.
XXI- Que no dia 13/4/2000, a mulher, em comunhão de esforços com os dois filhos, tivesse agredido o arguido.
XXII- Que o arguido não saiba ler e escrever.
XXIII- Que, numa altura em que ainda se encontrava na Suíça e em que já andava "doente dos nervos", o arguido tivesse sido convencido pelo sua aludida mulher a deslocar-se com ela a uma advogada a fim de resolverem uns assuntos que, segundo ela, seriam importantes para os dois convirá também aqui deixar claro ou realçar que a descrição deste e dos outros factos a seguir descritos como não provados relacionados- com ida ao advogado, o seu processo separação judicial de pessoas e bens e bem assim a partilha que foi levada a efeito, por mútuo consentimento, do património comum do casal, se fará sem Prejuízo do que a tal propósito já ficou exarado na matéria dos factos dados como assentes e nomeadamente nos nºs 7-6, 7-7 e 7-8).
XXIV- Que fosse por isso, e porque estivesse debilitado psiquicamente, que o arguido acedeu àquele pedido da sua mulher, lá indo.
XXV- Que por isso, e levado pela confiança que de princípio a presença de um advogado lhe inspirava, o arguido tivesse então ali assinado um ou dois papéis que lhe puseram à frente.
XXVI- Que o arguido após ter saído da casa que foi do casal, e que pelo processo de partilhas coube à sua mulher, se tivesse dirigido ao escritório da advogada, que o representou nas mesmas, para saber alguma coisa sobre o que se estava a passar, mas sem que conseguisse falar com ela.
XXVII- Que fosse só depois de ter arranjado uma pessoa que fosse à Conservatória do Registo Predial é que então ficou a saber que estavam registados em nome da sua falecida mulher e bem assim que estava separado da mesma por separação judicial de pessoas e bens.
XXVIII- Que o arguido tivesse sido vítima de uma cilada perpetrada pela sua falecida mulher - contribuindo ainda para tal a actuação dos advogados a que recorrera -, que se aproveitou da sua ignorância e da sua debilidade psíquica para lhe extorquir um declaração negocial e que só então se tivesse apercebido de tal.
XXIX- Que conscientemente o arguido nunca tivesse dado poderes a ninguém para se separar judicialmente ou para proceder à partilha dos bens comuns do casal.
XXX- Que o arguido nunca tivesse recebido o dinheiro que coube de tomas nessa partilha de bens ou sequer que nunca lhe tivessem sido prestado contas.
XXXI- Que todo o processo de partilhas (e bem assim de separação judicial de pessoas e bens) tivesse sido feito à completa revelia do arguido e com a intenção de o despojar de todo o património conseguido.
XXXII- Que o arguido tivesse ficado, em consequência de tal, sem um tostão para governar a vida e mesmo sem possibilidades de ganhar a sua vida mercê da sua doença, e que passasse a viver apenas da caridade da sua mãe.
XXXIII- Que nenhum dos advogados que lhe tratou do assunto nunca lhe tivesse dado qualquer explicação para o que passara, o mesmo acontecendo com a sua falecida mulher.
XXXIV- Que sempre que arguido se dirigia à sua mulher, ou aos seus filhos, os mesmos lhe respondessem insultando-o, provocando-o e agredindo-o, com o intuito de fazer que o mesmo reagisse e, assim, poderem participar dele criminalmente.
XXXV- Que o filho, mais velho, o Helder..., alguma vez tivesse agredido o arguido com um aquecedor.
XXXVI- Que o arguido quando o entregou as duas munições na polícia o tivesse feito apenas com o intuito de provar que os seus filhos eram portadores de armas e que o ameaçavam de morte com elas.
XXXVII- Que no dia 4/1/2001 quando o arguido se dirigiu à sua mulher, para lhe pedir explicações, a mesma o tivesse mandado embora "como a um cão".
XXXVIII- E que fosse esse comportamento da mulher que tivesse absolutamente descontrolado o arguido, tirando-lhe a lucidez, a capacidade de raciocínio, "de tino", "de humano", levando-o a disparar a arma.
XXXIX- Que tais disparos não fossem feitos para matar aquela sua mulher.


2.3. MOTIVAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO:
“O tribunal alicerçou a sua convicção para dar tais factos como provados, numa análise crítica de toda a prova produzida no seu conjunto (apreciada nos termos do disposto no art.º 127 do CPP), e que resultou da conjugação:
Da declarações do arguido - quer aquelas prestadas em audiência de julgamento, quer aquelas que prestou em 1º interrogatório judicial quando foi ouvido a fls. 12/13 destes autos, com as quais foi confrontado em audiência e que foram, assim, também valoradas à luz do disposto nas disposições conjugadas dos art.ºs 355º, n.º 2, e 357º, n.º 1 al. b), do CPP (o qual confessou aí uma boa parte dos factos, sendo que, no essencial, admitiu a 2ª agressão à falecida mulher - muito embora tivesse utilizado um guarda chuva -; os disparos com a pistola - que não se encontrava manifestada nem registada - que vieram a provocar a morte da mesma, as razões ou motivações que terão estado subjacentes ou por detrás de tais actos; sendo certo que no que concerne à 1ª agressão à referida Madalena admitiu ter estado a discutir com ela e de entretanto se ter munido de uma navalha, muito embora afirmasse que foi para se defender daquela sua mulher e do seu filho mais velho, o Hélder, não tendo, todavia, a certeza, na confusão que se gerou se foi ele ou este seu filho que espetou a referida navalha na aludia Madalena - versão essa à qual o tribunal não deu credibilidade, quer por não ter grande lógica, quer por ter sido feita com grandes ambiguidades, quer devido ainda ao facto de aquele seu filho, quando foi ouvido ter negado tal hipótese suscitada pelo seu pai, no que concerne à sua pessoa, sendo ainda certo que o outro filho, o Alberto, que presenciou os factos em causa, quando foi ouvido confirmou também ter sido ele que, na verdade, espetou a referida faca na sua mãe -; dizendo-se, por fim, que tendo o arguido no 1º interrogatório judicial afirmado ter adquirido a pistola que utilizou nos disparos, que mais tarde vitimaram a Madalena, a um tal Custódio..., mas já negando, de forma peremptória, em julgamento que fosse esse indivíduo que, na realidade, lhe vendeu a dita pistola, o tribunal, perante tal contradição e dado tratar-se de uma questão irrelevante, nomeadamente, no que concerne à responsabilidade criminal do arguido, tendo ficado com algumas dúvidas, optou por não dar como provado tal facto).
Das declarações do assistente Hélder... (filho mais velho do arguido e da falecida da Madalena, o qual para além de descrever o ambiente, cada vez mais degradante, em que viviam aqueles dois, presenciou ainda a o arguido a espetar uma navalha no corpo da sua mãe, aquando da 1ª agressão acima descrita, tendo então ainda impedido que o mesmo a continuasse a agredir; sendo ainda que no que concerne à 2ª agressão, muito embora não a tivesse presenciado, viu a sua mãe chegar do hospital com um penso junto ao olho, tendo-lhe depois a mesma contado que foi o seu pai que a havia agredido, narrando-lhe os factos que levaram a tal; confirmando ainda que o seu pai costumava ter diversas armas e munições em casa).
No depoimento das testemunhas:
Alberto... (filho mais novo do casal, o qual para além de descrever o que foi a vida dos seus pais e o ambiente, cada vez mais degradante, em que foram vivendo, encontrava-se no interior do seu quarto quando ocorreu a 1ª agressão acima descrita, tendo acorrido ao local quando ouviu a sua mãe gritar, tendo visto ainda o seu pai com uma navalha ou faca - não podendo precisar bem - na mão e espetá-la na sua mãe, e o seu irmão entretanto tentar desarmar o mesmo da dita arma, tendo ambos impedido que o mesmo a continuasse a agredir, prestando-lhe de seguida socorro, sendo ainda que no que concerne à 2ª agressão, muito embora não a tivesse presenciado, viu a sua mãe chegar a casa a sangrar, nomeadamente de uma zona junto ao olho, tendo-lhe depois a mesma contado que foi o seu pai que a havia agredido, narrando-lhe os factos que levaram a tal, após o que providenciou que um seu tio a conduzisse ao hospital para receber assistência; confirmando ainda que o seu pai costumava ter diversas armas e munições em casa);
Pedro... e Marco... (respectivamente, empregado e cliente do Bar “B...”, que se encontravam no seu interior na altura em que o arguido começou a disparar sobre a falecida Madalena - tendo ainda, pela janela, visto o mesmo efectuar alguns disparos com a arma na mão -, após o que ambos se precipitaram para o local dos acontecimentos, tendo então prestado os primeiros socorros e assistência àquela vítima);
Florindo... (encontrava-se na oficina de serralharia do assistente Hélder, para consertar uma máquina de soldar, quando se começou ouvir uma discussão, aos gritos, em casa onde moravam os pais deste último, que fica muito perto daquela oficina, após o que de imediato este se dirigiu a correr para aquela habitação; tendo posteriormente o depoente, alguns momentos depois, também para ali se dirigido e visto já a referida Madalena a sangrar na zona do abdómen, e o arguido a sair de casa a correr);
João... (vizinho do arguido e da falecida Madalena há vários anos, vivendo numa casa que se situa a cerca de 300 a 400 metros da residência em que os mesmos viviam, conhecendo o progressivo mau relacionamento do casal, e como viveram até então; sendo que em determinada altura, quando se encontrava no posto médico, viu ali entrar a Madalena com uma ferida no abdómen, dizendo-lhe que tinha sido arguido que lhe tinha feito “aquilo”; e passados mais alguns dias encontrou-se com aquela tendo a mesma apontado para um penso que trazia num dos olhos e dito: “olhe o que ele (referindo-se ao arguido) me fez com um guarda-chuva”; sendo ainda que em conversas que teve com o arguido este se lhe queixava frequentemente que ela (a Madalena) “lhe tinha ficado com tudo”);
Sérgio... (vizinho do casal há cerca de 7 anos, sendo que uma vez se encontrava, no quarto de habitação dos mesmos a ouvir música com o filho mais novo, o Alberto, quando ouviram uma discussão entre os pais do mesmo, tendo-se este de imediato precipitado para o local onde os seus pais se encontravam; enquanto o mesmo se manteve mais alguns instantes no interior do quarto, tendo, todavia, dali - já que a porta se encontrava aberta visto ainda o arguido espetar uma navalha no corpo da Madalena, e aproximando-se mais do local viu ainda os dois filhos do casal, sobretudo o Hélder, a separar os pais, após que o arguido se pôs em fuga e aqueles seus filhos prestarem, de seguida, ajuda à mãe que se encontrava a sangrar);
Francisco... (agente da PSP, em Santa Maria da Feira, tendo uma vez, na altura da 1ª agressão, acima descrita, recebido o arguido que se queixava, em cuecas, de ter sido posto fora de casa pela mulher e pelos filhos. Deslocou-se então com ele à referida habitação, tendo ali falado com um dos filhos que lhe disse que a sua mãe acabara de ser esfaqueada pelo arguido e que tinha ido receber tratamento ao hospital, e que já não o queriam ali, até por que a casa já não seria dele);
Manuel António... (agente da PSP que se deslocou ao local onde ocorreram os disparos que motivaram a morte da Madalena, embora esta já ali não se encontrasse; tendo, mais tarde, acompanhado o arguido ao local indicado pelo mesmo onde, momentos antes, teria escondido a pistola de onde saíram tais disparos);
António Hipólito... (foi contratado pelo arguido para efectuar obras na habitação do casal, tendo sido com ele que efectuou a adjudicação dos trabalhos, sendo, porém, a referida Madalena, que se encontrava em Portugal e o arguido na Suíça, que orientava aqueles; tendo ainda confirmado que das diversas vezes que contactou com o arguido sempre o considerou uma pessoa correcta);
Arménio..., Serafim..., Maria Conceição, Nelson..., Eugénio..., António Santos..., Albino..., Moisés..., Helena... e Filomena... (todos amigos e conhecidos, há vários anos, do arguido, com excepção das 3ª e 4ª - que eram primos do arguido e da Madalena ; da 6ª e da 9ª - respectivamente, irmão e mãe do arguido -, e da última - tia do arguido -, as quais confirmaram, no essencial, o progressivo mau relacionamento do casal; o facto de o arguido a certa altura ter abandonado, contra a sua vontade, a casa que fora do casal; o facto de o mesmo nunca se ter conformado com tal situação e bem assim com a separação judicial de pessoas e bens que ocorreu com Madalena e sobretudo com a partilha extrajudicial dos bens que se lhe sucedeu –“sentindo-se que fora traído e abandonado” pela mulher e pelos filhos, mas sobretudo por aquela, o que tudo terá contribuído para que o mesmo entrasse num progressivo estado de abatimento, de ansiedade e de transtornos de personalidade, levando-o a frequentar, por várias vezes, consultas médicas, algumas delas, do foro psiquiátrico, confirmando, por fim, ser uma pessoa bem comportada e considerada no meio social em que vivia).
E, por fim, dos documentos juntos a fls. 5, 21, 38, 46, 48, 50, 56, 57, 77, 78, 91/92, 103, 118, 128 a 134, 148, 149, 150, 154/155, 174, 281, 282, 2839 382 a 434, 472 e 479 a 482 destes autos”.

