Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
784/14.9GBVNG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: CRAVO ROXO
Descritores: CRIME DE FURTO
ESPAÇO FECHADO
Nº do Documento: RP20180221784/14.9GBVNG.P1
Data do Acordão: 02/21/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: PROVIMENTO PARCIAL
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º750, FLS.22-29)
Área Temática: .
Sumário: A expressão “espaço fechado” previsto no artº 204º 1f) e 2 e) CP, inclui qualquer espaço fechado, e não apenas os que estão afectos ou integram as habitações e os estabelecimentos comerciais ou industrial.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 784/14.9GBVNG.P1
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Acordam na Segunda Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:
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No processo comum nº 784/14.9GBVNG, do 3º Juiz da Secção Criminal, Instância Local, de Vila Nova de Gaia, comarca do Porto, foi proferida decisão com o seguinte contexto:
- Condenar o arguido B…, pela prática de um crime de furto simples, previsto e punido pelo artigo 203°, n° 1 do Código Penal, na pena de 5 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 1 ano, acompanhada de regime de prova.
- Condenar o arguido C…, pela prática de um crime de furto simples, previsto e punido pelo artigo 203°, n° 1 do Código Penal, na pena de 4 meses e 15 dias de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 1 ano, acompanhada de regime de prova.
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Desta decisão recorre o Ministério Público, formulando as seguintes conclusões (sic), que balizam e limitam o âmbito do recurso (Ac. do STJ, de 15.04.2010, in http://www.dgsi.pt: “Como decorre do Art. 412.º do CPP, é pelas conclusões extraídas pelo recorrente na motivação apresentada, em que resume as razões do pedido que se define o âmbito do recurso. É à luz das conclusões da motivação do recurso que este terá de apreciar-se, donde resulta que o essencial e o limite de todas as questões a apreciar e a decidir no recurso, estão contidos nas conclusões, exceptuadas as questões de conhecimento oficioso”):
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1. Foram os arguidos absolvidos da prática do crime de furto qualificado, p. e p. pelos art. 203º, n.º1 e 204º, n.º2, alínea e), ambos do Código Penal - e condenados pela prática do crime de furto simples, por se ter entendido que a conduta daqueles, pese embora se tenham introduzido ilegitimamente num espaço fechado, não integra a prática do referido crime.
2. Ora, não podemos, de todo, concordar com tal absolvição e subsequente condenação pela prática de um crime de furto simples. E mesmo até com base nos factos dados como demonstrados na sentença ora colocada em crise.
3. Com efeito, se concordamos que os factos demonstrados não cabem no âmbito da previsão da alínea e), do n.º2, do citado artigo 204º, do referido Código (não pela noção de espaço fechado, mas antes pela definição do que deva entender-se por arrombamento ou escalamento), entendemos outrossim que os mesmos integram a prática do crime previsto e punido pelos artigos 203º, n.º1 e 204º, n.º1, alínea f), ambos do mencionado diploma legal.
4. Com efeito, resultou demonstrado que “No período compreendido entre as 9 as 10 horas do dia 03 de Setembro de 2014, os arguidos, juntamente com um outro indivíduo de identidade desconhecida, em execução de um plano previamente elaborado e em conjugação de esforços, dirigiram-se ao Estaleiro de obras, da propriedade da empresa “D…, Lda.”, sito na rua …, .., …, Vila Nova de Gaia, com o intuito de aí entrarem e de daí levarem todos os objectos que lhes interessassem e que pudessem transportar. Uma vez lá chegados, escalaram o muro que veda o dito estaleiro, acedendo, desse modo, ao seu interior”. Ora, a ser assim, é nosso entendimento que o crime cometido pelos arguidos é um crime de furto qualificado, pois aqueles se introduziram num espaço totalmente fechado.
5. Se é inegável que um estaleiro não corresponde a uma casa nem a um espaço fechado dela dependente, a verdade é que constitui, indubitavelmente, um espaço fechado a que alude alínea f), do n.º 1, do artigo, pois como tal devem considerar-se os locais simplesmente vedados (seja por uma rede, seja por um muro), ainda que sem qualquer ligação a uma habitação ou a um estabelecimento comercial ou industrial. Com efeito, como resulta, aliás, dos factos dados como provados, o estaleiro propriedade do ofendido era vedado em toda a sua extensão - e por um muro. Não é, então, um espaço fechado?
