Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0510619
Nº Convencional: JTRP00039747
Relator: FRANCISCO MARCOLINO
Descritores: CONCORRÊNCIA DESLEAL
PROPRIEDADE INDUSTRIAL
Nº do Documento: RP200611150510619
Data do Acordão: 11/15/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC. PENAL.
Decisão: PROVIDO.
Indicações Eventuais: LIVRO 463 - FLS. 31.
Área Temática: .
Sumário: Com a publicação do DL 36/03, de 5 de Março, o crime de concorrência desleal do art. 260º do Código da Propriedade Industrial, aprovado pelo DL 16/95, de 24 de Janeiro, passou a ser considerado um ilícito de mera ordenação social, como decorre do art. 331º daquele diploma.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação do Porto

Autos de impugnação judicial n.º ……/04.9EAPRT, do …..º Juízo Criminal de Matosinhos

O Instituto Nacional de Propriedade Industrial condenou a arguida B…………., Lda., com sede na Rua ……, ….., ……, ……., Maia, na coima de 4.500 euros, pela prática de uma contra-ordenação p. e p. nos termos dos art.ºs 317º e 331º do CPI.
Considerou a autoridade administrativa que “à data da prática dos factos a que se reportam os autos, os mesmos integravam a previsão do crime p.p. pelo art.º 260º do anterior Código da Propriedade Industrial. Todavia, face à posterior alteração legislativa essa previsão legal foi tipificada como contra-ordenação no art.º 317º e 331º do novo diploma.
Ora, por ser este novo regime mais favorável ao arguido, nos termos do n.º 4 do art.º 2 do Código Penal é o que se deve aplicar”.

A arguida impugnou judicialmente a decisão com as seguintes conclusões:
Os factos que são objecto do processo podiam ser reconduzidos, à data da sua prática, ao ilícito criminal de concorrência desleal, tal como se achava previsto na al. f) do art. 260º do Código da Propriedade Industrial de 1995, aprovado pelo Dec. Lei n.º 16/95, de 24/01;
Esse diploma foi entretanto revogado pelo Dec. Lei n.º 36/2003, de 05/04, que entrou em vigor em 01/07/2003, e aprovou um novo CPI à face de cujos art.ºs 317º'e 331º seriam tais factos passíveis de constituir contra-ordenação;
Porque os ilícitos criminais e os de mera ordenação social configuram infracções com natureza essencialmente distinta, a revogação do art. 260º do CPI de 1995 e a entrada em vigor do CPI de 2003 não suscitou um caso de sucessão de leis penais, a que seja de aplicar a regra do n.º 4 do art. 2º do Código Penal, tal como na douta Decisão Recorrida se considerou;
Operou antes uma despenalização da conduta, com efeitos retroactivos nos termos previstos no n.º 2 da mesma disposição e no n.º 4 do art. 29º, da Constituição, devendo a questão da aplicabilidade da nova norma contra-ordenacional a factos anteriores ao ilícito de vigência desta ser resolvida de acordo com as regras que definem o seu âmbito de abrangência temporal;
A este respeito, rege o principio consagrado no art. 2º e no n.º 1 do art. 3º do RGCO, não derrogado por qualquer norma transitória, e segundo o qual a lei não se aplica a factos praticados anteriormente à sua entrada em vigor;
Ao considerar que, por factos anteriores ao início de vigência do CPI de 2003, a Arguida incorreu na prática de uma contra-ordenação p. e p. pelos art.ºs. 317º e 331º deste diploma, a douta Decisão Recorrida fez portanto indevida aplicação do disposto no n.º 4 do art.º 2º' do Código Penal e violou o estabelecido no art. 2º e n.º 1 do art. 3º do RGCO, devendo ser revogada com as legais consequências.

O tribunal a quo negou provimento ao recurso.
