Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
469/11.8TJPRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: PEDRO LIMA COSTA
Descritores: ARRENDAMENTO PARA HABITAÇÃO
RESOLUÇÃO DO CONTRATO
ALOJAMENTO DE MAIS DE TRÊS HÓSPEDES
Nº do Documento: RP20120614469/11.8TJPRT.P1
Data do Acordão: 06/14/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: A permanência de mais de três hóspedes no local arrendado continua a ser fundamento de resolução do contrato de arrendamento para habitação, após o NRAU, ao abrigo da norma do corpo do n.º 2 do art.º 1083.º e da sua alínea e), sob pena de a infracção à proibição prevista nos art.ºs 1093.º, n.º 1, al. b) e 1038.º, al. f), todos do Código Civil, não ter repercussões para o arrendatário nem na subsistência do contrato.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo 469/11.8TJPRT
Juiz Relator: Pedro Lima da Costa
Primeiro Adjunto: Des. Filipe Caroço
Segundo Adjunto: Des. Teresa Santos

Acordam os Juízes do Tribunal da Relação do Porto.
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A Herança Jacente Aberta por Óbito de B…, representada pela cabeça de casal C…, propõe contra D… a presente acção declarativa de condenação, a qual segue o regime processual experimental estabelecido pelo Decreto-Lei 108/2006, de 8/6, pedindo que se decrete a resolução do contrato de arrendamento e que se condene a ré a entregar à autora o arrendado, livre e desembaraçado de pessoas e coisas, no dia que se segue ao dia do trânsito em julgado da sentença.
Sumariamente, alega a autora:
B… faleceu em 28/3/2010 e na sua herança integra-se um prédio urbano;
Tal prédio está arrendado desde 19/12/1973 para uma habitação e a ré viu transmitida a seu favor a condição de arrendatária, em virtude da morte do seu marido, ocorrida em 26/9/1987;
Em Agosto de 2010 a autora constatou que o prédio tinha sido transformado, estando fisicamente separado no seu interior em três habitações independentes, uma em cada um dos três pisos do prédio, nele residindo três famílias;
Foram feitas obras sem consentimento do senhorio e residem no arrendado pessoas sem legitimidade para o efeito.
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Conjuntamente com a citação e para evitar alteração do arrendado, procedeu-se a inspecção judicial ao prédio, lavrando-se auto de inspecção.
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Na contestação, a ré conclui que a acção deve ser julgada não provada e improcedente, absolvendo-se a ré do pedido.
Sumariamente, alega a ré:
À data do arrendamento de 1973 viviam no prédio dez pessoas, ou seja a ré e o seu marido, 4 filhos desse casal, E… e mulher, uma filha desse casal, e F…;
O senhorio de então acordou que as profundas obras de que o prédio então necessitava teriam de ser feitas pelos três conjuntos de inquilinos de famílias distintas, mas só celebraria um contrato de arrendamento, por se tratar de um único prédio, contrato esse que celebraria com o representante mais velho dos inquilinos, com a renda dividida por todos os conjuntos de inquilinos, incumbindo àquele representante proceder à entrega mensal da renda;
Actualmente vivem no prédio seis pessoas, sendo a evolução dos moradores e a sua repartição pelo prédio do conhecimento do falecido B… e da mulher deste, ora cabeça de casal, além de ter existido consentimento para as obras realizadas;
Se direito lhe incumbir, a autora abusa do respectivo exercício, na forma de venire contra factum proprium, além de ocorrer caducidade do direito que a autora pretende fazer valer.
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Como estabelece o art. 8 nº 3 do DL 108/2006, não foi apresentada resposta à contestação.
No despacho saneador não se procedeu à selecção dos factos assentes e da base instrutória, marcando-se a data do julgamento ao abrigo do art. 10 nº 2 al. b) do DL 108/2006.
Na audiência de julgamento decidiu-se conferir à autora a possibilidade de responder às excepções de caducidade e de abuso de direito que tinham sido suscitadas na contestação.
Ainda na audiência de julgamento, a autora prescindiu do depoimento de todas as testemunhas que tinha arrolado, tendo-se inquirido testemunhas arroladas pela ré.
Em novo articulado, a autora reafirmou que só conheceu os factos alegados em Agosto de 2010, não tendo agido com abuso de direito.
Finalizado o julgamento, proferiu-se sentença em que se decidiu julgar a acção improcedente.
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Ao abrigo das normas especiais dos arts. 692 nº 3 al. b), primeira parte, e 678 nº 3 al. a), primeira parte, do Código de Processo Civil (CPC), a autora apelou da sentença, formulando as seguintes conclusões:
a) Apesar de o imóvel em questão nos presentes autos ter sido dado de arrendamento, por contrato escrito, a uma só pessoa, G…, destinando-se a habitação do respectivo agregado, o tribunal ad quo considerou que “resultou demonstrado que o acordo de arrendamento de 1973 visava atribuir o gozo do imóvel não só a G… conforme resultava do contrato escrito, mas também à sua mulher e filhos – os quais passaram a viver no 1º andar –, mas também a E… e sua família – os quais passaram a viver no R/c e ainda a F…, que passou a vir na Cave…”.
b) Ora, a A. entende que a sentença não é explícita relativamente ao tipo de arrendamento/direito de habitação em questão nos presentes autos quando faz tal interpretação extra contratum, sendo certo que, pronunciando-se sobre todos seus beneficiários, não esclarece se os mesmos são arrendatários, moradores usuários ou tão-só beneficiários de qualquer desses direitos.
c) Importa assim nesta sede distinguir, por um lado, quem são os arrendatários, pessoas a quem foi dado de arrendamento o imóvel dos autos, e quem são tão-só os beneficiários do arrendamento, aqueles que, em virtude de tal arrendamento, por pertencerem ao agregado familiar dos arrendatários e viverem em economia com eles, aproveitam o gozo do imóvel; e, por outro lado, quem são os moradores usuários, pessoas a quem foi atribuído o direito de habitação, e aqueles que são apenas beneficiários do direito de moradores usuários, os quais gozam do direito de habitação em razão de pertencerem à família de um morador usuário.
d) Com efeito, no arrendamento, são diferentes os direitos que assistem a cada uma dessas pessoas, sendo certo que os direitos que são conferidos aos meros beneficiários, de mero gozo ou fruição, apenas existem na condição do arrendamento subsistir em relação ao arrendatário e de os mesmos pertencerem ao seu agregado familiar e com ele viverem em economia comum.
e) Por seu turno, no que toca ao direito de habitação, também são diferentes os direitos que assistem a cada uma dessas pessoas, sendo certo que os direitos que são conferidos aos meros beneficiários, de mero gozo ou fruição, apenas existem na condição do direito de habitação subsistir em relação ao morador usufrutuário e de os mesmos pertencerem à sua família, como cônjuges ou filhos solteiros, entre outros.
f) Ora, como o próprio tribunal constatou presencialmente, pela prova antecipadamente produzida e pela produzida em audiência, o imóvel dos autos foi dividido em três habitações distintas, uma em cada andar do prédio, com acesso obstruído entre elas, sendo totalmente independentes entre si, como se de diferentes fracções se tratasse, as quais foram distribuídas pelos dois agregados familiares/famílias referidos e por F…, em (três) economias totalmente independentes.
g) Por este facto, quanto muito, aquilo que razoavelmente se poderia retirar dos usos ou práticas correntes é que o prédio arrendado, das duas uma:
- Ou foi parcialmente dado de arrendamento aos cabeças-de-casal de cada agregado familiar, G… e E…, e ainda a F…, tendo ficado como meros beneficiários aqueles que compunham os seus agregados familiares, os quais, como já referimos, apenas gozam o locado na condição do arrendamento subsistir em relação aos efectivos arrendatários e de continuarem a pertencer ao seu agregado familiar e com ele viverem em economia comum.
