Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRP00030945 | ||
Relator: | TELES DE MENEZES | ||
Descritores: | ACIDENTE DE VIAÇÃO INCAPACIDADE PERMANENTE PARCIAL CÁLCULO DA INDEMNIZAÇÃO EQUIDADE | ||
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Nº do Documento: | RP200012210031550 | ||
Data do Acordão: | 12/21/2000 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recorrido: | 3 J CIV STO TIRSO | ||
Processo no Tribunal Recorrido: | 561/98 | ||
Data Dec. Recorrida: | 05/03/2000 | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO. | ||
Decisão: | REVOGADA PARCIALMENTE. | ||
Área Temática: | DIR CIV - DIR OBG. | ||
Legislação Nacional: | CCIV66 ART562 ART566 N3. | ||
Jurisprudência Nacional: | AC STJ DE 1995/09/28 IN CJSTJ T3 ANOIII PAG36. AC STJ DE 1999/03/16 IN CJSTJ T1 ANOVII PAG167. | ||
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Sumário: | I - Integram uma incapacidade parcial permanente as sequelas de lesões corporais que, embora não se repercutindo numa incapacidade para o trabalho nem em perda de ganho efectiva, constituem uma incapacidade psico-física da pessoa ou um dano que perturba a vida de relação e o bem estar do lesado ao longo da vida. II - Esta incapacidade não deixa de ser um dano patrimonial e deve ser valorada segundo a sua natureza e intensidade, com recurso à equidade. | ||
Reclamações: | |||
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Decisão Texto Integral: | Acordam no Tribunal da Relação do Porto Alcino .............. intentou a presente acção com processo sumário contra a Companhia de Seguros..............., S.A., pedindo a condenação desta a pagar-lhe a quantia de 6 971 000$00, acrescida de juros de mora à taxa legal desde a citação até integral pagamento. Alegou, resumidamente, que se fazia transportar num motociclo que, quando fazia a manobra de ultrapassagem a um veículo automóvel ligeiro seguro na Ré, foi por este embatido, porque o respectivo condutor iniciou ele próprio uma ultrapassagem a um outro veículo, sem atentar na manobra desenvolvida pelo condutor do motociclo. Do acidente resultaram para o A. ferimentos graves, que lhe demandaram intervenções cirúrgicas e incapacidade para o trabalho temporária absoluta, bem como parcial e, depois da alta, incapacidade permanente parcial nunca inferior a 20%. A Ré contestou, reconhecendo a culpa do seu segurado, mas impugnando o grau de incapacidade permanente que, segundo os seus médicos, se situa nos 18%, bem como dizendo desconhecer as lesões sofridas pelo A. e as respectivas consequências. O processo foi saneado, condensado e instruído, tendo-se realizado exame médico ao A. no IMLP. Na audiência, o mandatário da Ré, com poderes especiais para o acto, declarou que aceitava a matéria dos quesitos 1.º a 5.º, 7.º e 10.º, parcialmente a do quesito 8.º, reportada a um ordenado mensal de 65 000$00, e parcialmente a do quesito 9.º, até 350 000$00, declaração que foi aceita pelo A.. Não foi produzida prova testemunhal, por os mandatários dela terem prescindido. Foi proferido despacho a responder aos quesitos e lavrada sentença que condenou a Ré a pagar ao A. a quantia de 2 374 000$00, acrescida de juros de mora à taxa legal, desde a citação até integral pagamento. Da sentença recorreu o A., concluindo assim a sua alegação: 1.º. Do relatório médico, dos ensinamentos da experiência comum e da jurisprudência do STJ decorre que uma qualquer incapacidade permanente geral tem sempre reflexos no desempenho da actividade profissional do lesado. 2.º. Exige sempre ao lesado um maior esforço, um maior sacrifício, uma maior incomodidade. 3.º. Há que alterar a resposta ao quesito 6.º, no sentido de o considerar provado com o esclarecimento de que os 20% de incapacidade permanente geral poderão causar dificuldades ou desconforto na realização de certas funções e actividades decorrentes dos fenómenos dolorosos referidos no relatório de exame. 4.º. Tal situação é relevante e por isso deve ser ressarcida com uma quantia nunca inferior a 3 500 000$00. 5.