Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
100/12.4GAVLC.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOSÉ CARRETO
Descritores: COMISSÃO POR OMISSÃO
HOMICÍDIO POR NEGLIGÊNCIA
Nº do Documento: RP20150121100/12.4GAVLC.P1
Data do Acordão: 01/21/2015
Votação: MAIORIA COM 1 DEC VOT
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: PROVIDO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – O crime omissivo pressupõe a violação de um dever jurídico de fazer algo (de agir) para evitar um resultado.
II – O dever do agente consiste em agir para evitar a lesão do bem jurídico que se concretiza com a produção do evento material.
III – Só há crime por negligência se o resultado tiver ocorrido por desatenção ou falta de observância do dever de cuidado que era exigido ao agente, objetivamente previsível e o resultado evitável, caso tivesse agido de acordo com esse dever.
IV – Na omissão tem de ocorrer uma ausência da acção capaz de evitar o resultado ou omissão da ação salvadora – o que pressupõe a existência de um perigo concreto para os bens jurídicos afectados que confira sentido à omissão do agente.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Rec n º 100/12.4GAVLC.P1
TRP 1ª Secção

Acordam em conferência os juízes no Tribunal da Relação do Porto

No Proc. C. S. nº 100/12.4GAVLC.P1 do 2º Juízo do tribunal Judicial de Vale de Cambra foram julgados os arguidos
B…, e
C…

e após julgamento por sentença de 14/1/2014 foi proferida a seguinte decisão:
“Pelo exposto, e ao abrigo das supras citadas normas, decido:
A) Condenar o arguido B…, pela prática, em autoria material, de um crime de homicídio negligente, previsto e punido pelo artigo 137.º, n.º 1, do Código Penal, na pena 250 (duzentos e cinquenta) dias de multa, à taxa diária de €5,00 (cinco euros), no total de €1.250,00 (mil duzentos e cinquenta euros).
B) Condenar a arguida C…, pela prática, por omissão, de um crime de homicídio negligente, previsto e punido pelos artigos 10.º e 137.º, n.º 1, ambos do Código Penal, na pena de 250 (duzentos e cinquenta) dias de multa, à taxa diária de €6,00 (seis euros), no total de €1.500,00 (mil e quinhentos euros).
C) Condenar o arguido B… pela prática de duas contraordenações, prevista pelo art.º 24.º, 25.º, 134.º, n.º 2, 145.º, n. 1. al. e) e 147.º, todos do Código da Estrada, na sanção acessória de inibição do exercício da condução pelo período de 2 (dois meses), por cada infração.
D) Condeno o arguido B…, ao abrigo do disposto no art. 134.º do Código da Estrada, em cúmulo jurídico material de sanções acessórias, na sanção acessória de inibição do exercício de conduzir pelo período de 4 (quatro) meses.
*
Determino, ao abrigo do disposto no art.º 160.º, n.º 1 do Código da Estrada, a apreensão da sua carta de condução, em ordem ao cumprimento efetivo de sanção acessória de inibição do exercício da condução pelo período de 4 (quatro) meses.”

Recorreram os arguidos os quais no final das respectivas motivações apresentam conclusões, das quais emergem as seguintes questões:
Recurso do arguido B…
- impugnação da matéria de facto;
- as contraordenações em que foi condenado não foram causais;
- não teve culpa do acidente, sendo a culpa da lesada;
- suspensão da execução das sanções acessórias de inibição de condução;
Recurso da arguida C…
- impugnação da matéria de facto
- insuficiência para a decisão da matéria de facto provada
- erro notório na apreciação da prova, e
- violação do princípio in dubio pro reo.

Respondeu o MºPº a ambos os recursos pugnando pela manutenção da decisão.
Nesta Relação o ilustre PGA emitiu parecer no sentido da improcedência dos recursos

Por decisão sumária de 9/7/2014 do Exmº Relator foi decidido:
“julgam-se manifestamente improcedentes os recursos interpostos, mantendo-se, consequentemente a decisão recorrida”

Reclamou para a conferência a arguida C… para que sobre o decidido recaísse acórdão.
Notificados os sujeitos processuais não se pronunciaram
Procedeu-se à conferência com observância das formalidades legais.
Após mudança de relator, cumpre apreciar.

