Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
874/10.7TYVNG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MIGUEL BALDAIA DE MORAIS
Descritores: SOCIEDADE ANÓNIMA
DELIBERAÇÕES SOCIAIS
INEXISTÊNCIA JURÍDICA
NULIDADE
LEGITIMIDADE ACTIVA
DEPÓSITO DE ACÇÕES
Nº do Documento: RP20180124874/10.7TYVNG.P1
Data do Acordão: 01/24/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º667, FLS.445-459)
Área Temática: .
Sumário: I - O Código das Sociedades Comerciais não reconhece a inexistência jurídica enquanto categoria autónoma e distinta da nulidade ou da ineficácia stricto sensu das deliberações de sociedades comerciais, não constituindo, assim, vício passível de consubstanciar fundamento típico da impugnação das mesmas.
II - Assumindo as deliberações sociais natureza de negócio jurídico, tem legitimidade para arguir vício de nulidade de que a mesma padeça “qualquer interessado” nos termos definidos no artigo 286º do Código Civil.
III - O interesse que atribui a uma pessoa legitimidade para invocar esse vício genético é um interesse de direito substantivo, que pressupõe a oponibilidade do negócio jurídico ao seu titular, porque o negócio nulo prejudica a consistência jurídica, ou a consistência prática ou económica, de um direito seu.
IV - O sujeito legitimado deve, assim, ter um interesse direto na nulidade e não apenas um interesse reflexo, vago e indireto.
V - Por isso, o depositário de ações penhoradas carece de legitimidade substantiva para a invocação de vício de nulidade de que alegadamente padeça uma deliberação de sociedade comercial, dado que, sendo mero possuidor em nome alheio desses valores mobiliários, não é atingido diretamente na sua esfera jurídica por esse ato deliberativo.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 874/10.7TYVNG.P1
Origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Vila Nova de Gaia – Juízo do Comércio, Juiz 2
Relator: Miguel Baldaia Morais
1º Adjunto Des. Jorge Miguel Seabra
2ª Adjunta Desª. Maria de Fátima Andrade
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Sumário
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Acordam no Tribunal da Relação do Porto:
I- RELATÓRIO
B… intentou a presente ação declarativa contra C…, S.A., D…, E… e F…, pedindo que sejam declaradas inexistentes as deliberações sociais tomadas na assembleia geral da 1ª ré, realizada no dia 6 de Outubro de 2010, e que tiveram por conteúdo a aprovação do relatório de gestão e contas do exercício de 2009, a aprovação da proposta de aplicação de resultados do exercício de 2009 e a aprovação de um voto de confiança aos órgãos de administração e fiscalização da sociedade.
Assim se não entendendo, pede que sejam declaradas nulas e de nenhum efeito, as mesmas deliberações, porque contrárias à lei e ofensivas dos bons costumes.
Também a título subsidiário e para o caso de improcederem os dois pedidos antes formulados, pede que seja declarada a anulação de tais deliberações dado o facto de ter sido impedido ilegalmente de participar e votar na dita assembleia geral de 06.10.2010.
Pede, ainda, que, em qualquer das alternativas acima indicadas, seja declarada falsa a ata relativa à aludida assembleia geral, condenando-se igualmente os réus D…, E… e F…, como subscritores da mesma ata, a reconhecerem tal falsidade, devendo ainda os mesmos réus ser condenados a pagar solidariamente à autora, e ainda em solidariedade com a própria sociedade ré, a título de indemnização, uma quantia não inferior a 50.000,00 euros.
Por fim, pede que seja ordenado o cancelamento do registo, na Conservatória do Registo Comercial competente, relativo à prestação de contas referentes ao exercício de 2009.
Para tanto alega que no âmbito da ação executiva que “G…, S.A.” moveu ao ora réu E…, com data de 15.01.2009, foi efetivada a penhora de 495.270 ações representativas do capital da ré “C…, S.A.” correspondentes a 99,06% do respetivo capital social, sendo que esta sociedade foi pessoalmente notificada da realização de tal penhora nessa mesma data, com expressa menção de que estava impedida, após tal notificação, de deliberar o aumento ou redução do capital social, bem como a transformação, cisão, fusão ou dissolução da sociedade, assim como o foi o réu E…, sendo que nessa ação executiva o autor foi nomeado fiel depositário de tais ações.
Acrescenta que foi convocada uma assembleia geral da ré “C…, S.A.” para o passado dia 06.10.2010, a qual tinha a seguinte ordem de trabalhos: 1 – Deliberar sobre o relatório de Gestão e Contas do Exercício de 2009; 2 – Deliberar sobre a proposta de aplicação de Resultados do Exercício de 2009; 3 – Proceder à apreciação da administração e fiscalização da Sociedade; 4 – Assuntos diversos de interesse para a Sociedade.
Adianta que, na dita condição de fiel depositário das 495.270 ações pertencentes ao réu E…, compareceu no dia e hora designados na convocatória para efeitos de participar na assembleia geral, tendo, contudo, sido impedido de entrar nas instalações da sociedade ré e de participar nessa assembleia, a qual se realizou nela tendo sido tomadas deliberações que aprovaram o relatório de gestão e contas relativas ao exercício de 2009, a proposta de aplicação de resultados e um voto de confiança nos órgãos de administração e fiscalização da sociedade.
Refere, por último, que tal assembleia geral não estava em condições de se reunir dado que não foi validamente verificada a condição de acionista do réu E…, não tendo este legitimidade para nela intervir e muito menos votar em virtude de as ações que lhe pertenciam estarem penhoradas, enfermando, assim, as deliberações nela tomadas de vício de inexistência e/ou nulidade.
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Os réus D…, E…, F… deduziram contestação, suscitando a exceção de ilegitimidade passiva da ré F…; contestaram ainda por impugnação.
Pedem, por fim, a condenação do autor como litigante de má-fé.
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A ré “C…, S.A.” deduziu contestação, defendendo-se por exceção, suscitando a ilegitimidade ativa do autor, advogando ainda que este, ao propor a presente ação, age em abuso de direito; contestou também por impugnação.
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O autor apresentou réplica, pugnando pela improcedência das suscitadas exceções.
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Por decisão de 16/11/2011 foi homologada a desistência do pedido apresentada pelo autor contra a ré F… e, consequentemente, foi esta ré absolvida do pedido.
