Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
90516/12.7YIPRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: HENRIQUE ARAÚJO
Descritores: ENTREPOSTO ADUANEIRO
ARMAZENAMENTO DE MERCADORIAS
CONTRATO DE DEPÓSITO
Nº do Documento: RP2014020490516/12.7YIPRT.P1
Data do Acordão: 02/04/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: O armazenamento de mercadorias num entreposto aduaneiro regula-se, com algumas particularidades, pelas regras do contrato de depósito dos arts 1185º e ss do CCivil.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: PROC. N.º 90516/12.7YIPRT.P1
Do
REL. N.º 889
Relator: Henrique Araújo
Adjuntos: Fernando Samões
Vieira e Cunha
*
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:

I. RELATÓRIO

“B…, Lda.”, com sede na Rua …, …, …, Maia, intentou acção especial para cumprimento de obrigações pecuniárias contra “C…, Lda.”, com sede na Rua …, n.º …, ..º Esqº, Matosinhos, alegando que:
- No âmbito da actividade que exerce – entreposto aduaneiro – prestou à Ré serviços de armazenamento de mercadorias, os quais se mostram discriminados em várias facturas, ascendendo o valor em dívida a 27 284,46 €;
- A tal valor deve ser deduzido o montante de 7.753,34 € que a Autora deve à
Ré.
Com tais fundamentos, pede a Autora que a Ré seja condenada a pagar-lhe a quantia de 19.684,12 €, acrescida de juros legais contados desde a data da propositura da acção e até integral pagamento, sobre a quantia de 19.531,12 €.

A Ré deduziu oposição, alegando que:
- Em 16.05.2012 efectuou um pagamento de 5.324,82 €;
- A restante quantia reclamada diz respeito a facturas que a Autora só emitiu por vingança na sequência da quebra das relações comerciais entre ambas, uma vez se reportam aos anos de 2009 e 2010 por serviços que a Autora nunca antes tinha facturado.
Concluiu requerendo que a presente acção seja julgada improcedente, por não provada e, em conformidade, seja a Ré absolvida do pedido.

A Autora apresentou resposta, na qual aceitou a ocorrência do pagamento invocado e quanto ao mais impugnou a matéria alegada na oposição, reafirmando a sua posição inicial.

Procedeu-se à realização da audiência de julgamento e, a final, foi a acção julgada parcialmente procedente, condenando-se a Ré a pagar à Autora a quantia de 91,80 € (noventa e um euros e oitenta cêntimos), acrescida de juros de mora, à taxa legal, contados desde a data da citação e até efectivo pagamento.