Considerou provada a seguinte factualidade:
A marca internacional n.º 514760, caracterizada pelo sinal C………, e protegida para assinalar, entre outros produtos, ferros de engomar, grelhadores eléctricos, torradeiras, ventiladores, aparelhos de climatização, na classe 11ª da classificação internacional de Nice, encontra-se registada na titularidade de C1………. SPA, com endereço na …….. ….. ….. …….., 59100, Itália;
A empresa italiana C1……. SPA nunca autorizou a sua distribuidora exclusiva em Portugal a vender produtos fornecidos pela empresa designada por D………., Ltd., sob a marca C………., bem como nunca autorizou esta empresa a produzir aquecedores de halogéneo com a mesma marca;
A sociedade comercial F…………, Lda encomendou 1500 aquecedores e peças de marca C…….. em 752 cartões à empresa chinesa D………, Ltd;
A B…………, Lda, seleccionou o modelo, as medidas, as cores, e a quantidade dos aparelhos posteriormente apreendidos, tendo, inclusivamente, enviado um fotolito com o desenho e todas as especificações técnicas dos aquecedores, incluindo a sua denominação social e endereço, a marca C…….. e, ainda, a designação Fabricado na EU, à empresa chinesa D………., Lda;
Os aquecedores importados, que vinham a ser transportados no contentor TEXU 728786/4, foram apreendidos pelos serviços da alfândega de Leixões;
A sociedade arguida instruiu a empresa chinesa D……….. no sentido de colocar as designações Fabricado na EU, nos aquecedores de halogéneo fabricados e importados na China, sabendo que se tratava de uma proveniência falsa, com o objectivo de obter vantagens patrimoniais;
A referida sociedade conhecia o carácter ilícito da sua conduta;
A sociedade B………., Lda não tem antecedentes contra-ordenacionais.

Fundamentou o Sr. Juiz a sus decisão:
“Fixada a matéria de facto provada, importa proceder ao seu enquadramento legal.
A questão que importa dilucidar no presente recurso é a de saber qual a consequência da convolação de um ilícito criminal em mero ilícito de contra-ordenação social, quando o arguido pratica a conduta proibida no momento em que ela é tipificada como crime e vai ser julgado no momento em que o legislador a pune como contra-ordenação.
A solução não é pacífica e tem merecido diferentes respostas, quer por parte da doutrina, quer da jurisprudência. De um lado, há quem sustente que a vigência do princípio da legalidade, quer no âmbito do sistema penal quer contra-ordenacional, impõe que o agente não seja punido pela sua conduta, do outro, há quem entenda que a continuidade do juízo de censura exige a solução oposta.
Na sua pureza, a primeira tese é lógica e irrepreensível. Por força da Constituição, ninguém pode ser sentenciado criminalmente senão em virtude de lei anterior que declare punível a acção ou omissão. E só é punido com uma contra-ordenação aquele que praticar um facto descrito e declarado passível de coima por lei anterior ao momento da sua prática (art. 2.º do Regime Geral das Contra-Ordenações). Assim, valendo o princípio nullum crimen sine lege tanto em matéria de direito penal como contra-ordenacional, o agente que praticou a conduta proibida no momento em que ela é tipificada como crime e vai ser julgado numa altura em que o legislador a pune como contra-ordenação não poderá ser punido quer pela prática do crime (porque entretanto se operou a descriminalização), quer pela prática da contra-ordenação (porque o facto não era descrito e declarado passível de coima por lei anterior ao momento da sua prática).
Porém, a tese em questão conduz a soluções materialmente injustas. Não se pode compreender que alguém fique impune quando praticou um facto que a ordem jurídica continua a reprovar, embora de outra forma. Assim como não se pode aceitar que alguém que pratique um acto de concorrência desleal em 1 de Julho de 2003 seja punido com uma coima e alguém que o pratique no dia anterior (quando o facto ainda constituía crime) fique impune.
Daí que, do nosso ponto de vista, e sem colocar em causa a vigência dos princípios da legalidade e da não retroactividade da lei penal, na perspectiva de que se deve sempre buscar o direito através da lei (M. Cavaleiro Ferreira, cit. por Cristina Líbano Monteiro, in o Consumo de Droga na Política e na Técnica Legislativas, Comentário à Lei n.º 30/2000, in RPCC n.º 11, 2001), afigura-se-nos que é possível considerar que a degradação de um crime em contra-ordenação deve dar lugar à aplicação do regime da contra-ordenação e não cair em vazio de punição.