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Realizou-se audiência prévia, vindo a ser proferido despacho saneador, no qual se decidiu julgar improcedente a exceção de ilegitimidade ativa do autor, relegando-se a apreciação da exceção de abuso de direito para a decisão final.
Fixou-se o objeto do presente litígio e enunciaram-se os temas de prova.
Realizou-se audiência de julgamento com observância das formalidades legais, vindo a ser proferida sentença na qual se decidiu julgar a ação improcedente, em consequência do que foram os réus absolvidos do pedido.
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Não se conformando com o assim decidido, veio o autor interpor o presente recurso, que foi admitido como apelação, a subir nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
Com o requerimento de interposição do recurso apresentou alegações, formulando, a final, as seguintes
CONCLUSÕES:
1.
Os procedimentos para a comprovação da qualidade e condição de acionista de uma sociedade anónima são os previstos na lei e no contrato social.
2.
Estando o Presidente da Mesa da Assembleia Geral da sociedade impedido de adoptar outros procedimentos distintos destes, ou, o que é ainda mais grave, de não adoptar procedimento algum, confiando na palavra de quem se arroga tal direito.
3.
As acções ao portador, quando tituladas como sucede no caso da sociedade ré, são hoje transmissíveis apenas por simples entrega material do título ao adquirente ou ao depositário por ele indicado.
4.
De tal transmissão não há registo nos livros da sociedade, e, mais do que isso, nem há sequer possibilidade de o haver, dado o regime da sua transmissão.
5.
No caso da sociedade ré, por força da lei (art. 104º nº 1 do CVM) e por força do contrato de sociedade, só podem intervir e participar na assembleia geral, no que toca às acções tituladas ao portador, os acionistas que até oito dias antes da realização da assembleia, as tenham depositado nos cofres da sociedade ou de instituição de crédito.
6.
Uma vez que a previsão do art. 19º nº 1 al b) do mesmo contrato social, redigida antes do Dec-Lei nº 486/99, de 13.11, e que fazia referência ao registo nos livros da sociedade como requisito habilitante à participação nas assembleias gerais, pressupunha a existência de acções ao portador registadas, categoria essa hoje inexistente no nosso ordenamento jurídico, está hoje ultrapassada e é prática e legalmente impossível, pelo que deve ter-se nessa parte como não escrita.
7.
Tal situação é a que resulta do disposto no art. 10º do Dec-lei nº 480/99, de 13.11, que aprovou o CVM, maxime dos seus nºs 4 e 5.
8.
De tudo o acima exposto, é manifesto que deverá ter-se como não escrito, por absoluta impossibilidade legal e impossibilidade prática, o que vem dado por provado nos nºs 78 e 79 da descrição factual constante da douta sentença recorrida.
9.
E o facto constante do nº 49 da mesma descrição factual deverá ser alterado, com expressa menção à impossibilidade de, hoje em dia, e após o Dec-Lei nº 480/99, de 13.11, poderem estar presentes em assembleias gerais accionistas portadores de acções ao portador registadas nos livros da sociedade.
10.
Não corresponde à verdade que o apelante tenha reconhecido e aceite que à data da realização da assembleia geral aqui em causa – 06.10.2010 – o dito E… fosse o efectivo titular das 495.270 acções representativas do capital social da sociedade C…, SA.
11.
O apelante tinha interesse em agir e por isso detinha legitimidade para impugnar as deliberações aqui em causa, com fundamento na sua inexistência e/ou nulidade.
12.
Já que, na qualidade de fiel depositário das referidas 495.270 acções, a ele cabia o dever, e não apenas o direito, de as administrar e zelar e salvaguardar o seu valor económico e financeiro.
13.
Sendo certo que tal valor está naturalmente dependente dos documentos de prestação de contas que a sociedade elabore e apresente à assembleia geral para aprovação, como está dependente da apreciação e aprovação da proposta de aplicação de resultados que o Conselho de Administração também apresente à mesma assembleia geral.
14.
E, justamente por isso, não é indiferente ao fiel depositário das acções o conteúdo das contas apresentadas, a discussão que sobre elas ocorra na assembleia geral convocada para a sua aprovação, e muito menos a eventual distribuição de dividendos ou outro destino a dar aos resultados do exercício de 2009 que estava em causa.
De resto,
15.
A sociedade ré foi notificada de despacho judicial proferido nos autos de execução onde ocorreu a penhora das acções em causa e a nomeação do apelante como seu fiel depositário, e segundo o qual a administração e representação de tais acções cabe à pessoa do fiel depositário.
16.
E ignorou de todo tal despacho, impedindo o fiel depositário de assistir e comparecer na assembleia geral de 06.10.2010.
17.
A douta sentença recorrida violou, por errada interpretação e aplicação, as disposições dos arts. 101º nº 1 e 104º do CVM, do art. 286 do CCivil, do art. 10º do Dec-lei nº 486/99, de 13.11, bem como do art. 19º nº 1 do contrato de sociedade da ré C…, SA.
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Os réus apresentaram contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso.
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Após os vistos legais, cumpre decidir.
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II- DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso – cfr. arts. 635º, nº 4, 637º, nº 2, 1ª parte e 639º, nºs 1 e 2, todos do Cód. Processo Civil.
Porque assim, atendendo às conclusões das alegações apresentadas pelo apelante, são as seguintes as questões solvendas:
Da ocorrência de vício de inexistência e/ou de nulidade nas deliberações tomadas na assembleia geral da ré “C…, S.A.” que teve lugar no dia 06 de Outubro de 2010;
Da legitimidade substantiva do autor para invocar os referidos vícios na presente ação.
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III- FUNDAMENTOS DE FACTO
O tribunal de 1ª instância considerou provados os seguintes factos:
1. Por escrito particular de 21.03.2002, a sociedade G…, SA (de ora em diante designada por G…) obrigou-se a adquirir ao Banco H…, SA, por conta e no interesse de I… de uma sociedade por si detida – J…, LDA -, 495.270 ações representativas do capital social da ré C…, e correspondentes a 99,06% da totalidade do seu capital social.
2. Tais ações encontravam-se na altura em poder do Banco H…, SA, que se arrogava, contra a vontade e entendimento do dito I… e da já referida J…, LDA., a sua titularidade e propriedade.