6. Concluindo-se que o estaleiro (de construção civil) é um espaço fechado, entendemos que os arguidos deveriam ter sido condenados pela prática do referido crime. Não se desconhece o Acórdão citado na sentença ora colocada em crise e que a mesma segue de muito perto. Nem mesmo o AUJ n.º 7/2000 ali citado. A verdade é que este aresto do STJ se refere exclusivamente ao disposto no artigo 204º, n.º2, alínea e) e à noção de espaço fechado aí referida, sendo certo que não nos parece que possa fazer-se a transposição para o n.º1, do citado artigo 204º, como é feita, pois que o AUJ fala expressamente na remissão para os conceitos do artigo 202º, do Código Penal e do que deva entender-se por “penetração em espaço fechado” nos termos da citada norma (por arrombamento ou escalamento).
7. Pelo que deviam B… e C… ter sido condenados pela prática do mencionado crime, cuja moldura penal é de pena de prisão até 5 anos ou pena de multa até 600 dias.
8. Ao não o fazer, violou a sentença ora colocada em crise o disposto no artigo 204º, n.º1, alínea f), do Código Penal.
9. Assim, dentro dos limites abstractos definidos pela lei, e apelando a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo legal de crime, depõem a favor ou contra os arguidos - art. 71º, n.º2, do Código Penal - tendo em consideração que os arguidos agiram com a modalidade mais forte de culpa, representando e querendo o resultado obtido, e que B… e C… já tinham antecedentes criminais pela prática de crimes contra o património (sendo que o B… veio, entretanto, a ser condenado pela prática de um crime de dano), e se é certo que o Tribunal deve dar preferência à pena de multa, quando esta seja prevista em alternativa à pena de prisão, a verdade é que só o pode fazer, quando ela se mostre adequada às finalidades da punição.
10. Parece-nos evidente que a pena de multa não surtiu qualquer efeito ressocializador naqueles, ou seja, a pena de multa não satisfaz de modo adequado as finalidades da punição.
11. Deve, pois, optar-se pela pena de prisão, só se assim se alcançando as finalidades da punição. Quanto à fixação concreta, deveremos ter presentes todos os circunstancialismos referidos supra, por um lado e, por outro, o facto de os bens subtraídos terem sido recuperados.
12. Tudo ponderado, afigura-se-nos que os arguidos deverão ser condenados pela prática do crime de furto qualificado, p. e p. pelos arts. 203º, n.º1 e 204º, n.º1, alínea f), ambos do Código Penal, atentos os factos dados como provados na sentença recorrida e o supra referido, nas penas de 15 meses de prisão, quanto ao arguido B… e 12 meses de prisão, quanto ao arguido C….
13. Penas essas que devem ser suspensas na sua execução, pois que se está em crer que a mera ameaça do cumprimento da pena de prisão servirá para os afastar da prática de novos crimes - mais se concordando com a decisão de fazer depender essa suspensão de regime de prova.
14. Mas, e para a hipótese de assim não se entender, o que só por mera hipótese de raciocínio se concede, entendemos que devia, então, o Tribunal a quo ter condenado os arguidos, em concurso efectivo com tal crime, pela prática do crime de introdução em lugar vedado ao público, p. e p. pelo artigo 191º, do Código Penal.
15. Com efeito, resultou demonstrado que os arguidos “No período compreendido entre as 9 as 10 horas do dia 03 de Setembro de 2014, os arguidos, juntamente com um outro indivíduo de identidade desconhecida, em execução de um plano previamente elaborado e em conjugação de esforços, dirigiram-se ao Estaleiro de obras, da propriedade da empresa “D…, Lda.”, sito na rua …, .., …, Vila Nova de Gaia, com o intuito de aí entrarem e de daí levarem todos os objectos que lhes interessassem e que pudessem transportar. Uma vez lá chegados, escalaram o muro que veda o dito estaleiro, acedendo, desse modo, ao seu interior. Do interior do estaleiro, os arguidos retiraram um bidé em cerâmica de cor branca, um cabo trifásico de cor preta, diversas torneiras cromadas em latão, diversos sifões cromados em latão e diversos cabos eléctricos monofásicos, tudo no valor total declarado de €250,00 (duzentos e cinquenta euros).”