Com efeito, a ratio subjacente ao princípio da legalidade e da não retroactividade reside na necessidade de salvaguardar a segurança jurídica e evitar a promulgação de leis ad hoc, passíveis de serem influenciadas pela comoção resultante da prática do crime (cfr. M. Simas Santos e M. Leal Henriques, Noções Elementares de Direito Penal, Editora Rei dos Livros, 2a edição, 2003, p. 26). Nessa medida, não é possível atribuir relevância penal a determinados factos, com base numa norma que não existia no momento da sua prática.
Mas, além da necessidade de salvaguardar a segurança jurídica, o princípio da irretroactividade tem em vista também a protecção do agente. E, nessa medida, se, à data em que ocorre o julgamento dos factos, a norma foi eliminada do conjunto das infracções penais (por se entender que cessou a razão da perseguição criminal, ou porque as valorações político-criminais do facto sofreram modificação), ou se vigora um regime mais favorável, o agente não deve ser punido ou deve ser punido segundo o regime mais favorável.
Ora, nos casos em que ocorreu a convolação de um crime em contra-ordenação, não se pode sustentar que, por uma questão de segurança jurídica e de protecção, o agente não deve ser punido. É que, se é verdade que o facto deixou de ser penalmente ilícito, este não se tornou juridicamente indiferente (a expressão é de Giuseppe Bettiol, in Direito Penal, Parte Geral Tomo 1, Coimbra Editora, 1970, p. 259), continuando a existir uma indubitável continuidade ao nível da reprovação do comportamento, muito embora esta se situe agora a um nível inferior. Tudo o que tem a fazer o aplicador é, pois, aplicar o regime mais favorável ao agente, no caso concreto.
Este tem sido, de resto, o entendimento sustentado por parte da doutrina, no âmbito da Lei n.º 30/2000, de 29 de Novembro (que descriminalizou o consumo de estupefacientes): “a reserva de lei anterior deve ser observada sempre que antes dessa lei existisse o nada sancionatório; já não - por evidente ausência de necessidades garantísticas - nas hipóteses em que, em momento anterior, sem qualquer solução de continuidade, a mesma conduta estivesse proibida pelo direito sancionatório de ultima ratio, o direito penal. (..) Cremos poder afirmar ainda que o n.º 2 do art. 2º do C. Penal vale para os casos em que a conduta desapareceu de qualquer ramo do direito sancionatório (foi eliminada do número das infracções) e o n.º 4 para aqueles outros em que o regime sancionatório se tomou mais favorável ao arguido, quer por se ter operado uma despenalização (crime, mas pena inferior), quer por o ilícito ter sido degradado, mudado de ramo sancionatório (de delito para contra-ordenação)”- cfr. Cristina Líbano Monteiro, loc. cit.
Do mesmo modo, J. Figueiredo Dias entende que a interpretação em causa é seguramente defensável nos casos em que a lei nova mantém a incriminação de uma conduta, embora sob um novo ponto de vista político-criminal (in Direito Penal, Questões Fundamentais, Doutrina Geral do Crime, 1996, Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra). É que, como defende a jurisprudência alemã, a circunstância de se ter modificado a natureza da infracção não importa uma radical e irremissível descontinuidade no juízo legislativo de sancionabilidade.
Esta é, de resto, a interpretação que conduz a resultados mais justos e racionais na aplicação do direito ao caso concreto. O entendimento contrário deixaria impunes comportamentos que, à data em que foram praticados, eram alvo de um juízo de ilicitude de gravidade máxima, e obrigaria a punir comportamentos que constituem simples contra-ordenações.
De resto, a interpretação em causa tem pleno acolhimento na letra do art. 2º, n.º 4, do C. Penal, quando estipula que se «as disposições penais vigentes no momento da prática do facto punível forem diferentes das estabelecidas em leis posteriores, é sempre aplicável o regime que concretamente se mostrar mais favorável (...). A norma refere-se, assim, a leis posteriores e não leis penais posteriores, admitindo que a lei posterior aplicável possa não estar contida no âmbito Penal.