A Autora recorreu dessa decisão, tendo o recurso sido admitido como de apelação, com efeito devolutivo.
Nas alegações de recurso a apelante pede a procedência total da acção, apoiada nas seguintes conclusões:
1. Vem o presente recurso interposto da aliás douta sentença proferida, que condenou a Recorrida apenas no pagamento de € 91,80, acrescidos de juros de mora à taxa legal, contados desde a data de citação até efectivo pagamento, absolvendo-a do demais peticionado.
2. Com aquela sentença, a Mma. Juiz a quo fez errada aplicação e/ou interpretação, ou até em alguns casos absoluta inaplicação, do disposto nos arts. 1180º e ss. e 1185º e ss. do C.C. e 404º e ss. do Código Comercial, do D.L. 255/99 de 07/07, do art. 98º, 203º, 204º do Código Aduaneiro Comunitário, do D.L. 281/86 de 05/09, do D.L. 291/89 de 02/09, do D.L. 46311 de 27/04/65 (Reforma Aduaneira), do Decreto nº 31730 de 15/12/1941 (Regulamento das Alfândegas), do D.L. 73/2001 de 26/02, do D.L. 360/2007 de 02/01, do Regulamento (CE) nº 1383/2003, assim como, salvo respeito por melhor opinião, fez errado julgamento quanto à matéria de facto, tendo considerado como provados factos que o não deveria ter feito e, ao mesmo tempo, tendo considerado factos como não provados que deveriam ter sido dados como provados, bem como ignorou outros que deveria ter acolhido como provados.
3. A sentença é nula por violação do disposto no art. 668º nº 1 alínea b) do CPC porque não identifica quais os concretos fundamentos de Direito impeditivos do exercício do direito que a A. reclama, tal como não identifica os concretos factos que integram esses fundamentos de direito.
4. O ponto 2 da matéria de facto provada deve passar a ter a seguinte redacção: “no exercício da sua actividade a Autora prestou serviços e forneceu à Ré armazenamento de mercadorias, a pedido desta, conforme melhor descrito nas facturas que a Requerente emitiu e enviou à Requerida e que constam igualmente da sua contabilidade, a saber: (seguindo-se rol das facturas com vencimento a 30 dias)”.
5. Deveria a Mma. Juiz a quo ter dado como provada matéria com a seguinte redacção:
“Na relação comercial entre A. e R. sempre foi hábito aquela debitar e esta pagar os tráfegos, armazenagem e seguro da mercadoria abandonada”.
6. A matéria dos pontos 12, 13, 14, 25, 39, 40, 41 e 61 da matéria de facto provada deverá ser complementada com o aditamento de um facto com a seguinte redacção:
“O mapa de existências era um documento que a A. elaborava a pedido da Ré e que servia apenas e tão só para que esta controlasse o estado e prazos das mercadorias que tinha em depósito, por forma a evitar que as mesmas entrassem em “demorados” ou em “abandono”.
7. Os pontos 15, 16, 26, 27, 42, 43, 62 e 63 devem ser complementados com o aditamento de um novo facto considerado como provado, com a seguinte redacção:
“Em Março de 2012 a Recorrente alterou o seu sistema de facturação, passando a debitar as armazenagens a todos os seus clientes numa base mensal, ao invés do que fazia até aí, em que as armazenagens apenas eram facturadas aquando da saída da mercadoria.”
8. Os pontos 17, 28, 44 e 64 da matéria de facto provada na sentença têm igualmente que ser corrigidos e complementados com um ponto com a seguinte redacção: “A. e R. acordaram que as suas relações comerciais teriam o preçário constante da tabela que constitui o documento nº 3 junto pela Autora na audiência de discussão e julgamento de 11/12/2012.”
9. Deveria constar igualmente da matéria de facto dada como provada na sentença um ponto com a seguinte redacção: “A. e R. cessaram relações comerciais em data anterior a Março de 2012.”
10. Tem necessariamente que ser expurgada daquela redacção dos factos 17, 28, 44 e 64 da matéria de facto provada a expressão “por sua iniciativa e sem o acordo da Ré” e, ao mesmo tempo, tem que ser aditado um facto novo, com redacção que complemente a daqueles factos e que se sugere seja a seguinte: “Por e-mail de 02/04/2012 a Autora comunicou à Recorrida que alterou o seu tarifário geral, passando o mesmo a estar disponível para consulta nas suas instalações”.
11. A matéria dos pontos 48 a 51 da matéria de facto provada na sentença deve passar a ser considerada não provada e devem ser aditados os factos alegados pela Recorrente nos pontos 33 a 37 da sua Resposta.
12. O ponto 57 da matéria de facto provada na sentença deve ser restringido, passando do mesmo apenas a constar que: “A ré de imediato endossou tal título à importadora D…”.
13. Da matéria de facto provada na sentença constam nos pontos 37, 49 e 60 juízos conclusivos e soluções de direito, que não são consentâneas ou reconduzíveis ao conceito de FACTO. Assim, essa matéria deve ser expurgada da matéria de facto provada, ou pelo menos considerada como não escrita.
14. Ainda que não seja alterada a matéria de facto, a solução de direito acolhida na sentença não poderia ser esta, revelando a decisão recorrida absoluto desconhecimento do métier de Recorrente e Recorrida e das regras de direito que as obrigam e se lhes aplicam!
15. O contrato tipo de base subjacente à actividade de entreposto aduaneiro é o contrato de DEPÓSITO, surgindo o entreposto aduaneiro como sendo o depositário da mercadoria.
16. Apenas podem ser depositantes nos entrepostos aduaneiros as pessoas identificadas no art. 426º da Reforma Aduaneira (Decreto-lei nº 46311 de 27/04/1965), entre as quais os agentes transitários como o é a aqui Ré.
17. O quadro negocial da actividade comercial de entreposto aduaneiro assenta essencialmente num contrato de depósito, que sucede por imposição legal, e que tem várias especificidades. Desde logo o numerus clausus de categorias de depositantes, depois a necessidade de autorização para poder ser depositário e depois ainda toda uma panóplia de obrigações que incidem sobre o depositário e que ultrapassam/limitam as regras normais do depósito civil e comercial, como o é a proibição de entrega da mercadoria depositada sem que a alfândega haja autorizado a sua saída.
18. Nos termos do art. 12º do D.L. 281/86 de 05 de Setembro, as mercadorias não podem permanecer em depósito mais do que 45 ou 20 dias, consoante tenham chegado por via marítima, ou por qualquer outra forma, sob pena de serem as mesmas consideradas “demoradas” e proceder-se à sua venda em hasta pública, nos termos dos arts. 648º e 638º do Regulamento das Alfândegas (Decreto nº 31730 de 15/12/1941).
19. Nesse hiato temporal e até que sejam volvidos seis meses sobre a entrada em “demorados”, podem ainda as mercadorias ser despachadas nos termos e para os efeitos do art. 639º do Regulamento das Alfândegas, desde que sejam pagos os tráfegos e armazenagem, desde a entrada, os anúncios porventura publicados, e uma percentagem de 2% do valor da mercadoria, que constitui receita do Estado.
20. Volvidos seis meses sobre a entrada em “demorados”, consideram-se as mercadorias abandonadas a favor do Estado. (art. 638º nº 5 § 2 do Regulamento das Alfândegas, sendo certo que esta disposição não mais existe, a partir da entrada em vigor do Orçamento de Estado para 2013, que aditou os arts. 678ºA a 678º-T ao Regulamento das Alfândegas).
21. Nos termos dos arts. 1186º e 1158º do C.C., o depósito presume-se gratuito, salvo se tiver por objecto actos que o depositário pratique por profissão. Neste caso em concreto, dedicando-se a A. à actividade de entreposto aduaneiro, como seu objecto social (nº1 dos factos provados), está afastada a presunção de gratuitidade do depósito, solução para a qual aliás também milita a regra do art. 404º do Código Comercial, sendo que, da aplicação deste regime, resulta igualmente que a remuneração do depositário será a que tiver sido convencionada e, na sua falta, a dos usos da praça em que o depósito tiver sido constituído (e na sua falta ainda será fixada por arbitramento), sendo devida no termo do depósito ou, se tiver sido fixada por períodos de tempo, será paga no fim de cada um destes (art. 1200º do C.C.)
22. Devemos ter sempre em mente uma verdade “lapalissiana” de que “as cargas não nascem nos contentores!” Se a “carga a mais” não manifestada lá estava, foi porque alguém a colocou… Sabendo como sabemos que esses contentores foram enviados por AGENTES DA RÉ (vide factos provados nº 7 e 19), torna-se evidente que essa apresentação a depósito, é imputável à Ré, nos termos do art. 800º do C.C., independentemente desse depósito (que até é obrigatório, atentas as características alfandegárias da relação) ser intencional ou meramente acidental. O certo é que essa carga, embora não figurando no manifesto e sendo por isso desconhecida da Ré, foi pela mesma apresentada dentro de um contentor, cuja desconsolidação e depósito a Ré solicitou à A.
23. A A. sendo confrontada com a presença de “carga a mais” no contentor não a pode enviar para trás. Também não pode a A. simplesmente entregar essa carga à Ré, uma vez que a mesma necessita de ser desalfandegada. Resta por isso, como única solução possível, admitir a mesma em depósito e emitir os competentes títulos de depósito em nome da Ré, como aliás a A. está legalmente obrigada quanto a toda a mercadoria que tem dentro de portas (vide obrigações de organização e registo contabilístico constantes do D.L. 281/86).
24. A Ré é responsável em relação à A. pela remuneração do depositário relativa a esta carga, cujo depósito aceitou em função da actuação e incúria do seu agente.