No que concerne aos factos negativos, ou seja, àqueles que não foram dados como provados, tal ficou a dever-se, o essencial, ou à circunstância de nenhuma prova ter sido produzida sobre alguns deles ou então, no que concerne a outros, o tribunal ter considerado, em termos de formação segura da sua convicção, que essa prova foi manifestamente insuficiente, ou então, no que concerte a outros, que a prova produzida foi no sentido contrário aos mesmos (estando muitos deles em contradição com aqueles que foram dados como assentes, por provados).
E de entre tais factos realçam-se os seguintes:
O facto de não se ter dado como provado que o arguido seja ou fosse inimputável, por anomalia psíquica, aquando da prática de qualquer um dos factos acima descritos, estando impedido de avaliar a ilicitude da sua conduta, ou que não tivesse agido, nessa altura, de livre vontade e consciente de que praticava factos proibidos por lei, ou que não os pudesse evitar (nº V), baseou-se na impressão que o tribunal ficou quando ouviu o arguido em audiência de julgamento (nada detectando, para além do que a esse propósito já acima se encontra exarado como assente, sobre o seu estado físico-psíquico, que pudesse conduzir a tal conclusão), no depoimento de muitas das testemunhas ouvidas, c., fundamentalmente, nas conclusões exaradas no relatório pericial junto a fls. 479 a 482.
Quanto ao facto referido em XXII (que o arguido não soubesse ler e escrever), tal convicção baseou-se, fundamentalmente, não só pela assinatura do mesmo que consta nos diversos documentos juntos aos autos (cfr. fls. 66, 67, 69, 109, 4085 415, 416, 418, 423 e 427) como também do que a tal propósito ficou exarado no nº 7-39 dos factos dados com provados (onde consta que o arguido frequentou a escola dos 7 aos 19 anos, tendo frequentado a 3ª classe).
No que concerne a todos aqueles factos alegados pelo arguido tendentes a demonstrar que só muito mais tarde - soube da sua separação, por mútuo consentimento, judicial de pessoas e bens, com a sua falecida mulher, e bem assim da partilha extrajudicial dos bens comuns do casal que se lhe seguiu, e ainda que tudo isso terá obedecido a um estratagema ou cilada previamente delineados por aquela sua mulher, no que terá sido acompanhada ou ajudada pelos srs. advogados a quem recorreu e outorgou as respectivas procurações, deixando-o seu um único tostão (vg. nomeadamente os factos constantes dos nºs XXIII a XXXIII), tal deveu-se, fundamentalmente, por um lado, e desde logo, ao facto de observando o documento autenticado que se encontra junto a fls. 421/422 (cuja falsidade não foi invocada), se verificar que o arguido se encontrava pessoalmente presente na 2ª conferência que precedeu a sentença que de imediato foi proferida por um exmº colega que presidiu ao acto, encontrando-se ainda exarado em tal acta que "no início da conferência ele sr. Juiz tentou a conciliação dos cônjuges, sem êxito, tendo estes manifestado o propósito de se separarem de pessoas e bens, mantendo inalteráveis os acordos de fls. 7, 8 e 9....... e, por outro lado, dos outros documentos juntos aos autos (vg. fls. 404 a 434), não se extrai, pelo menos de forma clara, qualquer irregularidade ou algo que nos possa levar, sem qualquer temeridade, a tal conclusão (embora não deixemos de admitir alguma estranheza no que concerte, sobretudo, à solução encontrada na partilha judicial dos bens comuns, mas isso são "contas de outro rosário", sendo certo, por um lado, que como, infelizmente, se sabe, nem sempre tudo aquilo que se encontra exarado nos documentos contempla toda a extensão ou conteúdo dos acordos a que, na realidade, os outorgantes chegaram, e, por outro lado, e apesar de tudo, em termos provatórios, não foi possível ir além dessa estranheza, já que de concreto, e quanto a tais alegados factos, nada mais se provou, e nem mesmo com a prova testemunhal ouvida a esse respeito, pelo menos em termos de o tribunal poder, em consciência e sem dúvidas, alicerçar nesse sentido a sua convicção).
Igualmente, e no essencial pelas mesmas razões acabadas de expor, não foi possível apurar o valor exacto ou sequer aproximado do património do casal, e muito especialmente que o valor dos imóveis totalizasse então os esc. 50.000.000$00 (cfr. nº XIII). É que dos documentos juntos autos não resulta esse valor, sendo que daqueles que dizem respeito, quer à relação que de bens que foi apresentada no aludido processo judicial de separação de pessoas e bens, quer daqueles que documentam a partilha extrajudicial que posteriormente foi levada a efeito (cfr, nomeadamente, fls. 409 a 415 e 431 a 434), resulta um valor consideravelmente inferior, sendo ainda certo que nenhuma prova pericial foi produzida a esse respeito, e que nem sequer a escassa prova testemunhal produzida, quanto a esse aspecto, foi minimamente esclarecedora, em termos de o tribunal formar, quanto a esse aspecto, uma convicção segura.
No que concerne aos demais factos, nomeadamente aqueles referidos sob os nºs e VII a XI e XIV (salvaguardando a nota que aí se deixou exarada e realçada) a XXII, tal ficou a dever-se à circunstância de nenhuma prova ter sido produzida sobre eles ou, quanto a outros, essa prova ter sido considerada muito escassa (especialmente quanto aos primeiros) e a que foi produzida (sobretudo no que diz respeito aos segundos) ter sido considerada manifestamente insuficiente ou até contraditória (veja-se, por exemplo, que os dois filhos do casal negaram que eles ou sua mãe tenham agredido ou insultado o arguido, e que quando o mesmo foi impelido a abandonar a anterior habitação conjugal tal foi já depois da ocorrência da sobredita partilha judicial, pela qual a mesma foi adjudicada à falecida mulher, e na sequência da agressão acima exarada perpetrada, com o uso de uma navalha, pelo arguido sobre a última, e com vista fundamentalmente a evitar as constantes discussões e ameaças provocadas por aquele), nomeadamente, quanto a este último aspecto, no que concerte a alguns depoimentos de algumas testemunhas familiares o arguido e aqueles seus próprios filhos, o que levou a que o tribunal não pudesse, em consciência e sem
dúvidas, dar tais factos como provados.
No que concerte ao facto referido no nº I, tal resultou fundamentalmente
das declarações proferidas nesse sentido pelo arguido (que confessou ter utilizado nessa agressão um guarda chuva) e pela testemunha João Rocha Familiar (o qual, a esse propósito, declarou que foi a própria falecida Madalena, ao apontar-lhe para o penso que trazia no olho, que lhe disse que tinha sido o arguido com um guarda chuva).
No que concerne ao facto referido no nº II, tal resultou fundamentalmente das declarações proferidas nesse sentido pelo arguido e dos próprios filhos do casal.
No que concerne ao facto referido no nº III, tal já está explicitado e fundamentado na análise crítica feita das declarações proferidas pelo próprio arguido.
No que concerne ao facto referido no nº V, tal ficou a dever-se prova produzida em audiência, e sobretudo do depoimento das testemunhas Pedro... e Marco... (que se precipitaram para o local logo que ouviram os primeiros tiros e com o intuito de ali socorrerem a vítima Madalena), os quais afirmaram, de forma categórica, que o posto de abastecimento de combustíveis em causa era da “BP” e não da “ELF”.”