Por fim, a tese em causa não procede a uma aplicação retroactiva da lei contra-ordenacional, como por vezes se diz, porque na relação entre o Direito Penal e o Direito Contra-Ordenacional existe um juízo de ilicitude contínuo, embora de grau inferior, resultante do facto de o legislador ter entendido que a violação do bem jurídico em causa não deveria continuar a ser regulada pelas instâncias formais de controlo, mas antes ser controlada por mecanismos não criminais de política social. Nessa medida, não se pode dizer que a contra-ordenação em causa representa um juízo de censura originário, passível de ser aplicado unicamente em relação a factos futuros.
Assim, e em suma, entendemos que, por aplicação do art. 2.º, n.º 4, do C. Penal, o arguido deve ser punido pela contra-ordenação prevista no art. 317º e 331º do CPI”.

Ainda irresignada, a arguida interpôs recurso, tendo apresentado as seguinte conclusões:
A douta Decisão Recorrida entendeu que factos que constituíam crime de concorrência desleal à face do CPI aprovado pelo Dec. Lei n.º 16/95, vigente no momento em que foram cometidos, poderiam ser punidos como contra-ordenação por aplicação dos art.ºs 317º' e 331º do novo CPI aprovado pelo Dec. Lei n.º 36/2003, considerando que na substituição do direito penal pelo ilícito de mera ordenação social se manteria um juízo de punibilidade contínuo, apenas alterado em termos de grau.
Resulta todavia do Preâmbulo dos Dec. Lei n.º 232/79 e 433/82 e tem sido repetidamente reconhecido por decisões dos Tribunais Superiores, que o direito penal e o ilícito de mera ordenação social não se distinguem apenas quantitativamente, mas constituem ordenamentos sancionatórios com natureza distinta;
Assim, deixando um comportamento de constituir crime para passar a constituir ilícito de mera ordenação social, por força de alterações legislativas, verifica-se, no plano penal, uma descriminalização da conduta, que opera retroactivamente nos termos do disposto no n.º 2 do art. 2º do CP.
Devendo a questão da aplicabilidade da lei nova a factos praticados no domínio da lei antiga resolver-se segundo as regras que definem o âmbito de aplicação temporal das normas punitivas das contra-ordenações, as quais podem prever, em disposições transitórias, que os factos praticados no domínio da lei que os qualificava como crime sejam punidos como contra-ordenação;
Os Tribunais Superiores têm vindo a concluir repetidamente, a propósito de várias alterações legislativas, pela não punibilidade de condutas que constituíam crime no momento em que foram cometidas e passaram posteriormente a constituir contra-ordenação, por atentarem em que entre o direito penal e o ilícito de mera ordenação social existe uma diferença qualitativa, e não apenas de grau, e também por constatarem a inexistência de um tal regime transitório.
Que igualmente não se acha estabelecido quanto à substituição do CPI aprovado pelo Dec. Lei n.º 16/95 pelo Dec. Lei n.º 36/2003, que aprovou o novo CPI, pelo que as normas deste diploma que prevêem e punem contra-ordenações não podem senão aplicar-se a factos cometidos posteriormente à sua entrada em vigor, por ser o que resulta dos art.ºs 2º e 3º, n.º 1, do RGCO;
A douta Decisão Recorrida considerou, todavia, que deveriam ser punidos como contra-ordenação prevista no novo CPI factos anteriores ao seu início de vigência, por aplicação do n.º 4 do art. 2.º do CP, supondo que esta disposição abrangeria os casos de substituição de normas penais por normas sancionatórias com outra natureza, quando ela se refere apenas a hipóteses de alteração de disposições penais;
Assim, além de se alhear da diversidade substancial entre o ilícito penal e o de mera ordenação social, fez aplicação incorrecta dessa norma do CP, e desaplicou indevidamente as dos art.ºs 2º e 3º, n.º 1, do RGCO, ao considerar cometida a contra-ordenação p. e p. pelos art.ºs 317º e 331º, do CPI aprovado pelo Dec. Lei n.º 36/2003.