É do seguinte teor a sentença recorrida (transcrição):
III. Fundamentação de facto
3.1. Factos provados
Instruída e discutida a causa, com interesse para a boa decisão da mesma encontram-se provados os seguintes factos:
1.º No dia 10 de março de 2012, cerca das 10h05, o arguido B… conduzia o veículo automóvel ligeiro, de matrícula ..-..-MQ, na Estrada Nacional n.º …, na localidade …, em Vale de Cambra, no sentido Vale de Cambra/Arouca.
2.º Essa estrada, ao km. 48,100, possui 6,15 metros de largura de faixa de rodagem, pavimento em asfalto betuminoso em bom estado de conservação e, nesse dia, seco, e é constituída por duas vias de trânsito, uma para cada sentido de marcha, separadas por uma marca rodoviária denominada linha longitudinal contínua (M1), formando a estrada, nesta extensão, um traçado com curva à esquerda, seguida de curva à direita com uma inclinação ascendente atento o sentido em que seguia o arguido.
3.º A faixa de rodagem encontra-se delimitada, de ambos os lados, por guias (marca M19) e, do seu lado direito, no sentido Vale de Cambra/Arouca, é, após a guia, marginada por berma, com largura variável.
4.º Nesse dia, D…, nascida a 15.05.2008, encontrava-se à guarda e cuidados da arguida, C…, sua avó materna, tendo-a acompanhado até ao minimercado, situado naquela Estrada Nacional, do lado direito, no sentido Vale de Cambra/Arouca.
5.º Assim, cerca das 10h00, quando a arguida C… estava dentro do minimercado com a menor, esta saiu sozinha do mesmo, sem que a avó a segurasse ou de qualquer outra forma controlasse os seus movimentos.
6.º Já fora do estabelecimento e sem que ninguém estivesse junto a si, a menor saltitou nos degraus, existentes à saída da porta do mesmo, e na berma, situada antes da linha guia ali existente.
7.º O arguido viu a menor junto à porta do estabelecimento, nas circunstâncias referidas em 6.º, a, pelo menos, 17,27 metros.
8.º Quando o arguido se aproximava do estabelecimento, ao volante do MQ, a menor saltitou para a via de trânsito, transpondo a marca relativa à guia, entrando, dessa forma, cerca de 50/60cm da linha guia na faixa de rodagem destinada ao trânsito automóvel, no sentido em que seguia o arguido B….
9.º O arguido viu a menor saltitar para a sua faixa de rodagem a, pelo menos, 4,85metros.
10.º Em virtude da velocidade a que seguia, 50km/h, e apesar de ter desviado a sua trajetória para a esquerda, não travou de imediato, nem conseguiu imobilizar o veículo em tempo e de modo a evitar o embate, acabando por bater com a parte frontal direita do veículo que conduzia no lado esquerdo do corpo de D… fazendo com que esta embatesse com a cabeça no capô e, depois, fosse projetada para a berma do lado direito da via no espaço compreendido entre o limite do edifício do minimercado e um poste de iluminação.
11.º Esta colisão ocorreu na faixa de rodagem da direita, atento o sentido em que seguia o arguido, espaço destinado à circulação automóvel, e a cerca de 50/60 cm de distância da linha guia, atento o sentido de marcha Vale de Cambra/Arouca.
12.º Em virtude do embate, D… sofreu ferimentos, tendo sido socorrida no local pelos Bombeiros Voluntários … e transportada até ao Hospital de São João, no Porto, onde foi internada e submetida a cirurgia laparotomia exploradora com esplenectomia e craniotomia descompressiva, mantendo coma arreativo com midríase fixa e, após, evolução para morte cerebral, tendo sido verificado o seu óbito no dia 13 de março de 2012, pelas 12h14m.
13.º Como consequência direta e necessária da colisão, D… sofreu as lesões traumáticas crânio-meningo-encefálicas melhor descritas no relatório de autópsia de fls. 28 a 37, que se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais, que foram causa da sua morte, designadamente:
a) nas meninges, edema, com filme hemorrágico extradural e hemorragia subaracnoideia generalizada, mais intensa no hemisfério esquerdo, com congestão vascular generalizada;
b) no encéfalo: edema, perda encefálica dos lobos frontais, com múltiplas áreas de infiltração sanguínea corticais generalizadas, com congestão do parênquima.
14.º Antes da curva que antecede o minimercado e o local onde ocorreu o embate encontrava-se colocado sinal vertical de perigo (A14) alertando os condutores que se trata de local frequentado por crianças.
15.º No início dessa mesma curva encontrava-se colocado sinal de perigo avisando da aproximação de uma passagem de peões (sinal A16a) e, após, sinal alertando para a aproximação de entroncamento com via sem prioridade à esquerda (sinal B9a) e imediatamente antes do local de embate sinal avisando a proximidade de uma sucessão de curvas perigosas, a primeira das quais à direita (sinal A1c).
16.º A complementar estes sinais, imediatamente antes do minimercado e do local onde ocorreu o embate encontravam-se apostas na via, em tinta branca visível, bandas cromáticas (marca M20) que consistem numa sequência de vários pares de linhas transversais contínuas com espaçamentos degressivos alertando os condutores para a necessidade de praticar velocidades mais reduzidas naquele local.
17.º Por se tratar de estrada ladeada de habitações, o limite máximo de velocidade permitida era de 50 km/h, velocidade esta que deveria ter sido reduzida pelo arguido em virtude da sinalização de perigo acima indicada.
18.º Depois do embate, o veículo conduzido pelo arguido ficou imobilizado após a passagem de peões, a 34,68metros de distância da porta do minimercado, em posição oblíqua em relação ao eixo da faixa de rodagem, com a frente na berma.
19.º No pavimento não existiam marcas de travagem, nem outras marcas de pneumáticos, apenas vidros partidos espalhados pela via da direita atento o sentido Vale de Cambra/Arouca, antes da passagem assinalada para a travessia de peões.
20.º Em virtude do embate, o veículo conduzido pelo arguido ficou com a ótica do lado direito partida, o capô, guarda-lamas e para-choques amolgados.
21.º Submetido a exame de pesquisa no sangue B… não apresentava presença de etanol, mas uma concentração de 8,60 ng/mL de THC-COOH, devido ao consumo, na noite anterior, de cannabis.
22.º O arguido B… atuou de forma livre e consciente, conhecendo as regras de cuidado a que estava obrigado para a condução de veículos automóveis, bem sabendo que circulava em estrada nacional e que, naquele local, devia reduzir especialmente a velocidade a que seguia e dedicar a sua atenção ao trânsito e aos peões por ser local ladeado de edificações e frequentado por crianças, por se aproximar de passagem de peões e entroncamento e atendendo à aproximação de troço com curvas perigosas, o que o arguido não fez, bem sabendo que poderiam surgir crianças e que, ao agir desse modo, não conseguiria imobilizar o veículo em segurança sem atingir os demais utentes da via, como veio a suceder.
23.º Em virtude de seguir a velocidade excessiva para o local, por não ter reduzido a velocidade a que seguia e, por conduzir de forma descuidada e desatenta, o arguido B… apesar de ter visto D…, criança de apenas 4 anos de idade, na berma e depois na sua faixa de rodagem, não travou, nem imobilizou o veículo que conduzia de forma a evitar o embate, não tendo assim atuado com o cuidado e a prudência que podia e devia, por ser capaz e a tanto estar obrigado, prevendo que, ao atuar desse modo, poderia provocar, como provocou, um acidente e a morte de crianças que entrassem na faixa de rodagem e que por si fossem atingidas, como sucedeu com D…, mas sem que se tivesse conformado com esse resultado.
24.º A arguida C… atuou de forma livre e consciente, sabendo que D… tinha apenas 4 anos de idade e se encontrava à sua guarda e cuidados, e por esse motivo, sobre si impendendo um dever de vigilância, quando estavam no minimercado não a deveria deixar sair sozinha, devendo segurá-la pela mão, afastando-a da faixa de rodagem e impedindo-a, de qualquer modo, de brincar ou correr naquele local, o que não fez, antes a tendo deixado sair sozinha do estabelecimento sem a segurar pela mão, nem a acompanhar a distância suficiente para a impedir de correr para a faixa de rodagem prevendo que, ao atuar desse modo, D… poderia entrar na via e ser atingida mortalmente por veículo automóvel, como veio a suceder, mas sem que se tivesse conformado com esse resultado.
25.º Os arguidos sabiam que as suas condutas acima descritas eram proibidas e punidas por lei penal.
*
Quanto à situação económica e social do arguido provou-se que:
26.º O arguido é casado e encontra-se desempregado, auferindo cerca de €358,00 mensais de subsídio de desemprego;
27.º Tem dois filhos menores;
28.º A mulher está desempregada;
29.º Vivem em casa arrendada, pela qual pagam €300 euros mensais;
30.º Estudou até ao 8.º ano de escolaridade.
*
Quanto à situação económica e social da arguida provou-se que:
31.º A arguida C… é viúva, vive em casa própria com uma filha e dois netos;
32.º Recebe mensalmente €150,00 de subsídio de viuvez e €259,00 de reforma.
*
Da contestação do arguido provou-se que:
33.º O arguido é reputado como sendo uma pessoa trabalhadora, bom marido, bom pai e bom filho;
34.º Respeitador e respeitado no meio em que vive;
35.º Sendo considerado um condutor prudente.
*
Da contestação da arguida provou-se que:
36.º A arguida sempre cuidou de crianças, sendo responsável por as levar e ir buscar à escola e sempre o fez de forma responsável, cuidadosa, efetuosa e disponível;
37.º É respeitadora e respeitada no meio onde vive;
38.º Reputada como boa pessoa, educada e afável.
*
Quanto aos antecedentes criminais dos arguidos provou-se que:
39.º Não são conhecidos antecedentes criminais à arguida C…;
40.º O arguido B… foi condenado pelo 2.º Juízo do Tribunal Judicial de Oliveira de Azeméis, por sentença transitada em julgado em 04.02.2013, na pena de 110 dias de multa, pela prática, em 23.09.2011, de um crime de ofensa à integridade física simples, substituída por trabalho a favor da comunidade.
*
Quanto ao cadastro rodoviário do arguido provou-se que:
41.º Do RIC do arguido nada consta.
*
3.2. Factos não provados.
Não se provaram quaisquer outros factos relevantes para a decisão da causa para além ou em contradição com os factos que foram dados como provados, designadamente da acusação não se provou que:
a) Nas circunstâncias de tempo e lugar referidas em 5.º e 6.º dos factos provados a arguida C… estava na berma daquela estrada, em frente à porta desse estabelecimento, a conversar com pessoa de identidade não concretamente apurada.
b) A menor D…, iniciou a travessia da via de forma repentina e perpendicular ao eixo da mesma.
*
3.3. Motivação da decisão de facto.
Quanto à matéria da acusação, o Tribunal fundou a sua convicção com base na análise crítica do conjunto da prova produzida e analisada em audiência de discussão e julgamento, valorada em conjugação com as regras da experiência comum e da normalidade, nomeadamente as declarações prestadas pelos arguidos, os depoimentos produzidos pelas testemunhas arroladas e oficiosamente inquiridas, os relatórios periciais de autópsia médico-legal e documentos pertinentes à descoberta da verdade material e boa decisão da causa juntos aos autos, analisada criticamente de acordo com o princípio da livre apreciação, prevista no art.º 127.º, do Código de Processo Penal.
*
Em primeiro lugar sopesaram os relatórios periciais de autópsia médico-legal de fls. 28 a 31; relatório do serviço de toxicologia forense de fls. 43; relatório de perícia médico-legal para avaliação do estado de toxicodependência de fls. 273 a 275 e de fls. 392 a 395; relatório de perícia médico-legal de psiquiatria de fls. 366 a 367; relatório de exame pericial para cálculo de velocidade de fls. 378 a 383.
No que concerne à prova documental, valorou-se a participação de acidente de viação e aditamentos de fls. 2 a 8, 41 e 42, 172 e 173; relatório final de fls. 174 a 223; Registo Individual do Condutor de fls. 390; certidão de nascimento de fls. 400.
Foi ainda valorizado o auto de reconstituição de fls. 318 a 359.
*
Primordial para a descoberta da verdade foi, de igual modo, a inspeção judicial realizado ao local, que permitiu percecionar as caraterísticas da via, local do embate, onde se encontravam posicionadas as testemunhas e visibilidade das mesmas.
*
Em seguida, diga-se que resulta demonstrado de forma inequívoca, designadamente porque admitido pelos arguidos, e pela demais prova, parte dos factos constantes da acusação, em particular o dia, mês, ano e hora do embate; que o arguido B… nas circunstâncias de tempo e lugar constante do libelo acusatório conduzia o automóvel referido na acusação na EN …, no sentido Vale de Cambra/Arouca, na localidade …, em … e que nesse dia D…, nascida a 15.05.2008, encontrava-se à guarda e cuidados da arguida C…, sua avó materna, tendo-a acompanhado até ao minimercado situado naquela Estrada Nacional, do lado direito, atento o sentido Vale de Cambra/Arouca.
De igual modo se mostra demonstrado inequivocamente as caraterísticas da via e a sinalização ali existente, prova esta que resulta, além do mais, das declarações do arguido que as admitiu, da participação de acidente, do relatório final elaborado pelo Núcleo de Investigação de Acidentes de Viação da GNR e que examinou o local, tal como a deslocação ao local pelo Tribunal, decorrendo a sua prova ainda do depoimento do agente da GNR que o elaborou o Croqui e que aqui o confirmou, o guarda E….
Quanto aos sinais do acidente a sua prova resulta dos depoimentos dos agentes da GNR que em primeiro lugar se deslocaram ao local guarda F… e mais especificamente do depoimento do guarda G… que procedeu à elaboração da participação de acidente e que recolheu as imagens do dia do acidente constantes de fls. 216 e 217 dos autos, nelas sendo visível alguns dos vidros espalhados e quanto aos danos existentes no veículo, a que acresce ainda o depoimento do guarda instrutor do processo, guarda E…, que o examinou, assinalando os danos, fotografando-os e medindo-os, como consta do relatório final e das fotografias anexas.
*
Vejamos, agora, quanto aos demais factos que exigem a sua ponderação, em concreto, a dinâmica do acidente, o posicionamento da vítima e da avó, o local de embate e posição final do corpo, o avistamento da vítima pelo arguido, porquanto em audiência de julgamento foram apresentadas várias versões, algumas contraditórias entre si, outras que se complementam, sendo possível, e pelos motivos que passaremos a expor, concluir nos termos descritos da forma como dados como provados.
Vejamos, então, em que se baseou o tribunal para dar como provados os factos da forma como o foram.
*
Vejamos, primeiramente quanto às declarações dos arguidos, isto porque ambos optaram por prestar declarações.
Diga-se, desde já, como veremos infra, que as declarações dos arguidos não colheram aceitação na sua totalidade, mormente no que concerne à dinâmica do acidente, não apenas porquanto contrárias entre si, mas não corroboradas pela restante prova carreada para os autos (ao menos que fosse fiável, como se explicará infra), isto em conjugação com as regras da experiência.
De ambos os depoimentos dos arguidos, como já referimos supra, contraditórios entre si, com versões diferentes do sucedido e de igual modo distintos do preconizado em sede de acusação pública, foi percetível que ambos não pretenderam assumir as suas responsabilidades pelo sucedido, antes tendo procurado imputá-las ao outro, tentando por todos os meios eximirem-se a qualquer responsabilidade no sucedido.
De igual modo, e para além da supramencionada contrariedade das declarações de ambos os arguidos, acresce que as declarações que prestaram foram-no, em parte, eivadas das mais diversas incongruências, especialmente no confronto com as regras da experiência comum e do normal acontecer, bem como foram contraditadas por prova testemunhal que, como veremos infra, nos mereceu total credibilidade.
Isto para dizer que as declarações dos arguidos, no que diz respeito à dinâmica do acidente, não mereceram a total credibilidade por parte deste Tribunal.
*
Começando pelas declarações do arguido B…, e aqui fazendo uma análise global das declarações por si prestadas para destacar alguns pontos que consideremos serem de nota.
Este arguido assentiu que, nas circunstâncias de tempo e lugar melhor discriminadas no libelo acusatório, conduzia o veículo automóvel aí identificado.
Admitiu que circulava à velocidade de 50km/h. Reconheceu que conhece a via e sabe que a mesma na direção que seguia tem vários sinais, designadamente, sinal de proximidade de curvas perigosas, sinal de bandas sonoras, sinal perigo de travessia de crianças e sinal de passagem de peões. Assentiu que o tempo nesse dia e hora estava bom e a via estava em bom estado de conservação.
Sustentou que se apercebeu, logo após ter feito a curva à esquerda, da presença da menina, aqui vítima, em frente à porta do minimercado, no patamar inferior ao nível da estrada, que se situava do lado direito atento o seu sentido de marcha, e apresentava-se de costas para si e virada para uma pessoa, que mais tarde veio a saber tratar-se da sua avó, a qual conversava com um homem de chapéu, sem que estivesse a ser segura por ninguém.
Argumentou que não reduziu a velocidade porque já vinha devagar, ou seja a 50 Km/h, e quando se encontrava a menos de um metro do local onde a menina se encontrava, em cima das últimas bandas cromáticas, existentes perto da entrada do minimercado, esta iniciou o atravessamento da via, a correr, e atravessou-se à sua frente, entrando na faixa de rodagem, o que fez na diagonal, diagonal essa no sentido Vale de Cambra/Arouca; não teve tempo de travar, só se desviou para o lado esquerdo. Explicou que a menina saiu do minimercado para uma entrada do outro lado da estrada, porque pretendia entrar numa entrada que fica do outro lado, a cerca de 3 metros do local.
Desenvolveu que a menina estava próximo da linha contínua, mas ainda na sua faixa de rodagem, quando lhe bateu, e o corpo foi projetado para a frente e caiu junto ao poste de eletricidade aí existente do lado direito, atento o seu sentido de marcha. Após, a avó pegou na menina no colo, mas não saiu desse local.
Aduziu que não travou o veículo quando avistou a menina, apenas desviou para o seu lado esquerdo e mesmo depois de a ter colhido não travou e ainda com o veículo em andamento saiu do carro deixando a mulher, os filhos e a mãe dentro do mesmo, e o motor ficou a trabalhar, desengatou a mudança e ficou parado do lado direito, tendo sido depois o agente da GNR que lhe desligou o veículo.
Confirmou que os danos no veículo são os visíveis nas fotos de fls. 212 e 214 e 216.
Confrontado com o auto de reconstituição dos factos de fls. 335 e s., confirmou o mesmo, esclarecendo que indicou aos militares a dinâmica e posição das pessoas.
De igual forma, confirmou as fotografias de fls. 337 e 338, os concretos números colocados na estrada e as bandas cromáticas aí existentes.
Estas declarações do arguido, numa primeira análise, pareceriam corroboradas pelos depoimentos das testemunhas H…, sua esposa, e I…, sua mãe, testemunhas arroladas na acusação e que seguiam no interior do veículo por si conduzido, como veremos de seguida.
*
Quanto ao depoimento de H… mulher do arguido, esta confirmou na sua maioria as declarações prestadas pelo arguido, seu marido, relatando que viu, logo após a curva, a presença de um grupo de pessoas perto da menina, a avó e um homem de chapéu, a menina estava virada para a estrada e a avó virada para Arouca e o senhor de chapéu virado para Vale de Cambra, sem que ninguém segurasse a menina que se encontrava na berma a cerca de 1 metro da avó e, a dada altura, aquela começou a correr de forma enviesada para cima, tal como havia referido o marido. Quando a viu correr estavam muito próximo dela. Coincidem ainda quanto à reação antes e depois do embate, projeção do corpo e posição da vítima, que disse estar quase a meio da hemi-faixa de rodagem, tendo caído junto ao portão verde ali existente.
Afirmou que era curta a distância quando a menina ia atravessar a estrada e o marido guinou antes do embate e bateu do lado direito da ótica na esquina da frente e atingiu a menina do lado esquerdo do abdómen e a seguir o corpo saltou, bateu com a cabeça no capô e foi projetada pelo ar, onde caiu junto ao portão.
Argumentou que o marido não reduziu a velocidade após a sinalização, justificando que já circulava a cerca de 50Km/h.
Nesse mesmo segmento argumentativo confirmou que o marido saiu do carro sem o parar e quando saíram do carro foi a testemunha que o foi travar.
Atestou a presença de uma senhora no local, apeada do lado direito, atento o sentido de marcha que seguiam e um pouco antes do local do embate.
Confirma ter visto a menina junto ao minimercado na posição da fotografia de fls. 341, 1 foto.
Explicou que a menina começa a correr entre as duas últimas marcas existentes no solo, da fotografia de fls. 341.
Discorreu sobre a situação económica e social do arguido.
*
Quanto ao depoimento de I…, mãe do arguido, diga-se, desde já, que o depoimento desta não será valorado porque pecou o seu relato, na nossa ótica, por inverosímil, e por isso não credível, não só por ter relatado mais do que aquilo que poderia ter visto, não nos parece normal que uma senhora que segue no banco de trás, com um neto de cada lado, numa viagem descontraída, se encontrasse a prestar a atenção que quis fazer crer ao que sucedia no exterior do veículo do lado direito da estrada, local onde se encontrava a vítima, afirmando ter visto todo o sucedido, desde o momento em que a menina estava na berma, o início da travessia da estrada até ao embate, apenas tendo perdido o contacto visual nessa altura. Ora, isso não é possível e não é possível porque os movimentos da criança situavam-se do seu lado direito, estava esta de acordo com o que disse, baixada, do lado da estrada em que seguia o veículo e por isso com menor ângulo de visão, principalmente num veículo em movimento, pelo que, parte dos factos que esta testemunha descreveu não poderia ter visto por o seu campo de visão estar obstruído pelo banco ocupado por H….
Mas mais do que isso, inquirida a testemunha G…, que elaborou a participação de acidente e que nele identificou as pessoas que o presenciaram, disse ter questionado os presentes sobre essa identificação, aí fazendo constar aqueles que foram identificados como o tendo visto – ora entre essas pessoas consta efetivamente H…, consta J…, a que já nos iremos referir, mas não consta I… como constaria caso tivesse, como quis fazer crer, visto o acidente.
Finalmente esta testemunha estranhamente é capaz de fazer afirmações quanto a pormenores específicos, designadamente quanto aos presentes no exterior junto da menina, posições e condutas, mas sem que seja capaz de relatar comportamentos que se deveria lembrar com maior detalhe e que não foi capaz de descrever de modo cabal, como o desvio do veículo ou as circunstâncias da sua imobilização, fatores que nos levam mais uma vez a crer que não tenha presenciado os factos que afirmou e do modo como os relatou.
Tanto que, a final, acabando por contradizer não só o arguido, como H…, afirmou que a menina iniciou um trajeto de atravessamento da via de modo diagonal, mas não no sentido de Arouca, como disse o seu filho, antes na direção da viatura em que seguiam, isto é, no sentido exatamente oposto.