3. OS FACTOS E O DIREITO:

De acordo com a jurisprudência corrente uniforme e pacífica, designadamente, do mais alto Tribunal, o âmbito do recurso é dado pelas conclusões dos recorrentes extraídas da respectiva motivação, sem prejuízo do conhecimento oficioso de vícios e nulidades, se for caso disso (cfr. Ac. do STJ de 10.07.1996, proferido no processo nº 48 675).
Assim sendo - e não esquecendo que “ As Relações conhecem de facto e de direito” (artº 428º, n1, do CPP)-- , o recurso interposto é da matéria de facto e de direito, sem prejuízo do disposto no artº 410º, nºs 2 e 3, do CPP (cfr. artº 428º, nº2, do CPP). Ou melhor, sempre este tribunal tem de conhecer - mesmo que oficiosamente - dos vícios a que alude o artº 410º, nº2, do CPP, embora tão só quando os mesmos resultem do texto da decisão recorrida por si só, ou conjugada com as regras da experiência comum, no seguimento do decidido no Ac. do STJ nº 07/95, de 19.10, em interpretação obrigatória.
Vejamos do mérito do recurso.

Como já no anterior acórdão desta Relação se referiu, as conclusões são demasiado extensas e, por vezes, prolixas, constando, mesmo, de uma conclusão diversos itens o que torna a tarefa deste Tribunal um tanto complicada.
No entanto, cremos que as questões que os recorrentes submetem à apreciação deste tribunal são as seguintes:

A) Pelo arguido:
O acórdão recorrido, ao não efectuar nova audiência de julgamento com produção de prova , para, só após, descriminar os factos provados e não provados da contestação do arguido, incumpriu a ordem emanada pelo Tribunal Superior, incorrendo na nulidade prevista na al. d), fine do nº 2 do artº 120º do CPP e violando, ainda, o disposto no artº 32º, nºs 1 e 5 da CRP.
Além disso, foram mesmo violados os arts. 327º nº2, 335º nº1 e 328º, nº6, do CPP, pois as provas que serviram para dar como provados ou não provados os factos, maxime da acusação, são ineficazes por produzidas há 18 meses atrás.
O acórdão recorrido violou o princípio da proibição da reformatio in pejus, plasmado no artº 409º do CPP.
A matéria de facto dada como provada deve ser alterada em diversos pontos, especificados;
Houve violação do princípio in dubio pro reo.
O arguido não cometeu os crimes de homicídio e de ofensa à integridade física qualificados, como se decidiu, mas tão-somente os ilícitos previstos no tipo simples;
Aliás, o crime de homicídio cometido pelo arguido é o privilegiado, p. e p. pelo art.º 133º do C. Penal.
A pena a aplicar, em cúmulo jurídico, não deve ultrapassar os 2 anos e meio de prisão e deve ser suspensa na sua execução.

B) Pelo M.º P.º:
1. Para além dos crimes por que o arguido foi condenado, cometeu ainda um crime p. e p. pelo art.º 275º do C. Penal, porque detinha duas munições de calibre proibido;
2. O arguido não pode beneficiar da atenuação especial da pena porque inexistem circunstâncias que diminuam, de forma acentuada, a ilicitude do facto ou a culpa do agente.

Passemos, pois, a analisar as diversas questões:

I. Quanto à primeira questão suscitada pelo arguido—incumprimento da ordem emanada pelo Tribunal Superior, com violação do disposto nos artsº 32º, nºs 1 e 5 da CRP e 327º nº2, 335º nº1 e 328º, nº6, do CPP.
Com o devido respeito pelo ilustre causídico subscritor das doutas alegações da motivação - que é muito -, não alvejamos que assista qualquer razão para a procedência desta primeira conclusão.
O acórdão recorrido, na procura de cumprimento do comando emanado do acórdão desta Relação, relacionou descriminadamente os factos da contestação do arguido que considerou não provados e apresentou a motivação dessa decisão de facto, com referência aos diversos meios de prova produzidos na audiência de julgamento.
Entende o recorrente que o tribunal recorrido, para fazer essa descriminação factual dos factos e fundamentos considerados para tal falta de prova, tinha necessariamente que efectuar previamente um novo julgamento, pois só assim se satisfazia a ordem que emanava dos anteriores Acórdãos dos Tribunais Superiores.
Como se constata do Acórdão desta Relação, junto a fls. 872 ss - que cumpriu o ordenado pelo STJ no douto Acórdão de fls. 835 ss-, o que ali foi decidido foi isto:
“Nestes termos, acordam os Juizes da 1ª Secção Criminal desta Relação em declarar nulo o acórdão proferido pela 1ª Instância, nos termos conjugados no nº 2 do artº 374º e alínea a) do nº 1 do artº 379º do CPP, que deverá ser substituído por outro que enumere especificadamente os factos que considere provados ou não provados, com referência à contestação, e expondo, nos termos prescritos naquela disposição legal, os motivos dessa decisão, designadamente expondo os que determinaram ter considerado como não provados factos constantes da contestação do arguido, assim se dando integral cumprimento ao douto acórdão do Supremo Tribunal de Justiça”- os sublinhados são da nossa autoria.

É, assim, apodíctico que o acórdão desta Relação - com cujo teor o ora recorrente integralmente se conformou, pois se assim não fosse teria reagido oportunamente, designadamente pedindo os inerentes esclarecimentos ou aclarações—não decidiu a anulação do julgamento produzido pala primeira instância, tão só anulando o acórdão. Isso é bem patente, desde logo, do facto de na dita decisão desta Relação se fazer expressa referência aos arts. 374º e 379º que se referem, respectivamente, aos “requisitos da sentença” e “nulidades da sentença” - nada tendo a ver com o julgamento.
Portanto, tem toda a razão o Exmº Procurador Geral Adjunto quando, no seu parecer, refere que “Não havia, pois, que efectuar novo julgamento, mas sim lavrar novo acórdão, baseado na prova constante dos autos e produzida oralmente na audiência, a qual fora registada em fita magnética.”
Não se alveja, assim, onde na decisão recorrida se violaram os princípios do contraditório e da igualdade de armas ou se tenha ofendido a dignidade do arguido “ enquanto destinatário da decisão que lhe criou e acalentou a esperança de ver o tribunal apreciar novamente a prova”.
Essa “esperança” é legítima e compreensível. Mas as esperanças dos arguidos obviamente que nem sempre saem satisfeitas porque.......nem sempre têm razão.
E não se diga que foram violadas as garantias de defesa do arguido” por inobservância das exigências do contraditório da oralidade e da imediação” (sic.-fls. 1085). É que não se extrai dos autos que tais garantias não tenham sido cabalmente asseguradas ao longo de todo o processo, maxime da produção da prova em audiência de julgamento, prova essa que ficou, aliás, integralmente gravada!

Alega o recorrente - ainda na fundamentação da conclusão acabada de aflorar- que houve violação do disposto no artº 328º, nº6 do CPP, que comina com a ineficácia da prova produzida há mais de 30 dias caso o adiamento da audiência exceda tal prazo - violação essa que, a existir, integraria, é certo, a nulidade prevista na al. d) do nº 2 do artº 120º do CPP.
É clara a lei ao dispor que excedendo o adiamento da audiência trinta dias, só sendo retomada a audiência depois desse prazo, a produção de prova já realizada perde eficácia (cit. normativo).
Pretende-se, com este comando legal, dar cumprimento ao princípio da imediação das provas que Figueiredo Dias define como “a relação de proximidade comunicante entre o tribunal e os participantes no processo”, visando-se a obtenção de uma percepção fidedigna do material que há-de servir para fundamentar a decisão. E é obviamente, certo que o aludido princípio, tal como o da oralidade, só se compreendem tendo em vista a verdade material, objectivo último a atingir.
No entanto, parece claro que tal normativo (artº 328º, nº6) se refere tão só a situações de adiamento da audiência enquanto decorre a discussão da causa, ou seja, antes de ser encerrada a discussão - o que apodícticamente não é o caso em apreço.
Ou seja, tal artº (328º do CPP) refere-se apenas ao princípio da continuidade da audiência, não tendo aplicação quando o STJ ordena a baixa do processo para ser elaborado novo acórdão (cfr. Acs. STJ de 97.11.20, in Acs. STJ V, 3, 243 e de 94.09.15, proc. nº 46 856 ).
Com plena aplicação ao caso sub judice, escreveu-se no Ac. do STJ de 96.10.31, proc. nº 48 962) que “Anulando o Supremo Tribunal de Justiça um acórdão da 1ª instância por não terem sido indicadas as provas que serviram para formar a convicção do tribunal, não há que repetir a produção da prova, mesmo que decorridos mais de 30 dias”.
Efectivamente, aquando da audiência de julgamento toda a matéria de facto foi devidamente apreciada e apurada, apenas não se tendo feito constar de forma descriminada do 1º acórdão da 1ª instância, na relação dos factos não provados, todos os alegados na contestação do arguido que não foram incluídos nos provados, apenas e só se mencionando alguns (cfr. fls. 528). Tratou-se de um vício de cariz formal que, por ordem do Tribunal Superior, foi devidamente sanado.
Certo é que a questão parece complicar-se no que tange à motivação da parte da decisão de facto referente àqueles factos não provados da contestação, pois é precisamente quanto a este aspecto que o recorrente afoitamente defende a exigência do novo julgamento.
No entanto, sem embargo de se continuar a considerar que toda a matéria de facto foi oportunamente apreciada e considerada -- sem violação do citado artº 328º, nº6, do CPP--, pois não se trata de acrescentar qualquer facto à relação dos provados, e logo tal correcta descriminação dos factos provados em nada afectará a decisão de meritis, o certo é que jamais se poderia dizer que com o tempo já decorrido teria ocorrido um desvanecimento da prova. É que toda a prova foi gravada ou registada em suporte magnético, ao qual, seguramente, os Srs. Juizes também recorreram para satisfação da ordem do Tribunal Superior.
Improcede, como tal, esta primeira questão suscitada pelo arguido/recorrente.