Pelo que deve ser revogada e substituída por outra que absolva a Arguida da prática dessa infracção.

Respondeu o M.º P.º dizendo que “deve o presente recurso improceder”.

Nesta Relação, o Ex.mo PGA emite douto parecer no sentido que o recurso merece provimento.
E isto porque “é, pois, ponto assente: a conduta da arguida está despenalizada, não relevando mesmo em termos contra-ordenacionais (neste sentido Ac do STJ de 09/05/2002, P- 02P628 ).

Colhidos os vistos dos Ex.mos Adjuntos, cumpre apreciar e decidir.

Pese embora o excelente trabalho do Sr. Juiz a quo, consignado na sentença, com o devido respeito entendemos que deve ser diferente a posição jurídica a assumir.
A questão dos presentes autos passa por saber que consequências advêm pelo facto de o legislador deixar de qualificar determinada conduta como crime para passar a qualificá-la como contra-ordenação.
O Dr. Taipa de Carvalho in “Sucessão de Leis Penais”, 2ª edição revista, pgs. 120 e segs., trata aprofundadamente a questão.
Diz, nomeadamente:
“A L.N. é despenalizadora, logo eficácia retroactiva da despenalização (CRP, art. 29º, 4.-2ª parte; CP 1982/95, art. 2º, 2; CP 1886, art. 6º, 1 a).
A conversão da qualificação jurídico-legal de uma conduta de infracção penal (crime ou contravenção) em infracção de natureza administrativa (contra-ordenação) foi e continua a ser uma questão não resolvida, apesar do seu enorme alcance prático. Não é ousado afirmar que, também aqui, se jogam as garantias individuais do cidadão para cuja defesa se afirmou e consagrou constitucionalmente a proibição da retroactividade da lei penal desfavorável. Razões mais que suficientes são estas para que se procure equacionar, devidamente, o problema e se apresentem as soluções claras que princípios já centenários impõem, sem se ceder aos falaciosos argumentos da praticabilidade dos complexos sistemas sociais dos nossos dias. A rendição da doutrina e da jurisprudência a tais «argumentos» constituirá meio caminho para que o poder político, sob o peso da sua ambição e a pressão das circunstâncias, subverta os mais genuínos princípios-fundamentos do Estado-de-Direito, sob a aparência da legalidade.
É urgente, portanto e em minha opinião, enfrentar o problema e resolvê-lo no respeito dos princípios fundamentais do Estado-de-Direito (formal e material) sobre esta matéria da vigência ou eficácia temporal da lei penal.
Sendo - devendo ser - indiscutido o princípio da aplicação da lei penal favorável, tendo em conta as suas rationes jurídico-política e político-criminal e esclarecidos os pressupostos da sucessão de leis penais stricto sensu, a questão fulcral e decisiva passa a centrar-se na natureza das contra-ordenações: constitui o ilícito de mera ordenação social um ilícito essencialmente distinto do ilícito penal ou tratar-se-á apenas de uma distinção não essencial, não material, mas apenas de grau, sendo a infracção penal e a infracção contra-ordenativa espécies do mesmo género de infracções de direito público sancionatório?
Se a resposta for a de que a contra-ordenação é uma infracção de natureza administrativa, distinta, na sua natureza essencial e nos fins do seu sancionamento (punição), da infracção penal - o crime e mesmo a contravenção -, não pode existir a mínima dúvida de que a conversão legislativa de uma infracção penal numa contra-ordenação constitui uma despenalização da respectiva conduta e, necessariamente (CRP, art. 29º, 4, 2.ª parte; CP 1982/95, art. 2º, 2; CP 1886, art. 6º, 1), tem eficácia retroactiva; jamais, a partir da entrada em vigor da lei que alterou a qualificação, poderá aplicar-se a L.A. e, tendo já sido aplicada em sentença transitada em julgado, cessam a execução da pena e os efeitos penais da condenação. A responsabilidade penal, derivada do facto praticado antes do início de vigência da L.N., extinguese plenamente.