Acresce, ainda, que apesar de referir a presença perto da menina e da avó de um homem, descreve um comportamento da menina que mais ninguém relata - que estaria agachada e depois levantou-se e fez-se à estrada - coloca a avó, a menina e o homem em posições diferentes das do arguido e de H…, faz uma descrição diferente do homem misterioso, não muito alto, depois de meia estatura, pelos outros referido como alto, indicando um local de embate que é incongruente com o movimento de desvio realizado e com a parte do veículo que atingiu a menor.
Por todos estes motivos, este depoimento não mereceu qualquer credibilidade
*
Aqui chegados podemos atestar que o relatado supra é a primeira versão do acidente. Porém trata-se de versão que não se nos afigurou verdadeira.
Na verdade, como vimos supra, quer o arguido quer a sua mulher H… afirmam que a menina iniciou a travessia da faixa de rodagem quando se encontravam a cerca de 1 metro dela e que o local de embate ocorreu perto da linha contínua (atendendo à largura da estrada depois da menor percorrer uma distância de cerca de 3 metros a pé), ou seja, tendo o arguido se apercebido da menina no exato momento em que ela começa o trajeto, deslocando-se a menina a pé e o arguido de carro, a menina consegue percorrer 3 metros antes do embate até ao local da colisão o que se nos afigura impossível pois se numa viatura em movimento alguém tivesse visto uma criança a correr a três metros de distância, que seja, pela velocidade a que a viatura seguia, não embateria na criança, porque esta uma velocidade inferior não conseguiria percorrer tantos metros até ao veículo antes de ser atropelada, quanto mais a apenas 1 metro; no ponto onde convergiram daqui é possível afirmar que o ponto de impacto não foi aquele que o arguido afirma nas suas próprias declarações, decorrendo que teria de ser mais próximo da berma do que o que referem o arguido e H….
Para além disso, é manifestamente estranho o relato que fazem da presença de um homem alto, com caraterísticas não muito normais, de fato e de chapéu e que misteriosamente desaparece do local, sem se aproximar da vítima ou do condutor, sem se identificar e sem que seja identificado por nenhuma das outras pessoas que ali estavam ou que para ali foram, nem mesmo após as diligências de investigação efetuadas pela GNR, como referiu o agente E…. Trata-se por isso de figura que reveste caraterísticas de ficção tanto mais que, não tendo qualquer intervenção nos factos, não possuía qualquer razão para não se identificar, nem para não ser identificável. E que mesmo depois do esforço do Tribunal para ser encontrado, tendo sido referido pelas testemunhas, donas do estabelecimento comercial, que com essas caraterísticas apenas poderia ser o homem que vendia chouriço na loja, e sendo chamado a testemunhar, declarou nada saber, nem nunca ter ido à loja ao sábado, nem sequer conhecer a arguida.
Quanto à reação do condutor após o acidente se não travou antes, como modo de evitar o embate, apenas tendo desviado para a esquerda, o que nos parece razoável, já não é razoável que depois de se ter apercebido do embate, não tenha travado a viatura, já não de modo a evitar o acidente, mas como forma de imobilizar o veículo que conduzia, mencionando mesmo, de forma irrealista, na nossa perspetiva, que saiu do carro em movimento, sem qualquer preocupação de segurança não só para com os outros utentes da via que pudessem com ele se deparar, mas da segurança da sua própria família, designadamente dos seus filhos que seguiam no interior do automóvel, conduta esta adotada por uma pessoa que se afirma fazendo uma condução cuidada.
Tal comportamento é ainda mais surpreendente por o arguido, quando questionado sobre se o veículo, perante o largar imediato dos pedais, não teria ido abaixo, respondeu que não, que ficou a trabalhar porque, antes de o abandonar em movimento, colocou-o em ponto morto, desengrenando a mudança a que seguia. Isto é, afirma o arguido que não foi capaz de reagir travando o veículo para o imobilizar, mas já teve sangue frio suficiente para o desengrenar de modo a que não parasse o motor. Este facto para além de anormal, não é ainda confirmado pois disse que o veículo, apesar de se ter imobilizado pelos seus próprios meios, continuou a trabalhar tendo sido um dos GNR’s que se deslocou ao local que o desligou, o que foi negado pelos dois agentes ouvidos em audiência de julgamento.
Para além disso, a posição em que coloca a vítima a deslocar-se na via é incompatível com as lesões que esta apresentava – se se deslocasse naquele trajeto diagonal ao ser colhida pelo veículo seria surpreendida pelo seu lado esquerdo, mas com incidência na zona das costas desse lado – e não eram essas as lesões que a vítima apresentava.
Vejamos, agora, quanto aos factos relativos à distância em que o arguido avista a menina junto ao estabelecimento e depois quando esta salta para a sua via de trânsito.
Quanto à distância a que o arguido diz que viu primeiramente a menina, que como afirma foi após a curva (distância essa que como pudemos atestar aquando da inspeção ao local fica a cerca de 30 metros do estabelecimento), e no auto de reconstituição, que o arguido aceita ser fiel quanto às posições, refere-se que o arguido vê primeiramente a menina a cerca de 17,27m, o que é perfeitamente compatível com o relato do arguido.
Já no que concerne à distância em que o arguido avista a menina a entrar na sua faixa de rodagem, este afirma que a viu em cima das últimas bandas cromáticas, a menos de um metro, e por seu turno a H… refere que foi entre as duas últimas marcas existentes no solo, da fotografia de fls. 341.
Ora, no relatório de fls. 201, temos as medidas do início das últimas bandas cromáticas até à entrada do estabelecimento que é de 4,85m, aliás compatível com o que se viu no local. Ora, entre as bandas cromáticas indicadas pelo arguido e entre as duas bandas cromáticas indicadas pela H…, como sendo o local onde a menina “se meteu à estrada”, temos uma área entre o início das últimas bandas cromáticas até à porta do estabelecimento de 4,85m.
Acresce que o arguido nunca poderia ter visto a menor a entrar na via a menos de um metro, como quis fazer crer, porquanto o tempo de reação do individuo que se depara repentinamente com um objeto à sua frente é de cerca de ¾ de segundo, logo, ao reagir, a desviar-se da menina teria que a ter visto à distância já referida de 4,85, no mínimo.
*
Vejamos, seguidamente quanto às declarações apresentadas pela arguida C….
Esta arguida, de igual modo, quis prestar declarações e apresentou, se assim podemos dizer, uma segunda versão do acidente, e vejamos porquê.
Admitiu nas circunstâncias de tempo e lugar constantes do libelo acusatório estar a cuidar da sua neta, a menor D…, e ter ido com esta ao minimercado.
Explicou que a determinada altura saiu do estabelecimento e quando já se encontrava no exterior do mesmo, mas na berma, com um pé ao nível da estrada e o outro no degrau, isto é, antes da marca guia delimitadora da via, e com a neta encostada a si, mas mais próxima dessa marca, mas antes da linha guia, a qual se encontrava segura pela mão esquerda, “presa pela mão” (sic), sem que nunca a tenha largado, e junto à porta da entrada do estabelecimento, voltadas, ambas, na direção de Arouca, e enquanto isso tentava colocar um objeto num saco plástico, encontrando-se debruçada sobre ele; de repente surgiu o automóvel do arguido por detrás delas e terá sido, de acordo com o que disse, nesse momento, naquele local, que o veículo colheu a neta, na berma, “arrancando-a das suas mãos” (sic) do que se apercebeu apenas por um esticão, mas a si não lhe bateu de qualquer forma.
Desenvolveu que a menina após o embate estava em cima do capô e o veículo continuou a andar e a menina caiu cerca de 20 metros à frente e na berma do lado direito e o carro foi parar mais à frente, próximo do posto da eletricidade. Pegou na neta ao colo e “andou uns passos” (sic) e logo a seguir veio uma senhora, a K…, que a tirou do seu colo.
Asseverou que não se encontrava ninguém a falar consigo.
*
Ora, diga-se que também esta versão não mereceu o nosso acolhimento.
Na verdade, para a menina ter sido colhida na berma pela parte da frente do lado direito do veículo do arguido, local onde apresentava danos, o arguido teria de circular fora da faixa de rodagem sobre aquela berma, o que a arguida também não afirma, mais do que isso, diz que não viu desviar de algum modo o carro o que significava que teria de ter seguido sempre pela berma até se imobilizar o que é incompatível com a posição final que assumiu e que é visível na fotografia tirada no dia onde se vê que este está atravessado na faixa com a traseira mais próxima da linha do meio e a frente virada para a berma.
A verdade é que se estivesse com a neta pela mão, como afirma, esta ao ser levada pelo carro provocaria mais do que o esticão que refere, causaria o seu desequilíbrio e mesmo queda, o que não sucedeu. Ademais, encontrando-se encostada à neta, como diz, e tendo o arguido embatido com a parte frontal direita na menina, sendo o espelho retrovisor parte mais saliente do que aquela, pelo menos com essa parte teria de igual modo de atingir a arguida, o que também não sucedeu.
Acresce que a menina apenas seguiria em cima do capô se tivesse sido apanhada não com a parte lateral, mas com uma maior parte da parte frontal mais baixa e que fizesse, por assim, dizer efeito de cunha fazendo subir o corpo até ao capô, ao embater com a parte frontal, mas com a lateral o corpo não subiria, mas antes seria projetado de imediato e, sendo o local de embate indicado pela arguida tão próximo da parede e da porta do minimercado, bateria contra essa parede e não a vários metros após, como sucedeu.
Também é de notar que perante a posição que a arguida afirma ter tido e se a neta tivesse seguido em cima do capô como disse, a dada altura deixaria de ter visibilidade para essa parte, o que nega.
Em suma, a dinâmica relatada pela arguida não se coaduna com o normal suceder, nem com as suas próprias declarações.
*
Depois das duas versões apresentadas pelos arguidos, pessoas interessadas no resultado da demanda, foi apresentada uma, a que podemos chamar terceira versão, por uma testemunha presencial, J…, que depôs de forma singela, sem mostras de animosidade para com os arguidos, pelo contrário era percetível que não queria incriminar ninguém com o seu depoimento, cingindo-se à factualidade de que tinha conhecimento próprio, sobre a qual expendeu com concisão, de forma séria e verdadeira, que nos pareceu manifestamente desinteressada em relatar falsidades, em mentir para ajudar e agradar alguém, e que foi localizada no local onde referiu estar por duas testemunha, e que, mais do que isso, delimitando bem os factos, relatou uma dinâmica que é congruente com os demais elementos recolhidos.
Tudo circunstâncias que nos levam a afirmar que, em nossa convicção, o acidente terá ocorrido do modo como o descreveu.
Esta testemunha, J…, referiu que nas circunstâncias de tempo e lugar constante da acusação, encontrava-se encostada a uma casa de azulejos ali existente, uns metros antes do minimercado, mas no mesmo lado deste, ou seja, sentido Vale de Cambra/Arouca.
Assegurou que do local onde se encontrava conseguia ver a estrada e o exato local onde ocorreu o embate, nomeadamente conseguia ver os degraus da entrada do minimercado, só não conseguia ver a porta (querendo dizer reentrância) deste estabelecimento.
Contou que nessas circunstâncias viu o veículo conduzido pelo arguido a passar por si, no sentido Vale de Cambra/Arouca, e após olhar para o carro a passar viu a D… junto à porta do minimercado, onde existe uns degraus, a saltitar.
Inicialmente não queria afirmar de forma perentória que não tinha visto a arguida, apenas referiu que não viu ninguém a segurar a menina, numa tentativa nítida de não desagradar à sua vizinha, a aqui arguida, mas acabou por assegurar com firmeza que a criança estava sozinha, sem que ninguém a segurasse, já que, se viu a menina, se estivesse a avó também a via.
Explicou quando o veículo estava a aproximar-se da menina, sem conseguir especificar os metros de distância, mas mais perto que a testemunha se encontrava, a menina, como já dissemos, se encontrava a saltitar nos degraus, saltitou para berma e para a faixa de rodagem, “mas não correu, saltitou e ficou ali onde o carro a colheu” (sic). Referiu que a menina saltitou de frente para a estrada e ficou “a cerca de 50/60 cm da risca branca” (sic), de frente para a estrada e de costa para o minimercado, local onde foi colhida pelo veículo conduzido pelo arguido, no seu lado esquerdo, lado onde, de acordo com os elementos médicos juntos aos autos, apresentava maiores lesões e onde terá sido o impacto – o que reforça esta versão.
Afirmou que o arguido depois de ter embatido na menina tentou desviar-se para a faixa de sentido contrário, sem entrar nesta faixa e parou o carro mais à frente e saiu.
Mais atestou que a criança após o embate foi projetada pelo ar e ainda rolou pelo chão até se imobilizar alguns metros à frente (projeção esta e local de embate compatível com o ponto de contacto com o veículo, como referido pelo agente instrutor), sendo o local de posição final do corpo semelhante ao indicado pelos demais intervenientes.
Adiantou que na sua perspetiva o arguido fazia uma condução normal para o local “nem depressa nem devagar” (sic), julga que não ia a mais de 50 Km/h.
Referiu que depois do embate a avó saiu da direção da porta do minimercado e foi em direção à menina e pegou na menina ao colo e ficou quase no mesmo sítio onde ela se imobilizou.
Confirmou o auto de reconstituição de fls. 357, reafirmando que se encontrava no local indicado na 1 fotografia de fls. 358 n.º 1 e o n.º 2, onde estava e o que via.
De igual modo confirmou a posição do veículo depois do embate, marcas do carro, retratados a fls. 216, 217 e 218.
*
Como já referimos esta testemunha afirmou que ninguém segurava a menina pela mão, não se encontrando sequer a avó do seu lado, ou, pelo menos, da porta do minimercado para fora, pois não a viu; sendo a saída do estabelecimento, como pudemos aferir aquando da inspeção ao local, perfeitamente visível do local onde se encontrava a testemunha, pelo que esta teria de ver a arguida, obrigatoriamente, caso ela ali se encontrasse, mesmo que debruçada sobre o saco, já que se a menina era visível, a arguida se lá estivesse era de igual modo visível, porque o campo de visão era o mesmo.
Disse, ainda, que a avó apareceu de imediato, após o embate, da direção da porta do minimercado, o que é compatível com a presença da avó no local logo após o embate a pegar na menina ao colo.
Diga-se que foi por demais percetível pelo depoimento desta testemunha que a menina não atravessou a via a correr, como vem dito na acusação e é referido pelo arguido. O que foi evidente deste depoimento, e é nossa pura convicção, é que a menina saiu do estabelecimento antes da avó e saltitava nos degraus e na berma, e como a berma é muito pequena com esse saltitos invadiu a faixa de rodagem por onde circulava o veículo do arguido, mas sem que tivesse qualquer intenção de atravessar a via.
*
Foi realizada um acareação entre a mãe e a mulher do arguido e a testemunha J…, a fim de se aferir da existência das pessoas no local e todas mantiveram os seus anteriores relatos.
*
Quanto aos depoimentos de L… e M…, os responsáveis pelo minimercado, não mereceram qualquer credibilidade, não só porque disseram não terem presenciado nenhum dos factos, como demonstraram em Tribunal, o que foi contrariado por uma testemunha, como veremos infra, uma conduta anormal recordando com pormenor o sucedido imediatamente antes do acidente, o que não é normal dado que, a ter inexistido o acidente, seria uma situação de todos os dias, não se recordando já do sucedido após o acidente, dizendo que não tiveram curiosidade de sequer espreitar para fora, pelas portas de vidro do estabelecimento e afirmando L…, contra todas as regras da normalidade, que telefonou para os bombeiros apenas porque ouviu um estrondo e uma pessoa a gritar, sem que se tenha aproximado, só para ver, mas pelo menos para socorrer ou para informar os bombeiros do sucedido, pois a assim ser não saberia que tipo de auxílio pediria se por acidente com automóvel, motociclo, se entre veículos ou com peões, se se trataria sequer de acidente, se alguma daquelas pessoas se teria sentido mal e desmaiado ou desequilibrado e caído, entre várias outras hipóteses que alguém que, como L… referiu, não viu, não poderia saber.
Afigurou-se-nos que estes depoimentos tiverem como objetivo não incriminar ninguém com as suas declarações, sendo certo que o que relataram não corresponde à totalidade dos seus conhecimentos.
*
A testemunha N… pai da D…, depôs de forma séria e emocionada.
Esta testemunha nada presenciou, apenas disse que a menina ficava aos sábados em casa da avó, a aqui arguida, a pedido seu e da mãe da menina, e também nos outros dias depois da escola.
Referiu que nada tem contra a arguida e que lhe voltaria a confiar um filho.
*
A testemunha G…, agente da GNR que fez a participação, depôs de forma isenta e séria, mas com alguns lapsos de memória, justificáveis atento o número de acidentes em que tem intervenção. Referiu que apenas chegou ao local já a menina estava na ambulância.
Descreveu a posição do veículo, situado a cerca 30/40 metros do local, enviusado na faixa de rodagem e os danos que este apresentava, sendo que estava parado e travado ou com a 1.ª engatada.
Não avistou outros vestígios no local do embate, senão pequenos vidros espalhados por toda a via, e o local assinalado como local do embate, junto à linha contínua, foi-lhe indicado pelo arguido.
Disse, por fim, que indicou na participação quem lhe referiu que presenciou ou factos, se não mencionou outros é porque não lhe referiam que os presenciaram.
*
A testemunha F…, agente da GNR referiu que quando foi ao local já lá estava a ambulância, confirma as declarações de fls. 635 e as testemunhas que aí constam foram as que lhe foram indicadas.
Referiu a posição do automóvel da mesma forma que o seu colega, o participante. Não viu vestígios do acidente no local.
*
A testemunha E…, agente da GNR, foi quem fez a investigação do processo, depôs de forma clara e assertiva, dando conta do por si presenciado no local e das ilações que, como profissional de um NIC de Acidentes de Viação, retirou. Não resvalou em hesitações ou contradições, antes tendo esclarecido de modo cabal todas as questões que lhe foram sendo colocadas, evidenciando saber e competência e adotando uma postura de imparcialidade. Mereceu credibilidade por parte deste Tribunal.
Assumiu como tendo sido quem fez o relatório de fls. 174 e s., cujo teor confirmou.
Afirmou que tomou conhecimento do acidente passadas 3 horas da sua ocorrência e que foi ao local, mas não existiam vestígios, inexistindo no piso quaisquer marcas relativas a uma qualquer travagem. Confirmou os danos no veículo, lado direito frente, esquina, pára choques, capô e a ótica partida.
Concretizou que no dia do acidente o tempo estava bom, a via apresenta duas faixas de rodagem, com linhas guias e linha contínua, com passeio pelo lado esquerdo, sentido Vale de Cambra/Arouca, e do lado direito tem um espaço além da linha guia e em frente ao minimercado tinha um ou dois degraus. Tendo constatado a existência no local de sinalização, considerando o sentido Vale de Cambra/Arouca, designadamente sinal de curva contra curva, azul de passadeira, aproximação de local com crianças e bandas sonoras entre as duas curvas, sendo a velocidade permitida para o local de 50Km/h.
Quanto à dinâmica do acidente, fez a investigação e explicou que decorrendo da sua experiência profissional o atropelamento deveria ter ocorrido na direção da porta do minimercado indicado por J… e o local onde é indicado por esta onde ficou a menina, que esta estaria muito próximo da linha guia, porque se o embate fosse na berma o corpo ficaria mais próximo do que o que estava, mais próximo do minimercado, ademais, caso a avó estivesse a segurar a neta teria caído.
Asseverou, por fim, que o local onde foi projetado o corpo da menina é compatível com o que afirma a testemunha J…, inexistindo factos que corroborem a versão dos arguidos, antes havendo vários vestígios que suportam a versão desta testemunha.
*
A testemunha K…, que depôs de forma isenta e credível, asseverou que no dia do acidente foi ao minimercado, cerca das 9 horas da manhã, onde se encontrava a arguida com a menina, depois foi-se embora. Cerca das 10 horas estava a encher um muro perto do minimercado quando ouviu gritar e correu para ver o que se passava e viu a arguida, na direção de Arouca/Vale de Cambra, com a menina nos braços, a cerca de 10 metros antes da entrada do minimercado, foi então ao encontro da avó e pegou na menina ao colo e baixou-se pouco antes do portão de fls. 338.
Assegurou que quem ouviu gritar inicialmente, gritos que a alertaram, foi a testemunha J…, que estava junto de uma casa de azulejos, mas não ouviu a avó da menina a gritar, mas passado cerca de 1 minuto de ver a J… parada no local (onde esta testemunha disse que se encontrava) já viu a avó na rua.
Pugnou ter visto os proprietários do minimercado na rua, desmentindo o que aqueles haviam dito, como já referimos supra.
*
A testemunha O…, o homem que fornecia mercadoria para o minimercado e cuja figura física se assemelhava à indicada pelo arguido como sendo quem estaria a falar com a arguida, foi ouvido, mas negou que alguma vez estivesse a falar com a arguida, não a conhece e apenas vai ao minimercado à sexta-feira.
*
De todo o exposto e como referimos supra pelo depoimento da testemunha J…, corroborado com os outros elementos de prova, foi para nós crível que o acidente e a morte da menina se deu da forma como demos como provado.
Ora, como vimos supra, tendo nós dado credibilidade ao depoimento da testemunha J…, que aliás foi corroborado por outros elementos de prova, como tivemos oportunidade de explanar, a morte da menina foi resultado das condutas dos arguidos e, a eliminar-se uma delas, não teria sucedido – se a avó tivesse segurado a menor ou de algum modo impedido que entrasse na faixa de rodagem; por seu turno, se o arguido, ao avistar, a cerca de 17 metros, uma criança sozinha na rua a brincar/saltitar, e tivesse reduzido a velocidade como lhe ordenava a sinalização existente, ainda que até quase parar, para poder desse modo reagir ao comportamento de uma criança de pouca idade que não está a ser vigiada, não a teria atingido, ou pelo menos, não com o impacto que aconteceu.
Ademais, conforme consta de fls. 201 dos autos, as bandas cromáticas encontram-se situadas a 4,85m da entrada do estabelecimento, pelo que, pelo menos a esta distância o arguido tinha que ver a menina na sua faixa de rodagem, e ao ter a reação de se desviar para a esquerda, razão pela qual colhe a menina com o veículo do lado direito frente, teve que ver a menina na sua faixa de rodagem a mais de 4,85m, atento a reação de qualquer condutor, ou seja, a quantidade de tempo que decorre entre a perceção de uma nova ação e o exato momento em que se atua, para a maioria dos condutores demora aproximadamente ¾ de segundo a reagir às situações de perigo, embora existam alguns fatores que podem aumentar bastante esse tempo de reação como, um deles estar sob a influência de estupefacientes, o que se verificava in casu.