3. No entendimento do dito I… e da mesma sociedade J…, LDA tais ações encontravam-se em poder da referida entidade bancária a título de penhor constituído em garantia de um financiamento contraído pelo mesmo I…, a título meramente pessoal.
4. Não obstante a existência de tal diferendo entre os ditos J… e I…, por um lado, e aquela entidade bancária Banco H…, SA, por outro, era então vontade deste dito I…, com o consentimento da sociedade J…, LDA, não correr qualquer risco derivado de tal diferendo.
5. A aqui ré C…, SA era, como é, proprietária, entre outros, de um prédio rústico denominado globalmente de K…, sito em …, L…, M…, N…, concelho de Portimão, descrito na Conservatória do Registo Predial de Portimão sob os nºs 513 e 12.045, a fls. 58 verso do Livro B-2 e fls. 123 verso, do Livro B-29, respetivamente.
6. Em 22/3/2002 I… por si e na qualidade de legal representante da sociedade “J…, Lda.”, bem como na qualidade de administrador e gestor de negócios da “C…, SA” e a “G…, SA” outorgaram o “Contrato” cuja cópia se encontra junta a fls. 86/101 cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
7. Nesse “CONTRATO” ficou expressamente acordado entre a G…, por um lado, e o dito I… e a ora ré C…, bem como a J…, LDA, por outro lado, que, caso viesse a ser aprovado para a dita propriedade a construção de dois campos de golfe, o dito I… e a sua representada - e aqui ré – C…, SA se obrigavam desde logo a vender à dita G…, e esta se obrigava a comprar-lhe, toda a área indispensável à respectiva implantação, livre de todos os ónus ou encargos, pelo preço de €11.971.149,53.
8. E que, caso viesse a ser aprovada para o local apenas a construção de um campo de golfe, manter-se-ia a obrigação dos mesmos I… e a aqui ré C… de vender à dita G…, e a obrigação de esta lhes comprar, a área que viesse a ser definida como de implantação do dito campo de golfe, e com redução correspondente do preço respetivo para €5.985.574,76.
9. Ficou mais acordado que a mesma G… passaria a poder desenvolver, a partir de então, todas as iniciativas tendentes à preparação e elaboração de estudos, anteprojectos e projectos necessários à obtenção de todas as autorizações, aprovações e licenças necessárias à construção dos campos de golfe na dita K… e eventual urbanização da sua área sobrante.
10. O dito I… e a dita J…, LDA expressamente declararam no denominado “ CONTRATO” que reconheciam expressamente ficar desde logo devedores à G… da totalidade do montante por esta adiantado ao Banco H…, SA (13.850.000 euros).
11. E a título de garantia pela efetiva cobrança, por parte da G…, da quantia por ela paga ao Banco H…, por conta e no interesse do dito I… e da dita J…, ou de quantia inferior que viesse a ser devida por força das compensações acima referidas, seria então constituído em favor da G… penhor dessas mesmas 495.270 ações e respetivos títulos, correspondentes a 99,06% do capital social da ré C….
12. E esta G… passaria a deter em seu poder, a esse título de penhor, as ditas ações representativas do capital social da aqui ré C….
13. Sendo certo que o montante do capital de que o dito I… e a dita J… ficariam devedores ficava apenas dependente de ser viável e autorizado pelas entidades competentes a construção de dois ou um campo de golfe, ou de, pelo contrário, não ser pura e simplesmente autorizada a construção de qualquer campo de golfe.
14. Na primeira hipótese – de vir a ser autorizada nos terrenos em causa a construção de dois campos de golfe – o preço do terreno necessário para o efeito era de €11.971.149,53.
15. Na segunda hipótese – a de vir a ser apenas autorizada a construção de um campo de golfe – o preço atribuído ao terreno era de €5.985.574,76.
16. Foi também acordado nesse dito “CONTRATO” que a ré C…, proprietária de tais terrenos, prometia desde logo vender à dita G…, e esta se obrigava a comprar, em qualquer das hipóteses acima previstas, toda a área indispensável à implantação dos campos de golfe ou do campo de golfe (conforme a solução possível e aceite pelas entidades competentes).
17. Os preços correspondentes a essa venda – e conforme a hipótese que viesse a ser viabilizada pelas entidades competentes – seriam liquidados através de compensação parcial com o crédito que a G… tinha sobre o dito I… e a dita J….
18. Mais foi então acordado entre todas as contratantes que “as áreas que, no concreto, seriam objeto do ato de compra e venda seriam rigorosamente as que, de acordo com o projeto aprovado e as alterações impostas pelas entidades administrativas competentes, fossem necessárias à implantação dos campos de golfe que vierem a ser aprovados”.
19. E que o preço respetivo apenas variaria em função do número de campos de golfe que viessem a ser autorizados e aprovados para o local, independentemente das áreas necessárias para o efeito em qualquer das duas alternativas acima referidas.
20. Foi finalmente acordado que fosse subscrita por todos os administradores a eleger para a sociedade C… ata para efeitos da distribuição e atribuição de pelouros no seio de tal órgão, devendo ser “conferida e delegada aos administradores nomeados pela ora ré competência exclusiva para tratar de tudo o que respeitasse à dita K…, designadamente a sua urbanização e aproveitamento urbanístico.”
21. E que todas estas “ regras de funcionamento da sociedade C…, bem como todas as alterações ao respectivo contrato de sociedade, deveriam vigorar durante todo o período transitório previsto no dito “CONTRATO”, desde a data da eleição do seu novo Conselho de Administração, e até que fosse definitivamente decidido pela entidade administrativa competente o licenciamento da urbanização possível na K…, liquidadas as contas decorrentes da execução do presente contrato e levantado o penhor das ações acima constituído.”
22. A G… efetivamente liquidou ao Banco H…, SA, no dia 27.03.2002, por conta e no interesse do dito I… e da dita J…, LDA, a dita quantia de €13.850.000,00.
23. As ações assim adquiridas à entidade bancária referida ficaram em poder e à guarda da G…, dadas em penhor, como garantia constituída em favor desta da efetiva cobrança do montante que viesse a apurar-se ser o seu crédito, nos termos acordados entre todas as contratantes.