Problema diferente - mas que já não respeita à vigência temporal da lei penal - é o da eficácia temporal da L.N., na medida em que passou a qualificar o facto (a hipótese legal) como contra-ordenação. Ora o princípio geral é o de que a lei que «cria» contra-ordenações só se aplica aos factos praticados depois da sua entrada em vigor (Dec. Lei n.º 433/82, art. 3º, 1 - eficácia pós-activa). Todavia, não está constitucionalmente consagrada - pelo menos de forma expressa - a proibição da retroactividade da lei sobre contra-ordenações.
Assim, se a lei que altera a qualificação do facto de crime (ou de contravenção) para contra-ordenação, não estabelece, mediante norma transitória, a sua aplicabilidade às acções praticadas antes do seu início de vigência, tais acções que, necessária e constitucionalmente, são despenalizadas, também não podem ser julgadas como ilícitos de mera ordenação social. Tornaram-se, portanto, juridicamente irrelevantes.
....
Se, pelo contrário, a lei, que converte a infracção penal em contra-ordenação, estabelecer, por disposição transitória, a sua eficácia retroactiva, no sentido de tornar extensivo o seu regime e as coimas respectivas aos factos praticados na vigência da lei antiga (evitando, assim, a impunidade geral dos factos ainda não julgados), podem não levantar-se, mas também poderão surgir problemas de constitucionalidade da norma transitória.
...
Equacionado o problema, há que ver qual a solução imposta pelo nosso sistema jurídico. Depende esta - como já dissemos - da resolução da questão prévia da autonomia material e legislativa da contra-ordenação face à infracção penal. Se esta autonomia, se esta diferença essencial existir e, sobretudo, se for assumida pelo legislador, então a solução final, quanto à eficácia temporal da lei penal, tem de ser a de que a lei que converte um crime (ou uma contravenção) numa contra-ordenação é uma lei despenalizadora e, em consequência, extingue toda a responsabilidade penal (pena principal e penas acessórias e efeitos penais de uma eventual condenação já transitada em julgado). Em sentido rigoroso, não haverá um problema de sucessão de leis (da mesma natureza) e, portanto, não intervém o princípio da aplicação da lei mais favorável.
Cabe-nos, agora, demonstrar que não só a maioria da doutrina mas também o legislador consideram que entre crime (infracção penal) e contra-ordenação há uma autonomia essencial. Saliente-se, desde já, que o decisivo nesta matéria - em que estão em causa direitos fundamentais e a correspondente exigência de segurança jurídica que é servida pelo princípio da legalidade penal - são as normas jurídico-constitucionais e as normas ordinárias delas imediatamente decorrentes.
Efectivamente, analisando os art.ºs 27º, 2., 29º, 165º, 1 c) da CRP e os art.ºs 2º 49º, 1 do CP actual e, quanto às contravenções, art.ºs 6º e 123º do CP 1886, e confrontando-os com o art.º 165º, l d) da CRP e os art.ºs 3º e 33º do Dec. Lei n.º 433/82, constata-se que as contra-ordenações e as respectivas sanções são assumidas e positivadas pelo legislador constitucional e ordinário como infracções e sanções de natureza essencialmente diversa das infracções e sanções penais.
Independentemente da existência ou não de um critério material de distinção, que vincule o legislador ordinário na decisão legislativo-qualificativa, e das críticas, mesmo com possível base constitucional, que se possam fazer ao regime legal das contra-ordenações - e neste segundo aspecto, acho que muito pertinentes quanto à administrativização da justiça contra-ordenacional, pois que não hão-de ser interesses pragmáticos de economia processual-judicial que a justificarão - o que é decisivo para o nosso problema da eficácia temporal da lei penal é o indiscutido facto de o legislador português considerar e tratar o ilícito de mera ordenação social como infracção de natureza essencialmente diversa da infracção penal, recusando, assim, uma simples distinção gradualista, e nem sequer as reconhecendo como espécies que entroncassem num género comum.
....