- Ou foi dado parcialmente de arrendamento a G…, tendo ficado como beneficiários todos os que compunham o seu agregado familiar, e parcialmente em (direito de) habitação a F… e a E…, ficando como beneficiários deste direito a família deste último.
h) Exigia-se assim que o tribunal ad quo se tivesse pronunciado sobre o tipo de arrendamento/direito de habitação em causa, se um arrendamento/direito de habitação plural, se um arrendamento/direito de habitação parcial para cada um dos pisos, ou se um misto de ambos os direitos, o que não fez.
i) Sempre se diga que, em tal caso, que por mera hipótese académica se admite, todos os arrendatários/moradores usuários deveriam ter sido chamados aos autos para se pronunciarem sobre esse seu estatuto, já que o mesmo foi colocado em questão pela A., tendo tais sujeitos todo o interesse em contradizer a presente acção, já que, qualquer que tivesse sido o sentido da decisão proferida nos autos, aos mesmos também afectaria.
j) Estaria, com efeito, preenchida uma situação de litisconsórcio necessário passivo, o que levaria à nulidade da sentença ora recorrida.
k) Relativamente ao agregado constituído por H… e a sua filha, I…, tendo falecido E…, a sua sucessora no arrendamento, estando obrigada a comunicar tal falecimento ao senhorio vigorante, não o tendo feito, levou a que tivesse caducado o seu direito enquanto beneficiária do “arrendamento” realizado por E….
l) Em relação ao agregado constituído pela filha da Ré, J…, e pelo marido desta, K…, vivendo estes na habitação que outrora foi entregue de F…, a verdade é que o direito que a primeira tinha originalmente para habitar a casa se extinguiu a partir do momento em que a mesma se casou e abandonou o seu primitivo agregado familiar.
m) Sendo certo que a mesma não podia de qualquer modo suceder ao seu pai como arrendatária uma vez que tal posição foi já tomada pela R., sua mãe.
n) Por outro lado, em razão de J… não ser de qualquer modo herdeira de F…, não é possível que aquela suceda à segunda legitimamente na ocupação da parte do imóvel que esta ocupava a título de arrendamento/direito de habitação parcial.
o) A verdade é que não ficou provado nos autos que tenha sido celebrado com o agregado desta qualquer contrato de arrendamento referente ao imóvel dos autos, nem assim que a mesma tenha alguma vez pago qualquer cêntimo aos sucessivos senhorios, ainda que de modo indirecto (entregando a outrem a sua parte), para pagamento do gozo do imóvel que usufrui, o que contraria desde logo a natureza do arrendamento.
p) Pelo que se deve concluir que J…, a partir do momento em que se declara independente do agregado familiar de seus pais, constituindo um outro agregado com K…, deixa de ser sequer beneficiária do arrendado, sendo obrigado a abandoná-lo.
q) Repare-se que, acima de tudo, nunca qualquer senhorio do imóvel em questão celebrou ou teve intenções de celebrar um contrato de arrendamento com qualquer dos beneficiários do imóvel para além do primitivo arrendatário, mesmo que verbal, sendo certo que aqueles sempre foram extremamente diligentes e cuidadosos na sua relação com os sucessivos arrendatários, o que pode ser desde logo comprovado pela minuta do contrato celebrado e pela forma como o senhorio B... requereu à R. que a mesma cumprisse os requisitos exigidos por lei para a sucessão por morte do seu marido, isto é, comunicasse a sua morte e disso fizesse prova.
r) Como se vê, o tribunal ad quo constituiu oficiosamente e ex-novo verdadeiros contratos de arrendamento ou direitos de habitação, à total revelia daquilo que foi acordado entre as primitivas partes contratantes, para cuja vontade real remeteu o seu juízo, ignorando a sua vontade expressa e escrita.
s) Quanto à falta de autorização da R. para realização de obras, sempre se diga que a A. nega que as obras realizadas no locado foram consentidas pelos anteriores senhorios do prédio, sendo certo que não existe qualquer prova admissível que contrarie esse facto.
t) Ainda que isso eventualmente tenha resultado da prova testemunhal produzida, o que não se consente, a verdade é que este tipo de prova não é admissível nesta matéria, tendo presente o artigo 393.º do CC e que a mesma contraria os documentos apresentados nos autos, designadamente o contrato de arrendamento firmado pelas partes.
u) Em tal contrato, ficou estabelecido na cláusula 4ª que “o inquilino fica obrigado a ter o prédio arrendado em bom estado de conservação e limpeza, e a responder pelos prejuízos que à mesma advierem por culpa ou negligência sua ou dos seus familiares e sublocatários, e só poderá fazer benfeitorias mediante consentimento, por escrito, do senhorio…”.
w) Não havendo qualquer documento assinado pelos sucessivos senhorios e que autorize a realização de quaisquer obras e ou benfeitorias, não estão, portanto, legitimadas as obras/benfeitorias realizadas no locado.
x) Quanto muito, da prova testemunhal dos autos apenas se pode retirar que L… autorizou a realização de pequenas obras que permitissem habitar o imóvel de imediato, uma vez que o mesmo se encontrava devoluto e ao abandono, portanto, sem condições mínimas de segurança e higiene para habitação.
y) Porém, a alteração de tais condições de habitabilidade não significam que o senhorio tenha autorizado de alguma forma a mudança total da estrutura do prédio, a realização de novas divisões e a alteração da sua disposição interna, o que de facto se verificou.
z) Não obstante, repare-se que os pretensos beneficiários do arrendamento transformaram uma casa com três pisos em três casas totalmente independentes, com todas as condições de habitabilidade, com os acessos e comunicações entre pisos totalmente bloqueados, como se de verdadeiras fracções autónomas se tratasse.
aa) Quanto à cedência do locado a outras pessoas, a A. nega que a mesma tenha sido de qualquer modo consentida pelos anteriores senhorios do prédio, sendo certo que não existe qualquer prova admissível que contrarie esse facto.