16. Ou seja, os arguidos introduziram-se, sem autorização de quem de direito, num espaço inacessível ao público em geral.
17. A ser assim, e na hipótese académica de se considerar que o crime por aqueles cometido é um crime de furto simples, haverá, então, concurso efectivo de tal crime com estoutro de introdução em lugar vedado ao público.
18. Não decidindo deste modo, violou o Tribunal a quo o disposto no artigo 191º, do Código Penal.
19. Havendo, assim, concurso efectivo com este crime, cumpre determinar a medida concreta da pena a aplicar.
20. Ora, tendo em consideração a moldura penal abstractamente aplicável ao tipo legal em apreço, assim como o facto de os arguidos não possuírem antecedentes criminais pela prática de crimes da mesma natureza axiológico-normativa, entende o Ministério Público que lhes deve ser aplicada uma pena de multa.
21. Quanto à concreta pena a aplicar, e tendo em consideração todos os factores supra elencados, somos a entender que a pena de multa em que os arguidos deverão ser condenados deverá ser fixada em 30 dias, para o arguido B… e de 20 dias, para o arguido C….
22. No que concerne ao quantitativo diário da referida sanção penal, tendo em consideração que as condições económicas de ambos dadas como demonstradas sob os pontos 9 e 10 da sentença proferida, entendemos, atentos os critérios legalmente estabelecidos, que o mesmo deverá ser fixado em €6 (seis euros) para o arguido B… e €5 (cinco euros) para o arguido C….
23. Quanto ao cúmulo das penas aplicadas, e atenta a sua diversa natureza, deverá manter a natureza de cada uma delas, fazendo-se um mero cúmulo material, nos termos do artigo 77º, n.º3, do Código Penal.
24. Absolvendo os arguidos pela prática do crime de furto qualificado, apesar de dar como provados os factos descritos sob os pontos 1 a 3, o Tribunal a quo violou o disposto no artigo 204º, n.º1, alínea f), do Código Penal.
Pelo exposto, deve o presente recurso ser julgado procedente e em consequência revogar-se a sentença proferida nos autos, sendo substituída por outra que condene os arguidos B… e C…, atentos factos dados como provados e, bem assim, atento o supra referido, pela prática do crime de furto qualificado, p. e p. pelo art. 204º, n.º 1, alínea f), do Código Penal, nas penas de 15 e 12 meses de prisão, respectivamente, suspensas na sua execução por igual período, acompanhadas de regime de prova ou, assim não se entendendo, condenando os arguidos, em concurso efectivo com o crime de furto simples, pela prática do crime de introdução em lugar vedado ao público, nas penas, respectivamente, de 30 e 20 dias de multa, à taxa diária de €6 e €5, também respectivamente.
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Respondeu o arguido B…, considerando como bem explicadas as razões da sentença e concluindo pela improcedência do recurso do Ministério Público.
Respondeu o arguido C…, defendendo também a tese explícita na sentença, pelo que o recurso do Ministério Público deverá ser julgado improcedente.
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Já neste Tribunal e no seu parecer, o Ex.mo Senhor Procurador-geral Adjunto considerou que o recurso do Ministério Público em primeira instância merece parcial provimento, devendo os arguidos ser condenados também pelo crime do Art. 191º do Código Penal.
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Da sentença, são estes os factos e a respectiva motivação:
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Da audiência de julgamento resultaram provados os seguintes factos:
1. No período compreendido entre as 9 as 10 horas do dia 03 de Setembro de 2014, os arguidos, juntamente com um outro individuo de identidade desconhecida, em execução de um plano previamente elaborado e em conjugação de esforços, dirigiram-se ao Estaleiro de obras, da propriedade da empresa "D…, Lda.", sito na rua …, .., …, Vila Nova de Gaia, com o intuito de aí entrarem e de daí levarem todos os objectos que lhes interessassem e que pudessem transportar.
2. Uma vez lá chegados, escalaram o muro que veda o dito estaleiro, acedendo, desse modo, ao seu interior.
3. Do interior do estaleiro, os arguidos retiraram um bidé em cerâmica de cor branca, um cabo trifásico de cor preta, diversas torneiras cromadas em latão, diversos sifões cromados em latão e diversos cabos eléctricos monofásicos, tudo no valor total declarado de €250,00 (duzentos e cinquenta euros).