º. Caso assim se não entenda sempre o montante fixado para ressarcimento dos danos não patrimoniais deverá ser elevado para 3 500 000$00. A apelada respondeu, pedindo a confirmação da sentença na parte impugnada. A instância mantém-se válida e regular. Corridos os vistos legais, cumpre decidir. Factos considerados provados: 1. No dia 9 de .... de 19..., cerca das 15 h, na EN ....., no lugar de L....., freguesia de A..., da comarca de ........, ocorreu um acidente de viação em que foram intervenientes o motociclo de matrícula LO-..-.., propriedade de Óscar Manuel............ e conduzido por Paulo Jorge.............. o e o veículo ligeiro de passageiros de matrícula ..-..-DM, conduzido pelo seu proprietário António Manuel.............. - A). 2. Ambos os veículos circulavam no sentido P....... - S....., seguindo o DM à frente do LO - B). 3. O A. seguia como passageiro, gratuitamente transportado, no LO - C). 4. O LO seguia a velocidade não superior a 50 Km/hora e dentro da sua metade da via - D). 5. Perto do local do acidente, o condutor do motociclo decidiu-se a ultrapassar o DM, tendo, para o efeito, ligado o pisca-pisca do seu lado esquerdo e passado a circular sobre a sua metade esquerda da via - E). 6. No entanto, quando o LO se encontrava a par e ao lado do DM, o condutor deste, que seguia sem prestar atenção ao trânsito que se processava na via, sem ter atentado no trânsito à sua retaguarda, guinou à sua esquerda, invadindo a sua metade esquerda da via, com vista a ultrapassar um veículo que circulava à sua frente - F). 7. Por via desta manobra, o DM embateu com a traseira lateral esquerda no rodado da frente do LO, projectando-o de encontro ao solo, juntamente com o seu condutor e o A. - G). 8. Por causa do acidente, o A. esteve doente com total impossibilidade para o trabalho até fins de ...... de 19.... e durante 23 dias em ...... de 1998 - H). 9. Teve alta definitiva em 3 de ....... de 19... - I). 10. À data do acidente o proprietário do veículo ..-..-DM havia transferido a responsabilidade civil decorrente de acidentes de viação para a Ré, mediante contrato de seguro titulado pela apólice n.º--------, até ao montante de 120 000 000$00, válida naquela data - J). 11. Mercê do acidente, o A. sofreu fractura do crânio aberta com afundamento do frontal direito, traumatismo da arcada dentária superior e várias escoriações pelo corpo - 1.º. 12. Recebeu os primeiros socorros no Hospital de ....... e esteve internado no Hospital de ............, durante 6 dias - 2.º. 13. Foi submetido a duas intervenções cirúrgicas à cabeça (neurocirurgia), bem como a múltiplos e dolorosos tratamentos - 3.º. 14. Esteve acamado na residência durante semanas - 4.º. 15. Trabalhou entre Julho de 1997 e Fevereiro de 1998 com 25%, 20% e 15% de incapacidade para o trabalho - 5.º. 16. O A. era forte, perfeito e saudável - 7.º. 17. Auferia como operário têxtil o ordenado mensal de 65 000$00 - 8.º. 18. Em ordenados e subsídios, durante o período de doença, o A. deixou de receber a quantia de 350 000$00 - 9.º. 19. Em despesas médicas gastou a quantia de 24 000$00 - 10.º. O recurso resume-se à não consideração na sentença da existência de danos patrimoniais decorrentes da incapacidade permanente que afecta o A.. Com efeito, a fls 103, escreveu-se: “Quanto à peticionada indemnização de Esc. 4 500 000$00, alegadamente devida pela incapacidade permanente para o trabalho, não é devida, uma vez que se não provou que o A. tivesse ficado afectado de qualquer incapacidade, como resulta claramente da conclusões do relatório médico-legal”. Em conformidade com este entendimento, respondeu-se negativamente ao quesito 6.º, com o fundamento em o IML se ter pronunciado no sentido de o A. ter ficado com 0% de incapacidade permanente para o seu trabalho - cfr fls 96. Na apelação defende-se que a resposta a este quesito deve ser alterada, por do mencionado relatório resultar que o recorrente padece de uma incapacidade permanente geral de 20%, que se não coaduna com a conclusão aí contida de que não apresenta qualquer percentagem de incapacidade permanente profissional, pois se lhe atribui o grau 1 de coeficiente de dano, explicitado como “dano corporal ligeiro, sem necessidade de recurso a ajudas técnicas ou humanas (sem dependência) podendo haver dificuldades ou desconforto na realização de certas funções e actividades”. Justificando-se a alteração da resposta ao quesito, cabe referir que a mesma é possível, pois foi dada com fundamento exclusivo no relatório do IML, cujo consta dos autos - art. 712.