24. Os ditos I… e J…, LDA, bem como a ré C…, deram, por outro lado, e na altura, cumprimento a todas as obrigações por si assumidas, e relativas à composição do Conselho de Administração da referida ré C… e forma da sua vinculação, bem como à ratificação da gestão que o dito I… tinha desenvolvido por sua conta e no seu interesse.
25. E, para efeitos da realização das assembleias gerais da ré C… nos anos de 2003, 2004 e 2005, o réu I… expressamente solicitou por escrito que a G… emitisse documento comprovativo do depósito à sua guarda das ações acima referidas e identificação dos seus titulares.
26. O que a G… sempre fez, logo que solicitada nesse sentido.
27. O Conselho de Administração da ré C… passou a integrar as pessoas dos Dr. O… e Eng. P…, por indicação da dita G….
28. E foram ainda aprovadas em assembleia geral as alterações necessárias ao contrato de sociedade da C…, por forma a acolher as regras acordadas para efeitos da vinculação e competências do Conselho de Administração.
29. A ré C… foi representada no dito CONTRATO pelo dito I…, que interveio na qualidade de gestor de negócios.
30. Tendo-se ainda obrigado o dito I… a fazer ratificar esse seu ato de gestão de negócios pela ré C….
31. Ratificação essa que ocorreu também por deliberação da mesma assembleia geral da mesma C….
32. Tudo em conformidade com o que havia ficado acordado.
33. A dita C…, na mesma assembleia geral que teve lugar no dia 28 de Maio de 2002, deliberou aprovar, por unanimidade de todos os acionistas presentes, uma proposta do teor seguinte: “ Atendendo a que eu, I…, na qualidade de gestor de negócios da sociedade C…, SA, subscrevi um contrato com a G…, SA, onde foi prometida a venda, por parte da C…, SA, de uma área de terreno da denominada K…, sita no concelho de Portimão, e foram mais acordadas condições para que tal venda se viesse a efetuar, designadamente nas suas clausulas 4 nºs 1 alíneas a), b) e c) e 2, e ainda nas clausulas 5 e 10, nºs 1 e 2, proponho que a assembleia geral vote no sentido de aqui proceder à ratificação da gestão de negócios que eu realizei, ao subscrever tal contrato, designadamente as suas clausulas 4, nºs 1 alíneas a), b) e c), 2 e clausula 5 e 10, nºs 1 e 2, aprovando expressamente todas as suas clausulas e obrigações, e mandatando o Conselho de Administração acabado de ser eleito para subscrever todos os documentos indispensáveis ao referido negócio.”
34. No seio do Conselho de Administração da ré C… passariam a ser os administradores Dr. O… e Eng. P… apesar de tudo o que respeitasse ao
aproveitamento da denominada K… e seu aproveitamento urbanístico, tendo em conta a eventual construção de dois campos de golfe.
35. Na sequência de prolongada e vastíssima correspondência entre a G… e o dito I… e a ora ré C…, aquela sociedade remeteu a esta, com conhecimento ao dito I…, carta datada de 23.11.2006, e na qual expressamente referiu que “porque afirmaram não se sentirem obrigados a vender a área de terrenos necessária à aprovação e construção dos campos de golfe, é para nós evidente que se verifica recusa de cumprimento do contrato-promessa celebrado aquando da assinatura do contrato de 21.03.2002, o que equivale ao seu incumprimento definitivo “Nem sequer alegam V. Exªs – nem podiam alegar por absolutamente impossível – que a construção dos campos de golfe seria aprovada coma afetação de uma área menor à referida de 2.151.121,68 m2”.
“Face ao acima exposto, vimos comunicar-lhes que damos por resolvido o contrato-promessa em causa”.
36. E após o envio de tal carta, a G… instaurou contra o dito I… e a sociedade C… ora ré, bem como contra a dita J…, LDA, ação que correu seus termos por Tribunal Arbitral constituído no âmbito do Centro de Arbitragem Comercial, do Instituto de Arbitragem Comercial do Porto, e que aí tomou o nº 01/07/IAC/ACP/FP.
37. Tal ação foi concluída, após julgamento, com a condenação do dito I… e da dita J… a pagar solidariamente à dita G… a quantia de €11.971.149,53, acrescidos de juros sobre aquele capital, contados desde 21.03.2002 e até ao seu efectivo pagamento, às taxas previstas na Cláusula 11ª do contrato daquela data, “ou seja, a uma taxa correspondente à taxa que a G… estiver a suportar junto da Banca por efeito de financiamento contraído ou a contrair para o efeito, ou à taxa Euribor acrescida de mais 2%, caso não esteja já em curso qualquer financiamento e pelo período de tempo em que tal financiamento já não vigore”, com a correspondente condenação dos Réus I… e J…, solidariamente, ao seu pagamento.
38. Foi instaurado o procedimento executivo contra o dito I… e a dita J…, LDA, tendo em vista o pagamento coercivo da referida quantia em dívida.
39. Nesses autos de execução foi efetivada, com data de 15.01.2009, a penhora das 495.270 ações representativas do capital da dita sociedade C…, SA, correspondentes a 99,06% do respetivo capital social.
40. O dito I… foi notificado da realização dessa mesma diligência de penhora.
41. O dito I… era o proprietário das ações dadas de penhor, e agora efetivamente penhoradas à ordem do processo executivo atualmente pendente.
42. Nos termos do disposto na Cláusula NONA do contrato de 21.03.2002, “ as regras de funcionamento da SOCIEDADE, bem como as alterações ao seu contrato social acima estabelecidas, deverão vigorar durante todo o período transitório aqui previsto neste contrato, desde a data da eleição do seu novo Conselho de Administração, e até que seja definitivamente decidido pela entidade administrativa competente o licenciamento da urbanização possível na K…, liquidadas as contas decorrentes da execução do presente contrato e levantado o penhor das ações acima constituído.”
43. De entre tais regras estava a existência de dois administradores, num Conselho de Administração composto de cinco elementos, e a necessidade da intervenção de quatro administradores, no mínimo, para que a sociedade se vinculasse em atos ou contratos de que resultem a alienação ou oneração de imóveis da sociedade, ou de que possa advir a criação ou aumento do seu passivo, designadamente, por via da contração de financiamentos bancários, subscrição de letras ou livranças.
44. Ao contrário do sucedido nos anos de 2003, 2004 e 2005, o dito I… deixou de solicitar à G… que emitisse um documento comprovativo do depósito à sua guarda das ações dadas de penhor.