bb) Ainda que eventualmente tal tenha resultado da prova testemunhal produzida, o que não se consente, este tipo de prova não é admissível in casu conforme se prevê no artigo 393.º do CC.
cc) Com efeito, consta da cláusula 3.ª do contrato de arrendamento celebrado em 19 de Dezembro de 1973 “O prédio por este contrato arrendado destina-se a habitação, não podendo o arrendatário dar-lhe outro destino nem sublocar ou ceder por qualquer forma os direitos do arrendamento, no todo ou em parte, sem consentimento por escrito do senhorio (…)”.
dd) Não havendo qualquer documento junto aos autos que comprove esse consentimento do senhorio.
ee) Salvo o devido respeito, a recorrente considera que o tribunal ad quo fez uma incorrecta aplicação do direito no que respeita ao modo de contagem do prazo de caducidade estabelecido nos artigos 1047.º e 1094.º do Código Civil de 1966 e artigos 63.º e 65.º do RAU, quando o fundamento de resolução do contrato de arrendamento, como neste caso, é um facto de carácter permanente, contínuo e duradouro.
ff) Com efeito, entende a recorrente que o prazo de caducidade previsto em tais normas, quando se trate de facto continuado ou duradouro, conta-se a partir da data em que o facto tiver cessado.
gg) Isto porque, segundo o seu modesto entendimento, apenas faz sentido que a negligencia ou tolerância do senhorio para com a situação infractora do contrato apenas valha como renúncia a accionar com base nos factos ou omissões ocorridos há mais de 1 ano, mas não que esse prazo tenha o pendor de legitimar essa situação infractora para o futuro, podendo o senhorio accionar o arrendatário por factos ou omissões análogos ocorridos no ano anterior a propositura da acção.
hh) O prazo de caducidade, quando se trate de facto continuado, permanente ou duradouro, só deverá correr a partir da sua cessação, quer ele se considere como facto uno e, portanto, só completo quando cessa, quer como o último dos factos constitutivos de uma série, idênticos e sucessivamente repetidos.
ii) O instituto da caducidade adoptado na lei não deve traduzir-se, pois, em incentivo e protecção a violações permanentes e actuais da lei ou dos contratos.
jj) O pensamento legislativo jamais poderia pretender isso quanto àquelas violações que ainda persistam à data da propositura da acção, como é o presente caso.
kk) Termos em que o presente recurso merece provimento, uma vez que a douta sentença proferida nos Juízos Cíveis do Porto violou, deste modo, o disposto nos arts. 219.º, 221.º, 222.º a contrario, 223.º, 393.º 1043.º, 1047.º, 1049.º, 1085.º, n.º 2, 1092.º, 1093.º, n.º 1 d), do Código Civil e 64.º e 65.º do RAU.
Nestes termos, e nos mais de direito que V. Exas. muito doutamente suprirão, deve o presente recurso ser julgado procedente, e, por conseguinte, ser a sentença recorrida revogada e substituída por outra que, respeitando os preceitos legais ínsitos no direito do arrendamento e de acordo com o supra alegado, julgue procedente a acção apresentada pela recorrente, resolvendo o contrato sub judice, sendo certo que, se assim não se entender, o que não se concede, em qualquer caso deverá a mesma ser esclarecida ou reformada.
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Nas contra-alegações, a ré defende que as estritas alegações produzidas na apelação e as conclusões da apelação não se coordenam, o que determina preclusão do conhecimento pelo tribunal de recurso das questões que não sejam simultaneamente suscitadas nas estritas alegações e nas conclusões.
Mais defende a ré que nessa descoordenação a apelação acaba por não versar a matéria do abuso do direito por banda da autora, abuso esse que tinha sido julgado verificado na sentença, ocorrendo trânsito em julgado quanto à questão do abuso do direito.
Continua a ré defendendo que fica prejudicado o conhecimento da apelação, já que a acção sempre improcederá com fundamento no abuso do direito, o qual se tem de ter como assente e como pressuposto na apelação.
A ré ainda entende que, no mais, valem os fundamentos empregues na sentença para sustentar a improcedência da acção.
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Foram colhidos os vistos legais.
A questão a decidir prende-se com a definição do estatuto jurídico de quatro das seis pessoas que se encontram no prédio, com os fundamentos da resolução do contrato de arrendamento, com a caducidade do direito de a autora resolver o contrato e com abuso de direito por banda da autora.
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Na sentença consideraram-se provados os seguintes factos:
1. No dia 28/3/2010 faleceu B….
2. Foram habilitados como seus únicos herdeiros a mulher, aqui A., com quem era casado em separação de bens, e quatro filhos M…, N…, O… e P….
3. A propriedade do prédio urbano sito na Rua …, …, freguesia …, concelho do Porto, descrito na Conservatória do Registo Predial do Porto sob o nº 10801-143 B-45 e inscrito na matriz sob o artigo 401, encontra-se registada a favor das pessoas mencionadas em 2., por dissolução da comunhão conjugal e sucessão em virtude de óbito de B….
4. Tanto o falecido marido da A. como os antecessores do prédio sempre exerceram a sua detenção, uso, fruição e disposição ininterruptamente, praticando os actos necessários à sua administração, pagando contribuições e impostos, sem consciência de estar a lesar direitos de outrem, sem violência ou oposição de quem quer que seja e à vista de todos.
5. L…, na qualidade de senhorio, e G…, na qualidade de inquilino, subscreveram o contrato designado de arrendamento, datado de 19/12/1973, o qual versa o prédio mencionado em 3), pelo prazo de um ano, sucessivamente renovável por períodos de um ano.
6. G… faleceu em 26/9/1987, no estado de casado com a ré.
7. No contrato escrito referido em 5) convencionaram os outorgantes a renda anual de 42.000 escudos, a pagar em duodécimos de 3.500 escudos.
8. Renda mensal que, por aplicação dos coeficientes legais, em Novembro de 2010 ascendia ao valor mensal de 110€.
9. Consta da cláusula terceira do contrato que “o prédio por este contrato arrendado destina-se a habitação, não podendo o arrendatário dar-lhe outro destino nem sublocar ou ceder por qualquer forma os direitos do arrendamento, no todo ou em parte, sem consentimento por escrito do senhorio (…)”.
10. E na cláusula quarta consta que “o inquilino fica obrigado a ter o prédio aqui arrendado em bom estado de conservação e limpeza, e a responder pelos prejuízos que à mesma sobrevierem por culpa ou negligência sua ou dos seus familiares e sublocatários, e só poderá fazer benfeitorias mediante consentimento, por escrito, do senhorio, e todas as que faça ficarão pertença da mesma casa, sem direito de retenção ou indemnização a título algum, para ele inquilino”.