Não podemos olvidar que a menina se encontrava a saltitar na berma da estrada e saltitou para a via de trânsito onde circulava o arguido, salto esse que a colocou a cerca de 55/60 cm depois da linha guia, e ponderando a largura da via em relação à largura do veículo do arguido, donde resulta a possibilidade de o mesmo efetuar uma manobra de desvio para a esquerda atento o seu sentido de marcha sem embater na vítima, posto que seguisse com a velocidade adequada para o caso, já que repete-se, sem receio de nos tornarmos repetitivos, a menina não atravessou a via a correr, apenas saltitou 50/60 cm para a via de trânsito.
Ademais, o arguido não observou as precauções exigidas pela prudência e previsibilidade, em desrespeito pelos sinais verticais de trânsito e bandas cromáticas que antecedem o local do embate, uma vez que visualizou a criança a brincar na berma, a pelo menos 17 metros de antecedência, e não previu que a mesma pudesse ir para a faixa de rodagem.
Pergunta-se em sede de conclusão: O arguido, ao ver uma criança de 4 anos que se encontrava sozinha, sem ninguém por perto, a saltitar, não teria que reduzir a velocidade a que seguia de 50 Km/h, isto já para não falar da sinalização existente, ainda que até quase parar para poder desse modo reagir ao comportamento de uma criança de pouca idade, que é consabido que é imprevisível? A resposta só pode ser afirmativa e, dessa forma, não teria atingido a menor, ou pelo menos, não com o impacto que foi.
Consequentemente, terá de concluir-se que o arguido ao avistar a menina à distância de 17 metros, conseguia reduzir a velocidade para velocidade bastante inferior e parar o seu veículo no espaço livre e visível à sua frente quando se deparou com esta na sua via, podendo fazer mais que um simples desvio, e o resultado não se viria a produzir - no caso dos autos, o embate era, como vimos, evitável.
*
As condutas dos arguidos decorrem não de uma atuação voluntária de nenhum dos arguidos, nenhum deles quis assim agir tendo em vista aquele resultado, muito pelo contrário, mas penso que é possível afirmar que decorre da violação de deveres de cuidado que sobre eles impendiam e alicerçados nas normas melhor descritas na acusação, sendo estes capazes de agir de outro modo, encontrando-se por isso igualmente demonstrado o elemento subjetivo do ilícito que é imputado aos arguidos.
*
Relativamente aos antecedentes criminais valorou-se o certificado de fls. 475 a 478.
*
No mais que se provou, quanto às condições pessoais de vida dos arguidos, valeram as suas declarações na estrita medida em que as mesmas se mostraram credíveis, ademais secundadas na parte a que relativamente depuseram pelo testemunho das testemunhas de defesa que apresentaram, nada se tendo provado em audiência em sentido contrário.
*
Em sede de contestação foram arroladas testemunhas pelos arguidos que foram inquiridas.
Assim, valorou-se quando ao arguido o depoimento das testemunhas de defesa deste, P… e Q…, prima e tio, respetivamente, do arguido e que relataram ao Tribunal, de forma credível, o seu caráter.
Referiram que o arguido é um bom pai, bom marido e bom filho, trabalhador e cuidadoso na condução.
Quando à arguida valorou-se o depoimento das testemunhas de defesa da arguida S…, funcionária do infantário, T…, educadora de infância, U…, vizinho da arguida, V…, que foi auxiliar de ação educativa, W… e X…, vizinhas da arguida. Todas abonaram, com foros de credibilidade, o seu caráter.
Relataram, em sintonia, que a arguida sempre cuidou de crianças, sendo responsável por as levar e ir buscar à escola, e sempre o fez de forma responsável, cuidadosa e efetuosa, sem quaisquer mazelas. Sendo estes factos verificados pelas funcionárias do infantário há muitos anos e pelas vizinhas da arguida, a quem esta inclusive tratou dos seus próprios filhos.
Mais afirmaram que a arguida é boa pessoa, respeitadora e respeitada no meio onde vive, educada, afável, prestável e disponível.
*
No que aos factos não provados diz respeito, designadamente que a avó da menina não estava em frente à porta do estabelecimento, a conversar com pessoa de identidade não concretamente apurada, e que a D… de forma inesperada atravessou a via a correr, pelas razões já enumeradas aquando da motivação dos factos provados, que aqui nos escusamos de repetir, resultou face ao que se provou por estar com tal matéria em flagrante contradição.”