45. Foi convocada uma assembleia geral da ré C… para o passado dia 15 de Dezembro de 2008.
46. Da ordem de trabalhos nessa assembleia constavam expressamente os dois pontos seguintes:
- Deliberar sobre uma Proposta de destituição de dois Administradores Efectivos e um Administrador Suplente, membros do Conselho de Administração eleitos por deliberação de 31.03.2005, cuja identificação e justa causa consta da referida Proposta.
- Eleição de dois Administradores Efectivos e de um Administrador Suplente, para exercerem funções até final do quadriénio 2005/2008, que substituirão os membros do Conselho de Administração destituídos.
47. Nem o dito I… nem a ré C…, informaram então a G… ou qualquer dos administradores por ela nomeados da realização desta assembleia.
48. E o Presidente da Mesa da Assembleia Geral da ré C… não solicitou também qualquer informação à G…, nem aos administradores por ela nomeados, sobre a titularidade das ações representativas do capital social da sociedade.
49. Nos termos do artigo 19º nº 1 do contrato social da ré C…, “ a assembleia geral é constituída somente pelos acionistas com direito de voto possuidores de ações ou títulos de subscrição que os substituam, e que, até oito dias antes da realização da Assembleia Geral, as tenham:
a) Averbado em seu nome nos registos da Sociedade, sendo nominativas; ou
b) Registado em seu nome nos livros da Sociedade ou depositado nos cofres da Sociedade ou de Instituição de Crédito, sendo ao portador.”
50. E o nº 2 desse mesmo artigo mais acrescenta que “ o depósito na Instituição de Crédito tem de ser comprovado por carta, emitida por essa Instituição, que dê entrada na Sociedade pelo menos oito dias antes da data da realização da Assembleia.”
51. A assembleia geral, de acordo com o disposto no artigo 22º do citado contrato social, só “poderá funcionar em primeira reunião desde que se achem presentes acionistas que representem mais de 50% do capital social ”.
52. A G… instaurou contra a ré C… e o dito I… ação judicial tendente a obter a declaração de inexistência ou de nulidade das deliberações tomadas na dita assembleia geral realizada em 15.12.2008, ação essa que correu termos no 3º Juízo do Tribunal de Comércio de Vila Nova de Gaia, com o nº 278/09.4TYVNG, a qual foi julgada totalmente improcedente.
53. Foram convocadas para o passado dia 06.04.2009 duas outras assembleias gerais da ré C…, sendo uma denominada de “anual”, e que tinha por ordem de trabalhos:
- deliberar sobre o relatório de gestão e contas do exercício de 2008.
- deliberar sobre a proposta de aplicação de resultados.
- proceder à apreciação da Administração e Fiscalização da sociedade.
54. E a segunda, denominada de “extraordinária”, tinha por ordem de trabalhos a seguinte:
- deliberar sobre a proposta de alteração dos artigos 9º e 11º dos estatutos da sociedade;
- eleição de órgãos sociais para o quadriénio 2009/2012.
55. Na data para que tais assembleias gerais foram convocadas as 495.270 ações pertencentes ao dito I…, para além de dadas de penhor à dita G…, estavam já penhoradas à ordem do processo executivo acima referenciado, e que corre seus termos pelo 3º Juízo dos Juízos de Execução do Porto, 3ª Secção, com o nº 8041/08.3YYPRT.
56. E o seu fiel depositário, nomeado e identificado no auto de penhora constante de tais autos de procedimento executivo, e de cujo teor a ré C… foi notificada, é o ora autor – Q….
57. O dito I… era ainda titular das 495.270 ações ao portador representativas de 99,05% do capital social da ré C….
58. Na primeira de tais assembleias gerais foi deliberado:
- aprovar o relatório de gestão e contas do exercício de 2008;
- aprovar a proposta de aplicação de resultados do exercício de 2008, no sentido de os resultados negativos de tal exercício, no montante de €728.467,69 serem transferidos para a conta de Resultados Transitados;
- aprovar um voto de confiança aos órgãos de administração e fiscalização da sociedade.
59. Na segunda de tais assembleias gerais, por seu lado, foi deliberado:
- aprovar uma proposta de alteração dos artigos 9º e 11º dos Estatutos da Sociedade;
- eleger os órgãos sociais para o dito quadriénio 2009/2012;
60. De acordo com a deliberação relativa à alteração dos artigos 9º e 11º do contrato de sociedade, passaram aqueles artigos a ter a redação seguinte:
Artigo 9º
“A sociedade é gerida por um Conselho de Administração composto por três ou cinco membros efectivos e, respectivamente, um ou dois suplentes, eleitos em Assembleia Geral, os quais designarão o Presidente.”
“ Todos os documentos que obriguem a sociedade, incluindo cheques, letras, livranças e aceites bancários, terão validade quando assinados por:
a) dois administradores;
b) um administrador e um mandatário da sociedade;
c) um administrador se, para intervir no acto ou actos, tiver sido designado em acta pelo Conselho de Administração;
d) dois mandatários.”
61. E quanto à eleição dos órgãos sociais para o quadriénio 2009/2012, foi aprovada proposta no sentido de serem eleitos os seguintes:
ASSEMBLEIA GERAL
Presidente: Dr. D…
Vice – Presidente: Dr. E…
Secretário : Dra. F…
FISCAL ÚNICO EFECTIVO
- D…, E… & Associado, SROC, representada por Dr. D… – ROC nº 507.
FISCAL ÚNICO SUPLENTE
- Dr. S… – ROC nº 229
CONSELHO DE ADMINISTRAÇÃO
Presidente: I…
Vogal: Arq. T…
Vogal: Arq. U…
Vogal Suplente: Dr. V…
COMISSÃO DE VENCIMENTOS
Presidente: I…
Vogal: Arq. T…
Vogal: Arq. U…
62 As duas assembleias gerais acima referenciadas apenas tiveram a presença e participação do acionista I… descrito e identificado como titular das 495.270 ações que se acham penhoradas.
63. E todas estas deliberações tomadas nessas duas assembleias gerais apenas foram aprovadas com o voto desse dito acionista.
64. A sociedade G… intentou ação judicial visando a declaração de inexistência e/ou, subsidiariamente, de nulidade de todas as deliberações acima referidas como tomadas nas duas assembleias gerais pretensamente realizadas em 06.04.2009.