11. A A., para efeitos de partilha e avaliação dos bens da herança, pediu uma vistoria ao prédio mencionado em 3).
12. A dita vistoria data de Agosto de 2010.
13. Na caderneta predial urbana, o prédio mencionado em 3) consta como sendo uma casa de três pavimentos, fachada Nascente e Poente, tendo quatro divisões na cave, quatro no rés-do-chão e quatro no primeiro andar, bem com um jardim.
14. As intervenções efectuadas no imóvel mencionado em 3) foram realizadas em data anterior a Agosto de 2010.
15. O prédio é serventia de mais do que uma habitação, estando o interior do prédio separado fisicamente em três habitações distintas.
16. No rés-do-chão, as portas interiores têm fechaduras reforçadas e aí reside uma família em habitação autónoma.
17. Existe neste piso uma casa de banho na varanda (aparentando ser do traçado original), cozinha (com extracção de fumos através de chaminé, aparentando ser do traçado original), uma sala e três quartos com utilização distinta, sendo um de uma criança.
18. A ré reside no primeiro andar.
19. A escadaria interior que dá acesso ao primeiro andar e à cave está fechada com portas.
20. No primeiro andar existe outra cozinha (junto à escadaria e improvisada, tendo o problema da extracção de fumos e cheiros sido facilmente resolvido pelo fácil acesso ao telhado), dois quartos, duas casas de banho (uma na varanda que poderia ser do traçado original e outra, completa, que resultou de aproveitamento da caixa de ar da chaminé do piso inferior para extracção de vapores).
21. Na cave reside um casal constituído pela filha da ré e o seu marido.
22. Nesse piso existe uma arrecadação, um quarto, uma sala TV e uma sala/estúdio, uma casa de banho na linha dos pisos superiores e um duche (estando fora da área de construção original do prédio), uma cozinha e um jardim (cuja área foi ligeiramente reduzida pelo aumento efectuado para conclusão da cozinha e duche da cave).
23. Em Dezembro de 1973 viviam na Rua …, .., no Porto:
- AG…, a sua mulher, ora ré, e os seus filhos Q…, J…, S…, T…;
- E…, a sua mulher H… e a sua filha U…; e,
- F….
24. Em Dezembro de 1973 o prédio a que se alude em 3) estava em estado degradado e a necessitar de obras.
25. Foi acordado com L… que todas as pessoas mencionadas em 23) passariam a residir no prédio mencionado em 3), dividindo entre si a renda.
26. Para o efeito, L… pôs como condições que as obras que fossem necessárias seriam efectuadas/suportadas pelos mesmos, realizar-se-ia um só contrato a figurar uma só pessoa e a renda seria apenas entregue por uma única pessoa também, o que os mesmos aceitaram.
27. As pessoas referidas em 23) dispuseram-se a efectuar obras de recuperação do prédio que lhes permitisse começar a habitá-lo de imediato e, de forma paulatina, a efectuar as diversas reparações que o mesmo carecia para lhe ir conferindo condições de habitabilidade que para si próprios conseguissem providenciar.
28. L… sabia que a habitação do prédio não seria possível sem a realização das obras.
29. Foi neste contexto que as pessoas que passaram a residir no imóvel a que se alude em 3), efectuaram diversas intervenções no mesmo, designadamente dotando-o de mais duas pequenas cozinhas, uma na cave e outra no primeiro andar.
30. Após a redução a escrito o contrato mencionado em 5), passaram a viver no primeiro andar G…, mulher e filhos, no rés-do-chão E…, mulher e filha,
31. e na cave F…, acompanhada à noite por uma filha de G…, a J…, então com 16 anos de idade.
32. Depois da morte de F…, passou ali a viver J….
33. J…, depois de casada, em Junho de 1976, passou a viver na cave também com K….
34. Depois da morte de L…, o marido da A. deslocou-se ao prédio, ficando a saber que lá viviam todas estas pessoas e do acordo que tinham com o primeiro.
35. Em 1979 nasceu ao casal E… e mulher, a filha I….
36. Há cerca de 20 anos foi solicitada por E… ao marido da A. a autorização para que fosse efectuado o tapamento de uma varanda no rés-do-chão e o tapamento do pátio existente na cave para proteger a cobertura aí já existente e a proporcionar maior conforto à habitação, melhorando uma cozinha improvisada existente.
37. O marido da A. deu consentimento para as intervenções.
38. E mais tarde verificou-as pessoalmente.
39. Verificando nessa altura a varanda do rés-do-chão envidraçada.
40. O chuveiro sito na cave sempre existiu.
41. A única casa de banho completa do imóvel sempre existiu, tendo sido substituída a banheira por um chuveiro, há mais de vinte anos.
42. Desde essa altura, todas as intervenções efectuadas pelas pessoas que habitam foram efectuadas com o acordo do marido da A..
43. Há cerca de 10 anos reforçaram as fechaduras em cada piso para evitar furtos por um dos elementos de uma família.
44. Em Janeiro de 2007 faleceu E….
45. Actualmente, vivem no prédio a ré e o filho V…, a filha da ré J… e o marido desta K…, H… e a sua filha I….
Na sentença são enunciados como não provados os seguintes factos:
1. que L…, pai do marido da A., tivesse falecido no dia 25/9/1978;
2. que a A. apenas tivesse tido conhecimento do estado do imóvel à data da vistoria mencionado em 12);
3. que tenham sido feitas obras no prédio sem autorização do senhorio;
4. que as pessoas que residem no imóvel o façam sem autorização do senhorio;
5. que a A. soubesse, concretamente, quais eram as pessoas que habitavam no prédio;
6. que a A. soubesse, concretamente, quais as obras efectuadas no imóvel e a data em que as mesmas se realizaram.
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A autora é a Herança Jacente Aberta por Óbito de B… e não a cabeça de casal que administra e representa tal herança jacente, ou seja a viúva do falecido B…, de nome C….
Alguns factos considerados, na sentença, provados e não provados reputam a própria cabeça de casal C… como autora, mas esse entendimento deve ser adaptado à dita herança jacente.
Recapitulemos as conclusões b) e c) da apelação:
””””””b) Ora, a A. entende que a sentença não é explícita relativamente ao tipo de arrendamento/direito de habitação em questão nos presentes autos quando faz tal interpretação extra contratum, sendo certo que, pronunciando-se sobre todos seus beneficiários, não esclarece se os mesmos são arrendatários, moradores usuários ou tão-só beneficiários de qualquer desses direitos.
c) Importa assim nesta sede distinguir, por um lado, quem são os arrendatários, pessoas a quem foi dado de arrendamento o imóvel dos autos, e quem são tão-só os beneficiários do arrendamento, aqueles que, em virtude de tal arrendamento, por pertencerem ao agregado familiar dos arrendatários e viverem em economia com eles, aproveitam o gozo do imóvel; e, por outro lado, quem são os moradores usuários, pessoas a quem foi atribuído o direito de habitação, e aqueles que são apenas beneficiários do direito de moradores usuários, os quais gozam do direito de habitação em razão de pertencerem à família de um morador usuário””””””.