25. Se porventura não fosse esta a solução legal, como manifestamente nos parece ser, sempre outra similar se imporia. É que, diga-se, a Ré não só aceitou essa situação de depósito, como tratou ela própria de resolver o imbróglio criado, tratando de obter declarações de abandono da carga.
26. A partir do momento em que, em ambas aquelas situações, a Ré declarou a “carga a mais” como abandonada a favor do Estado, tem a solução jurídica que ser buscada também de acordo com este novo estatuto que a Ré atribuiu à carga. Por esta razão, há-de a solução jurídica quanto a estas duas cargas ser também muito próxima da que se propugnará para a questão seguinte e que, adiantamos desde já, não difere da que foi aqui também proposta.
27. Analisando a norma do art. 426º do D.L. 46311 de 27/04/65 (Reforma Aduaneira) (na redacção que lhe foi dada pelo D.L. nº 73/2001 de 26/02) ressalta desde logo que os únicos que estão habilitados a agir em nome e por conta dos donos das mercadorias, exercendo portanto um mandato com representação, são os despachantes oficiais, acaso estejam habilitados com procuração para tanto (art. 426º nº 2 da Reforma Aduaneira).
28. Em todos os demais casos (e como vimos os Agentes Transitários estão incluídos no número 3 do referido artigo 426º da Reforma Aduaneira), o declarante/depositante age em seu nome, mas por conta do dono ou consignatário das mercadorias, o que configura claramente um caso de MANDATO SEM REPRESENTAÇÃO.
29. Sendo a relação do Agente Transitário com o dono da mercadoria um mandato sem representação, tal significa que a relação que o agente transitário estabelece com terceiros, designadamente com o depositário, está sujeita ao regime do art. 1180º do C.C., donde resulta portanto que o Agente Transitário “adquire os direitos e assume as obrigações decorrentes dos actos que celebra, embora o mandato seja conhecido dos terceiros que participem nos actos ou sejam destinatários destes.”
30. O dono das mercadorias/consignatário/importador, etc… nenhuma relação estabelece com o entreposto aduaneiro. Quem estabelece essa relação é unicamente o Agente Transitário.
31. Desta realidade resulta que, para a solução jurídica pertinente do caso, é indiferente que tenha havido qualquer desentendimento entre exportadora e importadora daquela mercadoria (TOALHAS), conforme referido em 58 da matéria de facto provada, uma vez que esse hipotético desentendimento é alheio à relação jurídica estabelecida entre Autora e Ré e não é oponível àquela, uma vez que o agente transitário/mandatário/depositante não se pode prevalecer do incumprimento de obrigação de levantamento da mercadoria do depósito, por parte do seu mandante/importador para obstar à exigência de pagamento da remuneração do depositário.
32. Aos olhos do depositário/entreposto aduaneiro é o depositante/agente transitário quem tem o dever de levantar mercadoria depositada, pois foi apenas com ele que aquele contratou. Se porventura não o faz é sobre o depositante que incidem as consequências legais da sua inércia, designadamente a manutenção e o avolumar da obrigação de pagamento do preço do depósito, enquanto o mesmo não cessar, sendo o depositante por ele responsável, como depositante e interlocutor único que é!
33. Esta solução em nada é alterada pela matéria constante do ponto 57 dos factos provados. Esse endosso mais não é do que o cumprimento da obrigação de transmissão para o mandante dos direitos adquiridos pelo mandatário na execução do mandato, nos termos do art. 1181º do C.C. Porém, dessa transmissão não resulta qualquer exoneração do mandatário, que é e continua a ser a contraparte do negócio de depósito que foi celebrado com o depositário!
34. Da exegese da economia destas relações negociais resulta que o depositante é credor de uma obrigação de restituição da coisa sobre o depositário e, ao mesmo tempo, é devedor do preço do depósito.
35. Por via da transmissão dos direitos do mandatário sem representação para o mandante, nos termos do art. 1181º do C.C. somos forçados a chamar à colação outros dois institutos – o da transmissão de créditos e o da transmissão de dívidas, em consonância com o disposto no art. 1182º do C.C. e da remissão legal feita para o art. 595º do C.C.
36. Essa transmissão de direitos do mandatário implica uma transmissão do mandatário para o mandante do direito de crédito da obrigação de restituição da coisa depositada, a qual opera por simples notificação do devedor/depositário ou pela sua aceitação (art. 583º do C.C.) Ou seja, havendo a notificação ou aceitação da transmissão do direito de crédito da obrigação de restituição da coisa depositada, passará a ser o mandante e não o mandatário quem poderá exigir o seu levantamento.
37. O mesmo já não se passa quanto à obrigação de pagamento do preço do depósito. Neste caso a transmissão do direito apenas se pode dar se essa transmissão for ratificada pelo credor (neste caso o depositário) e, mesmo aí, com essa ratificação, não ficaria o depositante/mandatário exonerado da dívida, pois nos termos do art. 595º nº 2 do C.C. a transmissão só exonera o antigo devedor, havendo declaração expressa do credor, de contrário o antigo devedor responde solidariamente com o novo obrigado.
38. Em suma, o abandono da mercadoria a favor do Estado dá-se pela inércia em promover o desalfandegamento da mesma e o levantamento da coisa depositada. A obrigação de levantamento da coisa depositada pertence ao depositante, devendo ser ele também a suportar o correlativo preço do depósito inerente ao seu comportamento omissivo.
39. O depósito é um contrato obrigacional celebrado entre depositante e depositário, sendo para o efeito despiciendo o título a que o depositante se arroga sobre a coisa depositada. O próprio legislador aponta nesse sentido, ao prescrever no art. 1192º nº 1 do C.C. que o depositário não pode recusar a restituição ao depositante com o fundamento de que este não é o proprietário da coisa, nem tem sobre ela qualquer outro direito.
40. Assim, é também inócuo para a relação depositária que, no decurso do depósito, se tenha alterado o proprietário da coisa. Isso em nada altera a relação entre depositante e depositário, podendo este sempre exigir daquele o pagamento do preço inerente ao depósito.
41. E não se contra-argumente dizendo, como indicia a tese da Recorrida, que após a declaração de abandono não mais poderá o depositante pedir a restituição da carga. É que, a declaração de abandono a favor do Estado está sujeita à verificação (ou não) de uma condição resolutiva prevista no art. 638º nº 5 § 5º do Regulamento das Alfândegas, que diz que depois de serem as mercadorias consideradas abandonadas a favor do Estado “poderá o Director de Alfândega autorizar, após apresentação de requerimento nesse sentido, a entrega das mercadorias em momento anterior ao da publicação dos anúncios, com pagamento de todos os encargos e imposição devidos, acrescidos do pagamento de 10% sobre o seu valor” (redacção do D.L. 483-E/88 de 28/12).
42. Ou seja, o depositário se não for inerte, poderá sempre obter a restituição da coisa!
43. Interpretação contrária a esta será premiar a inércia do depositante, que ao nada fazer, se eximiria da sua responsabilidade!
44. Não é apenas do produto da venda da mercadoria em leilão que é paga a respectiva armazenagem. Salvo respeito por melhor opinião, a tese contrária, conforme foi expendida pela Recorrida e erroneamente acolhida pela sentença, confunde valor da dívida com garantia da mesma.
45. O art. 675º do Regulamento das Alfândegas mais não é do que o acolhimento em sede de legislação aduaneira da garantia proveniente do direito de retenção do depositário, tal qual previsto no art. 755º nº 1 alínea e) do C.C.
46. Daquela singela menção não se retira, nem pode em boa fé ser retirado, que na hipótese do valor de venda não chegar para cobrir a totalidade dos custos de armazenagem, o crédito do depositário fica reduzido a esse montante e o depositante isento do pagamento do remanescente da sua obrigação!
47. O depositante é responsável perante o depositário pelos custos de tráfegos de entrada e saída, armazenagem e seguros, na hipótese da mercadoria manifestada em contentor que apresenta em entreposto aduaneiro para desconsolidação e depósito vir a ser apreendida pela Alfândega, por suspeita de contrafacção.
48. Esta regra apenas comporta excepção nos processos a que se refere o nº 1 do art. 13º do Regulamento (CE) nº 1383/2003 do Conselho de 22/07 ou ao abrigo de qualquer procedimento simplificado previsto no art. 6º do D.L. 360/2007 de 02/11.
49. Da matéria de facto provada na sentença, sob os números 34 e 35, e até mesmo do auto de apreensão junto pela Ré como documento nº 15 à contestação apenas consta, e se conclui, que a mercadoria foi apreendida. Porém não consta, nem a Ré alegou ou provou, que essa apreensão tivesse sido feita ao abrigo do processo a que se refere o nº 1 do art. 13º do Regulamento (CE) nº 1383/2003 do Conselho de 22/07 ou ao abrigo de qualquer procedimento simplificado previsto no art. 6º do D.L.
360/2007 de 02/11.
50. Assim, a aplicação do art. 10º do D.L. 360/2007 de 02/11 não colhe e tem necessariamente o depositante que pagar, nos termos gerais, o preço de depósito, enquanto o mesmo se mantiver.
51. Ou, pelo menos indemnizar a Recorrente, nos termos do art. 1199º alínea c) do C.C., uma vez que não demonstrou ter agido sem culpa, designadamente por desconhecer, ou não lhe ser exigível que conheça, a suspeita de contrafacção, sendo certo que o prejuízo da Autora é idêntico ao lucro que deixou de auferir pela mercadoria que foi obrigada a manter em depósito e pela qual facturou o correspectivo valor.