4. Após, os arguidos atiraram estes objectos por cima do muro para a via pública e ausentaram-se do local na posse dos mesmos, fazendo-os seus.
5. Porém, quando já se encontravam na via pública, os arguidos foram surpreendidos por E…, representante legal da empresa supra referida, tendo os arguidos largado na rua os objectos que retiraram do estaleiro e que levavam consigo, colocando-se em fuga apeados.
6. Os objectos foram todos recuperados e entregues ao seu proprietário.
7. Os arguidos agiram, em execução de um plano previamente elaborado por todos e em conjugação de esforços, de forma livre e com o propósito concretizado de fazerem seus os objectos descritos, os quais sabiam não lhes pertencerem, actuando contra a vontade e em prejuízo do ofendido, o que representaram.
8. Os arguidos sabiam que a sua conduta era prevista e punida por lei penal.
9. O arguido B… vive com os pais e é empregado de restauração, auferindo cerca de €300,00 mensais.
10. O arguido C… vive com os pais e é auxiliar de educação, auferindo €114, mensais.
11. O arguido B… foi condenado, em 22.01.2014, neste Tribunal Judicial, pela prática de um crime de furto simples, na pena de 80 dias de multa e ainda, em 04.06.2015, no mesmo Tribunal, pela prática de um crime de dano simples, na pena de 150 dias de multa.
12. O arguido C… foi condenado, em 22.01.2014, neste Tribunal Judicial, pela prática de um crime de furto simples, na pena de 80 dias de multa.
Motivação:
Os factos dados como provados assentam numa apreciação crítica e global de toda a prova produzida no seu conjunto.
Assim, no que diz respeito aos factos constantes da acusação, o Tribunal valorou, em conjugação com os autos de fls. 3 a 6, 21 e 22 e com as regras da normalidade e da experiência comum, as declarações dos arguidos e os depoimentos de F… e de E…, ambos prestados de forma que se nos afigurou séria, coerente e isenta.
Concretamente, o arguido B…, negando os factos constantes da acusação, contou que ia, juntamente com dois indivíduos de etnia cigana (um deles de nome C…), a passar junto de uma moradia e viu, num campo à face da estrada, uma sanita, um ou dois rolos de fios e torneiras, que esperaram até verem se aparecia alguém e que como não apareceu ninguém iam levar os objectos, tendo fugido quando apareceu um senhor atrás deles de carro. Disse ainda que o arguido C… não estava consigo e que apenas indicou o nome dele à polícia quando foi apanhado porque "foi o nome que lhe veio à cabeça".
O arguido C…, por seu lado, negou ter acompanhado o B…, tendo dito e em Outubro de 2013 até tinha sido operado ao joelho e ao ombro e que esteve muito tempo a recuperar, mal conseguindo andar, sendo que quando isto aconteceu estava em casa com o pai (que terá visto a GNR a chegar ao local).
F… contou que estava com o E… no café, que este recebeu uma chamada por causa de um assalto, que o acompanhou o local, que aí chegados estavam uns indivíduos (pensa que mais do que dois mas não conseguindo reconhecê-los) na estrada com uns objectos na mão (sucata) e que o E… gritou "estás-me a roubar" e saiu de carro a grande velocidade no encalço dos ditos indivíduos, tendo, segundo pensa, recuperado os objectos.
Finalmente, E… (legal representante da empresa "D…, Lda.") relatou que estava com F… quando recebeu uma chamada a dizer que havia quatro indivíduos dentro do seu estaleiro, que se deslocou ao local, que quando chegou estavam os dois arguidos (que conhece perfeitamente, já que é amigo do pai do B…, conhecendo também o C… por ser seu vizinho) a saltar o muro com objectos (cabos, nomeadamente) na mão e outros dois indivíduos, de etnia cigana (que descreveu fisicamente) já do lado de fora (também com objectos na mão) e que quando o viram os arguidos largaram os objectos e começaram a correr (um para cada lado), tendo a testemunha ido atrás deles de carro e acabado por apanhar o arguido B….
Explicou ainda as características do local (designadamente que o mesmo é vedado a toda a volta, sendo que para entrarem os arguidos necessariamente escalaram o muro, que tem entre 1,60m e 1,50m) e descreveu os objectos que foram levados, tendo dito ainda que os recuperou (os mesmos estariam à frente do seu estaleiro, no chão).