Face a uma objecção da ré nas contra-alegações, essas conclusões são efectiva condensação das estritas alegações em que também se corporiza a apelação e não existe descoordenação entre esses dois conteúdos da apelação.
Vejamos.
A ré é arrendatária.
Com a ré pode viver no prédio o seu filho T…, uma vez que integra o seu agregado familiar [art. 1093 nº 1 al. a) e nº 2 do Código Civil (CC)].
Como bem se aponta nas transcritas conclusões b) e c), a questão central é a perfeita definição do estatuto jurídico dentro do prédio e nas relações jurídicas com a autora e/ou com a ré daqueles que em diante serão tratados como as “quatro pessoas”, a saber: J… e marido K…, H… e filha I….
A dona do prédio, a autora, não quer que as quatro pessoas aí permaneçam, conforme trecho do pedido em que solicita a entrega do prédio desembaraçado de pessoas.
Essa pretensão é apanágio radical de quem é dono, conforme arts. 1305 e 1311 nº 2 do CC, e só recuará se às quatro pessoas for consagrado, em termos positivos e inequívocos, um estatuto jurídico de permanência no prédio que possam opor à autora.
O dito art. 1311 nº 2 estabelece que a restituição da coisa só pode ser recusada ao dono “nos casos previstos na lei”.
Sucede que essa é uma pretensão de defesa que se transfere para a ré e que esta exerce para vantagem própria, já que a permanência da própria ré no prédio está ligada à legitimação, perante a autora, da presença das quatro pessoas no prédio.
Com efeito, a presente acção não é uma acção de reivindicação e as quatro pessoas não são rés.
Mas resulta daí que a alegação e demonstração do estatuto jurídico das quatro pessoas que pode ser oposto ao direito de propriedade da autora cabe à ré, uma vez que essa é a condição de subsistência do contrato de arrendamento e de permanência da ré no arrendado: se a ré não alegar e demonstrar um estatuto jurídico das quatro pessoas que se imponha às pretensões da dona, o contrato de arrendamento é resolvido, pelo que o assunto se encontra sempre centrado na ré e entronca, afinal, no objecto da acção, ou seja o pedido de resolução do contrato de arrendamento.
A sentença é a consagração do statu quo: tudo está correcto e tudo pode ficar na mesma.
Sucede que a sentença é equívoca e fluída quanto ao estatuto jurídico de permanência no prédio das quatro pessoas: não define em termos positivos e inequívocos se são arrendatários ou co-arrendatários do prédio, ou quem de entre as quatro pessoas é arrendatária ou co-arrendatária do prédio, residindo o paradigma da indefinição desse estatuto jurídico na circunstância de aludir a “beneficiários do locado” e a “pessoas (…) abrangidas pelo contrato de arrendamento”.
Transcreve-se, para tanto, o seguinte trecho da sentença.
”””””Ora, ainda que não se entendesse que as pessoas que habitam no imóvel, as primitivas por um direito próprio porque arrendatárias e bem assim o seu agregado familiar, como também a sua descendência entretanto ali nascida ou ainda no que se refere a K…, marido de J…, por reconhecimento do primitivo senhorio e mais tarde pelo marido da A., não só L… reconheceu todas as pessoas que não faziam parte do agregado familiar de G… como beneficiárias do locado, no que se lhe seguiu B…, como, ainda que se entendesse que havia fundamento de resolução, também este direito potestativo tinha caducado, pelas razões atrás expostas, que aqui se dão por reproduzidas, transmitindo-se também esta posição jurídica quanto ao imóvel da herança em causa, não podendo efectivar-se tal direito de resolução por este facto.
Se o primitivo senhorio assentiu que todas as pessoas que para ali mudaram estivessem abrangidas pelo contrato de arrendamento (…)””””””.
Como estatuto jurídico perfeito e auto-suficiente, não se podem autonomizar conceitos de beneficiários do locado e de pessoas abrangidas pelo contrato de arrendamento.
Conceitos abertos e sem consagração jurídica perfeitamente definida não se podem interpor entre a autora e o fim que ela quer dar ao seu prédio, constituindo esse o vício capital da sentença.
Os juízes podem reconhecer a existência de contratos de arrendamento, mas não os podem constituir (salvo numa hipótese especialíssima de atribuição de casa de morada de família após divórcio, prevista no art. 1793 do CC).
Caracterizemos, então, a permanência das quatro pessoas dentro do prédio e confirmemos se essa condição de facto pode ser título de resolução do contrato de arrendamento celebrado com a ré.
A sentença conclui pela subsistência do contrato de arrendamento (só aquele em que a ré é parte) e pela pura e simples improcedência da acção, sem que reconheça, de forma válida, a existência dos seguintes vínculos jurídicos:
- as quatro pessoas, ou algumas de entre elas, são arrendatárias do prédio, tendo contrato de arrendamento estabelecido com a autora ou com anteriores senhorios: seriam, dentro do prédio, outros arrendatários para além da ré, ou co-arrendatárias, tendo vínculo contratual directo com a autora;
- as quatro pessoas, ou algumas de entre elas, beneficiam do direito (real) de habitação, tendo vínculo estabelecido directamente com a autora ou com anteriores proprietários, logrando benefício de direito de habitação dentro do prédio e tendo estatuto a que a lei chama de moradores usuários.
Ainda que com diferentes consequências, na sentença também não se alude aos seguintes vínculos jurídicos:
- as quatro pessoas, ou algumas de entre elas, estabeleceram com a ré, ou com o falecido marido da ré, um contrato de subarrendamento, tendo vínculo contratual de subarrendamento estabelecido directamente com a ré, ou vínculo contratual de subarrendamento que se transmitiu para a ré;
- as quatro pessoas, ou algumas de entre elas, estabeleceram com a ré, ou com o falecido marido da ré, um contrato de subarrendamento, mas esse contrato de subarrendamento foi reconhecido por L…, ou por B…, ou pela autora;
- as quatro pessoas, ou algumas de entre elas, são hóspedes da ré, tendo vínculo de detenção sobre o prédio estabelecido com a ré.
Claro que também existe a possibilidade de as quatro pessoas, ou algumas de entre elas, não terem vínculo de natureza real ou contratual para ocuparem o prédio.
Repete-se que quem tem de invocar e demonstrar os vínculos reais ou contratuais pertinentes é a ré, já que a constatação de inexistência de vínculos oponíveis ao proprietário/senhorio pode determinar a resolução do contrato de arrendamento.
L…, senhorio, e G..., arrendatário, estabeleceram contrato de arrendamento no dia 19/12/1973 que abrange a totalidade do prédio.