É do seguinte teor, na parte com interesse, a decisão sumária proferida quanto à arguida reclamante C…:
“Recurso interposto pela arguida C…
- Vícios da decisão
De uma forma genérica começamos por dizer, em primeiro lugar, que o verdadeiro julgamento da causa é o que se realiza em primeira instância, visando o recurso apenas corrigir erros que dele possam resultar, nomeadamente erros de julgamento em matéria de facto, isto é, o objecto do recurso é a decisão recorrida e não o julgamento da causa, propriamente dita, como se pode ler no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 59/2006, de 18 de Janeiro, Processo n.º 199/2005, da 2.ª Secção, onde, a propósito, se diz o seguinte:
«… O recurso para a Relação, mesmo em matéria de facto, não constitui um novo julgamento em que toda a prova documentada (ou todas as questões abordadas na decisão da 1.ª Instância) é reapreciada pelo Tribunal Superior que, como se não tivesse havido o julgamento em 1.ª Instância, estabeleceria os factos provados e não provados e assim indirectamente validaria ou a factualidade anteriormente assente (ou tornaria a decidir as questões suscitadas). Antes se deve entender que os recursos são remédios jurídicos que se destinam a despistar e corrigir erros in judicando ou in procedendo, que são expressamente indicados pelo recorrente, com referência expressa e específica aos meios de prova que impõem decisão diferente, quanto aos pontos de facto concretamente indicados, ou com referência à regra de direito respeitante à prova que teria sido violada, com indicação do sentido em que foi aplicada e qual o sentido com que devia ter sido aplicada. O Tribunal Superior procede então à reanálise dos meios de prova concretamente indicados (ou as questões cuja solução foi impugnada) para concluir pela verificação ou não do erro ou vício de apreciação da prova e daí pela alteração ou não da factualidade apurada (ou da solução dada a determinada questão de direito). Assim, o julgamento em 2.ª Instância não o é da causa, mas sim do recurso e tão só quanto às questões concretamente suscitadas e não quanto a todo o objecto da causa….»
A produção da prova decorre perante o tribunal de primeira instância e no respeito de dois princípios fundamentais: o da oralidade e o da imediação, com o que se pretende assegurar o princípio basilar do julgamento da matéria de facto em processo penal: o da livre apreciação da prova por parte do julgador.
O princípio da imediação pressupõe um contacto directo e pessoal entre o julgador e as pessoas que perante ele depõem, sendo esses depoimentos que irá valorar e servirão para fundamentar a decisão da matéria de facto. E é precisamente essa relação de proximidade entre o tribunal do julgamento em primeira instância e as provas que lhe confere os meios próprios e adequados para valorar a credibilidade dos depoentes e que de todo em todo o tribunal do recurso não dispõe. Há na verdade que atender e valorar factores tão diversos como as razões de ciência que os depoentes invocam ou a linguagem que utilizam, a espontaneidade com que depõem e as hesitações que manifestam, o tom de voz com que o fazem, as emoções que deixam transparecer, a forma e a intensidade do olhar, as contradições que evidenciam e o contexto em que tal acontece, que as pode justificar ou tornar inaceitável.
Assim é que a alteração do decidido em primeira instância só poderá ocorrer, de acordo com a alínea c), do n.º 3, do art.º 412.º do Código de Processo Penal, se a reavaliação das provas produzidas impuserem diferente decisão, mas não já se tal for uma das soluções possíveis da sua reanálise segundo as regras da experiência comum. Por isso, sempre que a convicção do julgador em primeira instância surja como uma convicção razoavelmente possível e explicável pelas regras da experiência comum, deve a mesma ser acolhida e respeitada pelo tribunal de recurso.
É certo que outra é a valoração desses meios de prova feita pelo recorrente e a credibilidade que lhes confere, sendo também naturalmente diferente a conclusão a que chega. Porém, será a convicção do julgador que releva se não se evidenciar qualquer violação de regras de experiência, é o seu julgamento que se impõe, não só aos sujeitos do processo com também a esta Relação.
Efectivamente, como já dissemos, quando está em causa a questão da apreciação da prova não pode deixar de dar-se a devida relevância à percepção que a oralidade e a imediação conferem ao julgador, pois a convicção do Tribunal é formada, para além dos dados objectivos fornecidos pelos documentos, perícias e outras provas constituídas, também, pela análise conjugada das declarações e depoimentos, em função das razões de ciência, das certezas e ainda das lacunas, contradições, hesitações, inflexões de voz, coerência de raciocínio e de atitude, seriedade, coincidências e inverosimilhanças que, porventura, transpareçam em audiência, das mesmas declarações e depoimentos.
Ora, a livre apreciação da prova constitui um poder-dever do julgador que axiologicamente emerge do princípio do Estado de Direito Democrático e da Dignidade da Pessoa Humana (cf. arts. 1.º e 2.º da Constituição da República Portuguesa), o qual significa a faculdade de formar uma convicção pessoal de verdade dos factos, é racional e assenta em regras de lógica e experiência objectiva e só em circunstâncias excepcionais que revelem irracionalidade da convicção é que pode ser alterada em 2.ª instância.
A jurisprudência dos Tribunais Superiores vem afirmando a necessidade de que a máxima de experiência seja uma regra de comportamento humano e não uma “consideração de ordem sócio-cultural”, na medida em que os indícios inseridos numa série causal constituem anéis de cadeia de relações naturais constantemente uniformes do comportamento humano que conduzem a um resultado pelo qual, em linha com a máxima, dada uma acção pode-se formular um juízo provável sobre outros que o precederam e que se lhe seguirão.
As regras da experiência são, como diz o Prof. Castanheira Neves,“critérios generalizantes e tipificados de inferência factual”, “índices corrigíveis, critérios que definem conexões de relevância, orientam os caminhos de investigação e oferecem probabilidades, conclusivas, mas apenas isso.“-Cfr. Sumários de Processo Penal, 1967-1968, Princípios Fundamentais do Direito Processual Criminal, págs.42 e segs.
Por isso, é que o juiz é livre de relevar, ou não, elementos de prova que sejam submetidos à sua apreciação e valoração: pode dar crédito às declarações do arguido ou do ofendido/lesado em detrimento dos depoimentos de uma ou várias testemunhas; pode desvalorizar os depoimentos de várias testemunhas e considerar decisivo na formação da sua convicção o depoimento de uma só.
O que se impõe é que explique e fundamente a sua decisão, pois só assim é possível saber se fez a apreciação da prova segundo as regras do entendimento correcto e normal, isto é, de harmonia com as regras comuns da lógica, da razão e da experiência acumulada.
“Compreender a decisão, e a ela aderir, de eleição de um meio de prova como sendo mais credível do que outro, é precisamente o primeiro momento em que a livre apreciação da prova como processo objectivado e motivado se impõe» (Paulo Saragoça da Mata, “A livre apreciação da prova e a fundamentação da sentença”, in Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais, 257).