A apelada contra-alegou, pedindo a confirmação do julgado.
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Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões da recorrente, as questões que se colocam são as seguintes:
a) A sentença é nula?
b) Deve ser alterada a decisão da matéria de facto?
c) A acção deve proceder na totalidade?
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II. FUNDAMENTAÇÃO

OS FACTOS

A 1ª instância deu como provados os seguintes factos:

1. A Autora exerce a sua actividade como entreposto aduaneiro.

2. No exercício dessa actividade, a Autora procedeu à armazenagem de mercadorias relativamente às quais emitiu e enviou à Ré as seguintes facturas:
- n.º 3628, datada de 02-12-2011, no montante de € 2.027,38;
- n.º 3633, datada de 02-12-2011, no montante de € 741,70;
- n.º 3634, datada de 02-12-2011, no montante de €334,03;
- n.º 3640, datada de 02-12-2011, no montante de € 9,23;
- n.º 3643, datada de 02-12-2011, no montante de € 233,70;
- n.º 3644, datada de 02-12-2011, no montante de € 35,24;
- n.º 3647, datada de 05-12-2011, no montante de € 58,51;
- n.º 3648, datada de 05-12-2011, no montante de € 76,00;
- n.º 3650, datada de 05-12-2011, no montante de € 260,88;
- n.º 3652, datada de 05-12-2011, no montante de € 45,87;
- n.º 3654, datada de 05-12-2011, no montante de € 104,55;
- n.º 3656, datada de 05-12-2011, no montante de € 28,91;
- n.º 3658, datada de 05-12-2011, no montante de € 98,40;
- n.º 3662, datada de 05-12-2011, no montante de € 109,35;
- n.º 3666, datada de 06-12-2011, no montante de € 101,97;
- n.º 3673, datada de 06-12-2011, no montante de € 60,89;
- n.º 3674, datada de 09-12-2011, no montante de € 144,28;
- n.º 3687, datada de 09-12-2011, no montante de € 161,25;
- n.º 3690, datada de 09-12-2011, no montante de € 323,74;
- n.º 3693, datada de 09-12-2011, no montante de € 28,91;
- n.º 3694, datada de 09-12-2011, no montante de € 12,30;
- n.º 3699, datada de 12-12-2011, no montante de € 23,05;
- n.º 3703, datada de 12-12-2011, no montante de € 98,40;
- n.º 3719, datada de 16-12-2011, no montante de € 48,59;
- n.º 3720, datada de 16-12-2011, no montante de € 28,91;
- n.º 3743, datada de 20-12-2011, no montante de € 3,08;
- n.º 2260, datada de 22-12-2011, no montante de € 478,60;
- n.º 2264, datada de 22-12-2011, no montante de € 32,82;
- n.º 2279, datada de 22-12-2011, no montante de € 69,51;
- n.º 2283, datada de 22-12-2011, no montante de € 7,56;
- n.º 2301, datada de 22-12-2011, no montante de € 251,00;
- n.º 2306, datada de 22-12-2011, no montante de € 233,84;
- n.º 3758, datada de 22-12-2011, no montante de € 250,55;
- n.º 3761, datada de 23-12-2011, no montante de € 54,61;
- n.º 3763, datada de 23-12-2011, no montante de € 44,53;
- n.º 3765, datada de 26-12-2011, no montante de € 492,43;
- n.º 3766, datada de 26-12-2011, no montante de € 38,51;
- n.º 3772, datada de 26-12-2011, no montante de € 98,40;
- n.º 3774, datada de 26-12-2011, no montante de € 242,48;
- n.º 2320, datada de 27-12-2011, no montante de € 87,18;
- n.º 2340, datada de 27-12-2011, no montante de € 123,72;
- n.º 2362, datada de 27-12-2011, no montante de € 270,70;
- n.º 2380, datada de 27-12-2011, no montante de € 29,67;
- n.º 3781, datada de 28-12-2011, no montante de € 83,27;
- n.º 3782, datada de 28-12-2011, no montante de € 22,76;
- n.º 3784, datada de 28-12-2011, no montante de € 39,61;
- n.º 3785, datada de 28-12-2011, no montante de € 65,07;
- n.º 3798, datada de 30-12-2011, no montante de € 162,83;
- n.º 3800, datada de 30-12-2011, no montante de € 6,89;
- n.º 3801, datada de 30-12-2011, no montante de € 24,60;
- n.º 3810, datada de 30-12-2011, no montante de € 1.286,36;
- n.º 3833, datada de 31-12-2011, no montante de € 64,08;
- n.º 3834, datada de 31-12-2011, no montante de € 45,26;
- n.º 3838, datada de 31-12-2011, no montante de € 16,27;
- n.º 3839, datada de 31-12-2011, no montante de € 13,53;
- n.º 3843, datada de 31-12-2011, no montante de € 92,25;
- n.º 3844, datada de 31-12-2011, no montante de € 92,25;
- n.º 3845, datada de 31-12-2011, no montante de € 71,82;
- n.º 18, datada de 05-01-2012, no montante de € 3,08;
- n.º 25, datada de 09-01-2012, no montante de € 6,15;
- n.º 33, datada de 10-01-2012, no montante de € 41,21;
- n.º 34, datada de 10-01-2012, no montante de € 264,08;
- n.º 40, datada de 11-01-2012, no montante de € 73,06;
- n.º 41, datada de 12-01-2012, no montante de € 84,62;
- n.º 42, datada de 12-01-2012, no montante de € 36,29;
- n.º 43, datada de 12-01-2012, no montante de € 98,40;
- n.º 47, datada de 12-01-2012, no montante de € 3,08;
- n.º 50, datada de 12-01-2012, no montante de € 28,91;
- n.º 57, datada de 13-01-2012, no montante de € 28,91;
- n.º 70, datada de 17-01-2012, no montante de € 9,23;
- n.º 79, datada de 18-01-2012, no montante de € 65,81;
- n.º 80, datada de 19-01-2012, no montante de € 75,77;
- n.º 100, datada de 23-01-2012, no montante de € 48,65;
- n.º 105, datada de 23-01-2012, no montante de € 6,15;
- n.º 110, datada de 24-01-2012, no montante de € 28,91;
- n.º 15, datada de 27-01-2012, no montante de € 32,61;
- n.º 46, datada de 30-01-2012, no montante de € 7,41;
- n.º 78, datada de 30-01-2012, no montante de € 10,68;
- n.º 109, datada de 30-01-2012, no montante de € 168,78;
- n.º 149, datada de 30-01-2012, no montante de € 3,08;
- n.º 141, datada de 31-01-2012, no montante de € 16,32;
- n.º 143, datada de 31-01-2012, no montante de € 21,81;
- n.º 174, datada de 02-02-2012, no montante de € 64,01;
- n.º 263, datada de 14-02-2012, no montante de € 92,25;
- n.º 269, datada de 14-02-2012, no montante de € 92,25;
- n.º 273, datada de 15-02-2012, no montante de € 9,84;
- n.º 274, datada de 15-02-2012, no montante de € 12,30;
- n.º 276, datada de 15-02-2012, no montante de € 71,36;
- n.º 278, datada de 15-02-2012, no montante de € 138,38;
- n.º 279, datada de 15-02-2012, no montante de € 14,18;
- n.º 317,datada de 23-02-2012, no montante de € 28,91;
- n.º 331, datada de 24-02-2012, no montante de€ 33,70;
- n.º 362, datada de 01-03-2012, no montante de € 6,15;
- n.º 374, datada de 01-03-2012, no montante de € 75,94;
- n.º 379, datada de 01-03-2012, no montante de € 13,53;
n.º 382, datada de 01-03-2012, no montante de € 284,94;
- n.º 383, datada de 01-03-2012, no montante de € 979,10;
- n.º 384, datada de 01-03-2012, no montante de € 13,53;
- n.º 391, datada de 02-03-2012, no montante de € 13,53;
- n.º 392, datada de 02-03-2012, no montante de € 91,28;
- n.º 393, datada de 02-03-2012, no montante de € 13,53;
- n.º 395, datada de 02-03-2012, no montante de € 13,53;
- n.º 502, datada de 22-03-2012, no montante de € 1.068,01;
- n.º 503, datada de 22-03-2012, no montante de € 5.052,96;
- n.º 504, datada de 22-03-2012, no montante de € 1.081,17;
- n.º 505, datada de 22-03-2012, no montante de € 2.793,95;
- n.º 506, datada de 22-03-2012, no montante de € 94,38;
- n.º 507, datada de 22-03-2012, no montante de € 88,29;
- n.º 508, datada de 22-03-2012, no montante de € 380,92;
- n.º 509, datada de 22-03-2012, no montante de € 356,34;
- n.º 510, datada de 22-03-2012, no montante de € 57,20;
- n.º 511, datada de 22-03-2012, no montante de € 53,51;
- n.º 512, datada de 22-03-2012, no montante de € 57,20;
- n.º 513, datada de 22-03-2012, no montante de € 53,51;
- n.º 574, datada de 02-04-2012, no montante de € 94,38;
- n.º 580 datada de 02-04-2012, no montante de € 57,20;
- n.º 581 datada de 02-04-2012, no montante de € 57,20;
- n.º 582 datada de 02-04-2012, no montante de € 380,92;
- n.º 809 datada de 02-05-2012, no montante de € 182,66;
- n.º 815 datada de 02-05-2012, no montante de € 110,70;
- n.º 816 datada de 02-05-2012, no montante de € 110,70;
- n.º 817 datada de 02-05-2012, no montante de € 737,26;
Perfazendo estas o montante de € 27.244,46.
VER INFRA
3. A Autora emitiu uma nota de crédito a favor da Ré, com o n.º 29, datada de 31.12.2011 e vencida no mesmo dia, no valor de € 40,00.

4. Por via de serviços prestados entre Ré e Autora, esta deve à primeira, o montante de € 7.753,34.

5. A Ré efectuou o pagamento da quantia de € 5 324,82.

6. As mercadorias a que se reportam as facturas discriminadas em 2. deram entrada nos armazéns da autora em 2009 e 2010, relativamente às quais, enquanto se manteve o relacionamento comercial entre ambas, esta nada facturou.

7. As facturas nºs 504, 512, 513, 581 e 815 no valor global de 1.359,78 € são correspondentes a despesas com 1 volume com 0,01 m3 e 1.200kg, contendo acessórios em marfim, que vinha num contentor procedente de …, enviado pela E…, agente da ré, que entrou nos armazéns da autora em 05.05.2010

8. Este volume, não constava dos manifestos de carga, nem do mapa de descarga enviado pela ré à autora.

9. A ré desconhecia que este volume vinha no contentor.

10. Foi a autora que descobriu este volume não declarado e que fez o título de armazenagem em nome da ré, embora esta nunca o tivesse solicitado

11. Em 09.08.2010, depois de consultar o seu agente, que igualmente declarou que ninguém sabia da existência desse volume dentro do contentor, a ré deu instruções de abandono de tal mercadoria e a autora confirmou tal situação em 09.08.2010.

12. Nunca mais a autora informou qual o destino que deu à mercadoria, nem qual a sua situação aduaneira.

13. E esta carga deixou de constar da lista de mercadorias armazenadas em nome da ré, até 02.03.2012, altura em que já haviam cessado as relações comerciais entre as partes.
14. E mesmo nessa altura em que a mercadoria reapareceu nessa lista, a autora dizia que não era para considerar.