Face ao até aqui explanado—em especial ao atinente à primeira questão aflorada e supra decidida--, logo também se responde à “Questão Prévia” suscitada pelo arguido a fls. 1198 verso e 1199.
Certo é que a fls. 729 ss o Exmº Sr. PGA nesta Ralação emitiu parecer sobre as questões suscitadas nos recursos até aí interpostos.
No entanto, como vimos, os Tribunais Superiores (STJ e Relação) anularam os Acórdãos da Relação e da 1ª instância - o que, naturalmente, arrastou a anulação de todos actos posteriores.
Assim, ou nessa sequência - ou seja, face ao novo acórdão lavrado no Tribunal a quo - o Exmº Ministério Público na 1ª instância entendeu interpor recurso do mesmo. E não faz sentido dizer-se que estava a incorrer em desobediência hierárquica. É que, quer o anterior recurso do Mº Pº na primeira instância, quer o parecer emitido pelo Exmº PGA nesta Relação a fls. 729 ss, com a anulação do 1º acórdão da 1ª instância, deixaram de ter qualquer valor ou utilidade. Por isso é que também nesta Relação o Exmº PGA volta e emitir novo parecer (embora, é certo, renovando-se aí a argumentação do parecer exarado a fls. 729 ss, o que não lhe retira completa autonomia em relação a este - com o qual não tinha necessariamente que estar de acordo).
Em suma, portanto, parece evidente que o Mº Pº na 1ª instância se limitou a interpor recurso de uma nova decisão, motivando-o como bem entendeu, sem qualquer desobediência ao Superior Hierárquico ou violação do Estatuto daquela Magistratura.
Nenhuma violação da lei, portanto.


II. Quanto à segunda questão - violação do princípio da reformatio in pejus (ut artº 409º do CPP).
Igualmente não assiste qualquer razão ao arguido/recorrente (idem na II conclusão de fls. 1199).
Diz o recorrente que “ sendo a questão tão cristalina, inútil é fazer perder tempo a V, Exªs com a sua apreciação” (fls. 1086).
Concordamos em que se trata de “questão tão cristalina”. Mas tal “cristalinidade” se existe é apenas e tão só na falta de qualquer razão ao recorrente.
Efectivamente, ao contrário do que pretende fazer crer o arguido, não foi do recurso do arguido para o STJ que resultou a alteração da sanção em prejuízo do arguido (sic - fls. 1086 verso).
De tal recurso o que resultou foi tão só e apenas a anulação do Ac. da Relação (cfr. fls. 866) - que havia condenado o arguido na pena única de 11 anos e 8 meses de prisão-, ordenando-se que esta Relação proferisse novo acórdão no qual ordenasse ao Tribunal da 1ª Instância que sanasse a supra apontada nulidade - o que a Relação fez, declarando, por sua vez, nulo o acórdão da 1ª instância (cfr. fls. 874) e fazendo baixar o processo a fim de ser proferido novo acórdão onde se sanasse o apontado vício (formal).
Ou seja, com a prolação dos dois arestos dos Tribunais Superiores, anulados ficaram os acórdãos da Relação e da 1ª Instância.
Como tal, não faz sentido falar-se em reformatio in pejus no que concerne à pena aplicada na Relação em recurso do acórdão da 1ª Instância. O acórdão da Relação não transitou em julgado e, face à declaração da sua nulidade, não chegou a produzir quaisquer efeitos. O STJ, aliás - exceptuando a apontada questão de forma que levou à declaração da nulidade do acórdão da Relação - nem, sequer, se pronunciou acerca das várias questões suscitadas, em especial das atinentes às sanções aplicadas.
Assim sendo, parece obvio que nada se reformou ou agravou. A 1ª Instância tão somente se limitou a proferiu novo acórdão face à anulação do anteriormente proferido, bem assim (agora pelo STJ) do proferido pela Relação na sequência do recurso do mesmo interposto.
Improcede, assim, esta questão suscitada pelo arguido/recorrente.


III. Quanto à terceira questão-- alteração da matéria de facto, nos vários pontos especificados.
Antes de mais, cremos que o recorrente deu cabalmente satisfação do disposto nos nºs 3 e 4 do artº 412º do CPP, tendo procedido à transcrição da prova - assim ultrapassando a (à data controversa) questão da incumbência da transcrição da prova, hoje assente face ao estatuído no Ac. do STJ para fixação de jurisprudência nº 2/03, in DR I-A, de 30.01.03, que estabeleceu que tal incumbência pertencia ao tribunal.

Parece-nos que a matéria de facto que se impugna é, não só irrelevante para a decisão da causa-- pois o núcleo dos factos não é questionado--, como, até, tal impugnação mais não parece traduzir do que uma divergência na forma ou nos critérios de apreciação tomados pelo tribunal recorrido.

-- Sustenta o recorrente que deve corrigir-se o ponto 7-2 dos factos provados no sentido de que foi com proventos auferidos pelo arguido na Suíça que os bens do casal, nomeadamente imóveis, foram adquiridos (retirando-se a expressão “sobretudo”).
Mas, pergunta-se: será que nenhum valor deve dar-se ao trabalho que seguramente teve a falecida ex-mulher do arguido cuidando da casa, tratando e educando os filhos de ambos, orientando as obras da casa, etc., etc. ? Se isto fosse pago na sua justa medida, será que os tais “bens do casal” objecto da partilha seriam os mesmos?
Obviamente que o património levado à partilha também foi conseguido à custa do trabalho da vítima, sendo absolutamente incorrecto pensar-se que só o arguido contribuiu para a obtenção dos aludidos bens por só ele receber vencimento!!

-- Peticiona o recorrente que se dê como provado que o património do casal estava avaliado em cerca de Esc. 50.000.000$00 ou, pelo menos, que era constituído pelos bens móveis e imóveis que constam da relação de bens de fls. 409 a 415 dos autos.
Ora, sem embargo de ser verdade – o que consta de documento autêntico-- que os ex-cônjuges declararam, em Juízo, que tal património era constituído pelos bens móveis e imóveis que constam da relação de bens de fls. 409 a 415 dos autos, o certo é que não tem qualquer relevância para estes autos a matéria acabada de referir que se pretende levar aos factos provados - matéria essa, porém, que os autos não permitem dar como provada.

--Quanto a dar-se como provado que a mulher do arguido se aproveitou do facto de ele não saber ler nem escrever e de estar física e mentalmente debilitado para o levar a um escritório de advogados onde este assinou uns papéis sem imaginar para o que fossem;
“ou pelo menos”
que devido à sua debilidade física e psicológica e à sua susceptibilidade o arguido subscreveu, em circunstâncias não concretamente apuradas, as procurações e alguns dos documentos constantes de fls. 405 a 429 dos autos, não tendo consciência do fim a que se destinavam,
é matéria factual, não só igualmente de todo irrelevante, como sobre a qual não há prova nos autos.

-- E o mesmo se diga dos factos referidos nas alíneas g) e seguintes do ponto III das suas conclusões.
Como tal, não vinga a pretensão de alteração da matéria de facto, designadamente a vertida nos pontos 7-6, 7-10 (a mulher não estava obrigada a prestar auxílio a partir de 1997), 7-11 (desconhece-se desde quando o arguido passou a ter crises de ansiedade), 7-12 (a posição do Tribunal Colectivo está em conformidade com a prova testemunhal produzida, maxime com os depoimentos das testemunhas Florindo e Sérgio, dos dois agentes da PSP que se deslocaram a casa e dos depoimentos dos próprios filhos da vítima e do arguido), 7-13, 7-14, 7-15, 7-16 (é de todo irrelevante que se diga, ou não, que a mãe do arguido é “pessoa de provecta idade e baixa condição económica e social”), 7-17 (deu-se como assente o que era relevante: a revolta e o estado de abatimento), 7-19 (as características do guarda-chuva em nada agravam (ou atenuam) a responsabilidade do arguido pelo que é irrelevante tal facto).

Quanto à pretendida alteração do ponto 7-32, é manifesto que a mesma não merece acolhimento.
Como já se havia a fls. 760 verso, desde a apresentação da contestação que o arguido pretende fazer crer que não agiu de forma livre e consciente, tendo requerido, para o demonstrar, a realização de exame às suas faculdades mentais.
Todavia, a conclusão desse exame é bem diversa da pretendida e, por isso, o tribunal colectivo considerou – o que não merece censura– que agiu com vontade livre e consciente, o que resulta de forma inequívoca e é da experiência comum atendendo a que não existem circunstâncias que excluam a ilicitude ou a culpa.
Considerou, porém, provado, que tem uma imputabilidade atenuada. Para isso baseou-se no relatório de exame às faculdades mentais.
Ao aceitar a conclusão, o tribunal colectivo aceitou também, implicitamente, os fundamentos da mesma.
Este tribunal, para justificar as razões da não atenuação especial da pena, socorrer-se-á dos fundamentos do relatório, o que é permitido pela aceitação das conclusões.