Dito isto, vimos que o recorrente alega que a factualidade apurada não traduz uma real e concreta valoração dos factos provados em sede de Audiência, por, no fundo, terem sido fundamentados através de um juízo errado.
Impugna, pois, a matéria de facto, nos termos do art.º 412º n.ºs 3 e 4 do CPP, ao mesmo tempo que invocam os vícios do art.º 410º do mesmo diploma legal.
Começando pelos vícios constantes do art 410 n° 2 do CPP, sabemos que para relevarem, têm que resultar do próprio texto da decisão recorrida, por si ou conjugada com as regras da experiência comum.
Efectivamente, os vícios relativos à matéria de facto, referidos nesta disposição, pressupõem que os mesmos resultem do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugados com as regras da experiência comum, e que conste em «insuficiência para a decisão da matéria de facto provada», em «contradição insanável da fundamentação, ou entre a fundamentação e a decisão», ou se verifique «erro notório na apreciação da prova».
O tribunal, por sua vez, deve indicar, como referimos, os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela convicção. Aliás, a lei determina a exigência de objectivação, através da fundamentação da matéria de facto, devendo o tribunal analisar criticamente as provas e especificar os fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador (art.374 nº2 do CPP).
Assim, se a decisão for uma das soluções plausíveis, segundo as regras da experiência, ela foi proferida em obediência à lei que impõe o julgamento segundo a livre convicção, pelo que só nos casos de evidente desconformidade entre os elementos de prova e a decisão, se deve alterar a convicção alcançada pelo tribunal da lª instância, sem esquecer que a prova testemunhal é a mais falível de todas.
Sempre que a posição do julgador se centraliza nos elementos que se prendem, directamente, com a imediação da prova testemunhal, o tribunal de recurso não tem possibilidade de sindicar tal convicção, excepto se a mesma se mostrar contrária às regras da experiência, da lógica ou dos conhecimentos científicos.
Neste sentido, veja-se o Ac. do STJ de 11-10-2007(www.dgsi.pt), onde se diz:
“Vem entendendo, sem discrepância, este Supremo Tribunal de Justiça que o recurso em matéria de facto (“quando o recorrente impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto”) não pressupõe uma reapreciação pelo tribunal de recurso do complexo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas apenas uma reapreciação sobre a razoabilidade da convicção formada pelo tribunal a quo relativamente à decisão sobre os “pontos de facto” que o recorrente considere incorrectamente julgados, na base da avaliação das provas que, na indicação do recorrente, imponham “decisão diversa” da recorrida (provas, em suporte técnico ou transcritas quando as provas tiverem sido gravadas) – art. 412.°, n.º 3, al. b), do CPP-, ou da renovação das provas nos pontos em que entenda que esta deve ocorrer (AcSTJ de 31-05-2007, proc. n.º 1412/07-5, com o mesmo Relator)”.
Por outro lado, diz-se ainda no Ac. do STJ de 9-2-05, in www.dgsi.pt, que vamos seguir e transcrever algumas partes, que o erro notório na apreciação da prova, constitui uma insuficiência que só pode ser verificada no texto e no contexto da decisão recorrida, quando existam e se revelem distorções de ordem lógica entre os factos provados e não provados, ou que traduza uma apreciação manifestamente ilógica, arbitrária, de todo insustentável, e por isso incorrecta, e que, em si mesma, não passe despercebida imediatamente à observação e verificação comum do homem médio.
Os vícios do artigo 410°, n° 2, do CPP não podem, ainda, ser confundidos com a divergência entre a convicção pessoal do recorrente sobre a prova produzida em audiência e a convicção que o tribunal firme sobre os factos, no respeito pelo princípio da livre apreciação da prova inscrito no artigo 127° do CPP.
Neste aspecto, o que releva, necessariamente, é a convicção que o tribunal forme perante as provas produzidas em audiência, sendo irrelevante, no âmbito da ponderação exigida pela função do controlo ínsita na identificação dos vícios do artigo 410°, n° 2, do CPP, a convicção pessoalmente formada pelo recorrente e que ele próprio alcançou sobre os factos.
Para avaliar da racionalidade e da não arbitrariedade (ou impressionismo) da convicção sobre os factos, há que apreciar, de um lado, a fundamentação da decisão quanto à matéria de facto (os fundamentos da convicção), e de outro, a natureza das provas produzidas e dos meios, modos ou processos intelectuais, utilizados e inferidos das regras da experiência comum para a obtenção de determinada conclusão.
Relevantes neste ponto, para além dos meios de prova directos, são os procedimentos lógicos para prova indirecta, de conhecimento ou dedução de um facto desconhecido a partir de um facto conhecido: as presunções.
A noção de presunção (noção geral, prestável como definição do meio ou processo lógico de aquisição de factos, e por isso válida também, no processo penal) consta do artigo 349° do Código Civil: «presunções são as ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido».
A presunção intervém, assim, quando as máximas da experiência da vida e das coisas, baseadas também nos conhecimentos retirados da observação empírica dos factos, permitem afirmar que certo facto é a consequência típica de outro ou outros.
A ilação derivada de uma presunção natural não pode, porém, formular-se sem exigências de relativa segurança, especialmente em matéria de prova em processo penal em que é necessária a comprovação da existência dos factos para além de toda a dúvida razoável.
Há-de, pois, existir e ser revelado um percurso intelectual, lógico, sem soluções de continuidade, e sem uma relação demasiado longínqua entre o facto conhecido e o facto adquirido. A existência de espaços vazios, ou a falta de um ponto de ancoragem, no percurso lógico de congruência segundo as regras de experiência, determina um corte na continuidade do raciocínio, e retira o juízo do domínio da presunção, remetendo-o para o campo já da mera possibilidade física mais ou menos arbitrária ou dominada pelas impressões.
A compreensão e a possibilidade de acompanhamento do percurso lógico e intelectual seguido na fundamentação de uma decisão sobre a matéria de facto, quando respeite a factos que só podem ter sido deduzidos ou adquiridos segundo as regras próprias das presunções naturais, constitui um elemento relevante para o exercício da competência de verificação da (in)existência dos vícios do artigo 410°, n° 2, do CPP, especialmente do erro notório na apreciação da prova, referido na alínea c). – cfr. os acórdãos do STJ, de 7 de Janeiro de 2004, proc.3213/03, e de 24 de Março de 2004, proc. 4043/03, conclui aquele acórdão do STJ.
O erro de Julgamento existe quando o tribunal considera provado um determinado facto, sem que tivesse sido feita prova do mesmo e como tal deveria ter sido considerado como não provado, ou quando se dá como não provado um facto, que em face da prova produzida, deveria antes ter sido considerado provado.
O erro de julgamento só pode ser sindicado com o recurso à gravação.
Porém, os vícios do art.º 410 n. 2, do CPP não podem, repetimos, ser confundidos com a divergência entre a convicção pessoal do recorrente sobre a prova produzida em audiência e a convicção que o tribunal firme sobre os factos, no respeito pelo princípio da livre apreciação da prova inscrito no artigo 127 º do CPP.
No caso de impugnação da decisão proferida em matéria de facto, que o recorrente também usou, deve-se especificar nas conclusões, os pontos de facto que se consideram incorrectamente julgados, as provas que impõem decisão diversa da recorrida, e as provas que devem ser renovadas – art. 412.º, n.º 2. als. a), b) e c), do CPP.
Quando as provas tenham sido gravadas, dispõe o n.º 4 do art. 412.°, as especificações previstas nas als. b) e c) do n.º 3 fazem-se por referência aos suportes técnicos, havendo lugar a transcrição: esta disposição separa inteiramente dois momentos, partindo do pressuposto e da função da gravação da prova e dos respectivos suportes técnicos e da função e finalidade da transcrição das provas gravadas (cfr. Ac. do STJ de 3 de Março de 2005).
Por outro lado, na violação do princípio “in dubio pro reo” , o Tribunal fica na dúvida quanto à ocorrência de determinado facto, devendo então beneficiar o arguido.
Este princípio é uma imposição dirigida ao juiz, no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao réu, quando não houver certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa. Mas daqui não resulta que, tendo havido versões díspares e até contraditórias sobre factos relevantes, o arguido deva ser absolvido em obediência a tal princípio. A violação deste princípio pressupõe um estado de dúvida no espírito do julgador, só podendo ser afirmada, quando, do texto da decisão recorrida, decorrer, por forma evidente, que o tribunal, na dúvida, optou por decidir contra o arguido – Ac. STJ de 24-3-99, CJ-STJ 1,247- citado no Ac. do STJ de 5-7-07, in www.dgsi.pt.
Como se diz neste último acórdão do STJ, o princípio in dúbio pro reo, não significa dar relevância às dúvidas que as partes encontram na decisão ou na sua interpretação da factualidade descrita e revelada nos autos.
**
Olhando para o caso em análise, no que concerne aos pontos concretamente impugnados, relativos à dinâmica do acidente, ao posicionamento da vítima e da avó, ao local de embate e posição final do corpo, apreciando as declarações e depoimentos prestados verificamos que foram apresentadas várias versões.
Ora, como se diz na decisão recorrida, as versões apresentadas pelos arguidos, para o acidente, são de pessoas interessadas no resultado da demanda, logo parciais.
O tribunal acolheu a versão apresentada por uma testemunha presencial, J…, pois entendeu que a mesma depôs de forma singela, sem mostras de animosidade para com os arguidos, pelo contrário era perceptível que não queria incriminar ninguém com o seu depoimento, cingindo-se à factualidade de que tinha conhecimento próprio, sobre a qual expendeu com concisão, de forma séria e verdadeira, que pareceu manifestamente desinteressada em relatar falsidades, em mentir para ajudar e agradar alguém, e que foi localizada no local onde referiu estar por duas testemunha, e que, mais do que isso, delimitando bem os factos, relatou uma dinâmica que é congruente com os demais elementos recolhidos.

Assim, o tribunal deu credibilidade a este depoimento da referida testemunha J…, aliás corroborado por outros elementos de prova, daí ter concluído que «a morte da menina foi resultado das condutas dos arguidos e, a eliminar-se uma delas, não teria sucedido – se a avó tivesse segurado a menor ou de algum modo impedido que entrasse na faixa de rodagem; por seu turno, se o arguido, ao avistar, a cerca de 17 metros, uma criança sozinha na rua a brincar/saltitar, e tivesse reduzido a velocidade como lhe ordenava a sinalização existente, ainda que até quase parar, para poder desse modo reagir ao comportamento de uma criança de pouca idade que não está a ser vigiada, não a teria atingido, ou pelo menos, não com o impacto que aconteceu.
Ademais, conforme consta de fls. 201 dos autos, as bandas cromáticas encontram-se situadas a 4,85m da entrada do estabelecimento, pelo que, pelo menos a esta distância o arguido tinha que ver a menina na sua faixa de rodagem, e ao ter a reação de se desviar para a esquerda, razão pela qual colhe a menina com o veículo do lado direito frente, teve que ver a menina na sua faixa de rodagem a mais de 4,85m, atento a reação de qualquer condutor, ou seja, a quantidade de tempo que decorre entre a perceção de uma nova ação e o exato momento em que se atua, para a maioria dos condutores demora aproximadamente ¾ de segundo a reagir às situações de perigo, embora existam alguns fatores que podem aumentar bastante esse tempo de reação como, um deles estar sob a influência de estupefacientes, o que se verificava in casu.
…Não podemos olvidar que a menina se encontrava a saltitar na berma da estrada e saltitou para a via de trânsito onde circulava o arguido, salto esse que a colocou a cerca de 55/60 cm depois da linha guia, e ponderando a largura da via em relação à largura do veículo do arguido, donde resulta a possibilidade de o mesmo efetuar uma manobra de desvio para a esquerda atento o seu sentido de marcha sem embater na vítima, posto que seguisse com a velocidade adequada para o caso, já que repete-se, sem receio de nos tornarmos repetitivos, a menina não atravessou a via a correr, apenas saltitou 50/60 cm para a via de trânsito.
Ademais, o arguido não observou as precauções exigidas pela prudência e previsibilidade, em desrespeito pelos sinais verticais de trânsito e bandas cromáticas que antecedem o local do embate, uma vez que visualizou a criança a brincar na berma, a pelo menos 17 metros de antecedência, e não previu que a mesma pudesse ir para a faixa de rodagem.
Pergunta-se em sede de conclusão: O arguido, ao ver uma criança de 4 anos que se encontrava sozinha, sem ninguém por perto, a saltitar, não teria que reduzir a velocidade a que seguia de 50 Km/h, isto já para não falar da sinalização existente, ainda que até quase parar para poder desse modo reagir ao comportamento de uma criança de pouca idade, que é consabido que é imprevisível? A resposta só pode ser afirmativa e, dessa forma, não teria atingido a menor, ou pelo menos, não com o impacto que foi.
Consequentemente, terá de concluir-se que o arguido ao avistar a menina à distância de 17 metros, conseguia reduzir a velocidade para velocidade bastante inferior e parar o seu veículo no espaço livre e visível à sua frente quando se deparou com esta na sua via, podendo fazer mais que um simples desvio, e o resultado não se viria a produzir - no caso dos autos, o embate era, como vimos, evitável».
*
Assim, verifica-se que a formação da convicção do tribunal a quo se mostra suficientemente objectivada no texto da decisão recorrida, expondo, na motivação da decisão de facto, as razões pelas quais considerou credível a versão dos factos apresentada pela assistente.
Ora, no reexame da decisão sobre a matéria de facto, o tribunal de recurso só pode alterar o decidido em 1ª instância se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida, nos termos do artigo 412°, nº 3, al. b).
Assim, não pode este Tribunal da Relação modificar a decisão proferida sobre a matéria de facto, pois tais declarações, não são susceptíveis de impor decisão diversa da proferida.
Por outro lado, não resulta do texto da sentença qualquer indicação de que o tribunal a quo, produzidas e apreciadas todas as provas, se tenha confrontado com qualquer dúvida razoável e insanável sobre a verificação dos factos em que assenta a condenação do recorrente e que, apesar disso, tenha decidido contra este, razão pela qual não se pode aplicar o princípio in dubio pro reo.
Assim, atenta a motivação constante da decisão recorrida, nada temos a criticar à mesma.
De facto, o recorrente pretende que, com a apreciação do seu ponto de vista, se esqueça o exame crítico da prova feito pelo Tribunal a quo, contrariando a apreciação por este feita no sentido dos factos que deu como provados e não provados.
Como foram diferentes as versões apresentadas em julgamento, o tribunal explicou a razão pela qual deu mais credibilidade a umas que a outras.
Efectivamente, analisando a motivação do recurso, constatamos facilmente, que a mesma constitui mera contraposição da sua própria análise valorativa e que o mesmo não demonstra a imposição lógica de decisão diversa, ou seja, existe apenas uma divergência entre a convicção pessoal do recorrente sobre a prova produzida em audiência e a convicção que o tribunal firmou sobre os factos, no respeito pelo princípio da livre apreciação da prova inscrito no artigo 127° do CPP.
Assim, a recorrente não demonstrou na motivação do recurso, o erro ou ilogismo que a experiência não permita, isto é, não ficou em causa a liberdade de apreciação da prova, pois do texto da decisão recorrida nada resulta, havendo uma conclusão fáctica tirada pelo julgador da prova produzida em julgamento e não se vê que haja algo de notoriamente errado na mesma, pois o modo como se chegou a tal conclusão prende-se já com a fundamentação da decisão, ou seja, com a livre apreciação da prova.
A decisão recorrida, está fundamentada, e usou um processo de raciocínio lógico, assente no senso comum e com recurso às regra da experiência, que conduz necessariamente á conclusão a que chegou.
A decisão recorrida explica as provas em que se apoiou, efectuando um exame crítico das mesmas, mencionado as razões de credibilidade das declarações e depoimentos, expondo as razões (lógicas, de ciência e de experiência comum) que tornam “objectivável” o processo decisório.
Por isso, analisada a prova testemunhal, dela nada resulta que nos permita concluir ter errado o tribunal na sua apreciação, nem o recorrente o demonstra, que impusesse qualquer alteração à factualidade provada, nem existem provas que imponham decisão diversa recorrida, nem ficou na dúvida quanto à ocorrência de determinado facto, pelo que não foi violado o princípio in dubio pro reo».”