O contrato foi celebrado por escrito e já em 19/12/1973 vigorava o art. 394 nº 1 do CC, norma que estabelece a inadmissibilidade de prova testemunhal para a demonstração de convenções contrárias ou adicionais ao conteúdo de documentos particulares que tenham sido empregues pelas partes contratantes para definirem os termos do contrato.
A tese alegada pela ré na contestação prende-se com a celebração de co-arrendamentos.
Na acepção alegada pela ré, para além de G… o contrato de arrendamento ainda foi celebrado com outros dois arrendatários – ou co-arrendatários – de nomes E… e F….
Por força do dito art. 394 nº 1, a ré não pode demonstrar com testemunhas que o contrato foi celebrado com qualquer outro arrendatário para além de G….
A asserção que antecede ainda é válida para uma tese passível de ser extraída da contestação da ré: o contrato foi celebrado por L… com dez pessoas, na condição de co-arrendatários, ou seja com G…, com a ré, com Q…, com J…, com S…, com T…, com E…, com H…, com U… e com F….
Imperativos de segurança jurídica básica presidem à norma do art. 394 nº 1 do CC e não podia ter sido admitida prova testemunhal para a demonstração de pontos da matéria de facto reportados ao objecto do contrato de arrendamento que não se extraem do respectivo instrumento escrito.
Nunca esquecendo que o contrato de arrendamento foi celebrado por escrito – e participado à administração fiscal no dia 27/12/1973, para começar a vigorar em 1/1/1974 –, importa ponderar a mera possibilidade de os sucessivos senhorios L…, B… e a autora terem alguma vez emitido recibo de renda a favor de pessoa distinta de G… e da ré, estabelecendo outros co-arrendatários do prédio: o recibo de renda pode ser forma de demonstrar o co-arrendamento sem recurso à prova testemunhal.
O recibo de renda era a única forma de demonstrar o co-arrendamento quando o contrato correspondente não tivesse sido celebrado por escrito e quando, mesmo assim, fosse válido, conforme previa o antigo art. 1088 do CC, norma essa que veio a ser revogada, desde 15/11/1990, pelo Regime de Arrendamento Urbano (RAU), aprovado pelo Decreto-Lei 321-B/90, de 15/10. Em 19/12/1973 ainda era possível estabelecer validamente contratos de arrendamento para habitação sem empregar a forma escrita, imposição que só surgiu com o Decreto-Lei 188/76, de 12/3. O art. 7 nº 3 do RAU (passou a art. 7 nº 2 com a redacção introduzida com o Decreto-Lei 64-A/2000, de 22/4), restaurou a imposição de só ser possível demonstrar o contrato de arrendamento verbal válido pela exibição do recibo de renda e o actual artigo 1069 do CC já só admite para os contratos por mais de seis meses a forma escrita.
Não é alegado que algum dos três sucessivos senhorios tenha emitido alguma vez recibo de renda em que surgisse o nome de alguma pessoa que não fosse G…, ou a ré, e nunca aos autos foi junto qualquer recibo de renda.
Não foi alegado, nem se entende como plausível, a existência de recibo de renda que ajudasse a demonstrar que além de G… e da ré, algum dos três senhorios reconheceu como co-arrendatário do prédio alguma das seguintes pessoas: Q…, J… [ainda ocupa o prédio], S…, T… [ocupa o prédio no âmbito do agregado familiar da ré], E…, H… [ainda ocupa o prédio], U…, F…, K… [ainda ocupa o prédio] e I… [ainda ocupa o prédio].
A cogitação do recibo de renda com alguma dessas dez pessoas destina-se a realçar a impossibilidade de demonstração do reconhecimento jurídico de algum co-arrendatário para além de G…, depois a ré, co-arrendatário esse que porventura tivesse celebrado mero contrato verbal de arrendamento.
Assim sendo, por total ausência de recibo de arrendamento e por se fundar exclusivamente em prova testemunhal que não pode ser valorada, os factos que se consideraram provados nos pontos 25 – “Foi acordado com L… que todas as pessoas mencionada em 23) passariam a residir no prédio mencionado em 3), dividindo entre si a renda” – e 26 – “Para o efeito, L… pôs como condições que as obras que fossem necessárias seriam efectuadas/suportadas pelos mesmos, realizar-se-ia um só contrato a figurar uma só pessoa e a renda seria apenas entregue por uma única pessoa também, o que os mesmos aceitaram” – têm-se por não escritos, nos termos do art. 646 nº 4 do CPC.
Importa conferir a possibilidade de existir contrato de subarrendamento estabelecido por G… e/ou pela própria ré quanto a algum elemento predial, contrato esse reconhecido por algum dos senhorios L…, B… ou autora.
O art. 1061 do CC estabelece que “A sublocação só produz efeitos em relação ao locador ou a terceiros a partir do seu reconhecimento pelo locador ou da comunicação a que se refere a al. g) do art. 1038”.
Sucede que a ré não alega que algum dos senhorios reconheceu quem quer que fosse na específica condição de subarrendatário, isso por via de contrato de subarrendamento estabelecido com G… e/ou com a ré.
Aliás, a ré defende a tese de co-arrendamento estabelecido entre os senhorios e as pessoas referidas supra e não se assume, por si ou por via do seu falecido marido, como contratante sublocadora no âmbito de subarrendamento. A ré nem sequer invoca qual a renda que cobrava ou lhe era devida por qualquer suposto subarrendatário, menção que é sempre fulcral para se poder avançar para uma tese de subarrendamento.
Não se pode partir em busca de contrato ou contratos de subarrendamento reconhecido (s) pelo senhorio primário se a ré não afirma que ela própria ou o seu falecido marido o (s) estabeleceu (ram), na condição de sublocadores (cfr. art. 1060 do CC).
Acresce que o contrato de 19/12/1973 subordina a expresso consentimento escrito do senhorio o subarrendamento do prédio e a ré não invoca qualquer consentimento escrito.
O direito real de habitação concedido pelo dono do prédio a pessoa distinta do falecido marido da ré e da ré também não logra apoio nas alegações da ré (cfr. sobre esse direito real os arts. 1484 e ss. do CC).
O direito real de habitação só pode ser constituído por escritura pública, conforme art. 89 al. a) do Código do Notariado na versão vigente em 19/12/1973, escritura essa que não existiu, e não se pode partir em busca de direito real de habitação num contexto em que a ré alega que existiram co-arrendamentos: o arrendatário não pode conciliar esse estatuto contratual com o estatuto de beneficiário do direito real de habitação, o de morador usuário.
Quanto ao direito real de habitação não se perde de vista que se trata de direito que não pode exceder a vida do beneficiário – art. 1443 do CC – e de entre as quatro pessoas só se poderia cogitar a sua titularidade originária para J… e H….
Excluída a possibilidade de existirem co-arrendamentos, subarrendamentos e direito real de habitação, a lei reserva o estatuto de hóspedes de G… e/ou da ré para os sucessivos ocupantes do prédio adiante designados, sendo certo que os filhos de G… e da ré não eram hóspedes destes enquanto integraram o respectivo agregado familiar.