Analisando os depoimentos produzidos em audiência de julgamento, cujos extractos foram transcritos, conjugados e correlacionados com os constantes da motivação probatória da decisão de facto, bem como os demais elementos de prova em que se alicerçou o tribunal, com as regras da experiência comum, chegamos à conclusão que a decisão sobre a matéria de facto não merece cesura.
Do exposto, portanto, resulta que a convicção a que o Tribunal chegou, segundo as regras da livre apreciação da prova, mostra-se devidamente fundamentada, com indicação do que foi retirado para efeitos de convicção do tribunal, dos depoimentos das testemunhas prestados em audiência, e do porquê da relevância / credibilidade que lhe foi atribuída, com critérios lógicos e objectivos, e alicerçada nos elementos de prova obtidos em audiência, bem como nos documentos juntos aos autos e invocados na motivação da matéria de facto, encontrando-se a matéria de facto fixada de acordo com um raciocínio lógico e coerente.
No fundo o arguido/recorrente põe em crise é a forma como o tribunal apreciou a prova produzida em audiência, impugnando dessa forma a convicção assim adquirida e pondo em causa a regra da livre apreciação da prova inserta no art. 127º, do CPP, no qual se diz, como vimos, que "... a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente".
Saliente-se que o princípio da imediação respeita predominantemente à audiência de julgamento. E não há dúvida que os factos, quando ocorrem, esgotam-se em si mesmos, sendo sempre impossível a sua reconstituição natural e o que se pretende fazer na audiência é reconstituir o que se passou, na base do que ficou retido a quem a eles assistiu e teve conhecimento. A verdade que surge ao tribunal é a verdade que decorre da audiência. Ora, não há dúvida que, não obstante a prova ter sido documentada, não tem este Tribunal da Relação, nem pode ter, a mesma percepção que teve o juiz do julgamento na primeira instância, porque lhe está vedada a imediação.
Sobre a apreciação da matéria de facto, pelo Tribunal de segunda instância, cabe aqui referir, enfim, que “O Tribunal de segunda jurisdição não vai à procura de uma nova convicção (.......), mas à procura de saber se a convicção expressa pelo Tribunal “a quo" tem suporte razoável naquilo que a gravação da prova (.......) pode exibir perante si (vide Ac da RC de 03-10-2000, in CJ 2000, Tomo IV, pág. 28).
E, tal como se afirma no Ac. da RC de 09.02.00, in CJ 2000, Tomo 1, pág. 55, «Na verdade, não podemos esquecer que, ao apreciar a matéria de facto, este tribunal está condicionado pelo facto de não ter com os participantes do processo aquela relação de proximidade comunicante que lhe permite obter uma percepção própria do material que há-de ter como base da sua decisão. Conforme refere Figueiredo Dias, in (Princípios Gerais do Processo Penal, pág. 160), só os princípios da oralidade e da imediação permitem o indispensável contacto vivo e imediato com o arguido, a recolha da impressão deixada pela sua personalidade. Só eles permitem, por outro lado, avaliar o mais contritamente possível da credibilidade das declarações prestadas pelos participantes processuais. Tal relação estabeleceu-se com o Tribunal de primeira instância e daí que a alteração da matéria de facto fixada em decisão colegial, deverá ter como pressuposto a existência de elemento que, pela sua irrefutabilidade, não possa ser afectado pelo funcionamento do princípio da imediação».
E acrescenta o mesmo aresto, «Conforme refere Marques da Silva, o juízo sobre a valoração da prova tem vários níveis. Num primeiro aspecto trata-se da credibilidade que merecem ao tribunal os meios de prova e depende substancialmente da imediação e aqui intervêm elementos não racionais explicáveis. Num segundo nível inerente à valoração da prova intervêm as deduções e induções que o julgador realiza a partir dos factos probatórios e, agora, já as ingerências não dependem substancialmente da imediação, mas hão-de basear-se na correcção do raciocínio que há-de fundamentar-se nas regras da lógica, princípio da experiência e conhecimentos científicos, tudo se podendo englobar na expressão, regras da experiência.
Porém, o facto de também relativamente à prova indirecta funcionar a regra da livre apreciação não quer dizer que na prática não definam regras que, de forma alguma se poderão confundir com a tarifação da prova. Assim, os indícios devem ser sujeitos a uma constante verificação que incida não só sobre a sua demonstração, como também sobre a capacidade de fundamentar uma lógica dedutiva, devem ser dependentes e concordantes entre si».
É sabido que as testemunhas ""são os auxiliares do juiz, são os olhos e os ouvidos da justiça" (Pietro Ellero, citando Mittermaier, "De certidumbre en los juicios criminales o Tratado de La Pruebra em materia penal, 7ª edição, Reus, 1980, pág. 114; vd. Por todos, quanto à apreciação da prova testemunhal, págs. 109 a 132), e que “O fim da prova, como do processo, é a verdade judiciárias quer dizer, o que o juiz terá por verdadeiro” (Rui de Freitas Rangel, Registo da Prova: A Motivação das Sentenças Civis no âmbito da Reforma do processo Civil e as Garantias dos Cidadãos, LEX, 1996, pág. 24), o que, por vezes, se torna difícil de obter, especialmente quando a prova determinante é a testemunhal.
Os Mmos Juizes do Colectivo assistiram à produção da prova, foi perante eles que as testemunhas e o arguido falaram, foram eles que as viram, que se aperceberam dos gestos, da forma como se exprimiram. Estes dados não se traduzem nas folhas transcritas da produção da prova.
No caso em apreço, face à globalidade da prova produzida, quer testemunhal, quer documental, resulta haver coerência, no sentido da matéria de facto dada como provada pelo Tribunal "a quo", não tendo este Tribunal da Relação elementos suficientemente seguros para alterar a matéria de facto.
Improcede, como tal, a aludida pretensão de alteração da matéria de facto.


IV. Quanto à violação do princípio in dubio pro reo:
Não assiste razão ao arguido/recorrente.
Como é sabido, em processo penal, vigora o principio da presunção de inocência do arguido-- com consagração constitucional, (art. 32º, nº 2, da CRP), e ainda na Declaração Universal dos Direitos do Homem, no Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos e na Convenção Europeia dos Direitos do Homem, «cuja primeira grande incidência, assenta fundamentalmente, na inexistência de ónus probatório do arguido em processo penal, no sentido de que o arguido não tem de provar a sua inocência para ser absolvido; um princípio in dubio pro reo; e ainda que o arguido não é mero objecto ou meio de prova, contraditor do acusador, com armas iguais às dele.
Na verdade, e em primeiro lugar, o princípio da presunção de inocência do arguido isenta-o do ónus de provar a sua inocência, a qual parece imposta (ou ficcionada) pela lei; o que carece de prova é o contrário, ou seja, a culpa do arguido, concentrando a lei o esforço probatório na acusação.
Em segundo lugar, do referido principio da presunção de inocência do arguido (embora não exclusivamente dele) decorre um princípio in dubio pro reo, princípio que, procurando responder ao problema da dúvida na apreciação do caso criminal (não a dúvida sobre o sentido da norma, mas a dúvida sobre o facto), e partindo da premissa de que o juiz não pode terminar o julgamento com um non liquet, determina, que na dúvida quanto ao sentido em que aponta a prova feita, o arguido seja absolvido (vide Rui Patrício, ín "O princípio da presunção de inocência do arguido na fase de julgamento no actual processo penal português", Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, Lisboa, 2000, págs. 93-94).
A dúvida a ter em conta para efeitos da verificação do aludido princípio in dubio pro reo é que tem de ficar no espírito do colectivo.
No caso presente, vê-se claro da motivação do recurso que o Colectivo de Juizes não teve a menor dúvida - muito menos “dúvida insanável”-- relativamente à forma como os factos ocorreram e, por consequência, em dar como provados e/ou não provados os factos da forma como o fez. Por isso, não faz qualquer sentido apelar-se ao funcionamento do princípio in dúbio pro reo.

O arguido sustenta, ainda, a aplicação do aludido princípio no que toca à verificação de circunstâncias qualificativas agravantes (cfr. fls. 1125).
No entanto, parece evidente que se não pode falar neste domínio em dúvida para efeitos da aplicação do aludido princípio - a dúvida a ter aqui em conta é, como supra já se referiu, a “dúvida sobre o facto”. E, ao invés, do que agora se trata é tão só de uma situação de manifesta aplicação do direito aos factos. E à frente veremos se o arguido cometeu os crimes de homicídio e de ofensa à integridade física na sua forma qualificada ou, antes, na forma simples.
Improcede, assim, esta questão suscitada pelo arguido/recorrente.

Saliente-se que se não alveja a verificação de qualquer dos vícios referidos no artº 410º, nº2 do CPP - de conhecimento oficioso--, sendo certo que o recorrente também os não invoca.
Efectivamente, dúvidas não se nos afiguram de que, no caso em apreço, nenhum erro transparece do texto da decisão recorrida, quer por si só, quer conjugada com as regras da experiência comum, nem se vislumbra o desrespeito por prova legalmente vinculativa ou tarifada que tivesse sido desprezada, ou não investigada pelo tribunal recorrido.
Não alvejamos que se possa dizer que , perante o que consta do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugado com o senso comum, se pode constatar que o tribunal violou as regras da experiência ou se baseou em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios ou desrespeitou regras sobre o valor da prova vinculada ou das leges artis.
Temos, assim, como definitivamente assente a matéria de facto vertida no acórdão recorrido.


Quanto à questão da eventual prática pelo arguido, para além dos crimes por que foi condenado, ainda de um crime de detenção de munições próprias de arma proibida, p. e p. pelo art.º 275º n.º 4, do Código Penal, com referência às disposições conjugadas dos artigos 4º, do Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março e 3º, n.º 1, alíneas a) e b) e 2, alínea c), ambos do Decreto-Lei n.º 207A/75, de 17 de Abril, como sustenta o Mº Público.

Os factos relevantes para esta questão são os seguintes:
- Ao abandonar a residência onde vivia com a ex-esposa e com os filhos, na sequência dos factos praticados, supra referidos, o arguido dirigiu-se ao Posto da Polícia de Segurança Pública de Santa Maria da Feira, onde efectuou a denúncia que consta de fls. 42 e entregou duas munições para arma de calibre 38 SPECIAL (9 mm), por detonar, com as inscrições “G.F.L.” e “GECO”, sendo uma perfurante e outra normal, que o arguido trazia na sua posse.
- Agiu sempre o arguido de forma livre e consciente, bem sabendo que cada uma daquelas suas condutas era proibida por lei.

Dispõe o n.º 4 do art.º 275º do C. Penal:
“Quem detiver ou trouxer consigo ... munições, destinadas a serem montadas nessas armas (proibidas) ou por ela disparadas, se desacompanhadas destas, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias”.
Certo é que a arma de calibre superior a 6,35 mm e os revólveres de calibre superior a 7,65 mm são consideradas armas proibidas – art.º 3º, n.º 1, alíneas a) e b) do DL 207-A/75, de 17 de Abril--, sendo certo, também, que as munições em questão se destinavam a ser usadas em arma de calibre 9 mm e estavam desacompanhadas destas.
No entanto, não obstante o arguido na altura transportar as munições, fazia-o com o único objectivo de as entregar à autoridade policial, o que fez de forma espontânea e livre.
Logo assim, daqui se deduz que o arguido não agiu com dolo, ou seja, com intenção de transportar ou deter as munições nos termos que subjazem à letra da lei. O arguido mais não quis do que remover o perigo (abstracto) que a detenção das munições podia implicar - precisamente aquele perigo que está subjacente à incriminação legal.
Como tal, não vemos como punir a conduta do arguido, face a uma correcta interpretação teleológica da lei.
Como já havia sido sustentado no parecer do Exmº PGA nesta Relação de fls. 729/730, como se depreende da queixa que o arguido apresentou contra a mulher e filhos, as armas e munições, posteriormente à vinda da Suíça, mesmo que tivesse sido o arguido a trazê-las - o que não está provado -, terão passado para a posse dos filhos em data indeterminada, deixando de estar sob a sua detenção.
Inverificada está a previsão legal para que possa ocorrer a incriminação do arguido nesta parte.
Improcede, como tal, nesta parte o recurso do Mº Pº.