Ora, analisada a prova assim produzida, além de a versão do arguido B… ser completamente inverosímil (quer na parte em que diz em que os objectos já estariam no exterior do estaleiro, quer na parte em que refere que apenas indicou o nome do arguido C… por ter sido "o que lhe veio à cabeça", salientando-se que aquele arguido até forneceu, na altura, a morada deste arguido - cfr. fls. 5), a verdade é que as versões de ambos os arguidos são completamente contrariadas pelo depoimento de E… (que, como resulta do supra enunciado, os identificou a ambos com toda a segurança e os viu com os objectos na mão, a saltar o muro do estaleiro). Sendo os documentos juntos pelo arguido C… em julgamento completamente inócuos para o efeito e não pondo em causa este depoimento, pois que apenas atestam que foi operado em Outubro de 2013 e que em Fevereiro de 2015 fazia fisioterapia. Por conseguinte, ficou o Tribunal convencido de que ocorreu tudo quanto veio a ser dado como provado, da forma que veio a ser dada como provada.
Os factos constantes dos pontos 7 e S foram dados como provados por intermediação da prova produzida, nos termos sobreditos, conjugada com as regras da normalidade e da experiência comum.
Relativamente à situação económica e social dos arguidos aceitaram-se as suas declarações.
Quanto aos antecedentes criminais dos arguidos valoraram-se os certificados de registo criminal juntos aos autos a fls. 125 a 130.
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Decidindo.
A questão fulcral deste recurso emerge da interpretação do Art. 214º, nº 2, alínea e), do Código Penal, relativa ao conceito de espaço fechado, cuja menção já surge no nº 1, alínea f), da mesma norma legal.
Durante a audiência, a qualificação jurídica constante da acusação contra os dois arguidos foi alterada, a solicitação da defesa e com a concordância do Tribunal: com efeito, da acusação constava a prática, por cada um dos dois arguidos, de um crime de furto qualificado, previsto no Art. 204º, nº 2, alínea e), do Código Penal.
E tal qualificação jurídica resultava da existência de fortes indícios dos factos respectivos, quais sejam a apropriação de objectos alheios que se encontravam dentro de um estaleiro vedado, após entrada no mesmo por meio de escalamento do muro ali existente, muro esse que cerca o referido estaleiro.
Durante o julgamento, a defesa requereu que fosse tida em conta jurisprudência que entende que “o que caracteriza e justifica a agravante qualificativa do crime de furto constante da alínea f) do Art. 204º, nº 2, do Código Penal, é, não o facto de o agente se introduzir num espaço fechado, mas sim a circunstância de o espaço fechado estar conexionado com a habitação ou com o estabelecimento comercial”.
E assim foi considerado pela Senhora Juíza, alterando a configuração jurídica dos factos e condenando a final os arguidos pela prática, cada um deles, de um crime de furto simples, previsto no Art. 203º, nº 1, do Código Penal.
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Vejamos se é possível, com rigor, seguir e adoptar a tese defendida na sentença recorrida, aliás na senda de alguns acórdãos deste Tribunal, mormente o que provocou a alteração da qualificação em audiência e outros, amiúde citados nas alegações do recurso e suas respostas:
Lê-se no sumário do recurso nº 346/11.2GAETR.C1.P1 (in dgsi.pt): A expressão “ou outro espaço fechado” constante da al. e) do n.º 2 do art. 204.º do Cód. Penal corresponde aos lugares fechados dependentes das casas de habitação, de estabelecimento comercial ou industrial e aos lugares acessórios.
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Vejamos a letra da norma incriminadora [Art. 204º, nº 2, alínea e), do Código Penal]:
Furto qualificado
1 - Quem furtar coisa móvel ou animal alheios:
… … …
e) Penetrando em habitação, ainda que móvel, estabelecimento comercial ou industrial ou outro espaço fechado, por arrombamento, escalamento ou chaves falsas;
é punido com pena de prisão de dois a oito anos.
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Com este texto simples e de fácil interpretação, atendendo à conjunção alternativa (ou outro espaço fechado”), somos levados a concluir que os outros espaços fechados não têm de estar subordinados, quer a habitações, quer a estabelecimentos comerciais; isto é, qualquer espaço fechado, por si só e desde que devidamente cerrado, integrará a concepção da norma, pelo que a introdução no mesmo, para furtar, qualifica o crime; e ainda mais, se a introdução for efectuada com arrombamento, ou escalamento.