65. Tal ação deu entrada no 2º Juízo deste tribunal, e nele corre, estando ainda pendente, com o nº 155/10.6TYVNG.
66. Foi entretanto convocada nova assembleia geral da sociedade ré para o passado dia 06.10.2010, a realizar na sede social respectiva, sita à rua …, nº … – …, Sala …, na cidade do Porto.
67. Tal assembleia geral tinha a seguinte ordem de trabalhos:
1 – Deliberar sobre o relatório de Gestão e Contas do Exercício de 2009;
2 – Deliberar sobre a proposta de aplicação de Resultados do Exercício de 2009;
3 – Proceder à apreciação da administração e fiscalização da Sociedade;
4 – Assuntos diversos de interesse para a Sociedade.
68. Na data para que tal assembleia geral foi convocada as 495.270 ações pertencentes ao dito I…, para além de dadas de penhor à dita G…, continuavam, como continuam, penhoradas à ordem do processo executivo acima referenciado, e que corre seus termos pelo 3º Juízo dos Juízos de Execução do Porto, 3ª Secção, com o nº 8041/08.3YYPRT.
69. E o seu fiel depositário, nomeado e identificado no auto de penhora constante de tais autos de procedimento executivo, e de cujo teor a ré C… foi notificada, é o aqui autor.
70. Por solicitação do autor tal instituição bancária remeteu ao Sr. Presidente da Mesa da Assembleia Geral da sociedade ora ré carta datada de 23.09.2010, na qual expressamente que “para efeitos de participação em assembleia geral de accionistas da sociedade C…, SA, a realizar no próximo dia 06 de Outubro de 2010, se encontram depositadas na conta títulos - nº …. ………… - 495.270 acções ao portador, representativas de 99,06% do capital da C…”.
71. Mais se acrescentando nessa carta que tais ações haviam sido penhoradas ao abrigo do processo de execução nº 8041/08.3YYPRT, 1º Juízo, 3ª Secção dos Juízos de Execução do Porto, e no qual é executado o Sr. I….
72. E que nesse processo havia sido nomeado o ora autor fiel depositário das mesmas ações.
73. Esclarecia ainda tal missiva que a conta-títulos acima identificada era titulada pelo ora autor, como fiel depositário, e ainda pelo agente solicitador de execução Sr. W….
74. À data da realização de tal assembleia geral, as 495.270 ações pertencentes ao acionista I… estavam já penhoradas nos autos de procedimento executivo acima identificado.
75. E tinha sido nomeado no auto de penhora como seu fiel depositário o Sr. Q…, o ora autor.
76. As ações representativas do capital social da ré C… são ações tituladas e ao portador.
77. A assembleia geral apenas pode constituir-se, em primeira convocação, desde que presentes ou representados acionistas que representem, no mínimo, 50% do respetivo capital social, conforme o disposto no art. 22º do contrato social da sociedade ré.
78. Desde a constituição da sociedade ré que existe um registo atualizado da titularidade das ações da sociedade o qual está permanentemente patente na sede social.
79. Os membros da mesa constataram através da análise desse registo que as ações em causa eram da titularidade do acionista I….
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IV – FUNDAMENTOS DE DIREITO
IV.1 – Da (i)legitimidade substantiva do autor para requerer a declaração da invalidade das deliberações sociais
Das questões que consubstanciam o objeto do presente recurso cabe a este tribunal, por uma razão de ordem lógica, conhecer em primeiro lugar a referente à legitimidade substantiva do ora apelante para requerer a declaração da invalidade das ajuizadas deliberações sociais, posto que a apreciação das demais questões pressupõe, como prius, a afirmação dessa legitimidade.
Como se deu nota, o autor intentou a presente ação declaratória de impugnação das deliberações sociais tomadas na assembleia geral da ré “C…, S.A.”, realizada no dia 6 de outubro de 2010, que tiveram por conteúdo a aprovação do relatório de gestão e contas do exercício de 2009, a aprovação da proposta de aplicação de resultados desse exercício e bem assim a aprovação de um voto de confiança aos órgãos de administração e de fiscalização desse ente societário.
Impetrou, a título principal, que sejam declaradas inexistentes essas deliberações e, subsidiariamente, que as mesmas sejam tidas por nulas porque contrárias à lei e ofensivas dos bons costumes ou então, e ainda subsidiariamente, que seja decretada a sua anulação dado o facto de ter sido ilegalmente impedido de participar e votar na dita assembleia geral.
Para legitimar a formulação dos aludidos pedidos alegou ter sido nomeado depositário de 495.270 ações (representativas de 99,06% do capital da ré “C…, S.A.”) pertencentes ao réu E…[1] e que foram penhoradas na ação executiva a este movida por “G…, S.A.”, que, sob o nº 8041/08.3YYPRT, corre seus termos no Juízo de Execução do Porto.
Perante a invocada qualidade do demandante, o tribunal a quo considerou que o mesmo (por não ser acionista) careceria de legitimidade substantiva para arguir quer a anulabilidade, quer os demais vícios de inexistência e de nulidade que imputa às referidas deliberações, afirmando-se no ato decisório sob censura ser “manifesto, ante o que o mesmo alegou, que veio a juízo defender um interesse que o credor G… tem sobre o acionista I…, interesse esse que não é um interesse social”, aí se acrescentando que “o autor não tem qualquer interesse em agir ao intentar a presente ação”.
No presente recurso o apelante rebela-se contra o referido segmento decisório argumentando, fundamentalmente, que em virtude de ser depositário das aludidas ações tem legitimidade e interesse em agir para impugnar as ajuizadas deliberações através da invocação dos vícios de inexistência e/ou nulidade (deixando, pois, cair a invocação do vício de anulabilidade[2]), posto que lhe “cabe o dever, e não o direito, de administrar e zelar [as ditas ações penhoradas] e salvaguardar o seu valor económico e financeiro”.
Quid juris?
Desde logo, será de registar que, no domínio do direito civil, a figura da inexistência jurídica não é, entre nós, consensual, pois não falta quem lhe não reconheça autonomia em relação à nulidade, “sob pena de gravíssimas injustiças enquadradas por puros conceptualismos”[3].