Conhecendo:
Apenas está em causa a decisão sumária na parte relativa ao recurso da arguida C…, dado que o arguido não reclamou para a conferência da decisão sumária proferida.
Apenas estão por isso em apreciação as questões suscitadas no recurso por esta arguida.
No que respeita aos considerandos jurídicos e jurisprudenciais constantes da decisão sumária, merecem a nossa concordância e para esses fundamentos remetemos.
Importa todavia analisá-los no concreto contexto em que são alegados
Assim quanto aos invocados vícios da decisão alegados pela recorrente e que são a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e erro notório na apreciação da prova
E quanto a este (erro notório), é exposto pela recorrente não como tal (erro que se extraí da sentença, sem recurso a outros dados do processo), mas como errada apreciação das provas produzidas, que a recorrente quer ver no facto de “o tribunal ter sobrevalorizado o depoimento da testemunha J… em detrimento do que necessariamente se infere dos demais meios de prova e elementos de facto objectivos que destes se retiram” (fls 742).
Assim sendo e não estando em causa o vicio elencado, mas a impugnação da matéria de facto através da prova gravada e a apreciação dos depoimentos prestados, é manifesto que a reclamante não tem razão e assim foi devidamente apreciada na decisão sumária.
Para apoiar o vicio da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, avança a recorrente que existem 3 versões dos factos e apenas atendeu a uma, sendo que não foi feita prova cabal de que a menor estaria na rua desacompanhada da arguida, e na valoração desse depoimento não foram tido em consideração outras provas e nomeadamente o relatório médico de fls 539, nem se provaram factos demonstrativos da violação do dever de cuidado por parte da arguida conducentes ao resultado, mormente “o facto que levou a que a arguida tivesse deixado a menor sozinha na rua” (fls 885 a 887).
Como se vê, mais uma vez a recorrente põe em causa a apreciação da prova e não, em geral, o vicio invocado em si mesmo.
Todavia se o vicio da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (art. 410.º-2-a) CPP) é vício que, tal como os demais invocados, só pode existir e ser demonstrado dentro da própria sentença sem ter de se recorrer a outros elementos externos àquela que não sejam as regras da experiência comum ou elementos de prova vinculada existentes no processo (vg. perícias, exames, relatórios, documentos autênticos), o certo é que a al. a) do nº 2 refere-se à insuficiência que decorre da omissão de pronúncia, pelo tribunal, sobre factos alegados pela acusação ou defesa ou resultantes da discussão da causa que sejam relevantes para a decisão, ou seja, a que decorre da circunstância de o tribunal não ter dado como provados ou não provados todos aqueles factos que, sendo relevantes para a decisão da causa, tenham sido alegados ou resultado da discussão. Ocorre este vício quando, da factualidade vertida na decisão em recurso, se colhe que faltam elementos que, podendo e devendo ser indagados, são necessários para se poder formular um juízo seguro de condenação ou de absolvição, ou seja, quando: (1) os factos provados não são suficientes para justificar a decisão; (2) o tribunal recorrido, podendo fazê-lo, deixou de investigar toda a matéria de facto relevante, de tal forma que essa matéria de facto não permite a aplicação do direito ao caso submetido a apreciação; (3) no cumprimento do dever de descoberta da verdade material, que lhe é imposto pelo normativo do art.º 340.º CPP, o tribunal podia e devia ter ido mais longe, e não o tendo feito ficaram por averiguar factos essenciais, cujo apuramento permitiria alcançar a solução legal e justa, determinando ou a alteração da qualificação jurídica ou da medida da pena ou de ambas (Ac. STJ de 99/06/02 Proc. n.º 288/99). Mas é necessário que esses factos possam ser averiguados pelo tribunal a quo através dos meios de prova disponíveis e que, vindo a ser provados, determinarão ou a alteração da qualificação jurídica ou da medida da pena ou de ambas (Ac. citado)
A insuficiência pode revelar-se através de uma avaliação quantitativa ou qualitativa, mas quer numa perspectiva quer noutra, apresenta-se sempre como um minus em relação à totalidade, sem o qual não se consegue chegar ao todo. Daí que aquela alínea se refira à insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de direito e não à insuficiência da prova para a matéria de facto provada, questão do âmbito do princípio da livre apreciação da prova (art.° 127.°), que é insindicável em reexame da matéria de facto (Ac STJ, de 13-1-1993, AJ, 15-16, p. 7; Ac STJ, de 23-9-98, BMJ, 479º- 252)
Por isso tal vício, como se escreve no Ac. do STJ de 13/7/2005 “supõe que os factos provados não constituem suporte bastante para a decisão que foi tomada, quer porque não permite integrar todos os elementos materiais de um tipo de crime, quer porque deixem espaços não preenchidos relativamente a elementos essenciais à determinação da ilicitude, da culpa ou outros necessários para a fixação da medida da pena. A insuficiência significa, que seja também possível uma decisão diversa da que foi tomada; se não for o caso, os factos podem não ser bastantes para constituir a base da decisão que foi tomada, mas permitir suficientemente uma decisão alternativa, mesmo de non liquet em matéria de facto. Por fim, a insuficiência da matéria de facto tem de ser objectivamente avaliada perante as várias soluções possíveis e plausíveis dentro do objecto do processo, e não na perspectiva subjectiva decorrente da interpretação pessoal do interessado perante os factos provados e as provas produzidas que permitiram a decisão sobre a matéria de facto.”
ou ainda como se expressa o STJ no ac. 19/3/2009 www.dgsi.pt/jstj “é uma lacuna de factos, que se revela internamente, só a expensas da própria sentença, sempre no cotejo com a decisão, e não se confunde evidentemente com a eventual falta de provas para que se pudessem dar por provados os factos que se consideraram provados” (cfr. também o Ac. STJ 27/5/2010 www.dgsi.pt/jstj)
por isso e tendo em conta que efectivamente pode existir uma falta na matéria de facto provada, traduzida como expressa a recorrente em “qual o facto que levou a que a arguida tivesse deixado a menor sozinha na rua “ e por essa via violasse o dever de cuidado, o certo é que não se tratará do vicio suscitado, mas antes de insuficiência de factos essenciais na acusação demonstrativos da violação desse dever, e logo do crime negligente de que foi acusada;
A existir esta insuficiência na acusação, ela é geradora da improcedência da mesma, levando à absolvição da arguida, por carência de factos provados integradores dos elementos típicos do crime imputado, que por força do thema probandu que constitui a acusação nela não podem ser inseridos, no pressuposto que pudessem ser averiguados.
Assim porque a insuficiência só existe, no pressuposto que é facto constante da acusação (ou da contestação) a provar, ou imposto por lei (determinação da pena), não sendo o caso, pois não consta a razão porque a menor saiu sozinha como se diz no nº 5 dos factos provados, apesar de ser facto inserto nos factos provados resultantes da discussão da causa ( cfr. Acta de audiência de 14/1/2014 - fls 728) não ocorre, como se decidiu na decisão sumária o apontado vicio.

Apreciemos agora a impugnação da matéria de facto,
e estando em causa a impugnação ampla, a apreciação da matéria de facto alarga-se à prova produzida em audiência (se documentada) mas com os limites assinalados pelo recorrente em face do ónus de especificação que lhes é imposto pelos nºs 3, 4 do artº 412º CPP, nos termos dos quais:
“3. Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
a) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devem ser renovadas;
4. Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta nos termos do nº2 do artigo 364º devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação.
………
6. No caso previsto no nº4 o tribunal procede à audição ou visualização das passagens indicadas e de outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa.”
Há que ter presente que tal recurso não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, com base na audição de gravações, mas constitui apenas um remédio para eventuais erros ou incorrecções da decisão recorrida (erros in judicando ou in procedendo) na forma como o tribunal recorrido apreciou a prova, na perspectiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente, pelo que não pressupõe a reapreciação total dos elementos de prova produzidos em audiência e que fundamentaram a decisão recorrida, mas apenas aqueles sindicados pelo recorrente e no concreto ponto questionado, constituindo uma reapreciação autónoma sobre a bondade e razoabilidade da apreciação e decisão do tribunal recorrido quanto aos “concretos pontos de facto” que o recorrente especifique como incorrectamente julgados.
Para essa reapreciação o tribunal verifica se os pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida e em caso afirmativo avalia-os e compara-os de molde a apurar se impõem ou não decisão diversa (cfr. Ac. STJ 14.3.07, Proc. 07P21, e de 23.5.07, Proc. 07P1498, in www. dgsi.pt/jstj).
A especificação dos “concretos pontos de facto” constituem a indicação dos factos individualizados que constam da sentença recorrida e que se consideram incorrectamente julgados,
e as “concretas provas” consistem na identificação e indicação do conteúdo especifico do meio de prova ou de obtenção de prova e com a explicitação da razão pela qual essas “provas” impõem decisão diversa da recorrida, e
havendo gravação das provas, essas especificações devem ser feitas com referência ao consignado na acta, e dentro destas tem o recorrente de indicar concretamente as passagens (das gravações) em que se funda a impugnação;
Mas o Tribunal pode sempre apreciar outras que ache relevantes (nº 4 e 6 do artº412º CPP)
Todavia o conhecimento da prova indicada pelo recorrente está limitado à sua concreta indicação (e/ou transcrição) na medida em que o recorrente delimita desse modo a impugnação e o conhecimento, delimitação que o STJ através do nº Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 3/2012 in DR 18/4/2012 legitima “Visando o recurso a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, com reapreciação da prova gravada, basta, para efeitos do disposto no artigo 412.º, n.º 3, alínea b), do CPP, a referência às concretas passagens/excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas, na ausência de consignação na acta do início e termo das declarações”
Mas mesmo essa reapreciação, como assinala o STJ ac. de 2.6.08, no proc. 07P4375, in www.dgsi.pt. Relator Juiz Conselheiro Raul Borges sofre as limitações consistentes nas que decorrem
- da necessidade de observância pelo recorrente do ónus de especificação, restringindo como assinalado o conhecimento aos concretos pontos de facto que o recorrente entende incorrectamente julgados e às concretas razões de discordância, sendo necessário que se especifiquem as provas que imponham decisão diversa da recorrida e não apenas a permitam, e
- da falta de oralidade e de imediação com as provas produzidas em audiência, circunscrevendo-se o “contacto” com as provas ao que consta das gravações, postergando-se assim a “sensibilidade” que decorre de tais princípios; e resultam
- de a análise e ponderação a efectuar pela Relação não constituir um novo julgamento, porque restrita á averiguação ponto por ponto, da existência ou não dos concretos erros indicados pelo recorrente; e de
- o tribunal só poder alterar a matéria de facto impugnada se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida (al. b) do nº 3 do citado art. 412º) (cfr. também o Ac. RLx de 10.10.07, no proc. 8428/07, em www.dgsi.pt/jtrl), e não apenas a permitirem;

Acresce, em consonância com o descrito, que a reapreciação da prova na 2ª instância, limita-se a controlar o processo de formação da convicção decisória da 1ª instância e da aplicação do princípio da livre apreciação da prova, tomando sempre como ponto de referência a motivação/ fundamentação da decisão, e
neste recurso de impugnação da matéria de facto, o Tribunal da Relação não vai à procura de uma nova convicção - a sua - mas procura saber se a convicção expressa pelo Tribunal recorrido na fundamentação tem suporte adequado na prova produzida e constante da gravação da prova por si só ou conjugados com as regras da experiencia e demais prova existente nos autos (documental, pericial etc..) e,
em face disso, obviamente o controlo da matéria de facto apurada tendo por base a gravação e/ou transcrição dos depoimentos prestados em audiência, mas não pode subverter ou aniquilar a livre apreciação da prova do julgador, construída, dialecticamente, na base da imediação e da oralidade, tendo presente que como expressa o Prof. Figueiredo Dias, in Dto Proc. Penal, 1º Vol. Coimbra ed. 1974, pág. 233/234, só aqueles princípios da imediação e da oralidade “… permitem …avaliar o mais correctamente possível a credibilidade das declarações pelos participantes processuais”.
Mesmo assim a apreciação que o tribunal pode fazer está condicionada à concreta passagem gravada indicada pelo recorrente na motivação e na transcrição que efectua, pois não pode reapreciar toda a prova como se de um 2º julgamento se tratasse;
Vejamos.
A recorrente / reclamante impugna os factos provados nºs 4, 5, 6, 8, 24 e 25, que deveriam ser não provados, os quais têm o seguinte teor:
“4.º Nesse dia, D…, nascida a 15.05.2008, encontrava-se à guarda e cuidados da arguida, C…, sua avó materna, tendo-a acompanhado até ao minimercado, situado naquela Estrada Nacional, do lado direito, no sentido Vale de Cambra/Arouca.
5.º Assim, cerca das 10h00, quando a arguida C… estava dentro do minimercado com a menor, esta saiu sozinha do mesmo, sem que a avó a segurasse ou de qualquer outra forma controlasse os seus movimentos.
6.º Já fora do estabelecimento e sem que ninguém estivesse junto a si, a menor saltitou nos degraus, existentes à saída da porta do mesmo, e na berma, situada antes da linha guia ali existente.
8.º Quando o arguido se aproximava do estabelecimento, ao volante do MQ, a menor saltitou para a via de trânsito, transpondo a marca relativa à guia, entrando, dessa forma, cerca de 50/60cm da linha guia na faixa de rodagem destinada ao trânsito automóvel, no sentido em que seguia o arguido B….
24.º A arguida C… atuou de forma livre e consciente, sabendo que D… tinha apenas 4 anos de idade e se encontrava à sua guarda e cuidados, e por esse motivo, sobre si impendendo um dever de vigilância, quando estavam no minimercado não a deveria deixar sair sozinha, devendo segurá-la pela mão, afastando-a da faixa de rodagem e impedindo-a, de qualquer modo, de brincar ou correr naquele local, o que não fez, antes a tendo deixado sair sozinha do estabelecimento sem a segurar pela mão, nem a acompanhar a distância suficiente para a impedir de correr para a faixa de rodagem prevendo que, ao atuar desse modo, D… poderia entrar na via e ser atingida mortalmente por veículo automóvel, como veio a suceder, mas sem que se tivesse conformado com esse resultado.
25.º Os arguidos sabiam que as suas condutas acima descritas eram proibidas e punidas por lei penal.”