Como é consabido, a conjunção alternativa “ou” exprime a ideia de alternância (acção de interpolar), opção, escolha.
O mesmo se dirá face ao texto do nº 1, alínea f), da mesma norma legal:
“Quem furtar coisa móvel ou animal alheios:
… … …
f) Introduzindo-se ilegitimamente em habitação, ainda que móvel, estabelecimento comercial ou industrial ou espaço fechado, ou aí permanecendo escondido com intenção de furtar; é punido com pena de prisão até cinco anos ou com pena de multa até 600 dias”.
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Também aqui existe a conjunção alternativa “ou”, quando referida a espaço fechado, ainda que sem a palavra “outro”.
Mas a solução seria sempre a mesma, quer quanto ao nº 1, quer quanto ao nº 2 da norma, para além de ter havido introdução por escalamento, arrombamento, ou chaves falsas.
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A dúvida só pode surgir do teor do Art. 202º do diploma legal: com efeito, trata-se de norma que define vários conceitos relativos aos crimes contra o património, nomeadamente nas suas alíneas d) e e), que assim rezam:
d) Arrombamento: o rompimento, fractura ou destruição, no todo ou em parte, de dispositivo destinado a fechar ou impedir a entrada, exterior ou interiormente, de casa ou de lugar fechado dela dependente;
e) Escalamento: a introdução em casa ou em lugar fechado dela dependente, por local não destinado normalmente à entrada, nomeadamente por telhados, portas de terraços ou de varandas, janelas, paredes, aberturas subterrâneas ou por qualquer dispositivo destinado a fechar ou impedir a entrada ou passagem.
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E assim, a dúvida instala-se, com alguma razão: será o conceito de “lugar fechado” igual ao de “espaço fechado”?
Naturalmente, a resposta só poderá ser negativa:
Se o legislador quisesse fazer equivaler as duas frases, tê-lo-ia feito expressamente, sendo certo que o Direito Penal não comporta interpretação analógica, sem olvidar o disposto no Art. 9º, nº 3, do Código Civil.
Por outro lado, ao reforçar, nas duas citadas alíneas do Art. 204º, o conceito de “espaço fechado” a seguir a uma conjunção alternativa, quis incluir qualquer espaço fechado, que não apenas os que estão afectos ou integram as habitações e os estabelecimentos comerciais ou industrial; em rigor, nem se entenderia tal distinção.
Esta será a única interpretação que traduz e patenteia, não só a ratio legis, como também a letra da própria lei.
Aliás, não se entende – a não ser com recurso a interpretações históricas de que discordamos e a que somos alheios – a conclusão a que se chega na sentença, na senda do acórdão ali citado, nomeadamente retirando significado jurídico ao escalamento (que está provado e descrito nos factos) e esquecendo a existência de um muro a toda a volta do estaleiro (que veda esse estaleiro, assim consta do acervo fáctico) de onde foram retirados os objectos descritos; bem como a conclusão de que tal zona, por si só, não reúne as características previstas no tipo legal, afastando logo o conceito de espaço fechado, tão-só porque se trata de um estaleiro de obras (com todo o respeito, trata-se de um hiato lógico que não podemos apoiar).
Embora numa vertente não totalmente coincidente, mas para melhor elucidar estes conceitos, poderemos buscar o significado de lugar vedado ou cercado, tal como foi utilizado no Ac. desta Relação, de 25.3.2009, processo nº 0847852: «na senda da jurisprudência mais recente, lugar vedado não é a mesma coisa que lugar demarcado ou reservado, sendo mesmo claro que a actual versão do Código Penal - Art. 191º - modificou deliberadamente esse elemento objectivo típico; o conceito de lugar vedado implica uma separação física, que pode consistir num tapume, numa sebe, num muro, num arame, numa barreira, numa simples fita, não se podendo confundir os conceitos e as definições; “vedado”, na definição do Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, da Academia das Ciências de Lisboa, significa murado, ou cercado com vedação».
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E assim não podemos concordar com a enunciação seguida na sentença recorrida, na senda dos acórdãos citados, nem sufragar a solução encontrada.