- Foram hóspedes até falecerem E… e F…;
- Passou a ser hóspede e ainda é hóspede a filha de G… e da ré, de nome J…, quando, em Junho de 1976, se casou;
- Passou a ser hóspede e ainda é hóspede o genro de G… e da ré, de nome K…, quando, em Junho de 1976, se casou com J…;
- Sempre foram hóspedes H… e I…;
- Nunca foram hóspedes Q…, S… e T….
- Até ter saído do prédio, foi hóspede U….
A nomenclatura e definição de hóspede e a não aplicação desse conceito àqueles que são membros do agregado familiar do arrendatário constou no antigo art. 1109 do CC, depois no art. 76 do RAU e hoje no art. 1093 do CC.
O Novo Regime de Arrendamento Urbano (NRAU), aprovado pela Lei 6/2006, de 27/2, e as decorrentes reintroduções de normas no CC, aplica-se ao presente contrato de arrendamento, nos termos do respectivo art. 59 nº 1.
A resolução do contrato de arrendamento e os incumprimentos do contrato, bem como a matéria da caducidade, são aferidos pela disciplina do NRAU e correspondentes aditamentos ao CC.
O NRAU e os correspondentes aditamentos ao CC reeditam a nomenclatura e conceito hóspede no art. 1093 do CC, estabelecendo que no prédio arrendado para habitação podem residir um máximo de três hóspedes, “salvo cláusula em contrário” [art. 1093 nº 1 al. b)].
O art. 1038 al. f) do CC define como obrigação do arrendatário “Não proporcionar a outrem o gozo total ou parcial da coisa por meio de cessão onerosa ou gratuita da sua posição jurídica, sublocação ou comodato, excepto se a lei o permitir ou o locador o autorizar”, tendo essa norma de se conjugar com a proibição de alojar mais de três hóspedes.
A “cláusula em contrário” referida no art. 1093 nº 1 al. b) do CC que faculta a concessão de alojamento a mais de três hóspedes não é estipulação que se possa provar através de testemunhas, isso na situação, como a dos autos, em que foi celebrado contrato de arrendamento por escrito e por via do supra citado art. 394 nº 1 do CC.
No prédio sempre existiram mais de três hóspedes, hoje quatro hóspedes, conforme sucessão supra indicada, e demonstrou-se que os sucessivos senhorios sabiam que no prédio existiam mais de três hóspedes, sendo certo que esta última demonstração pode ser feita por via testemunhal
Mas esse conhecimento não supre a autorização para alojar mais de três hóspedes.
Saber que se alojam mais de três hóspedes, mesmo desde o primeiro momento de constituição do arrendamento, não equivale a autorizar que no prédio residam mais de três hóspedes.
A autorização para alojar mais de três hóspedes teria de ser concedida por escrito, nos termos da cláusula terceira do contrato de arrendamento, e a excepção de alojamento de mais de três hóspedes não se consolida com o seu conhecimento por parte de quem a ela se pode opor, nem com a concomitante passividade dessa pessoa.
Em suma: não existe “cláusula em contrário”, referida no citado art. 1093 nº 1 al. b), para se poder alojar mais de três hóspedes e o conhecimento e passividade dos senhorios quanto ao efectivo alojamento de mais de três hóspedes não corporiza autorização para que se alojem mais de três hóspedes, nem consolida a situação de excepção de no arrendado se poderem efectivamente alojar mais de três hóspedes.
O conhecimento pelos sucessivos senhorios da existência de mais de três hóspedes só se instituiria como obstáculo à resolução do contrato de arrendamento num âmbito de caducidade do direito de resolução, nos termos do art. 1085 do CC, mas constataremos que esse direito não caduca enquanto no prédio estiverem mais de três hóspedes.
O que nunca pode acontecer é o reconhecimento de jure da legitimidade de mais três hóspedes só por o senhorio saber que existem mais de três hóspedes e não estabelecer oposição a essa situação.
Manifestamente quem teria de alegar e demonstrar que existiu autorização escrita para serem alojados mais de três hóspedes seria a ré.
Não existe na nova versão do CC, introduzida pelo NRAU, a norma “O senhorio (…) pode resolver o contrato se [o arrendatário] (…) der hospedagem a mais de três pessoas (…)”, mas continua a existir essa causa de resolução do contrato de arrendamento ao abrigo da norma do corpo do nº 2 do art. 1083 do CC e da al. e) desse nº 2, sob pena de a infracção ao disposto no citado art. 1093 nº 1 al. b) nem ter repercussões na subsistência do contrato, nem ter repercussões algumas para o arrendatário.
A existência de mais de três hóspedes continua a ser fundamento de resolução do contrato de arrendamento para habitação.
Procede o pedido de resolução do contrato de arrendamento com fundamento no alojamento no arrendado de mais de três hóspedes, no caso as ditas quatro pessoas.
Essa situação de alojamento de mais de três hóspedes verificava-se à data da interposição da acção, pelo que não pode ocorrer caducidade do direito de resolução do contrato. Com efeito e nos termos do art. 1085 do CC, o prazo de um ano em que se verificaria tal caducidade só se iniciará depois de terem deixado de se alojar mais de três hóspedes no arrendado, o que ainda hoje está por acontecer. Anota-se que no supra transcrito trecho da sentença se estende a objecção de caducidade para lá da matéria de obras no arrendado, conforme trecho “também este direito potestativo tinha caducado, pelas razões atrás expostas, que aqui se dão por reproduzidas”.
As obras realizadas no arrendado distribuem-se em três categorias:
- as obras executadas para implementação de habitabilidade do prédio e que foram realizadas na sequência da celebração do contrato de arrendamento: essas obras são pressuposto de celebração do próprio contrato e estão autorizadas pelo senhorio com a mera realização do contrato, tudo porque o senhorio L… sabia que a habitação do prédio não seria possível sem a realização de obras;
- o reforço de fechaduras em portas internas e o fecho da escadaria interior com portas, suprimindo-se funcionalmente essa escadaria, bem como a substituição de uma banheira por um chuveiro, configuram-se como pequenas deteriorações lícitas, consentidas pela norma do art. 1073 do CC;
- a construção de uma pequena cozinha improvisada e de uma casa de banho completa no primeiro andar, com soluções específicas de extracção de fumos, cheiros e vapores, a construção, na cave, de uma pequena cozinha e de um duche, elementos estes que suprimiram uma área ligeira no jardim, o tapamento de uma varanda no rés-do-chão e o tapamento do pátio da cave – este último para simultaneamente proteger a cobertura que aí já existia, proporcionar maior conforto e melhorar uma das cozinhas –, não estão caracterizadas no elenco dos factos provados por forma a poder-se concluir que são obras de difícil ou onerosa desmontagem, e, mesmo entendidas em conjunto e como redundância da cozinha e das instalações sanitárias já existentes, não estão caracterizadas como elemento que corporizem os requisitos de gravidade e de consequências inelutáveis que tornem inexigível à autora a manutenção do contrato de arrendamento, nos termos do corpo do nº 2 do art. 1083 do CC. A caracterização dessas obras no elenco dos factos provados é escassa e não se divisa elemento de deterioração inaceitável do prédio, não se confirmando o entendimento da apelante na conclusão y) no sentido de ter existido mudança total da estrutura do prédio, na forma de realização de novas divisões e de alteração substantiva da sua estrutura interna. Essa terceira categoria de obras, tal como caracterizadas no elenco de factos provados, não serve como causa de resolução do contrato pela autora.