º n.º 1-a) do Cód. Proc. Civil. Vejamos o teor do quesito em causa, que foi feito por remissão para a alínea h) do art. 14.º d p. i.: “Apesar de clinicamente curado, o A. apresenta uma incapacidade permanente para o trabalho nunca inferior a 20%, devida a síndrome pós-comocional, tonturas, dores de cabeça, perdas de memória, irritabilidade, insensibilidade no couro cabeludo, dores nos dentes da arcada superior, nomeadamente nos frontais e dificuldades de mastigação. Dores nos locais lesionados, que se acentuam com as mudanças de tempo ou quando faz esforços, cicatrizes extensas e vincadas constituindo deformidade notável patente?”. É bom de ver que a resposta negativa, face ao teor do relatório em questão é algo radical. Com efeito, no relatório refere-se que o A. apresenta as seguintes sequelas lesionais (as quais se referem às alterações permanentes na estrutura anatómica ou funcional de um órgão e correspondem a um estado relativamente estabilizado das lesões): “Crânio: vestígio cicatricial na metade direita da região frontal com 4 por 3 centímetros de área e área de afundamento subjacente; Face: insensibilidade dentária nos incisivos superiores” - fls 83. E quanto às sequelas funcionais (que compreendem as alterações das capacidades físicas ou mentais e surgem na sequência das sequelas lesionais) foram detectados fenómenos dolorosos: “cefaleias ocasionais e insensibilidade dentária nos incisivos superiores e no couro cabeludo no hemicrâneo direito” - fls 84. Relativamente às sequelas situacionais (que representam a dificuldade ou impossibilidade de uma pessoa efectuar gestos necessários à sua participação na vida em sociedade, em consequência das sequelas lesionais e funcionais e de factores pessoais e do meio) e que se repercutem, nomeadamente, na vida profissional ou de formação, não foram registadas queixas da parte do A. - fls 84. Como dano permanente reconhece-se ao A. um “défice funcional, também chamado incapacidade permanente geral (IPG)...determinado tendo em conta a globalidade das sequelas acima descritas”. “Como sequelas com carácter permanente o examinado apresenta área de afundamento craniano sem prótese queixas subjectivas enquadráveis no âmbito de um síndrome pós traumático”. “No presente caso não ressalta que o examinado tenha dificuldades no exercício da sua actividade profissional, aliás o próprio não as refere subjectivamente”. No entanto, atribuiu-se-lhe o coeficiente de dano 1: “Dano corporal ligeiro, sem necessidade de recurso a ajudas técnicas ou humanas (sem dependência), podendo haver dificuldades ou desconforto na realização de certas funções e actividades” - fls 85. Nas conclusões atribiu-se ao A. uma incapacidade permanente geral de 20% e uma incapacidade permanente profissional de 0% - fls 86. As sequelas atrás descritas, embora não se repercutindo numa diminuição da capacidade funcional do A., não dando lugar a uma perda de ganho efectiva, constituem uma incapacidade psico-física da pessoa [Fernando Oliveira Sá, Clínica Médico-Legal da Reparação do Dano Corporal em Direito Civil, 216], que se não projecta na esfera profissional. O que não significa que não deva ser atendida para efeitos indemnizatórios, embora não como um dano patrimonial típico, mediante o recurso a um cálculo matemático que tenha por base uma perda de ganho real [Acs STJ, 12.5.94 e 28.9.95, CJ/STJ, II,2,98 e III,3,36]. Todavia, uma IPP não se esgota na incapacidade para o trabalho, pode constituir um dano funcional ou, ao menos, um dano que perturba a vida de relação e o bem estar do lesado ao longo da vida. O A. sofre de um síndrome pós traumático, podendo