Proclama a Introdução do Dec. Lei n.º 232/79, de 24 de Julho: «Necessidade, de dotar o país ... de um ordenamento sancionatório alternativo e diferente do direito criminal ... uma forma autónoma de ilicitude que reclame um quadro próprio de reacções sancionatórias e um novo tipo de processo ... A contra-ordenação «é um aliud que se diferencia qualitativamente do crime na medida em que o respectivo ilícito e as reacções que lhe cabem não são directamente fundamentáveis num plano ético-jurídico, não estando, portanto, sujeitas aos princípios e corolários do direito criminal»... Não é, por isso, admissível qualquer forma de prisão, preventiva ou sancionatória, nem sequer a pena de multa ou qualquer outra que pressuponha a expiação ético-pessoal que aqui não intervém. A sanção normal do direito de mera ordenação social é a coima, sanção de natureza administrativa, aplicada por autoridades administrativas ... A consagração do regime geral relativo às contra-ordenações ... destinava-se, assim, naturalmente, a vigorar para o futuro ... Apesar disso, considera-se conveniente submeter, desde já, ao regime deste decreto-lei as contravenções e transgressões previstas na lei vigente, bem como outros casos que a lei venha a descriminalizar ..».
Reforça, por sua vez, o Relatório do Dec. Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro (que revogou o Dec. Lei n.º 232/79): «Manteve-se, outrossim, a fidelidade à ideia de fundo que preside à distinção entre crime e contra-ordenação. Uma distinção que não esquece que aquelas categorias de ilícito tendem a extremar-se, quer pela natureza dos respectivos bens jurídicos quer pela desigual ressonância ética. Mas uma distinção que terá, em última instância, de ser jurídico-pragmática e, por isso, também necessariamente formal».
Passando dos dois diplomas, instituintes da figura das contra-ordenações e do respectivo regime geral, para o campo da sua implementação-concretização, reparemos no Preâmbulo do Dec. Lei n.º 28/84, de 20 de Janeiro: «De acordo com as mais modernas correntes do direito criminal, e a fim de concorrer para a desejada harmonia do sistema jurídico, despenalizaram-se certos tipos de infracções, englobando-se os comportamentos respectivos no direito de mera ordenação social ... havendo o particular cuidado de extremar rigorosamente os campos dos 2 ilícitos em presença, a fim de evitar sobreposições ou confusões entre as previsões dos correspondentes tipos legais. Quer isto dizer que se relegaram para o capítulo das contra-ordenações apenas aqueles comportamentos que não põem em causa interesses essenciais ou fundamentais da colectividade e que, por isso, carecem de verdadeira dignidade penal».
No âmbito doutrinal, FIGUEIREDO DIAS: «Descriminalizar significará aqui expurgar as contravenções do domínio do direito penal - com todas as consequências que isso implica, quer ao nível da caracterização do ilícito respectivo, quer ao nível da determinação das espécies de sanções que lhes devem caber .. quer ao nível do processamento das infracções - para constituir com elas um autêntico «ilícito de mera ordenação social». Recentemente, o mesmo Autor escreveu: «O CP operou a referida descriminalização ... eliminando para o futuro, ainda por outro lado, a categoria das contravenções e substituindo-a pela categoria não penal das contra-ordenações ...»”.
No campo da jurisprudência, acrescentamos nós, o Dr. GONÇALVES FERREIRA, escreveu em voto de vencido: “A coima não é uma multa mais branda ... A contra-ordenação não tem natureza penal, é algo de diferente, como o são o ilícito disciplinar, administrativo ou civil... Estamos em planos e mundos diferentes: o direito de mera ordenação social é autónomo e distinto do direito penal, como se salienta no preâmbulo do Dec. Lei n.º 433/82”.
O Ac. da RP de 7 de Novembro de 2004 in CJ, Ano XIX, tomo 5, pg. 244, salienta:
“Deste modo, a conduta em questão que constituiria contravenção prevista na legislação então em vigor (agora revogada) foi retirada ao âmbito do direito penal e passou e enquadrar-se no âmbito do chamado ilícito de mera ordenação social, ilícito este que é distinto e autónomo daquele, como se refere no preâmbulo do Dec. Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, reafirmando o que, de modo mais desenvolvido, se dissera já no relatório do Dec. Lei n.º 232/79, de 24 de Julho.