Com efeito, o estaleiro encontra-se totalmente rodeado de um muro com a altura de entre 1,60 e 1,80 metros (não constando dos factos provados, consta da motivação e é-nos permitido aqui referir esta evidência) e foi escalado, para de dentro do local serem furtados objectos que pertenciam ao dono do mesmo: é, de facto, um espaço fechado.
Em suma, dir-se-á que é indiferente e irrelevante, para a previsão legal e punição deste crime contra o património, que os espaços fechados, ou outros espaços fechados dependam de uma residência, ou de um estabelecimento: para serem incluídos na previsão legal típica, não terão de estar dependentes de casas de habitação ou de estabelecimentos comerciais ou industriais, bastando ser fechados; eventualmente, terá interesse o local onde ocorreu o furto, mas apenas na determinação da medida da pena: também para isso mesmo o tipo comporta uma moldura ampla.
E deste modo, sem necessidade de maior estudo, terá que fazer vencimento a tese do recurso, sendo agora nítido que aquele estaleiro constitui o espaço fechado, autónomo, legal e penalmente protegido, como se prevê na norma referida.
Vejamos, porém, em que medida:
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Os arguidos estavam acusados pela prática de um crime de furto qualificado, do Art. 204º, nº 2, alínea e), do Código Penal (o mais grave).
Foram ambos condenados – após alteração não substancial dos factos – pela prática de um crime de furto simples, previsto no Art. 203º, nº 1, do mesmo diploma legal, não se levando em consideração o escalamento, com a entrada ilegítima no local.
No recurso, o Ministério Público pede a condenação dos arguidos, pela prática de um crime de furto, este previsto no Art. 204º, nº 1, alínea f), do Código Penal (menos grave), ou na condenação também pela prática de um crime de introdução em lugar vedado ao público.
Naturalmente que aqui neste Tribunal terá de ser considerada a primeira conclusão, estando espontaneamente excluída a configuração da acusação: a tal impede a regra da reformatio in pejus: Art. 409º, nº 1, do Código de Processo Penal.
E assim, sem necessidade de maiores tergiversações, cada um dos arguidos cometeu um crime de furto qualificado, tal como se preceitua e prevê na alínea f) do nº 1, do Art. 204º, do Código Penal: estão, com efeito, preenchidos todos os elementos subjectivos e objectivos deste tipo legal e assim serão os arguidos condenados.
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Considerando esta realidade jurídica, importa agora determinar as respectivas medidas das penas, considerando o disposto nos Arts. 40º e 71º do Código Penal:
Como sempre (e fazendo um périplo pelas regras fundamentais de determinação da pena concreta), importa ter em conta que a culpa do agente fixa a moldura da punição, cuja medida concreta será ajustada às exigências dos fins de prevenção; a quantificação dessa medida da culpa resultará da ponderação de todos aqueles elementos que nela se ponderam e retratam.
A individualização judicial da pena de prisão emerge do princípio da culpa: domina, na sua determinação, a teoria da margem de liberdade, que funciona entre parâmetros concretos: do já adequado à culpa ao ainda adequado à culpa, sem deixar de ter em conta os fins de prevenção geral e de prevenção especial.
As sanções criminais são, nas palavras de Eduardo Correia, uma necessidade de garantir e proteger certos valores ou bens jurídicos (Direito Criminal, I, pág. 39): elas podem ser dirigidas à prossecução de diversos fins, porventura mesmo de todos eles, em comum: podem dirigir-se à prevenção de violações futuras, agindo sobre a generalidade das pessoas, intimidando-as e desviando-as da prática de crimes (prevenção geral); podem ainda dirigir-se ao próprio agente, intimidando-o e dando-lhe consciência da seriedade da ameaça penal (prevenção especial). Considerando que a reacção criminal tem em vista proteger interesses relevantes (os bens jurídicos protegidos), conservá-los e defendê-los, a sua razão de ser resulta da necessidade de evitar que esses interesses venham a ser violados, ou voltem a sofrer violações.
À luz dos princípios emergentes do Direito Penal constituído, as penas devem reflectir todas essas finalidades de forma harmónica, visando sempre a protecção do bem jurídico que lhes subjaz e a realização dos fins éticos do sistema: tal é a filosofia do Art. 40º do Código Penal, a que acresce a ratio e o compleição do seu Art. 71º, nº 1.