vir a ter dificuldades ou desconforto na realização de certas funções ou actividades. Ora, este dano deve ser considerado, numa variante não confundível com o dano patrimonial consistente na incapacidade para o trabalho, mas sem assumir a natureza de dano não patrimonial - pretium doloris ou dano estético - consistindo, no entanto numa IPP com a apontada significação ou numa IPG, sendo certo que as sequelas lesionais referidas sofridas pelo A. têm como consequência imediata um desvalor na sua pessoa, um dano emergente, determinante de um efectivo prejuízo [Ac. STJ, 28.10.92, CJ, XVII,4,29 e desta Secção, de 30.11.00, tirado no Proc. 901/00]. É um dano que se caracteriza pela alteração morfológica do indivíduo e consiste na privação da efectiva utilidade, proporcionada pelo melhor dos bens dados ao homem - um corpo são [Ac. desta Relação, 15.12.98, Apelação 786/98, 2.ª Secção]. A incapacidade permanente geral de que está afectado o A. constitui, assim, um dano em si mesmo, ligado à sua dimensão anátomo-funcional. Por isso, a resposta ao quesito 6.º deve ser alterada, o que se faz, passando a ser a seguinte: “Está provado apenas que apesar de clinicamente curado, o A. apresenta uma incapacidade permanente geral de 20%, ligada a síndrome pós-comocional, cefaleias ocasionais e insensibilidade dentária nos incisivos superiores e no couro cabeludo, no hemicrâneo direito, e vestígio cicatricial na metade direita da região frontal, com 4 por 3 cm de área e área de afundamento subjacente”. Refira-se que a Ré, no n.º 3 da sua contestação diz o seguinte: “O A. foi observado e tratado nos serviços clínicos da Ré, que lhe deram alta, em 3 de Março de 1998, com uma incapacidade parcial permanente de 18%”. Esta incapacidade permanente geral deve ser valorada segundo a sua natureza e intensidade e com recurso à equidade, tendendo o montante encontrado a ser inferior à indemnização que resultaria da repercussão da IPP nos ganhos profissionais [Oliveira Sá, O. C., 218 e ac. desta Secção no Proc. 901/00, atrás referido]. Pelo que considerou uma IPP para o trabalho, o A. pediu a quantia indemnizatória de 4 500 000$00. In casu não se justifica que o cálculo da indemnização, pelas razões apontadas, seja feito tendo como base a compensação da perda de ganho, mediante a atribuição de uma quantia que produza, no período que houvesse de ser considerado, o de vida activa do A., um rendimento correspondente à perda económica que ele sofreu, de modo que, no fim desse período, essa quantia se extinga [Ac. STJ, 16.3.99, CJ/STJ, VII,1,167]. Porquanto o dano em causa assume particularidades que divergem de danos patrimoniais futuros, sem deixarem de ser patrimoniais. Há, pois, que recorrer à equidade, nos termos definidos pelo art. 566.º n.º 3 do Cód. Civil. Estando o dano, como diminuição da capacidade de trabalho, balizado nos 4 500 000$00, justifica-se a redução dessa quantia para 2 500 000$00 e não para 3 500 000$00, como pretende o apelante. Para se atingir o montante proposto, atendeu-se à natureza e intensidade do dano e ao facto de se tratar de situação definitiva, da qual o A. se não poderá, jamais, libertar, passando a acompanhar a sua história física pessoal. As sequelas lesionais constituem alterações permanentes na estrutura anatómica ou funcional de um órgão e as funcionais compreendem as alterações das capacidades físicas ou mentais, características de um ser humano, surgindo na sequência das sequelas lesionais - cfr relatório médico, a fls 83 e 84. Assim, julga-se a apelação parcialmente procedente e condena-se, ainda, a Ré a pagar ao A., para além da quantia indemnizatória fixada na sentença que, desta forma, se altera, a importância de dois milhões e quinhentos mil escudos (2 500 000$00), decorrente da IPG apresentada pelo A., acrescida de juros à taxa legal, desde a citação até efectivo pagamento. Custas nesta e na 1.ª instância por A. e Ré, na proporção de vencido. Porto, 21 de Dezembro de 2000 Trajano ª Seabra Teles de Menezes e Melo Mário Manuel Baptista Fernandes Leonel Gentil Marado Serôdio |