Com efeito e respigando algumas passagens do relatório do diploma de 1979, constata-se que ele se insere num movimento de descriminalização, assim se respondendo às necessidades de «purificação do direito criminal de formas de ilícito, cuja sede natural é o direito de mera ordenação social. E o que, por exemplo, deverá acontecer com as contravenções, tradicional e indevidamente integradas no ordenamento jurídico-penal».
Ainda conforme se refere no preâmbulo do mesmo diploma, entre os dois ramos de direito (penal e de mera ordenação social) «medeia uma autêntica diferença; não se trata apenas de uma diferença de quantidade ou puramente formal, mas de uma diferença de natureza». E, de seguida, citando Eduardo Correia, Direito Penal e Direito de Mera Ordenação Social, in Boletim da Faculdade de Direito, Coimbra, 1973, pág. 268, diz-se que a contra-ordenação «é um aliud que se diferencia qualitativamente do crime na medida em que o respectivo ilícito e as reacções que lhe cabem não são directamente fundamentáveis num plano ético-jurídico, não estando, portanto, sujeitas aos princípios e corolários do direito criminal».
Aliás, a própria sanção - coima - tem «natureza administrativa, aplicada por autoridades administrativas», podendo «adoptar-se um processo extremamente simplificado e aberto aos corolários do princípio da oportunidade»”.
Sufraga-se integralmente tudo quanto vem de ser explanado.
Pois bem.
Concluindo-se, como se conclui que a contra-ordenação é uma infracção de natureza administrativa, distinta na sua natureza essencial e nos fins do seu sancionamento (punição), da infracção penal, então também não restam dúvidas de que a conversão legislativa de uma infracção penal numa contra-ordenação constitui uma despenalização da respectiva conduta e, necessariamente, tem eficácia retroactiva.
Como diz o Dr. Taipa de Carvalho, ob. citada, pg. 133, “Não pode deixar de concluir-se que, quanto à responsabilidade penal, uma lei que «converte» uma infracção penal (crime ou contravenção) numa contra-ordenação é uma lei despenalizadora e que, enquanto tal, se aplica retroactivamente. Não se trata, pois, de uma verdadeira sucessão de leis penais, não intervindo, assim, o princípio da lex mitior (CP 1982/95, art. 2º, 4, e CP 1886, art. 6º-2), mas o princípio da lei despenalizadora, isto é, extintiva da responsabilidade penal (CP 1982/95, art. 2º, 2., e CP 1886, art. 6º, 1 e 3)”.
Ressalvando, naturalmente, a situação em que a lei que altera a qualificação do facto de crime para contra-ordenação estabelece, mediante norma transitória, a sua aplicabilidade às acções praticadas antes do seu início de vigência.
Neste sentido decidiram, designadamente:
O Ac. da RP de 12/01/2005 in www.dgsi.pt, Acs. da Relação do Porto;
O Ac. do STJ de 9/5/2002 in www.dgsi.pt, Acs. do STJ, este com votos de vencidos dos Ex.mos Conselheiros Simas Santos e Abranches Martins;
O Ac. do STJ de 5/01/1995 in www.dgsi.pt, Acs. do STJ.
Resta aplicar a doutrina aos factos.
O DL 36/2003, de 5 de Março, qualificou como contra-ordenação factos que antes eram tipificados como sendo crime.
Não contém qualquer norma transitória expressa destinada a fazer retroagir o regime contra-ordenacional então criado.
Consequentemente, por aplicação da doutrina que subscrevemos, a conduta da arguida está despenalizada. Tornou-se juridicamente irrelevante.

DECISÃO:
Termos em que, na procedência do recurso, por existência de causa extintiva do procedimento, se revoga a decisão recorrida, que substituem por acórdão que determina o arquivamento dos autos, absolvendo a arguida da prática da contra-ordenação por que foi condenada.
Sem tributação.

Porto, 15 de Novembro de 2006
Francisco Marcolino de Jesus
Ângelo Augusto Brandão Morais
José Carlos Borges Martins