A apelação não contém pronúncia ou crítica directa sobre um trecho de abuso de direito que consta na sentença.
Trata-se do seguinte trecho:
”””” Do abuso de direito.
Finalmente, em face do que ficou dito quanto ao comportamento dos falecidos senhorios do locado em crise, ainda que se entendesse estarem preenchidos os fundamentos de facto e de direito para a resolução do contrato de arrendamento, o abuso de direito consagrado no art. 334 do Código Civil na sua modalidade de venire contra factum proprium impediria a A. de agir contra as pessoas que vivem no locado e ali fizeram as necessitadas obras, durante a vigência do contrato ao tempo dos primeiros locadores e com o seu conhecimento”””””.
A presente apelação é a expressa e substantiva negação do caso julgado que alguma vez se pudesse extrair da própria fundamentação da sentença, nos termos dos arts. 671 nº 1 e 673 do CPC (anote-se a destrinça entre o caso julgado que reside nos fundamentos da sentença – por vezes admissível – e o caso julgado que reside na decisão da sentença): precisamente por existir o presente recurso, improcede a tese das contra-alegações no sentido de se ter constituído caso julgado quanto ao fundamento da sentença que se prende com o abuso de direito.
A ré suscitou a excepção peremptória de abuso de direito na contestação.
Importa ter presente o disposto no art. 684 nº 3 do CPC, norma que prevê a restrição do objecto do recurso em função do alcance das conclusões.
Sucede que a apelante discute validamente na apelação premissas de discordância sobre a condição jurídica reconhecida a quatro pessoas na sentença, assim estabelecendo crítica mais do que suficiente à incipiente conclusão de abuso de direito inserta na sentença.
Com efeito, o trecho sobre abuso de direito que vai transcrito é difuso e é instituído com base em pressupostos que são arvorados a meras premissas condicionais ou subsidiárias – expressão “ainda que se entendesse” – e a própria conclusão de abuso de direito é instituída como resultado eventual, conforme emprego do modo condicional no verbo impedir – expressão “impediria”.
É manifesto que na sentença não existe uma definição estruturada e positiva de abuso de direito por banda da autora e basta a esta última criticar – como critica – nas conclusões da apelação as premissas sobre a condição jurídica reconhecida, ou aventada, às ditas quatro pessoas na sentença para que as conclusões da apelação se instituam como crítica mais do que suficiente ao incipiente trecho dos fundamentos da sentença sobre esse abuso.
A autora logra a qualificação do estatuto jurídico das quatro pessoas como hóspedes, assim estabelecendo crítica primária e fundamental a uma (incipiente) conclusão de abuso de direito, a qual nunca – nem implicitamente – equaciona esse estatuto jurídico.
Não se verifica a limitação decorrente do art. 684 nº 3 citado à discussão no presente acórdão da matéria de abuso de direito por parte da autora quanto à pretensão de resolução do contrato.
Mas ocorre abuso de direito?
Recapitula-se que os sucessivos senhorios sabiam que no prédio se alojavam mais de três hóspedes e nunca se esquece que a autora pretende sacrificar a habitação de seis pessoas, distribuídas por três agregados familiares.
Não se entende que a autora incorre na situação de venire contra factum proprium pela circunstância de os sucessivos senhorios saberem que no prédio se alojavam mais de três hóspedes e a única objecção que se poderia estabelecer a esse conhecimento dos senhorios seria o decurso de mais de um ano sem pedido de resolução depois de o prédio deixar de ter hóspedes, ou passar a ter três hóspedes, ou passar a ter menos de três hóspedes: em suma, a objecção em causa resumir-se-ia à caducidade do direito de resolução, a qual vimos não proceder.
A autora não pode estar perpetuamente vinculada a aceitar uma situação em que no prédio existem mais de três hóspedes, só porque sabe que eles existem.
Restringir o exercício do direito da autora à resolução do contrato perpetuaria uma situação de ocupação do prédio por pessoas que ali não têm estatuto jurídico oponível à autora/proprietária, consagrando situação de facto que é contrária ao direito de propriedade da autora, além de ser contrária à prerrogativa da autora/senhoria de, em qualquer momento, limitar o uso do arrendado por mais de três hóspedes.
Note-se que nessa situação a autora fica impedida de reivindicar o prédio às ditas quatro pessoas, ou até a um número superior de hóspedes que porventura se possam vir a alojar no arrendado.
Nunca perdendo de vista o sacrifício da habitação de seis pessoas, entende-se que a autora exerce em termos razoáveis e conformes com a boa fé, com os bons costumes e, sobretudo, com o respectivo fim económico e social, o direito de resolução do contrato de arrendamento.
Não há abuso de direito por parte da autora.
A apelação procede e o pedido formulado pela autora procede inteiramente.
Para os efeitos do art. 713 nº 7 do CPC formula-se o seguinte sumário:
- A existência de mais de três hóspedes continua a ser fundamento de resolução do contrato de arrendamento para habitação.
- Não existe na versão do Código Civil introduzida pelo Novo Regime de Arrendamento Urbano a antiga norma “O senhorio (…) pode resolver o contrato se [o arrendatário] (…) der hospedagem a mais de três pessoas (…)”, mas continua a existir essa causa de resolução do contrato ao abrigo da norma do corpo do nº 2 do art. 1083 do Código Civil e da al. e) desse nº 2, sob pena de a infracção à proibição prevista nos arts. 1093 nº 1 al. b) e 1038 al. f) do Código Civil não ter repercussões na subsistência do contrato, nem ter repercussões algumas para o arrendatário.
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Em face do exposto, acordam os Juízes em julgar procedente a apelação e revogam a sentença.
Mais decidem os Juízes julgar a acção totalmente procedente, pelo que decretam a resolução do contrato de arrendamento e condenam a ré a entregar à autora o prédio arrendado, livre e desembaraçado de pessoas e coisas, no dia que se segue ao dia do trânsito em julgado do presente acórdão.
Custas pela ré.

Porto, 14/6/2012
Pedro André Maciel Lima da Costa
Filipe Manuel Nunes Caroço
Teresa Santos