VI. Vejamos agora se:
- O arguido não cometeu os crimes de homicídio e de ofensa à integridade física qualificados, como se decidiu, mas tão-somente os ilícitos previstos no tipo simples, bem assim se o crime de homicídio cometido pelo arguido é o privilegiado, p. e p. pelo art.º 133º do C. Penal—recurso do arguido;
- O arguido não pode beneficiar da atenuação especial da pena porque inexistem circunstâncias que diminuam, de forma acentuada, a ilicitude do facto ou a culpa do agente—recurso do Mº Pº :

Prescreve o artº 131º do C. Penal que “quem matar outra pessoa é punido com pena de prisão de 8 a 16 anos”.
O valor absoluto da vida, derivado da essencial dignidade da pessoa humana, tem uma protecção jurídico-penal basicamente prevista no citado artº 131º do Cód. Penal.
Trata-se do chamado homicídio simples que é caracterizado pela existência de dois elementos: um objectivo - matar outrém - e outro subjectivo - a intenção de matar.
Face ao complexo fáctico apurado, com segurança se conclui que, nas circunstâncias de tempo, modo e lugar atrás referidas, o arguido desenvolveu um conjunto de actos idóneos a provocar a morte da vítima (disparos dos tiros sobre o corpo da mesma), com conhecimento dessa idoneidade, sabendo que os actos que praticou necessariamente levariam à morte da mesma, sendo certo que teve intenção de tirar a morte à Madalena da forma como o fez, o que veio, de facto, a acontecer. Entre os actos do arguido e a morte da vítima intercede, inequivocamente, portanto, o indispensável nexo de causalidade (artº 10º. nº 1 do Código Penal).
O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, querendo o resultado letal da sua conduta (dolo directo - artº 14º do C. Penal).

Cabe agora indagar sobre a pretendida qualificação, ou agravação típica.
Dispõe o artº 132º, nº1, do C. Penal que “Se a morte for produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade, o agente é punido com pena de prisão de 12 a 25 anos”.
E o nº 2 acrescenta: “É susceptível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade a que se refere o número anterior, entre outras, a circunstância de o agente.....” - seguindo-se uma enumeração dessas circunstâncias.

Constituindo a enumeração das circunstâncias previstas no nº 2 meramente exemplificativa, sempre poderão existir outras circunstâncias não descritas no tipo legal, mas reveladoras da apontada situação - revelar a especial censurabilidade ou perversidade--, dando origem, assim, aos chamados casos de homicídio qualificado atípico. O que é fundamental é que se trate de um homicídio qualificado em circunstâncias que possam desencadear o efeito de indício de uma maior culpa (cfr. Teresa Serra, "Homicídio Qualificado, -Tipo de Culpa e Medida da Pena", Coimbra, 1972, págs. 70 a 75).
Além disso, bem pode suceder que a verificação de qualquer uma dessas circunstâncias não implique, por si só, a qualificação do crime pelo que, então, o juiz deixará de operar tal qualificação. E isto porque as circunstâncias descritas nas várias alíneas do nº 2 do artigo 132º não são de funcionamento automático (cfr. v.g., Maia Gonçalves em anotação ao artº 132º do C. Penal, Actas das sessões da Comissão Revisora do Cód. Penal, Parte Especial, pág. 21 a 24; Ac. de STJ 12-5-83, nº BMJ 327-458; Ac. S.T.J 8-2-84, BMJ nº 334-258; Ac. S.T.J de 5-1-83, BMJ nº 323-121; Ac. S.T.J de 26-4-89, BMJ nº 386-273 e Ac. S.T.J de 5-12-90, BMJ nº 402-195
Face ao seu funcionamento não automático e à sua não taxatividade, tais circunstâncias só podem ser compreendidas enquanto elementos da culpa, exigindo-se, por isso, que, no caso concreto, elas exprimam insofismavelmente, uma especial perversidade ou censurabilidade do agente.
Deste modo, verificando-se algumas das circunstâncias enunciadas no nº 2, embora exista um efeito de indício de uma especial censurabilidade ou perversidade, tal efeito tem de ser demonstrado, posteriormente, na situação em concreto, através de uma análise das circunstâncias do caso (cfr. Actas, Parte Especial, 1979, pág. 21 e 22 e Ac. do S.T.J. de 1217189, B.M.J. nºl 389, pág. 310).
Acompanhando Teresa Serra, pode dizer-se que existe especial censurabilidade quando "as circunstâncias em que a morte foi causada são de tal modo graves que reflectem uma atitude profundamente distanciada do agente em relação a uma determinação normal com os valores"; por seu turno, a especial perversidade supõe “uma atitude profundamente rejeitável no sentido de ter sido determinada e constituir indício de motivos e sentimentos que são absolutamente rejeitados pela sociedade" (cfr., op. citada, págs. 63 e 4).
Por conseguinte, subjacente à especial censurabilidade ou perversidade está um maior grau de culpa que o agente manifesta em tais circunstâncias, o que motiva a agravação.
A agravação da culpa tem, afinal, a ver com a "maior desconformidade que a personalidade manifestada no facto possui, face à suposta e querida pela ordem jurídica, em relação à desconformidade, já de si grande, da personalidade subjacente à prática de um homicídio simples" (cfr. Figueiredo Dias, C.J. XII, 411, pág.52).
Como tal, o desvalor ético-jurídico traduzido na culpa é capaz, por isso, de fundamentar, exclusivamente por si, uma censura.
Em jeito de conclusão, portanto, diremos que, para aquilatar da especial censurabilidade ou perversidade do agente na prática do homicídio, por forma a que este seja considerado como qualificado e, por via disso, punido com pena agravada, se impõem duas operações:
- a primeira é a de saber se existe alguma circunstância das enunciadas no nº 2 do artº 132º do C. Penal, enquanto indício daquela censurabilidade e perversidade;
- a segunda, é a de averiguar se, perante as circunstâncias concretas do caso dos autos, e vista a estrutura valorativa em tal grau de gravidade dos factos em julgamento, que nos leve a crer que o aumento da culpa é em grau tão elevado que justifica a agravação subjacente ao homicídio qualificado - cfr. Teresa Serra,- ob. cit., pág. 7

Vêm imputadas ao arguido as circunstâncias previstas nas als. g) e i), do nº 2, do artº 132º do C. Penal.
Não alvejamos que se verifique a qualificação ou agravação típica em causa, assim discordando da decisão do Tribunal Colectivo na 1ª instância.
Antes de mais, cremos que - como já bem se havia acentuado no anterior acórdão desta Relação - é difícil compatibilizar uma “imputabilidade atenuada” com “circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade”.
Com efeito, as circunstâncias referidas no n.º 2 do art.º 132º do C. Penal são relativas à culpa. E a imputabilidade também se refere à culpa (cfr. Paula Ribeiro de Faria, in “Comentário Conimbricense do Código Penal”, parte especial, Tomo I, págs. 251 e 252.

Quanto à alínea g)—utilização de “ um meio particularmente perigoso”--, como muito bem sustenta o Prof. Figueiredo Dias, “Comentário Conimbricense do Código Penal”, parte especial, tomo 1, pg. 37, “utilizar meio particularmente perigoso é ... servir-se de um instrumento, de um método ou de um processo que dificultem significativamente a defesa da vítima e que (não se traduzindo na prática de crime de perigo comum) criem ou sejam susceptíveis de criar perigo de lesão de outros bens jurídicos importantes. ... Para além do que fica dito, deve sobretudo ponderar-se que a generalidade dos meios usados para matar são perigosos e mesmo muito perigosos. Exigindo a lei que eles sejam particularmente perigosos, há que concluir duas coisas: ser desde logo necessário que o meio revele uma perigosidade muito superior à normal nos meios usados para matar (não cabem seguramente no exemplo-padrão e na sua estrutura valorativa revólveres, pistolas, facas ou vulgares instrumentos contundentes); em segundo lugar, ser indispensável determinar, com particular exigência e severidade, se da natureza do meio utilizado – e não de quaisquer outras circunstâncias acompanhantes – resulta já uma especial censurabilidade ou perversidade do agente ...”.
Ora, é certo que os instrumentos, utilizados pelo arguido (navalha e guarda-chuva nas agressões e pistola de calibre 6,35 mm no homicídio) são, sem dúvida, perigosos. Mas - na senda do aludido entendimento doutrinal acabado de apontar, que reputamos acertado, não se podem considerar “particularmente perigosos”. O que afasta a verificação desta circunstância qualificativa agravante ao homicídio praticado pelo arguido.
Aliás, sempre se diga que, configurando a detenção da arma não registada nem manifestada um crime de perigo comum, p. e p. pelo art.º 6º da Lei 22/97, de 27 de Junho e tendo este crime sido punido autonomamente, em obediência ao princípio ne bis in idem, os aludidos aqueles factos não podem, obviamente, servir para qualificar outro ilícito criminal.
Como tal - e não tendo o arguido agido “juntamente com, pelo menos, mais duas pessoas” (citada al. g)) -, é manifesto que se não verifica tal qualificativa agravante do homicídio.

Quanto à alínea i) - actuação “com frieza de ânimo, com reflexão sobre os meios empregados ou ter persistido na intenção de matar por mais de 24 horas”-, igualmente se não verifica tal circunstância qualificativa, pois tal não resulta da matéria de facto provada, como é bom de ver.