15. A autora em 22.03.2012 facturou a armazenagem desta mercadoria desde Maio de 2010 a Fevereiro de 2012 .

16. Em 02.04.2012 facturou o mês de Março de 2012.

17. E em 02.05.2012 facturou o mês de Abril de 2012, duplicando, por sua iniciativa e sem o acordo da ré, o valor da armazenagem que passou de 1,50 €/m3/dia para 3,00 €/m3/dia.

18. A ré devolveu à Autora tais facturas assim que as recebeu.

19. As facturas 502, 510, 511, 580 e 816 no valor global de 1.346,62 € correspondem a despesas com 1m volume com 6 Kgs e 0,17m3, contendo pedras ornamentais, que vinha num contentor procedente de …, enviado por F…, agente da ré que entrou nos armazéns da autora em 09.07.2010

20. Este volume não constava dos manifestos de carga, nem do mapa de descarga enviado pela ré à autora.

21. A ré desconhecia que este volume vinha no contentor.

22. Foi a autora que descobriu este volume não declarado e que fez o título de armazenagem em nome da ré, embora esta nunca o tenha solicitado.

23. Em 17.01.2011, depois de consultar o seu agente, que igualmente declarou que ninguém sabia da existência desse volume dentro do contentor, a ré deu instruções para o abandono de tal mercadoria e em 22.03.2011 a autora dizia que aguardava instruções da Alfandega com vista à sua destruição.

24. Nunca mais a autora deu qualquer outra informação relativa a esta mercadoria, nem quanto ao destino que lhe deu, nem quanto à sua situação aduaneira.

25. E esta carga deixou de constar da lista de mercadorias armazenadas em nome da ré, até 02.03.2012, altura em que já haviam cessado as relações comerciais entre as partes.

26. A autora em 22.03.2012 facturou a armazenagem desta mercadoria desde Julho de 2010 a Fevereiro de 2012.

27. Em 02.04.2012 facturou o mês de Março de 2012.

28. E em 02.05.2012 facturou o mês de Abril de 2012, duplicando por sua iniciativa e sem o acordo da ré, o valor da armazenagem que passou de 1,5€/m3/dia para 3,00 €/m3/dia.

29. A ré devolveu à Autora estas facturas assim que as recebeu.

30. As facturas 505, 506, 507, 574 e 809 no valor global de 3.235,66 € corresponde a despesas com 72 cartões com 1,65 m3 e 432 Kgs, contendo calçado, que faziam parte de uma importação de 216 cartões com 4,48m3 e 1296 Kgs, com o mesmo conteúdo, que entraram no armazém da autora em 17.07.2009
31. Vinham acondicionados num contentor procedente de … enviado pela F…, agente da ré, e tinham como destinatária a G….

32. Como esse contentor, com mercadorias para diversos destinatários, vinha consignado à ré, como agente transitária, a autora elaborou o título do depósito em nome da ré.

33. A ré, de imediato, endossou tal título à importadora, G… e disto deu conhecimento à autora, instruindo-a para cobrar directamente da importadora as despesas com a importação, o que ela aceitou.

34. Em 29 de Novembro de 2011, mais de dois anos depois, a ré veio a saber que a Alfandega tinha feito uma verificação da carga tendo libertado 144 volumes e apreendido 72 com calçado alegadamente contrafeito.

35. Por força desta intervenção, ocorrida em 03.08.2009, os 72 volumes ficaram apreendidos e foram entregues a H…, na altura funcionário da autora, que deles ficou fiel depositário e que por eles ficou responsável.

36. E foi a importadora que desalfandegou, pagou à autora a armazenagem e levantou os restantes 144 volumes.

37. Tudo isto sem qualquer intervenção, ou sequer conhecimento da ré.

38. Nessa mesma data de 29.11.2011 a autora entregou à ré, cópia dos títulos de depósito de toda a mercadoria em nome da importadora G…, Lda., o que implica o reconhecimento que a ré era totalmente alheia ao processo – VER INFRA.

39. Em 02.12.2011 a autora remeteu o mapa de existências no final do mês de Novembro de 2011, aparecendo referenciados os 72 volumes.

40. A ré questionou este facto e recebeu como resposta que a autora a ia retirar do mapa, na medida em que a mercadoria se encontrava “entregue” à Alfândega .

41. E assim aconteceu, até ao mapa recebido em 02.03.2012, quando já haviam cessado as relações comerciais entre as partes.

42. A autora em 22.03.2012 facturou a armazenagem desta mercadoria desde Julho de 2009 a Fevereiro de 2012 .

43. Em 02.04.2012 facturou o mês de Março de 2012 .

44. E em 02.05.2012 facturou o mês de Abril de 2012, duplicando, por sua iniciativa e sem o acordo da ré, o valor da armazenagem que passou de 1,5€/m3/dia para 3,00 €/m3/dia.

45. A ré devolveu à Autora estas facturas assim que as recebeu.

46. As facturas nºs 382 e 383 no valor global de 1.264,04 € reportam-se a uma mercadoria composta por 10 fardos com 480 kgs e 3,12 m3 que esteve nos armazéns da autora desde 01.08.2010 até finais de Julho de 2011.

47. E isto por razões imputáveis ao importador da mercadoria absolutamente alheias à autora e à ré.

48. Em circunstâncias como estas, em que a armazenagem atinge valores elevados que levam, muitas vezes, os importadores a abandoná-las, era normal que a autora e a ré negociassem uma redução do valor da armazenagem.

49. Na medida em que esta solução, obviamente excepcional, evitava processos de abandono e acabava por ser benéfica, também para a autora, que evitava as despesas e incómodos com esses processos e garantia parte do seu crédito.

50. Foi o que aconteceu no caso concreto, em que foi acordado que a autora só debitaria o correspondente a 1/3 dos custos normais num dos casos e 25% noutro caso.

51. A autora facturou o combinado e a ré pagou.

52. Na sequência do corte de relacionamento comercial, 5 meses depois, a autora veio negar o desconto concedido e facturar as diferenças.

53. A ré devolveu à Autora estas facturas assim que as recebeu.

54. As facturas nºs. 503, 508, 509, 582 e 817 no valor global de 6.908,40 €, correspondente a despesas com 96 cartões com 6,66 m3 e 1.322,40 kgs, contendo toalhas, que entraram no armazém da autora em 29.11.2010.

55. Vinham acondicionados num contentor procedente de …, enviado pela F…, agente da ré, e tinha como destinatária a D….

56. Como o contentor, com mercadorias para diversos destinatários, vinha consignado à ré, como agente transitário, a autora elaborou o título de depósito em nome desta.

57. A ré, de imediato, endossou tal título à importadora, D…, e disto deu conhecimento à autora, instruindo-a para dela cobrar directamente as despesas com a importação, o que ela aceitou. VER INFRA

58. Por desencontro entre a exportadora e a importadora, ao qual a autora e a ré são absolutamente alheias, a importadora não levantou a mercadoria

59. E daí que tenha sido considerada mercadoria abandonada, pelo que a autora a enviou para leilão, conforme comunicou em 29.06.2011.

60. Como se trata de mercadoria que carecia de desalfandegamento para entrar no território português, e tal não aconteceu, é do produto da venda da mercadoria em leilão que é paga a respectiva armazenagem.

61. Também esta mercadoria não constava da lista de mercadorias armazenadas em nome da ré, por ter sido abandonada pela importadora.

62. Em 22.03.2012, a Autora facturou a armazenagem desta mercadoria desde Novembro de 2010 até Fevereiro de 2012.

63. Em 02.04.2012 facturou o mês de Março de 2012.

64. E em 02.05.2012 facturou o mês de Abril de 2012, duplicando, por sua iniciativa e sem o acordo da ré, o valor da armazenagem que passou de 1,50 €/m3/dia, para 3,00 €/m3/dia.