Escreveu Figueiredo Dias (Direito Penal Português, Parte Geral, II, pág. 216): a prevenção significa prevenção geral e também prevenção especial, sendo a culpa que releva para a medida da pena aquela mesma culpa que releva na determinação do sentido, dos limites e dos fins das penas e da sua aplicação. Conclui o autor que as finalidades da aplicação de uma pena residem primordialmente na tutela dos bens jurídicos e, na medida do possível, na reinserção do agente na comunidade, não podendo a pena ultrapassar, em caso algum, a medida da culpa.
Será ainda de referir que a nossa lei penal respeita os princípios constitucionais da legalidade, da igualdade, da personalidade e da humanidade, nas sanções que prescreve; e como corolário do princípio da legalidade, decorre o princípio da não retroactividade da aplicação das penas.
Finalizando, dir-se-á que o actual Código Penal ampliou consideravelmente os poderes do juiz no que respeita à escolha e medida da pena.
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E assim, genericamente verificamos que a culpa de ambos os arguidos é elevada, porque achada no âmbito do dolo directo; a ilicitude é média, não se olvidando a grande cifra de crimes contra o património no país e a necessidade de os impedir; ambos os arguidos já têm antecedentes criminais, sendo agora de concluir que os anteriores avisos não surtiram os efeitos adequados, para fazer regressar os agentes ao acatamento das normas, que por sua vez deverão ver reforçada a sua eficácia; mostra-se, assim, particularmente indispensável atentar no princípio da prevenção especial.
Noutra vertente, deve ser sopesado o pequeno valor dos objectos furtados, que aliás foram recuperados; atentar-se-á ainda na idade de ambos os arguidos e nas suas condições pessoais e profissionais: ambos têm ocupação laboral e estão integrados nas respectivas famílias.
Deste modo, sendo equivalentes as medidas das culpas, o único detalhe a ter em conta é a idade do arguido B…, face ao Regime dos Jovens Adultos; porém, atendendo já ao seu passado, não poderá o arguido beneficiar de tal regime atenuativo, já que do mesmo não seriam obtidas as vantagens esperadas.
Seria ainda de ponderar que a sua culpa é menos intensa que a do arguido C…; porém, este arguido B… tem antecedentes criminais mais copiosos e graves que o outro arguido, o que permitirá construir e atingir uma total equivalência das penas concretas a aplicar a ambos.
Estas serão de prisão, já que a exigência da prevenção do cometimento de novos crimes impõe um aviso mais solene, sólido e enérgico a ambos os arguidos (e ainda por essa mesma razão, não serão as penas substituídas por multa, a fim de fortalecer e reforçar a sua mensagem).
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Serão as penas, porém, suspensas na sua execução, por estarem reunidos, totalmente verificados e preenchidos os pressupostos previstos no Art. 50º, nº 1 e nº 2, do Código Penal: é ainda a prognose positiva, sendo de crer que a simples ameaça destas penas é suficiente para afastar ambos os arguidos da prática de novos crimes.
Para tal, serão ainda e conjuntamente os dois sujeitos a regime de prova, por ser o caminho adequado à sua reintegração na sociedade, nos mesmos termos considerados na sentença recorrida e respeitando correspondentemente o disposto nos Arts. 50º, nº 2 e 53º, nº 1, nº 2 e nº 3, ambos do Código Penal.
Deste modo, determina-se que a pena concreta, justa e adequada, a aplicar a cada um dos arguidos será a mesma: 12 meses de prisão, que será suspensa na sua execução pelo período legal.
O que equivale a dizer no final, que o recurso do Ministério Público é parcialmente procedente.
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Decisão.
Pelo exposto, acordam nesta Relação em julgar parcialmente procedente o recurso do Ministério Público e em consequência, alterando a sentença:
1. Condenar, pela prática de um crime de furto qualificado, previsto no Art. 204º, nº 1, alínea f), do Código Penal:
1.1. O arguido B…, na pena de 12 meses de prisão.
1.2. O arguido C…, na pena de 12 meses de prisão.
2. Suspender a execução de ambas estas penas, pelo período de 1 ano, ficando os arguidos sujeitos a regime de prova: Art. 53º do Código Penal.
3. Custas pelos arguidos, com taxa de Justiça mínima.
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Porto, 21.2.2018
Cravo Roxo
Horácio Correia Pinto