Não cremos, portanto, que a actualidade apurada seja reveladora de personalidade marcadamente mais desviada dos padrões impostos pela ordem jurídica, personalidade portadora de uma intensa vontade criminosa manifestada no facto criminoso e, por isso, passível de um maior juízo de censura jurídico-penal.
Não obstante a muita gravidade da conduta do arguido, tendo em conta todo o circunstancialismo em que as coisas ocorreram, não cremos poder afirmar que o arguido agiu com sangue frio, insensibilidade, indiferença e calma, no assumir da sua resolução de matar, revelando, em suma, uma grande “frieza de ânimo” (Ac. do S.T.Just. de 06.06.90, in Col. Jur., Ano XV, III, 21).
Certo é que o arguido mostrou com a sua conduta um desrespeito radical por valores essenciais de qualquer sociedade, assente na dignidade da pessoa humana e em que o direito à vida aparece como o primeiro direito fundamental e absolutamente inviolável, conforme se alcança dos arts. 24º e 25º da Constituição da República Portuguesa.
No entanto, tal não basta para que se verifique a agravação típica, pois a lei exige que a conduta criminosa traduza “especial censurabilidade ou perversidade” do agente (cfr. nº 1 do artº 132º e artº 146º-- este para as ofensas à integridade física qualificadas--, do C.P.).
Não vemos que o arguido tenha praticado um claro “acto de crueldade” no sentido definido por Maia Gonçalves, «Código Penal Português Anotado e Comentado», 6ª ed., Coimbra, 1992, págs. 352-353, ou seja, como aquele que se traduz «num aumento cruel e desnecessário do sofrimento da vítima; num prolongamento da sua dor».
Como se ensina no «Dicionário de Sinónimos», Porto, s/d, págs. 180 e 186, de Roquete, «Cruel é aquele que se compraz em actos sanguinários, em causar tormentos físicos ou morais». Cruel é aquele homem que carece de todo o sentimento de humanidade e de compaixão. E isto não se enquadra na situação factual sub judice.
Não se pode dizer, também, que o arguido formou a sua vontade criminosa de modo frio, lento, reflexivo, cauteloso, deliberado, calmo na preparação e execução e persistente na resolução. E é esta circunstância, mais fortemente indiciadora da especial censurabilidade ou perversidade do autor do crime de homicídio voluntário (ou de ofensa à integridade física qualificada), que encerra o fundamento e/ou condição sine qua non da agravação.Como tal, não pode a personalidade do arguido, tal como ela emerge deste crime, ser objecto de um acrescido juízo de censura, fundado no especial desvalor.Assim sendo, inexistindo qualquer outra circunstância qualificativa, se conclui que o arguido cometeu dois crimes de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo art.º 143º n.º 1 do C. Penal; um crime de homicídio simples p. e p. pelo art.º 131º do C. Penal (salvo se vier a concluir-se que este crime é privilegiado nos termos do art.º 133º do mesmo diploma legal, como pretende o arguido) e um crime de detenção ilegal de arma p. e p. pelo art.º 6º da Lei 22/97, de 27/6.Questiona-se agora: será o crime de homicídio praticado pelo arguido o privilegiado, p. e p. pelo artº 133º do CP?A lei diz-nos que comete tal crime “quem matar outra pessoa dominado por compreensível emoção violenta, compaixão, desespero ou motivo de relevante valor social ou moral, que diminuam sensivelmente a culpa”- prevendo para tal crime a pena abstracta de “prisão de 1 a 5 anos”.Sustenta o arguido que cometeu tal crime uma vez que agiu com emoção violenta e desespero.Será assim?No anterior Acórdão desta Relação fez-se uma extensa citação de Prof. Figueiredo Dias, in “Comentário Conimbricense do Código Penal”, parte especial, Tomo I, págs.47 ss.Porque também nos parece de capital importância o que ali escreveu o Ilustre Professor, permitimo-nos repetir aqui tais citações.Ali se escreveu, designadamente, com interesse para o aspecto que ora nos merece atenção:".........Do que se trata, em último termo, é da verificação no agente de um hoje dogmaticamente chamado, em geral, estado de afecto. ... Estado que pode, naturalmente, ligar-se a uma diminuição da imputabilidade ou da consciência do ilícito, mas que, independentemente de uma tal ligação, opera sobre a culpa ao nível da exigibilidade. ...§3 Tal qual sempre sucede com a ideia da exigibilidade como componente da culpa jurídico-penal, pois, o efeito diminuidor da culpa ficar-se-á a dever ao reconhecimento de que, naquela situação (endógena e exógena), também o agente normalmente «fiel ao direito» («conformado com a ordem jurídico-penal») teria sido sensível ao conflito espiritual que lhe foi criado e por ele afectado na sua decisão, no sentido de lhe Ter sido estorvado o normal cumprimento das suas intenções. ...Os estados ou motivos assinalados pela lei não funcionam por si e em si mesmos (hoc sensu, automaticamente), mas só quando conexionados com uma concreta situação de exigibilidade diminuída por eles determinada; neste sentido é expressa a lei ao exigir que o agente actue "dominado" por aqueles estados ou motivos. Nem, por outro lado, poderiam existir aqui especificidades relevantes ao nível do tipo de ilícito: do ponto de vista das exigências de tutela do bem jurídico não intercede qualquer diferença entre homicídio e homicídio privilegiado. ...
[.................]
II. Os elementos privilegiadores§ 7 Compreensível emoção violenta é um forte estado de afecto emocional provocado por uma situação pela qual o agente não pode ser censurado e à qual também o homem normalmente “fiel ao direito” não deixaria de ser sensível. Não se trata aqui de qualquer valoração social ou (muito menos) moral do estado de afecto, mas apenas da sua verificação nos termos preditos. ... Pode assim, deste ponto de vista, retirar-se um certo paralelo ... entre esta situação e a que, para diversos efeitos, o direito penal português anterior a 1982 conhecia sob o designativo de provocação (a literatura e a jurisprudência portuguesas sobre ela tornam-se inumeráveis; ....);............ Tal como na provocação suficiente, também na emoção violenta compreensível o que está em questão não é uma (eventual) inimputabilidade; do que nela se trata, ainda nas palavras de EDUARDO CORREIA, II, 278, nota 1, «é de um conjunto de disposições normais, que, em face do estímulo (...), levam à prática do facto criminoso. A compreensibilidade, neste sentido, tanto abrange a falta de censurabilidade dos motivos, como dos pressupostos de uma livre determinação, traduzida na perturbação provocada por um acto (aqui: por uma situação) que exclui a apreciação ou o controlo dos instintos ou afirmações normais da personalidade”.§ 8 O requisito da “compreensibilidade” da emoção ... representa por isso ainda uma exigência adicional relativamente ao puro critério de menor exigibilidade subjacente a todo o preceito. Sem deverem ser omitidas as dificuldades desta concepção ... deve considerar-se que a compreensibilidade assume ainda um qualquer cunho objectivo ... de «participação» do julgador nas conexões objectivas de sentido que moveram o agente. Fica deste modo ainda espaço autónomo de funcionamento do critério de menor exigibilidade (“sensível diminuição da culpa”). ...Que se exija da emoção violenta que seja compreensível, mas já não da compaixão ou do desespero, é coisa que se aceita quando se considere que aquela exigência adicional vale para estados de afecto esténicos ... mas já não para estados de afecto asténicos.§ 9 A jurisprudência portuguesa dominante interpreta a exigência de que a emoção seja «compreensível» no sentido da necessária «existência, de uma adequada relação de proporcionalidade» entre o facto que a desencadeia (a “provocação”) e o facto “provocado” .... . Tomada no seu teor puramente literal, é obviamente errada uma tal jurisprudência: ... nunca pode existir «proporcionalidade», em qualquer dos sentidos possíveis em que este princípio releva juridicamente ... entre uma qualquer emoção e a morte dolosa de outra pessoa. A análise possível dos casos jurisprudenciais mostra em todo o caso que não se trata no fundo da exigência de «proporcionalidade», mas sim, como deve ser, de um mínimo de gravidade ou peso da emoção que estorva o cumprimento das intenções normais do agente e determinada por facto que lhe não é imputável ... O que confirma a forma como o elemento acabou de ser determinado nas considerações anteriores.§ 10 Por se exigir da emoção que, além de compreensível, diminua sensivelmente a culpa é que não assume relevo a questão de saber se na origem do estado emocional esteve um qualquer comportamento ilícito ou injusto do próprio agente, surgindo a «provocação» como resposta ou retorsão. Tudo dependerá de, numa avaliação conjunta e global da situação ... o julgador concluir que a emoção violenta compreensível diminuiu sensivelmente a culpa do agente. ...§ 11 O que acaba de expor-se para a emoção deve repetir-se, de forma ainda mais linear, para a compaixão (estado de afecto ligado à solidariedade ou à comparticipação no sofrimento de outra pessoa ...) e para o desespero (onde estará em causa não tanto a situação objectiva de falta de esperança na obtenção de um resultado ou de uma finalidade, quanto sobretudo estados de afecto ligados à angústia, à depressão ou à revolta; ...: não se torna, pois, necessário, diversamente do que vimos suceder com a emoção, que eles devam ter-se também como “compreensíveis”... .§ 12 Exactamente o mesmo haverá que dizer do motivo de relevante valor social ou moral. Naturalmente que uma tal relevância tem de avaliar-se à luz da ordem axiológica suposta pela ordem jurídica: em caso algum (para oferecer exemplos evidentes) se poderão avaliar como tais motivos de pureza rácica, de superioridade política ou de casta, ou de necessidade de extermínio de “infiéis”, de “opositores” ou de “dissidentes”. Só isto porém deverá fazer o aplicador, não distinguir entre motivos de relevante valor social ou moral «bons» ou «maus», adequados ou inadequados às concepções sociais e morais do próprio aplicador ou mesmo prevalentes na comunidade num dado momento histórico ou correspondentes à “moralidade média” ....”.
Voltando aos factos provados, temos que:
- O arguido, que esteve emigrado durante 12 anos na Suíça, regressa a Portugal e recolhe-se à casa de morada de família, onde se encontra a esposa e os filhos.
- As relações entre o casal foram-se deteriorando, originando constantes discussões, que culminaram com a separação judicial de pessoas e bens em 1997.
- Apesar de tal separação, o arguido e a ex-esposa continuaram a viver na mesma casa, dormindo em camas separadas.
- Em 4 de Abril de 2000 é outorgada a escritura de partilhas, na qual interveio a Ilustre Mandatária do Arguido, em representação deste.
- A casa de morada de família é adjudicada à ex-esposa.
- O arguido sente-se prejudicado e traído com a partilha, passando a ter crises de ansiedade e transtornos de personalidade.
- Em 13 de Abril de 2000, na sequência de mais uma discussão com a ex-esposa, o arguido agride esta, vibrando-lhe uma navalhada.
- A partir desta data a ex-esposa e os filhos forçaram-no a abandonar a casa, por ser de propriedade daquela e para evitar as constantes discussões e ameaças que provocava.
- Em 24 de Abril de 2000 volta a agredir a ex-esposa.
- Em 4 de Janeiro de 2001, acaba por matá-la.