Entre os que reconhecem e admitem esta categoria, uns integram-na na invalidade, compondo então com a nulidade e a anulabilidade uma tríade de invalidades[4], enquanto outros se recusam a ver na inexistência uma invalidade, porque “falta todo o termo de comparação” com determinado tipo legal, para se poder estabelecer a sua relação de coincidência ou divergência com ele[5].
Essa mesma discussão tem sido importada para o específico domínio dos vícios de que as deliberações sociais podem enfermar, discutindo-se se para além das três categorias tipicamente previstas nos arts. 55º, 56º e 58º do Código das Sociedades Comerciais[6] (concretamente a ineficácia stricto sensu, a nulidade e a anulabilidade) se lhes deve juntar a inexistência jurídica[7].
Facto é que o referido Corpo de Leis (que constitui o diploma fundamental em matéria de sociedades comerciais) é totalmente omisso quanto à suposta categoria da inexistência jurídica, limitando, como se referiu, os valores negativos das deliberações sociais à nulidade, à anulabilidade e à ineficácia, o que, primo conspectu, aponta, pois, no sentido da rejeição do reconhecimento da autonomia daquele vício, sendo certo que, como sublinha OLAVO CUNHA[8], “as deliberações ou são sociais (imputáveis à sociedade) e se sofrem uma vicissitude podem ser nulas (ou anuláveis) ou então nem sequer são deliberações sociais, e não vale a pena questionar a eventual inexistência jurídica”.
Como assim, inclinámo-nos para rejeitar o reconhecimento da inexistência das deliberações sociais enquanto vício passível de consubstanciar fundamento típico de impugnação das mesmas, sendo de registar, de qualquer modo, que mesmo os autores que admitem a autonomia dessa figura claramente reconhecem que esse vício somente poderá ocorrer em hipóteses de rara verificação.
Como quer que seja, independentemente de se reconhecer, ou não, a inexistência jurídica enquanto categoria autónoma e distinta da nulidade ou da ineficácia stricto sensu das deliberações de sociedades comerciais, a essencial questão que é trazida à apreciação deste tribunal de recurso é a saber se assistirá ao autor legitimidade substantiva para arguir os vícios que imputa às deliberações sociais tomadas na assembleia geral da ré “C…, S.A.”, que teve lugar no dia 6 de outubro de 2010, sendo que o Cód. das Sociedades Comerciais apenas prevê tipicamente as ações de declaração de nulidade e de anulação das deliberações dos sócios, embora alguns autores[9] venham preconizando que a frase que se contém no nº 1 do art. 60º deste diploma, “a ação de declaração de nulidade”, deve ser entendida como se, em seu lugar, estivesse escrito “a ação de declaração de inexistência, ineficácia ou nulidade”, pelo que a correspondente ação que se fundamente em vício de inexistência jurídica ou de ineficácia stricto sensu, constituindo uma ação de simples apreciação estará subordinada aos mesmos condicionalismos a que se encontra sujeita a ação de declaração de nulidade (tipicamente prevista).
Em consonância com a respetiva disciplina normativa terá legitimidade para arguir a nulidade de uma deliberação de sociedade comercial as entidades referidas no art. 57º, concretamente o sócio (nº 1), o órgão de fiscalização (nº 2) e, nas sociedades que não tenham órgão de fiscalização, “qualquer gerente”, como expressamente se dispõe no seu nº 4.
É certo que para além dessas entidades não está proscrita a possibilidade de outras poderem arguir o vício que inquinará o ato deliberativo, já que, quanto a esta matéria, o citado art. 57º reporta-se unicamente ao âmbito social, limitando-se a acrescentar uma especialidade em relação ao regime geral previsto no Código Civil.
Consequentemente, assumindo, como nos parece, as deliberações natureza de negócio jurídico (qualificação que, ainda assim, não se revela pacífica[10]), ser-lhes-á, por isso, aplicável - quando enfermem de vício de nulidade - a regra de direito comum plasmada no art. 286º do Cód. Civil, nos termos do qual esse vício genético “é invocável por qualquer interessado”.
Portanto, no caso vertente, não se integrando o autor em nenhuma das categorias de entidades previstas no art. 57º, tudo se resume em determinar se será interessado para arguição dos vícios que assaca às ajuizadas deliberações sociais.
Ora, malgrado não se registe uma posição unívoca a propósito da determinação do âmbito subjetivo do aludido conceito, afigura-se-nos claro que o direito de invocação da nulidade não pode conferido a todos, dado que não é (nem pode ser) qualquer pessoa a quem dê jeito, de alguma maneira, a declaração da nulidade, que preenche os requisitos para ser considerado interessado.
De facto - de acordo, aliás, com a própria inserção sistemática do art. 286º -, o interesse que atribui a uma pessoa legitimidade para invocar o vício é um interesse de direito substantivo, que pressupõe a oponibilidade do negócio jurídico ao seu titular, porque o negócio nulo prejudica a consistência jurídica, ou a consistência prática ou económica, de um direito seu[11]. O sujeito legitimado deve, assim, ter um interesse direto na nulidade e não apenas um interesse reflexo, vago e indireto.
Daí que, transpondo essa leitura para o domínio da impugnação das deliberações sociais, não falta quem advogue que, por via de regra, somente o sócio tem reconhecido interesse direto na procedência da ação de declaração de nulidade[12].
Como se referiu, in casu, o apelante filia o seu interesse no facto de ser depositário das 495.270 ações (representativas de 99,06% do capital da ré “C…, S.A.”) pertencentes ao réu E…, tendo sido investido nessa qualidade na sequência de penhora de tais valores mobiliários que foi decretada no âmbito da ação executiva que a este demandado foi movida por “G…, S.A.”.
Ora, nos termos da lei adjetiva (cfr. art. 843º do pretérito Código de Processo Civil, então em vigor), ao depositário incumbe apenas a administração e guarda dos bens penhorados, sendo que a penhora não produz qualquer diminuição de capacidade do proprietário/titular desses bens, apenas o privando da possibilidade de os alienar.
Significa isto, portanto, que a penhora tem caráter eminentemente patrimonial, pelo que o exercício dos direitos pessoais/sociais do sócio/acionista titular dos valores mobiliários que foram alvo dessa diligência não é por ela afetado. Dito de outro modo, o exercício dos direitos sociais (no qual se integra o de impugnação de deliberações dos sócios) é de natureza pessoal, não se transferindo para o depositário, dado que o respetivo direito continua a radicar na esfera jurídica do sócio/accionista[13], como emerge, designadamente, dos arts. 21º, nº 1, al. b), 373º, 376º e 379º, nº 1.