65. A ré devolveu à Autora estas facturas assim que as recebeu.

O DIREITO

a)
A nulidade da sentença prevista na alínea b) do n.º 1 do artigo 668º do CPC[1] só ocorre quando se detecte a absoluta falta de fundamentação de facto e/ou de direito.
Não é isso que ocorre com a sentença recorrida, embora se tenha de reconhecer que a aplicação do Direito aos factos poderia ter sido objecto de mais e melhor tratamento.
A insuficiência ou deficiência da fundamentação da sentença apenas abala a sua força doutrinária, tornando-a mais vulnerável na apreciação que dela se venha a fazer em sede de recurso, mas não a torna nula.
Conclui-se, assim, que a sentença sob recurso não é nula, improcedendo nesta parte a apelação.

b)
É vastíssima a alteração da decisão da matéria de facto proposta pela apelante.
Iremos sumariá-la:
b.a) O ponto 2. da matéria de facto provada deve ser modificado para a seguinte formulação:
“No exercício da sua actividade a Autora prestou serviços e forneceu à Ré armazenamento de mercadorias, a pedido desta, conforme melhor descrito nas facturas que o Requerente emitiu e enviou à Requerida e que constam igualmente da sua contabilidade, a saber: (seguindo-se o rol das facturas com vencimento a 30 dias)”.
b.b) Deveria ser aditado o seguinte facto:
“Na relação comercial entre A. e R. sempre foi hábito aquela debitar e esta pagar os tráfegos, armazenagem e seguro da mercadoria abandonada”.
b.c) Os pontos 12., 13., 14., 25. 39., 40., 41. e 61. da matéria de facto provada devem ser complementados com o seguinte facto:
“O mapa de existências era um documento que a A. elaborava a pedido da Ré e que servia apenas e tão só para que esta controlasse o estado e prazos das mercadorias que tinha em depósito, por forma a evitar que os mesmos entrassem em ‘demorados’ ou em ‘abandono’”.
b.d) Os pontos 15., 16., 17., 26., 27., 28., 42., 43., 44., 62., 63. e 64. da matéria de facto provada devem ser complementados com o seguinte facto:
Em Março de 2012 a Recorrente alterou o seu sistema de facturação, passando a debitar as armazenagens a todos os seus clientes numa base mensal, ao invés do que fazia até aí, em que as armazenagens apenas eram facturadas aquando da saída da mercadoria”.
b.e) Devem ainda ser acrescentados os seguintes factos:
“A. e R. acordaram que as suas relações comerciais teriam o preçário constante da tabela que constitui o documento n.º 3 junto pela Autora na audiência de discussão e julgamento de 11/12/2012”;
“A. e R. cessaram relações comerciais em data anterior a Março de 2012”; e
“Por e-mail de 02/04/2012 a Autora comunicou à Recorrida que alterou o seu tarifário geral, passando o mesmo a estar disponível para consulta nas suas instalações”.
Dos pontos 17., 28., 44. e 64. deve ser expurgada a expressão “por sua iniciativa e sem o acordo da Ré”.
b.f) Devem ser dados como não provados os factos dos pontos 48. a 51. e como provados os factos alegados nos artigos 33º a 37º da resposta da Autora;
b.g) A redacção do facto do quesito 57º deve ser alterada para:
“A Ré de imediato endossou tal título à importadora, D…”.
b.h) Deve ser excluída dos pontos 37., 49. e 60. a matéria conclusiva e de Direito.

Analisando cada um destes pedidos de alteração:
Quanto à alteração do ponto 2., parece-nos evidente que algo falta ao que se encontra vertido nesse ponto.
No requerimento inicial a Autora – ora apelante – alegou que “exerce a sua actividade como entreposto aduaneiro e no exercício dessa actividade prestou serviços e forneceu à Requerida, a pedido desta, armazenamento de mercadorias, conforme melhor descrito nas facturas que a Requerente emitiu e enviou à Requerida e que constam igualmente da contabilidade (…)”.
Na contestação a Ré não negou esse acordo negocial, dizendo apenas não dever alguns dos valores facturados.
O ponto 2. dos factos provados omite a expressão “a pedido desta”, tendo a Mmª Juíza, na fundamentação da decisão de facto, considerado que “(…) o que a Autora não logrou provar … foi a forma como foram contratados os serviços discriminados nas facturas e se efectivamente tais valores, tal como reclamados, são ou não devidos” – cfr. fls. 413. Isto mesmo depois de se ter mencionado – e bem – que a própria Ré aceitou tal matéria e que “a mesma sempre poderia ser dada como provada por acordo das partes”.
Com efeito, não se vê qualquer razão para não fazer constar do ponto 2. a expressão “a pedido desta”, pois que isso não significa nem implica, como é óbvio, a aceitação de todos os valores facturados. Havia indiscutivelmente um acordo negocial firmado entre a Autora e a Ré para que aquela lhe prestasse serviços de armazenamento de mercadorias, a troco de remuneração, que oportunamente lhe seriam facturados. Sendo um acordo, pressupunha, necessariamente, a convergência de vontades validamente declaradas. Não fazia qualquer sentido que a Autora armazenasse as mercadorias da Ré sem que esta lho pedisse!
Por isso, altera-se o ponto 2. da matéria de facto, mas, para que não subsistam dúvidas, opta-se por uma redacção algo diferente da proposta:
2. No exercício dessa actividade, a Autora, a pedido da Ré, procedeu à armazenagem de mercadorias, tendo emitido e enviado a esta as seguintes facturas: (…).

Pretende também a apelante que se adite o seguinte facto:
“Na relação comercial entre A. e R. sempre foi hábito aquela debitar e esta pagar os tráfegos, armazenagem e seguro da mercadoria abandonada”.
Esta matéria não encontra eco em qualquer alegação da Autora ou da Ré, sendo certo, por outro lado, que, mesmo que se considerasse assente tal facto ( (“sempre foi hábito …”), isso não relevaria perante as circunstâncias concretas apuradas.

Também os factos cujo aditamento a apelante sugere nas antecedentes alíneas b.c) e b.d) não foram alegados nos articulados da acção. Por conseguinte, e porque se não vislumbra a possibilidade do seu aproveitamento nas condições previstas em qualquer dos números do artigo 264º do CPC, o requerido aditamento não será permitido.

A Ré alegou, num segmento do artigo 24º da contestação, que em 02.03.2012 já haviam cessado as relações comerciais entre as partes, facto que a Autora não impugnou na resposta.
Deve, por isso, ser aditado esse facto à matéria provada.
Deste modo:
66. Em 02.03.2012 já haviam cessado as relações comerciais entre a Autora e a Ré.

A proposta de adição do facto “A. e R. acordaram que as suas relações comerciais teriam o preçário constante da tabela que constitui o documento n.º 3 junto pela Autora na audiência de discussão e julgamento de 11/12/2012” também não pode ser acolhida, na medida em que não existe a respectiva alegação nos articulados.
No entanto, entendemos dever acrescentar ao rol dos factos provados o teor do documento n.º 3, junto pela Autora na audiência de 11.12.2012, já que a Ré não o impugnou.
Assim, deve constar dos factos provados o seguinte:
67. Dá-se por integralmente reproduzida a tabela de serviços da Autora para o ano de 2009, constante de fls. 281.
A troca de e-mails entre a Autora e a Ré, a propósito dos tarifários, permite também aditar os seguintes factos, de acordo com a pretensão da apelante:
68. Por e-mail de 02.04.2012 a Autora comunicou à Ré o novo tarifário geral a partir dessa data – documento de fls. 288.
69. Em resposta, também por e-mail, a Ré referiu não lhe ter sido enviado o respectivo anexo – documento de fls. 287.
70. A Autora, ainda por e-mail, respondeu à Ré dizendo-lhe que as alterações ao n/tarifário geral encontram-se disponíveis para consulta nas n/s instalações – documento de fls. 286.

Não procede, todavia, o pedido de eliminação da expressão “por sua iniciativa e sem o acordo da Ré”, pois que a comunicação da alteração do tarifário que está na base da facturação alegada nos pontos 17., 28., 44. e 64. já ocorreu depois de terem cessado as relações comerciais entre a Autora e a Ré.