Face a esta factualidade logo se vê que o arguido não agiu sob aquele “forte” estado de afecto emocional provocado por uma situação pela qual não possa ser censurado, estado esse que o “home fiel ao direito” compreenderia (pelo menos até certo ponto).
Se o arguido se sentiu prejudicado e traído pela esposa com o resultado das partilhas - por entender, designadamente, ter sido apenas ele quem adquiriu todo o património partilhado--, devia ter pensado nisso e procurar resolver as coisas de forma civilizada e não outorgar (livremente) procuração para a partilha para, só depois desta consumada, vir dizer que, afinal, não concorda com a mesma e, por se sentir prejudicado e/ou traído, a solução era liquidar a mulher. Se se sentia desesperado com a situação existente—para a qual muito contribui, também--, seguia as vias normais para resolução das questões num estado de direito, não pretendendo actuar da forma como actuou e vir depois pedir que compreendamos o seu estado de “desespero” (artº 133º cit.) para, assim, conseguir a justificação da sua actuação.
De acentuado relevo é, ainda, o facto de ter decorrido entre a saída de casa do arguido e o homicídio cerca de 9 meses, tempo mais do que suficiente para que o arguido pudesse ter reagido com recurso aos meios normais (legais) ao eventual prejuízo e “traição” resultantes da partilha dos bens da herança.
O arguido deixou que o tempo fosse decorrendo, aproveitando nitidamente esse tempo para recalcar a situação, interiorizando a situação sem fazer o que quer que fosse para serenar o seu estado mental.
Parece, assim, claro que se indicia uma culpa por parte do arguido no que respeita ao desenvolvimento ou formação da sua personalidade.
Efectivamente, o arguido “está profundamente convicto de ter sido enganado aquando da separação de bens, acusando a ex-esposa de o ter burlado. Como consequência adoptou comportamentos agressivos que vieram a originar o homicídio mas que se inscrevem num quadro psicapatológico com marcada angústia, depressão, ansiedade, etc.” (exame de fls. 509 e segs.).
“O homicídio foi corolário de toda uma problemática em que se misturaram sentimentos depressivos, de revolta, de injustiça num indivíduo intelectualmente limitado e com sofrimento subjectivo muito marcado”.
Tanto bastaria para não considerar sensivelmente diminuída a culpa.
Acresce que, mesmo a aceitar-se que o prejuízo e a “traição” resultaram de acto indigno da vítima - do que o arguido está convencido-- , o certo é que tal “traição” tinha decorrido há muitos meses à data do homicídio, como vimos E também se não pode aceitar que o arguido vise defender ou compensar o aludido prejuízo patrimonial com a destruição de uma vida, o que torna a sua culpa, não diminuída, mas, ao invés, mais acentuada.
Portanto, não estamos em face de actuação sob uma emoção “um mínimo de gravidade ou peso... que estorva o cumprimento das intenções normais do agente e determinada por facto que lhe não é imputável” (Figueiredo Dias, ob. e loc. cit. supra).
Por outro lado - como, aliás, já bem se acentuara a fls. 765--, não obstante no exame médico-legal se haver concluído pela atenuação da imputabilidade do arguido, a verdade é que tal não implica uma diminuição acentuada da culpa do agente, assim se afastando a possibilidade de atenuação especial da pena, nos termos do n.º 1 do art.º 72º do C. Penal.
Concluindo, entendemos que o crime de homicídio praticado pelo arguido também se não enquadra na previsão do artº 133º do CPP (“Homicídio privilegiado”) - nesta parte improcedendo o recurso interposto pelo arguido.

Do exposto, obviamente, também se terá de concluir que beneficiar o arguido da atenuação especial da pena iria contra as considerações e conclusões acabadas de explanar, maxime em sede de medida da culpa. De facto, não se verificam circunstâncias que diminuam, de forma acentuada, a ilicitude do facto ou a culpa do agente.
Como tal, nesta parte procede o recurso do M.º P.º.


VII- Alterada a incriminação nos sobreditos termos, sem funcionamento de circunstâncias atenuativas especiais, há que tirar as necessárias ilações em sede de medida da pena.

As molduras abstractas das penas previstas para os tipos legais de crime praticados pelo arguido são as seguintes:
- Para o homicídio, pena de prisão de 8 a 16 anos;
- Para cada um dos crimes de ofensa à integridade física, pena de prisão até 3 anos ou pena de multa;
- Para o crime de detenção ilegal de arma, pena de prisão até 2 anos ou pena de multa (a redacção dada ao art.º 6º da Lei 22/97, de 27 de Junho pela Lei 98/01, de 25/8, não alterou a moldura penal abstracta. Assim a pena tem de ser igual em qualquer dos regimes pelo que é aplicável a lei vigente à data da prática dos factos).

No caso dos ilícitos punidos, em abstracto, com pena detentiva ou com multa, cremos acertada a opção pela pena de prisão tomada na decisão recorrida, tendo em conta, designadamente, as circunstâncias concretas que rodearam a prática dos ilícitos, pois que só aquela pena parece ser adequada e suficiente a realizar as finalidades da punição que o caso impõe.
Nenhuma censura, portanto, nesta parte a fazer à decisão recorrida, face ao estatuído nos arts. 40º e 70º do CP.

Quanto à medida concreta das penas:
Nos termos do artigo 40º do Código Penal, "a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade (nºl). Em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa" (nº 2).
As finalidades da punição são, pois, as consideradas no citado artº 40º do Código Penal: protecção de bens jurídicos e reintegração do agente na sociedade. Estas finalidades são complementares no sentido de que não se excluem materialmente, havendo sempre de encontrar um justo equilíbrio na sua ponderação (Ac. STJ, de 10-12-97, Proc. nº 916/97, da 3ª Secção).
Com a determinação que sejam tomadas em consideração as exigências de prevenção geral, procura dar-se satisfação à necessidade comunitária de punição do caso concreto, tendo-se em conta, de igual modo, a premência da tutela dos respectivos bens jurídicos.
E com o recurso à vertente da prevenção especial almeja-se satisfazer às exigências de socialização do agente, com vista à sua integração na comunidade (Ac. STJ, de 4-7-96, Acs. STJ, C.J., AnoIV-II-255).
A defesa da ordem jurídico-penal, tal como é interiorizada pela consciência colectiva (prevenção geral positiva ou de integração), é a finalidade primeira, que se prossegue, no quadro da moldura penal abstracta, entre o mínimo em concreto, imprescindível à estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada e o máximo que a culpa do agente consente: entre esses limites, satisfazem-se, quanto possível, as necessidades da prevenção especial positiva ou de socialização (Ac. STJ, de 15-10-97, Proc. nº 5589/97, 3ª Sec.).
É isto que ensina o Prof. Figueiredo Dias, in O Código Penal Português de 1982 e a sua reforma, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 3, Fasc. 2-4, Dezembro de 1993, págs. 186-187).
Dando concretização aos vectores enunciados, o nº 2 do artº 71º enumera exemplificativamente, uma série de circunstâncias atendíveis para a graduação e determinação concreta da pena, que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor ou contra o agente.
Assim, temos:
- Por um lado, temos o grau de ilicitude dos factos praticados - acentuado -; o modus operandi e suas consequências; as fortes exigências de prevenção geral – em especial neste domínio da criminalidade, sendo que o homicídio, a nível nacional “vem alastrando como inquietante mancha de azeite (leia-se sangue)” (Ac. do STJ de 414-04-1990, Bol.M. Just. , nº 396, pág. 234 ss).
Por outro lado, temos o facto de o arguido ser delinquente primário, ser uma pessoa “bem vista” e “considerada” na comunidade em que se insere, em relação à qual manteve bom comportamento; ter agido com imputabilidade atenuada, o que aconselha que as penas se fixem, se não perto do mínimo, pelo menos aquém do meio abstracto; a confissão parcial dos factos, revelando-se – como se escreveu na sentença (fls. 962) -- pesaroso em relação aos mesmos (e especialmente no que concerne à Madalena); o tempo entretanto já decorrido desde a prática dos factos - tudo situações que levam a que as penas fiquem um pouco abaixo dos limites que a culpa e a prevenção geral aconselhavam.

Tudo sopesado, cremos serem ajustadas as seguintes penas:
- Para o crime de homicídio, 10 (dez) anos e 6 (seis) meses de prisão;
- Para cada um dos crimes de ofensa à integridade física, 8 (oito) meses de prisão;
- Para o crime de detenção ilegal de arma, 5 (cinco) meses de prisão.
Em cúmulo jurídico, nos termos do art.º 77º do C. Penal, tendo em conta todos os factos supra descritos, bem como a personalidade do arguido, entendemos ajustada a condenação do arguido na pena única de 11 (onze) anos e 6 (seis) meses de prisão.

Atendendo à pena concreta aplicada, prejudicada está a questão da suspensão da execução da pena, pois falta um dos seus pressupostos formais, qual seja, a condenação em pena não superior a 3 (três) anos de prisão (art.º 50º do C. Penal).


4. DECISÃO:

Termos em que acordam os Juizes da Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto, ao abrigo das disposições legais supra citadas e no parcial provimento dos recursos do M.º P.º e do arguido Nelson..., em revogar o douto acórdão recorrido na parte em que o condenou na pena única de 14 anos de prisão, que substituem por acórdão que o condena na pena única de 11 (onze) anos e 6 (seis) meses de prisão.
No mais, mantêm o acórdão recorrido.

Custas pelo arguido, fixando-se a taxa de justiça em 7 Ucs.

Porto, 3 de Dezembro de 2003
Fernando Baptista Oliveira
Arlindo Manuel Teixeira Pinto
António Gama Ferreira Gomes
José Casimiro O da Fonseca Guimarães