Deste modo, o autor/apelante, enquanto depositário das mencionadas ações (sendo, pois, mero possuidor precário ou possuidor em nome alheio), carece de legitimidade substantiva para a invocação de vício de nulidade de que alegadamente padeçam as ajuizadas deliberações sociais, tanto mais que não é atingido diretamente na sua esfera jurídica por esse ato deliberativo.
Tanto basta para julgar improcedente a pretensão recursória aduzida pelo apelante, mostrando-se, nessa medida, prejudicado o conhecimento das demais questões que consubstanciam objeto do presente recurso, não havendo, por conseguinte, que delas conhecer (art. 608º, nº 2 ex vi do art. 663º, nº 2 in fine do Cód. Processo Civil).
***
V- DECISÃO
Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação improcedente, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pelo apelante (art. 527º, nºs 1 e 2 do Cód. Processo Civil).

Porto, 24.01.2018
Miguel Baldaia de Morais
Jorge Seabra
Fátima Andrade
_____
[1] Registe-se, neste conspecto, que, malgrado o apelante afirme nas suas alegações recursivas “não corresponder à verdade que (…) tenha reconhecido e aceite que à data da realização da assembleia geral aqui em causa – 06.10.2010 – o dito I… fosse o efetivo titular das 495.270 ações representativas do capital social da sociedade C…, S.A.”, certo é que a afirmação da titularidade desses valores mobiliários na esfera jurídica do réu I… resulta, indelevelmente, da materialidade plasmada nos pontos nºs 39, 40, 41, 55, 57, 68, 71 e 74, sendo que o substrato factual que na sentença recorrida se considerou provado se estabilizou em resultado de nenhuma das partes (designadamente o ora recorrente) o ter impugnado, de forma processualmente válida, em sede recursória, mormente com observância dos ónus estabelecidos no art. 640º do Cód. Processo Civil.
[2] Para o qual, aliás, carecia de legitimidade em face da norma constante do nº 1 do art. 59º do Cód. das Sociedades Comerciais, que, para além do órgão de fiscalização da sociedade, apenas confere essa legitimidade impugnatória ao sócio/acionista, qualidade de que o demandante inequivocamente não comunga.
[3] Assim, MENEZES CORDEIRO, Tratado de Direito Civil, Parte Geral I, tomo 1, 2ª ed., pág. 653.
[4] Cfr., neste sentido, CASTRO MENDES, Teoria Geral do Direito Civil, vol. II, 1985, págs. 289 e seguinte.
[5] É a posição sustentada, inter alia, por GALVÃO TELLES, in Manual dos Contratos em geral, 4ª ed., pág. 356 e seguinte.
[6] Diploma a atender sempre que se citar disposição legal sem menção de origem.
[7] Em sentido afirmativo se pronunciam, v.g., PINTO FURTADO, Deliberações de sociedades comerciais, 2005, págs. 493 e seguintes e OLIVEIRA ASCENSÃO, Direito comercial, vol. IV, 2000, pág. 395 e seguinte; a tese negativa é preconizada, entre outros, por RAUL VENTURA, Sociedades por quotas (Comentário ao Código das Sociedades Comerciais), vol. II, 1989, pág. 246, MOITINHO DE ALMEIDA, Anulação e suspensão de deliberações sociais, pág. 25 e FILIPE CASSIANO DOS DANTOS e HUGO DUARTE FONSECA, Inexistência e nulidade de deliberações sociais, in Direito das Sociedades em Revista, ano 4, vol. VII, 2012, págs. 52-54, onde escrevem que “se um ato é uma deliberação inexistente tal significa que esse ato não é realmente uma deliberação: é uma não-deliberação”.
[8] In Impugnação de deliberações sociais, 2015, pág. 183.
[9] Assim, PINTO FURTADO, ob. citada, pág. 716.
[10] Cfr., sobre a questão, MENEZES CORDEIRO, Manual de Direito das Sociedades – Das sociedades em geral, vol. I, 2004, págs. 613-616, onde conclui que a deliberação é um verdadeiro e próprio negócio jurídico; em sentido inverso, PINTO FURTADO, Curso de Direito das Sociedades, 5ª ed., pág. 399, preconizando que a deliberação integra, antes, um ato colegial: não um negócio, uma vez que, como ato de vontade que efetivamente seria, ela não corresponderia a uma autorregulamentação de interesses.
[11] Neste sentido se pronuncia expressamente LEBRE DE FREITAS, O conceito de interessado no artigo 286º do Código Civil e sua legitimidade processual, in Estudos em Memória do Professor Doutor José Dias Marques, 2007, pág. 384. Em análogo sentido, em matéria de impugnação das deliberações sociais, militam OLAVO CUNHA, ob. citada, pág. 216, PINTO FURTADO, ob. citada, pág. 758 e TAVEIRA DA FONSECA, in Deliberações sociais: suspensão e anulação, 1994, pág. 56.
[12] Cfr., neste sentido, na jurisprudência, acórdão da Relação de Évora de 7.07.2005 (processo nº 1231/05-2), acessível em www.dgsi.pt; na doutrina adota uma conceção restritiva da legitimidade para a propor a nulidade de deliberações sociais, entre outros, ANTÓNIO LUZ PARDAL, A impugnação de deliberações sociais nas sociedades por quotas. Em particular a legitimidade ativa do cônjuge e do ex cônjuge do sócio, in Estudos de Direito Privado, 2014, pág. 197.
[13] Isso mesmo se sublinha no acórdão do STJ de 16.10.2008 (processo nº 08A2456), acessível em www.dgsi.pt, onde se decidiu que a pretensão de obtenção de declaração de invalidade da deliberação de uma sociedade comercial corresponde ao exercício de “um direito social ou corporativo participativo”; idêntico posicionamento tem sido sufragado na doutrina (v.g. por MENEZES CORDEIRO, ob. citada, págs. 509 e seguinte e BRITO CORREIA, in Direito Comercial, vol. II, págs. 305 e seguinte) que integra o direito de impugnar deliberações sociais inválidas nos denominados direitos gerais ou comuns dos sócios.