A apelante sustenta também que se dê como não provada a matéria vertida nos factos 48º a 51º e que se considere provada a matéria alegada nos artigos 33º a 37º da resposta.
Porém, vista a prova produzida, não se afigura possível a alteração dessa matéria de facto.
Tanto a testemunha H… (que ajudou à criação da Autora – “fui eu que lhe montei o negócio” – e que dispunha de grande margem de decisão no seu seio), como a testemunha I…, confirmam a existência de substanciais descontos nos valores a facturar. É certo que a apelante se esforça por atacar a credibilidade da testemunha H…, que, no mês de Outubro de 2011, deixou de trabalhar para a Autora, em consequência de desentendimentos graves com o seu gerente, J…. Mas, mesmo que, por hipótese, se desse menos valor a esse depoimento, a verdade é que a outra testemunha – o I… –, quando perguntado sobre a possibilidade de haver descontos com a magnitude do referido no ponto 50., admitiu esse facto, respondendo: “É assim, não é anormal. Até pode haver um desconto desses; se o Sr. J… entender que deve haver um desconto desses, pode haver. É preciso é que ele o entenda. Agora em condições normais, não acho normal”.
É preciso atentar, por outro lado, que o I… só começou a trabalhar para a Autora em 08.11.2011, ou seja, depois de a testemunha H… ter saído em ruptura com a gerência.
Ora, embora se pressinta um clima pouco amistoso entre esta testemunha e a gerência da Autora, nem por isso nos parece que o seu depoimento seja parcial ou mereça menor crédito do que lhe foi conferido na 1ª instância. A Mmª Juíza classificou esse depoimento como exaustivo, coerente e circunstanciado, valorizando também a circunstância de a testemunha ter “conhecimento directo dos factos por ter sido um dos protagonistas dos mesmos”.
A forma como depôs e as explicações que foi dando sobre o seu papel no dia-a-dia da empresa tornam bastante plausível que fosse ele a decidir, com autonomia, o valor dos descontos a efectuar, esclarecendo que o que se pretendia com os mesmos era libertar o armazém das mercadorias depositadas.
Aliás, os documentos nºs 26 a 28, juntos com a contestação, dão ainda maior consistência à prova dos factos dos pontos 48. a 51.
Por conseguinte, mantêm-se provados os factos dos pontos 48º a 51º e não provados os factos alegados nos artigos 33º a 37º da resposta.

Do facto do ponto 57. deve retirar-se a sua parte final, tal como defende a apelante, já que a única prova produzida sobre essa matéria é a que resulta do depoimento de K…, funcionária da Ré. Segundo o afirmado por essa testemunha, a Ré não deu conhecimento à Autora de que endossara o título de depósito à importadora, D…, e de que instruísse a Autora para cobrar directamente àquela importadora as despesas com a importação.
Daí que o ponto 57. deva passar para a seguinte redacção:
57. A ré, de imediato, endossou tal título à importadora, D….

Falta averiguar se deve ser eliminada dos pontos 37., 49. e 60. matéria que seja conclusiva ou de Direito.
A apelante não identificou tal matéria – como bem avisa a apelada nas contra-alegações – e nós também não vemos onde ela possa estar presente em qualquer um dos referidos pontos.
Portanto, nesta parte, mantém-se o decidido quando a essa matéria.
Não obstante, e porque a eliminação de matéria conclusiva ou de Direito se inscreve na actividade oficiosa do tribunal de recurso, impõe-se a eliminação da parte final do ponto 38. dos factos provados, na medida em que é patente a sua natureza conclusiva – artigo 646º, n.º 4, do CPC, aplicado analogicamente.
Assim, esse ponto de facto passará a ter a seguinte redacção:
38. Nessa mesma data de 29.11.2011 a autora entregou à ré, cópia dos títulos de depósito de toda a mercadoria em nome da importadora G…, Lda.

As alterações produzidas à matéria de facto não são relevantes, como veremos, para a decisão.

c)
Segundo a definição legal, entende-se por entreposto aduaneiro qualquer local aprovado pelas autoridades aduaneiras e sujeito ao seu controlo, onde as mercadorias podem ser armazenadas nas condições fixadas – artigo 98º, n.º 2, do Código Aduaneiro Comunitário. Para a declaração de entrada das mercadorias em regime de entreposto apenas é competente quem estiver legalmente habilitado, nos termos da legislação aduaneira – artigo 6º do DL 291/89, de 2 de Setembro.
Cabe ao entreposto aduaneiro, na qualidade de depositário, assegurar que as mercadorias não sejam subtraídas à fiscalização aduaneira enquanto permanecerem no entreposto e garantir que o levantamento e entrega das mercadorias depositadas em armazéns de depósito provisório só poderá efectivar-se após os serviços aduaneiros, através do reverificador, verificador ou conferente da declaração, haverem autorizado a respectiva saída, nos termos da legislação aduaneira aplicável – artigo 15º, n.º 3, do DL 281/86, de 5 de Setembro.
O armazenamento de mercadorias regula-se pelas regras do contrato de depósito dos artigos 1185º e seguintes do CC, embora com alguma especialidades. Desde logo, o reduzido rol de entidades que podem figurar como depositantes – cfr. artigo 426º da Reforma Aduaneira; depois, a necessidade de autorização das entidades aduaneiras para a criação e gestão do entreposto; por fim, uma rede de obrigações a que o depositário se encontra sujeito, que se afasta do regime geral do depósito civil, e de que constitui principal exemplo a proibição da entrega da mercadoria depositada sem que a alfândega haja autorizado a sua saída.
Excluindo essas particularidades, é, de facto, a disciplina do depósito civil que se aplica às relações entre o depositante e o entreposto aduaneiro, pois, como estabelece a parte final do artigo 3º do DL 291/89, “o depositário goza perante o depositante de todos os direitos e está sujeito a todas as obrigações decorrentes da lei para o contrato de depósito”.
O depositário tem a obrigação de guardar a coisa depositada e de a restituir ao depositante, devendo ainda avisar imediatamente este quando saiba que algum perigo ameaça a coisa ou que terceiro se arroga direitos em relação a ela, desde que o facto seja desconhecido do depositante – artigo 1187º, alíneas a) a c) do CC.
Preceituando o artigo 1185º que o depósito é o contrato pelo qual uma das partes entrega à outra uma coisa, fica desse modo afirmada a natureza real desse contrato. Não havendo entrega, não há depósito[2].
É a partir destas considerações jurídicas que procuraremos decidir a questão de fundo: saber se a Ré é responsável pelo pagamento dos serviços de armazenamento dos acessórios de marfim, pedras ornamentais, calçado contrafeito, 10 fardos e toalhas, referidos nos pontos 7., 19., 30., 46. e 54.
Em relação ao armazenamento dos acessórios de marfim, a que se referem as facturas nºs 504, 512, 513, 581 e 815, é preciso atender aos factos dos pontos 7. a 18., donde resulta que:
- O contentor com essa mercadoria, que entrou nos armazéns da Autora em 05.05.2010, acondicionada num volume com 0,01 m3 e 1.200 kg, era procedente de … e tinha sido enviado pela E…, agente da Ré.
- Esse volume não constava dos manifestos de carga, nem do mapa de descarga enviado pela Ré à Autora, sendo que a Ré desconhecia que o referido volume viesse no contentor.
- Foi a Autora que descobriu este volume não declarado e que fez o título de armazenagem em nome da Ré, embora esta nunca o tivesse solicitado
- Em 09.08.2010, depois de consultar o seu agente, que igualmente declarou não saber da existência desse volume dentro do contentor, a Ré deu instruções de abandono de tal mercadoria e a Autora confirmou tal situação em 09.08.2010.
- A partir desta data, a Autora não mais informou a Ré do destino que deu a tal mercadoria, nem qual a sua situação aduaneira, tendo a carga deixado de constar da lista de mercadorias armazenadas em nome Ré.
- Quando, em 02.03.2012, voltou a consta dessa lista, a Autora dizia que não era para considerar.
A ordem de depósito da mercadoria num entreposto aduaneiro configura-se de acordo com o manifesto de carga, que é o documento onde são descritos todos os itens de carga expedidos num determinado vôo, embarcação ou veículo, contendo ainda, além de outras menções, a indicação do respectivo peso e o nome e endereço do destinatário.
Sendo utilizado para acompanhar a carga durante o transporte, este documento garante todos os direitos do remetente e do destinatário, funcionando como comprovativo da entrega das mercadorias no momento em que se procede à operação de desconsolidação[3].
Portanto, é de acordo com o conteúdo do manifesto de carga que se processa a entrega de mercadorias ao depositário.
Se além dos bens manifestados outros seguirem no contentor, o entreposto aduaneiro, em função da sua particular actividade, não pode recusar o seu armazenamento até que se decida o destino desses outros itens.
Parece-nos, pois, evidente que não terá a Ré, nesse caso, de suportar quaisquer custos com o armazenamento dos bens não manifestados, cuja inclusão na carga de origem foge completamente ao seu domínio.
Aliás, como provado em 11., a Autora, em 09.08.2010, confirmou à Ré que esse volume com acessórios em marfim tinha entrado em situação de ‘abandono’, não dando mais informações sobre o seu destino e retirando-a do mapa de existências – cfr. 12. e 13.
Daí que não lhe possa ser exigido o pagamentos dos valores facturados em 22.03.2012, em 02.04.2012 e em 02.05.2012 – cfr. pontos 15. a 17. dos factos provados.

O mesmo terá de acontecer relativamente à carga de pedras ornamentais referida em 19. a 25., que também não constava do manifesto de carga, e cujos serviços de armazenamento foram facturados à Ré nos termos que melhor constam dos pontos 26. a 28. dos factos provados.

A situação narrada nos pontos 30. a 40. é algo diferente.
Neste caso, o calçado importado, que entrou nos armazéns da Autora em 17.07.2009, vinha acondicionado num contentor procedente de … enviado pela F…, agente da Ré, e tinham como destinatária a G….
Como esse contentor, com mercadorias para diversos destinatários, vinha consignado à Ré, como agente transitária, a Autora elaborou o título do depósito em nome desta.
A Ré, de imediato, endossou tal título à importadora, G… e disto deu conhecimento à Autora, instruindo-a para cobrar directamente da importadora as despesas com a importação, o que ela aceitou – cfr. ponto 33.
Em 29 de Novembro de 2011, mais de dois anos depois, a Ré veio a saber que a Alfândega tinha feito uma verificação da carga tendo libertado 144 volumes e apreendido 72 com calçado alegadamente contrafeito.
Por força desta intervenção, ocorrida em 03.08.2009, os 72 volumes ficaram apreendidos e foram entregues a H…, na altura funcionário da Autora, que deles ficou fiel depositário e que por eles ficou responsável.
E foi a importadora que desalfandegou e pagou à Autora a armazenagem e levantou os restantes 144 volumes, sem qualquer intervenção ou, sequer, conhecimento da Ré.
Nessa mesma data de 29.11.2011 a Autora entregou à Ré, cópia dos títulos de depósito de toda a mercadoria em nome da importadora G…, Lda.
Porém, em 02.12.2011, a Autora remeteu o mapa de existências no final do mês de Novembro de 2011, aparecendo referenciados os 72 volumes.
A Ré questionou este facto e recebeu como resposta que a Autora a ia retirar do mapa, na medida em que a mercadoria se encontrava “entregue” à Alfândega.
E assim aconteceu, até ao mapa recebido em 02.03.2012, quando já haviam cessado as relações comerciais entre as partes.
A atitude da Autora, ao facturar os serviços de armazenamento de um material em relação ao qual já havia um procedimento de entrega à Alfândega por suspeitas de contrafacção, demonstra um evidente desvio ao acordo que havia firmado com a Ré, não só no que se refere à aceitação de que a facturação dos bens armazenados deveria ser feita à G… (cfr. ponto 33.), mas também no que concerne à assunção do compromisso de retirar do mapa de existências os 72 volumes contendo esse calçado (cfr. ponto 40.).
Por conseguinte, não podia ser exigido da Ré o pagamento da facturação relativa ao depósito dessa mercadoria, nos termos que constam dos pontos 42. a 44. dos factos provados.

O descrito nos pontos 46. a 53. revela um outro desvio ao previamente acordado com a Ré.
Tendo aceite efectuar um substancial desconto no processo de armazenagem dos 10 fardos referidos em 46., a Autora, depois de receber da Ré o valor correspondente ao depósito da mercadoria já deduzido do predito desconto (cfr. 51.), acabou por facturar a totalidade dos serviços.

Por fim, a situação descrita nos pontos 54. a 61. é diversa das outras que até aqui se trataram.
A mercadoria foi efectivamente armazenada no depósito da Autora, mas como o contentor vinha consignado à Ré, como agente transitário, a Autora elaborou o título de depósito em nome desta. A Ré, de imediato, endossou tal título à importadora, D….
Por desencontro entre a exportadora e a importadora, ao qual a Autora e a Ré são absolutamente alheias, a importadora não levantou a mercadoria, o que levou a que esta tenha sido considerada mercadoria abandonada. Nesta conformidade, a Autora enviou-a para leilão, conforme comunicação de 29.06.2011.
Tratava-se de mercadoria que carecia de desalfandegamento para entrar no território português, o que não aconteceu.
Por isso, essa mercadoria não constava da lista de mercadorias armazenadas em nome da Ré, por ter sido abandonada pela importadora (cfr. 61.).
Conforme o disposto no n.º 2 do artigo 638º do Regulamento das Alfândegas, são vendidas pelas autoridades aduaneiras as mercadorias sujeitas à acção fiscal quando tenham sido abandonadas a favor da Fazenda Nacional.
Decorre do § 2º do n.º 5 do artigo 638º do Regulamento das Alfândegas, que se consideram abandonadas a favor do Estado as mercadorias que estiverem mais de 6 meses em armazém de leilões sem que o seu dono solicite o despacho.
Segundo o n.º 4 do artigo 182º do Código Aduaneiro Comunitário, a inutilização ou o abandono não devem implicar qualquer despesa para o erário público, o que significa que, em princípio, as despesas do armazenamento de bens caídos em abandono não constituam encargo do Estado. No entanto, como se pode ver da informação prestada pela DGAIEC a propósito desta situação concreta (cfr. fls. 307), podem abrir-se excepções a essa regra. Nessa informação refere-se o seguinte: “(…) a DGAIEC disponibiliza-se a minorar os encargos suportados pelos entrepostos. Por norma, após a venda da mercadoria, do valor obtido retiramos os valores correspondentes aos direitos aduaneiros e IVA, e se após o pagamento destes montantes restar verba, então procedemos ao pagamento da armazenagem, que poderá ser regularizado na íntegra ou parcialmente dependendo do valor que restou. Esse pagamento é efectuado sempre e directamente ao entreposto, e não ao transitário”.
Portanto, é a própria autoridade tributária e aduaneira que admite o pagamento, parcial ou integral, do armazenamento ao entreposto aduaneiro – e só a este – sempre que o produto da venda das mercadorias abandonadas for suficiente para esse efeito.
Não podia era o entreposto aduaneiro reclamar do agente transitário o pagamento desses serviços em relação a mercadoria que foi abandonada pelo seu dono.

Todas as circunstâncias extintivas ou impeditivas do direito da Autora foram provadas pela Ré, a quem cabia o respectivo ónus (artigo 342º, n.º 2, do CC).
Com essa prova conseguiu demonstrar não dever à Autora os valores a que se referem as facturas descritas nos pontos 7., 19., 30., 46. e 54., quedando apenas por pagar o valor residual de 91,80 €, reconhecido na sentença.

Não podemos finalizar sem referir uma circunstância que salta à vista de todos.
Os valores reclamados pela Autora reportam-se a mercadorias que entraram no seu armazém nos anos de 2009 e 2010 – cfr. ponto 6.
A sua facturação só ocorreu, porém, em 22.03.2012 e nos dois meses subsequentes, ou seja, depois de estar rompida a relação contratual entre a Autora e a Ré – cfr. ponto 66. da matéria de facto provada, agora aditado.
Isto poderá dizer muito ou poderá não significar nada.
O que nos parece insofismável é que a prova produzida pela Ré, na sua defesa por excepção, logrou o efeito pretendido.
E, nessa medida, impõe-se a confirmação da sentença recorrida.
*
III. DECISÃO

De acordo com o exposto, julga-se improcedente a apelação e confirma-se a sentença recorrida.
*
Custas pela apelante.
*
PORTO, 4 de Fevereiro de 2014
Henrique Araújo
Fernando Samões
Vieira e Cunha
______________
[1] As regras de processo civil aplicáveis são as do CPC antes da entrada em vigor do NCPC, aprovado pela Lei 41/2013, de 26 de Junho.
[2] Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil Anotado”, Volume II, edição de 1968, página 514.
[3] O processo de desconsolidação, específico da importação, traduz-se na retirada de um único ou vários lotes de carga de um determinado contentor.