Indica como impondo decisão diversa:
- as declarações do arguido C…, e as declarações do arguido B… e os depoimentos de H…, I…, na medida em que todos depõem no sentido de a avô da menor se encontrar junto da menor no exterior do estabelecimento comercial;
- depoimento de J… e E… e
- documentos juntos aos autos;

Antes da apreciação, convirá assinalar que o modo como a recorrente apresenta a sua impugnação pode de algum modo fragiliza-la, ao não cumprir o desiderato legal, de indicar para cada ponto concreto questionado a prova concreta, antes optando por para um bloco de factos indicar a mesma prova, ao mesmo tempo que delimita essa apreciação através da transcrição dos depoimentos, e a que acresce que os documentos juntos aos autos apenas podem ser tidos em conta e apreciados na medida em que sejam individualizados no seu recurso, por tal ser imposto pela lei ao exigir a indicação das concretas provas;

A sentença fundamenta do seguinte modo a sua decisão, na parte que releva para o caso:
“Vejamos, agora, quanto aos demais factos que exigem a sua ponderação, em concreto, a dinâmica do acidente, o posicionamento da vítima e da avó, o local de embate e posição final do corpo, o avistamento da vítima pelo arguido, porquanto em audiência de julgamento foram apresentadas várias versões, algumas contraditórias entre si, outras que se complementam, sendo possível, e pelos motivos que passaremos a expor, concluir nos termos descritos da forma como dados como provados.
Vejamos, então, em que se baseou o tribunal para dar como provados os factos da forma como o foram.
*
Vejamos, primeiramente quanto às declarações dos arguidos, isto porque ambos optaram por prestar declarações.
Diga-se, desde já, como veremos infra, que as declarações dos arguidos não colheram aceitação na sua totalidade, mormente no que concerne à dinâmica do acidente, não apenas porquanto contrárias entre si, mas não corroboradas pela restante prova carreada para os autos (ao menos que fosse fiável, como se explicará infra), isto em conjugação com as regras da experiência.
De ambos os depoimentos dos arguidos, como já referimos supra, contraditórios entre si, com versões diferentes do sucedido e de igual modo distintos do preconizado em sede de acusação pública, foi perceptível que ambos não pretenderam assumir as suas responsabilidades pelo sucedido, antes tendo procurado imputá-las ao outro, tentando por todos os meios eximirem-se a qualquer responsabilidade no sucedido.
De igual modo, e para além da supramencionada contrariedade das declarações de ambos os arguidos, acresce que as declarações que prestaram foram-no, em parte, eivadas das mais diversas incongruências, especialmente no confronto com as regras da experiência comum e do normal acontecer, bem como foram contraditadas por prova testemunhal que, como veremos infra, nos mereceu total credibilidade.
Isto para dizer que as declarações dos arguidos, no que diz respeito à dinâmica do acidente, não mereceram a total credibilidade por parte deste Tribunal.
*
Começando pelas declarações do arguido B…, e aqui fazendo uma análise global das declarações por si prestadas para destacar alguns pontos que consideremos serem de nota.
Este arguido assentiu que, nas circunstâncias de tempo e lugar melhor discriminadas no libelo acusatório, conduzia o veículo automóvel aí identificado.
Admitiu que circulava à velocidade de 50km/h. Reconheceu que conhece a via e sabe que a mesma na direção que seguia tem vários sinais, designadamente, sinal de proximidade de curvas perigosas, sinal de bandas sonoras, sinal perigo de travessia de crianças e sinal de passagem de peões. Assentiu que o tempo nesse dia e hora estava bom e a via estava em bom estado de conservação.
Sustentou que se apercebeu, logo após ter feito a curva à esquerda, da presença da menina, aqui vítima, em frente à porta do minimercado, no patamar inferior ao nível da estrada, que se situava do lado direito atento o seu sentido de marcha, e apresentava-se de costas para si e virada para uma pessoa, que mais tarde veio a saber tratar-se da sua avó, a qual conversava com um homem de chapéu, sem que estivesse a ser segura por ninguém.
Argumentou que não reduziu a velocidade porque já vinha devagar, ou seja a 50 Km/h, e quando se encontrava a menos de um metro do local onde a menina se encontrava, em cima das últimas bandas cromáticas, existentes perto da entrada do minimercado, esta iniciou o atravessamento da via, a correr, e atravessou-se à sua frente, entrando na faixa de rodagem, o que fez na diagonal, diagonal essa no sentido Vale de Cambra/Arouca; não teve tempo de travar, só se desviou para o lado esquerdo. Explicou que a menina saiu do minimercado para uma entrada do outro lado da estrada, porque pretendia entrar numa entrada que fica do outro lado, a cerca de 3 metros do local.
Desenvolveu que a menina estava próximo da linha contínua, mas ainda na sua faixa de rodagem, quando lhe bateu, e o corpo foi projetado para a frente e caiu junto ao poste de eletricidade aí existente do lado direito, atento o seu sentido de marcha. Após, a avó pegou na menina no colo, mas não saiu desse local.
Aduziu que não travou o veículo quando avistou a menina, apenas desviou para o seu lado esquerdo e mesmo depois de a ter colhido não travou e ainda com o veículo em andamento saiu do carro deixando a mulher, os filhos e a mãe dentro do mesmo, e o motor ficou a trabalhar, desengatou a mudança e ficou parado do lado direito, tendo sido depois o agente da GNR que lhe desligou o veículo.
Confirmou que os danos no veículo são os visíveis nas fotos de fls. 212 e 214 e 216.
Confrontado com o auto de reconstituição dos factos de fls. 335 e s., confirmou o mesmo, esclarecendo que indicou aos militares a dinâmica e posição das pessoas.
De igual forma, confirmou as fotografias de fls. 337 e 338, os concretos números colocados na estrada e as bandas cromáticas aí existentes.
Estas declarações do arguido, numa primeira análise, pareceriam corroboradas pelos depoimentos das testemunhas H…, sua esposa, e I…, sua mãe, testemunhas arroladas na acusação e que seguiam no interior do veículo por si conduzido, como veremos de seguida.
*
Quanto ao depoimento de H… mulher do arguido, esta confirmou na sua maioria as declarações prestadas pelo arguido, seu marido, relatando que viu, logo após a curva, a presença de um grupo de pessoas perto da menina, a avó e um homem de chapéu, a menina estava virada para a estrada e a avó virada para Arouca e o senhor de chapéu virado para Vale de Cambra, sem que ninguém segurasse a menina que se encontrava na berma a cerca de 1 metro da avó e, a dada altura, aquela começou a correr de forma enviesada para cima, tal como havia referido o marido. Quando a viu correr estavam muito próximo dela. Coincidem ainda quanto à reação antes e depois do embate, projeção do corpo e posição da vítima, que disse estar quase a meio da hemi-faixa de rodagem, tendo caído junto ao portão verde ali existente.
Afirmou que era curta a distância quando a menina ia atravessar a estrada e o marido guinou antes do embate e bateu do lado direito da ótica na esquina da frente e atingiu a menina do lado esquerdo do abdómen e a seguir o corpo saltou, bateu com a cabeça no capô e foi projetada pelo ar, onde caiu junto ao portão.
Argumentou que o marido não reduziu a velocidade após a sinalização, justificando que já circulava a cerca de 50Km/h.
Nesse mesmo segmento argumentativo confirmou que o marido saiu do carro sem o parar e quando saíram do carro foi a testemunha que o foi travar.
Atestou a presença de uma senhora no local, apeada do lado direito, atento o sentido de marcha que seguiam e um pouco antes do local do embate.
Confirma ter visto a menina junto ao minimercado na posição da fotografia de fls. 341, 1 foto.
Explicou que a menina começa a correr entre as duas últimas marcas existentes no solo, da fotografia de fls. 341.
Discorreu sobre a situação económica e social do arguido.
*
Quanto ao depoimento de I…, mãe do arguido, diga-se, desde já, que o depoimento desta não será valorado porque pecou o seu relato, na nossa ótica, por inverosímil, e por isso não credível, não só por ter relatado mais do que aquilo que poderia ter visto, não nos parece normal que uma senhora que segue no banco de trás, com um neto de cada lado, numa viagem descontraída, se encontrasse a prestar a atenção que quis fazer crer ao que sucedia no exterior do veículo do lado direito da estrada, local onde se encontrava a vítima, afirmando ter visto todo o sucedido, desde o momento em que a menina estava na berma, o início da travessia da estrada até ao embate, apenas tendo perdido o contacto visual nessa altura. Ora, isso não é possível e não é possível porque os movimentos da criança situavam-se do seu lado direito, estava esta de acordo com o que disse, baixada, do lado da estrada em que seguia o veículo e por isso com menor ângulo de visão, principalmente num veículo em movimento, pelo que, parte dos factos que esta testemunha descreveu não poderia ter visto por o seu campo de visão estar obstruído pelo banco ocupado por H….
Mas mais do que isso, inquirida a testemunha G…, que elaborou a participação de acidente e que nele identificou as pessoas que o presenciaram, disse ter questionado os presentes sobre essa identificação, aí fazendo constar aqueles que foram identificados como o tendo visto – ora entre essas pessoas consta efetivamente H…, consta J…, a que já nos iremos referir, mas não consta I… como constaria caso tivesse, como quis fazer crer, visto o acidente.
Finalmente esta testemunha estranhamente é capaz de fazer afirmações quanto a pormenores específicos, designadamente quanto aos presentes no exterior junto da menina, posições e condutas, mas sem que seja capaz de relatar comportamentos que se deveria lembrar com maior detalhe e que não foi capaz de descrever de modo cabal, como o desvio do veículo ou as circunstâncias da sua imobilização, fatores que nos levam mais uma vez a crer que não tenha presenciado os factos que afirmou e do modo como os relatou.
Tanto que, a final, acabando por contradizer não só o arguido, como H…, afirmou que a menina iniciou um trajeto de atravessamento da via de modo diagonal, mas não no sentido de Arouca, como disse o seu filho, antes na direção da viatura em que seguiam, isto é, no sentido exatamente oposto.
Acresce, ainda, que apesar de referir a presença perto da menina e da avó de um homem, descreve um comportamento da menina que mais ninguém relata - que estaria agachada e depois levantou-se e fez-se à estrada - coloca a avó, a menina e o homem em posições diferentes das do arguido e de H…, faz uma descrição diferente do homem misterioso, não muito alto, depois de meia estatura, pelos outros referido como alto, indicando um local de embate que é incongruente com o movimento de desvio realizado e com a parte do veículo que atingiu a menor.
Por todos estes motivos, este depoimento não mereceu qualquer credibilidade
*
Aqui chegados podemos atestar que o relatado supra é a primeira versão do acidente. Porém trata-se de versão que não se nos afigurou verdadeira.
Na verdade, como vimos supra, quer o arguido quer a sua mulher H… afirmam que a menina iniciou a travessia da faixa de rodagem quando se encontravam a cerca de 1 metro dela e que o local de embate ocorreu perto da linha contínua (atendendo à largura da estrada depois da menor percorrer uma distância de cerca de 3 metros a pé), ou seja, tendo o arguido se apercebido da menina no exato momento em que ela começa o trajeto, deslocando-se a menina a pé e o arguido de carro, a menina consegue percorrer 3 metros antes do embate até ao local da colisão o que se nos afigura impossível pois se numa viatura em movimento alguém tivesse visto uma criança a correr a três metros de distância, que seja, pela velocidade a que a viatura seguia, não embateria na criança, porque esta uma velocidade inferior não conseguiria percorrer tantos metros até ao veículo antes de ser atropelada, quanto mais a apenas 1 metro; no ponto onde convergiram daqui é possível afirmar que o ponto de impacto não foi aquele que o arguido afirma nas suas próprias declarações, decorrendo que teria de ser mais próximo da berma do que o que referem o arguido e H….
Para além disso, é manifestamente estranho o relato que fazem da presença de um homem alto, com caraterísticas não muito normais, de fato e de chapéu e que misteriosamente desaparece do local, sem se aproximar da vítima ou do condutor, sem se identificar e sem que seja identificado por nenhuma das outras pessoas que ali estavam ou que para ali foram, nem mesmo após as diligências de investigação efetuadas pela GNR, como referiu o agente E…. Trata-se por isso de figura que reveste caraterísticas de ficção tanto mais que, não tendo qualquer intervenção nos factos, não possuía qualquer razão para não se identificar, nem para não ser identificável. E que mesmo depois do esforço do Tribunal para ser encontrado, tendo sido referido pelas testemunhas, donas do estabelecimento comercial, que com essas caraterísticas apenas poderia ser o homem que vendia chouriço na loja, e sendo chamado a testemunhar, declarou nada saber, nem nunca ter ido à loja ao sábado, nem sequer conhecer a arguida.
Quanto à reação do condutor após o acidente se não travou antes, como modo de evitar o embate, apenas tendo desviado para a esquerda, o que nos parece razoável, já não é razoável que depois de se ter apercebido do embate, não tenha travado a viatura, já não de modo a evitar o acidente, mas como forma de imobilizar o veículo que conduzia, mencionando mesmo, de forma irrealista, na nossa perspetiva, que saiu do carro em movimento, sem qualquer preocupação de segurança não só para com os outros utentes da via que pudessem com ele se deparar, mas da segurança da sua própria família, designadamente dos seus filhos que seguiam no interior do automóvel, conduta esta adotada por uma pessoa que se afirma fazendo uma condução cuidada.
Tal comportamento é ainda mais surpreendente por o arguido, quando questionado sobre se o veículo, perante o largar imediato dos pedais, não teria ido abaixo, respondeu que não, que ficou a trabalhar porque, antes de o abandonar em movimento, colocou-o em ponto morto, desengrenando a mudança a que seguia. Isto é, afirma o arguido que não foi capaz de reagir travando o veículo para o imobilizar, mas já teve sangue frio suficiente para o desengrenar de modo a que não parasse o motor. Este facto para além de anormal, não é ainda confirmado pois disse que o veículo, apesar de se ter imobilizado pelos seus próprios meios, continuou a trabalhar tendo sido um dos GNR’s que se deslocou ao local que o desligou, o que foi negado pelos dois agentes ouvidos em audiência de julgamento.
Para além disso, a posição em que coloca a vítima a deslocar-se na via é incompatível com as lesões que esta apresentava – se se deslocasse naquele trajeto diagonal ao ser colhida pelo veículo seria surpreendida pelo seu lado esquerdo, mas com incidência na zona das costas desse lado – e não eram essas as lesões que a vítima apresentava.
Vejamos, agora, quanto aos factos relativos à distância em que o arguido avista a menina junto ao estabelecimento e depois quando esta salta para a sua via de trânsito.
Quanto à distância a que o arguido diz que viu primeiramente a menina, que como afirma foi após a curva (distância essa que como pudemos atestar aquando da inspeção ao local fica a cerca de 30 metros do estabelecimento), e no auto de reconstituição, que o arguido aceita ser fiel quanto às posições, refere-se que o arguido vê primeiramente a menina a cerca de 17,27m, o que é perfeitamente compatível com o relato do arguido.
Já no que concerne à distância em que o arguido avista a menina a entrar na sua faixa de rodagem, este afirma que a viu em cima das últimas bandas cromáticas, a menos de um metro, e por seu turno a H… refere que foi entre as duas últimas marcas existentes no solo, da fotografia de fls. 341.
Ora, no relatório de fls. 201, temos as medidas do início das últimas bandas cromáticas até à entrada do estabelecimento que é de 4,85m, aliás compatível com o que se viu no local. Ora, entre as bandas cromáticas indicadas pelo arguido e entre as duas bandas cromáticas indicadas pela H…, como sendo o local onde a menina “se meteu à estrada”, temos uma área entre o início das últimas bandas cromáticas até à porta do estabelecimento de 4,85m.
Acresce que o arguido nunca poderia ter visto a menor a entrar na via a menos de um metro, como quis fazer crer, porquanto o tempo de reação do individuo que se depara repentinamente com um objeto à sua frente é de cerca de ¾ de segundo, logo, ao reagir, a desviar-se da menina teria que a ter visto à distância já referida de 4,85, no mínimo.
*
Vejamos, seguidamente quanto às declarações apresentadas pela arguida C….
Esta arguida, de igual modo, quis prestar declarações e apresentou, se assim podemos dizer, uma segunda versão do acidente, e vejamos porquê.
Admitiu nas circunstâncias de tempo e lugar constantes do libelo acusatório estar a cuidar da sua neta, a menor D…, e ter ido com esta ao minimercado.
Explicou que a determinada altura saiu do estabelecimento e quando já se encontrava no exterior do mesmo, mas na berma, com um pé ao nível da estrada e o outro no degrau, isto é, antes da marca guia delimitadora da via, e com a neta encostada a si, mas mais próxima dessa marca, mas antes da linha guia, a qual se encontrava segura pela mão esquerda, “presa pela mão” (sic), sem que nunca a tenha largado, e junto à porta da entrada do estabelecimento, voltadas, ambas, na direção de Arouca, e enquanto isso tentava colocar um objeto num saco plástico, encontrando-se debruçada sobre ele; de repente surgiu o automóvel do arguido por detrás delas e terá sido, de acordo com o que disse, nesse momento, naquele local, que o veículo colheu a neta, na berma, “arrancando-a das suas mãos” (sic) do que se apercebeu apenas por um esticão, mas a si não lhe bateu de qualquer forma.
Desenvolveu que a menina após o embate estava em cima do capô e o veículo continuou a andar e a menina caiu cerca de 20 metros à frente e na berma do lado direito e o carro foi parar mais à frente, próximo do posto da eletricidade. Pegou na neta ao colo e “andou uns passos” (sic) e logo a seguir veio uma senhora, a K…, que a tirou do seu colo.
Asseverou que não se encontrava ninguém a falar consigo.
*
Ora, diga-se que também esta versão não mereceu o nosso acolhimento.
Na verdade, para a menina ter sido colhida na berma pela parte da frente do lado direito do veículo do arguido, local onde apresentava danos, o arguido teria de circular fora da faixa de rodagem sobre aquela berma, o que a arguida também não afirma, mais do que isso, diz que não viu desviar de algum modo o carro o que significava que teria de ter seguido sempre pela berma até se imobilizar o que é incompatível com a posição final que assumiu e que é visível na fotografia tirada no dia onde se vê que este está atravessado na faixa com a traseira mais próxima da linha do meio e a frente virada para a berma.
A verdade é que se estivesse com a neta pela mão, como afirma, esta ao ser levada pelo carro provocaria mais do que o esticão que refere, causaria o seu desequilíbrio e mesmo queda, o que não sucedeu. Ademais, encontrando-se encostada à neta, como diz, e tendo o arguido embatido com a parte frontal direita na menina, sendo o espelho retrovisor parte mais saliente do que aquela, pelo menos com essa parte teria de igual modo de atingir a arguida, o que também não sucedeu.
Acresce que a menina apenas seguiria em cima do capô se tivesse sido apanhada não com a parte lateral, mas com uma maior parte da parte frontal mais baixa e que fizesse, por assim, dizer efeito de cunha fazendo subir o corpo até ao capô, ao embater com a parte frontal, mas com a lateral o corpo não subiria, mas antes seria projetado de imediato e, sendo o local de embate indicado pela arguida tão próximo da parede e da porta do minimercado, bateria contra essa parede e não a vários metros após, como sucedeu.
Também é de notar que perante a posição que a arguida afirma ter tido e se a neta tivesse seguido em cima do capô como disse, a dada altura deixaria de ter visibilidade para essa parte, o que nega.
Em suma, a dinâmica relatada pela arguida não se coaduna com o normal suceder, nem com as suas próprias declarações.
*
Depois das duas versões apresentadas pelos arguidos, pessoas interessadas no resultado da demanda, foi apresentada uma, a que podemos chamar terceira versão, por uma testemunha presencial, J…, que depôs de forma singela, sem mostras de animosidade para com os arguidos, pelo contrário era perceptível que não queria incriminar ninguém com o seu depoimento, cingindo-se à factualidade de que tinha conhecimento próprio, sobre a qual expendeu com concisão, de forma séria e verdadeira, que nos pareceu manifestamente desinteressada em relatar falsidades, em mentir para ajudar e agradar alguém, e que foi localizada no local onde referiu estar por duas testemunha, e que, mais do que isso, delimitando bem os factos, relatou uma dinâmica que é congruente com os demais elementos recolhidos.
Tudo circunstâncias que nos levam a afirmar que, em nossa convicção, o acidente terá ocorrido do modo como o descreveu.
Esta testemunha, J…, referiu que nas circunstâncias de tempo e lugar constante da acusação, encontrava-se encostada a uma casa de azulejos ali existente, uns metros antes do minimercado, mas no mesmo lado deste, ou seja, sentido Vale de Cambra/Arouca.
Assegurou que do local onde se encontrava conseguia ver a estrada e o exato local onde ocorreu o embate, nomeadamente conseguia ver os degraus da entrada do minimercado, só não conseguia ver a porta (querendo dizer reentrância) deste estabelecimento.
Contou que nessas circunstâncias viu o veículo conduzido pelo arguido a passar por si, no sentido Vale de Cambra/Arouca, e após olhar para o carro a passar viu a D… junto à porta do minimercado, onde existe uns degraus, a saltitar.
Inicialmente não queria afirmar de forma perentória que não tinha visto a arguida, apenas referiu que não viu ninguém a segurar a menina, numa tentativa nítida de não desagradar à sua vizinha, a aqui arguida, mas acabou por assegurar com firmeza que a criança estava sozinha, sem que ninguém a segurasse, já que, se viu a menina, se estivesse a avó também a via.
Explicou quando o veículo estava a aproximar-se da menina, sem conseguir especificar os metros de distância, mas mais perto que a testemunha se encontrava, a menina, como já dissemos, se encontrava a saltitar nos degraus, saltitou para berma e para a faixa de rodagem, “mas não correu, saltitou e ficou ali onde o carro a colheu” (sic). Referiu que a menina saltitou de frente para a estrada e ficou “a cerca de 50/60 cm da risca branca” (sic), de frente para a estrada e de costa para o minimercado, local onde foi colhida pelo veículo conduzido pelo arguido, no seu lado esquerdo, lado onde, de acordo com os elementos médicos juntos aos autos, apresentava maiores lesões e onde terá sido o impacto – o que reforça esta versão.
Afirmou que o arguido depois de ter embatido na menina tentou desviar-se para a faixa de sentido contrário, sem entrar nesta faixa e parou o carro mais à frente e saiu.
Mais atestou que a criança após o embate foi projetada pelo ar e ainda rolou pelo chão até se imobilizar alguns metros à frente (projeção esta e local de embate compatível com o ponto de contacto com o veículo, como referido pelo agente instrutor), sendo o local de posição final do corpo semelhante ao indicado pelos demais intervenientes.
Adiantou que na sua perspetiva o arguido fazia uma condução normal para o local “nem depressa nem devagar” (sic), julga que não ia a mais de 50 Km/h.
Referiu que depois do embate a avó saiu da direção da porta do minimercado e foi em direção à menina e pegou na menina ao colo e ficou quase no mesmo sítio onde ela se imobilizou.
Confirmou o auto de reconstituição de fls. 357, reafirmando que se encontrava no local indicado na 1 fotografia de fls. 358 n.º 1 e o n.º 2, onde estava e o que via.
De igual modo confirmou a posição do veículo depois do embate, marcas do carro, retratados a fls. 216, 217 e 218.
*
Como já referimos esta testemunha afirmou que ninguém segurava a menina pela mão, não se encontrando sequer a avó do seu lado, ou, pelo menos, da porta do minimercado para fora, pois não a viu; sendo a saída do estabelecimento, como pudemos aferir aquando da inspeção ao local, perfeitamente visível do local onde se encontrava a testemunha, pelo que esta teria de ver a arguida, obrigatoriamente, caso ela ali se encontrasse, mesmo que debruçada sobre o saco, já que se a menina era visível, a arguida se lá estivesse era de igual modo visível, porque o campo de visão era o mesmo.
Disse, ainda, que a avó apareceu de imediato, após o embate, da direção da porta do minimercado, o que é compatível com a presença da avó no local logo após o embate a pegar na menina ao colo.
Diga-se que foi por demais perceptível pelo depoimento desta testemunha que a menina não atravessou a via a correr, como vem dito na acusação e é referido pelo arguido. O que foi evidente deste depoimento, e é nossa pura convicção, é que a menina saiu do estabelecimento antes da avó e saltitava nos degraus e na berma, e como a berma é muito pequena com esse saltitos invadiu a faixa de rodagem por onde circulava o veículo do arguido, mas sem que tivesse qualquer intenção de atravessar a via.
*
Foi realizada um acareação entre a mãe e a mulher do arguido e a testemunha J…, a fim de se aferir da existência das pessoas no local e todas mantiveram os seus anteriores relatos.
*
Quanto aos depoimentos de L… e M…, os responsáveis pelo minimercado, não mereceram qualquer credibilidade, não só porque disseram não terem presenciado nenhum dos factos, como demonstraram em Tribunal, o que foi contrariado por uma testemunha, como veremos infra, uma conduta anormal recordando com pormenor o sucedido imediatamente antes do acidente, o que não é normal dado que, a ter inexistido o acidente, seria uma situação de todos os dias, não se recordando já do sucedido após o acidente, dizendo que não tiveram curiosidade de sequer espreitar para fora, pelas portas de vidro do estabelecimento e afirmando L…, contra todas as regras da normalidade, que telefonou para os bombeiros apenas porque ouviu um estrondo e uma pessoa a gritar, sem que se tenha aproximado, só para ver, mas pelo menos para socorrer ou para informar os bombeiros do sucedido, pois a assim ser não saberia que tipo de auxílio pediria se por acidente com automóvel, motociclo, se entre veículos ou com peões, se se trataria sequer de acidente, se alguma daquelas pessoas se teria sentido mal e desmaiado ou desequilibrado e caído, entre várias outras hipóteses que alguém que, como L… referiu, não viu, não poderia saber.
Afigurou-se-nos que estes depoimentos tiverem como objetivo não incriminar ninguém com as suas declarações, sendo certo que o que relataram não corresponde à totalidade do seus conhecimentos.
(…)
A testemunha E…, agente da GNR, foi quem fez a investigação do processo, depôs de forma clara e assertiva, dando conta do por si presenciado no local e das ilações que, como profissional de um NIC de Acidentes de Viação, retirou. Não resvalou em hesitações ou contradições, antes tendo esclarecido de modo cabal todas as questões que lhe foram sendo colocadas, evidenciando saber e competência e adotando uma postura de imparcialidade. Mereceu credibilidade por parte deste Tribunal.
Assumiu como tendo sido quem fez o relatório de fls. 174 e s., cujo teor confirmou.
Afirmou que tomou conhecimento do acidente passadas 3 horas da sua ocorrência e que foi ao local, mas não existiam vestígios, inexistindo no piso quaisquer marcas relativas a uma qualquer travagem. Confirmou os danos no veículo, lado direito frente, esquina, pára choques, capô e a ótica partida.
Concretizou que no dia do acidente o tempo estava bom, a via apresenta duas faixas de rodagem, com linhas guias e linha contínua, com passeio pelo lado esquerdo, sentido Vale de Cambra/Arouca, e do lado direito tem um espaço além da linha guia e em frente ao minimercado tinha um ou dois degraus. Tendo constatado a existência no local de sinalização, considerando o sentido Vale de Cambra/Arouca, designadamente sinal de curva contra curva, azul de passadeira, aproximação de local com crianças e bandas sonoras entre as duas curvas, sendo a velocidade permitida para o local de 50Km/h.
Quanto à dinâmica do acidente, fez a investigação e explicou que decorrendo da sua experiência profissional o atropelamento deveria ter ocorrido na direção da porta do minimercado indicado por J… e o local onde é indicado por esta onde ficou a menina, que esta estaria muito próximo da linha guia, porque se o embate fosse na berma o corpo ficaria mais próximo do que o que estava, mais próximo do minimercado, ademais, caso a avó estivesse a segurar a neta teria caído.
Asseverou, por fim, que o local onde foi projetado o corpo da menina é compatível com o que afirma a testemunha J…, inexistindo factos que corroborem a versão dos arguidos, antes havendo vários vestígios que suportam a versão desta testemunha.
*
A testemunha K…, que depôs de forma isenta e credível, asseverou que no dia do acidente foi ao minimercado, cerca das 9 horas da manhã, onde se encontrava a arguida com a menina, depois foi-se embora. Cerca das 10 horas estava a encher um muro perto do minimercado quando ouviu gritar e correu para ver o que se passava e viu a arguida, na direção de Arouca/Vale de Cambra, com a menina nos braços, a cerca de 10 metros antes da entrada do minimercado, foi então ao encontro da avó e pegou na menina ao colo e baixou-se pouco antes do portão de fls. 338.
Assegurou que quem ouviu gritar inicialmente, gritos que a alertaram, foi a testemunha J…, que estava junto de uma casa de azulejos, mas não ouviu a avó da menina a gritar, mas passado cerca de 1 minuto de ver a J… parada no local (onde esta testemunha disse que se encontrava) já viu a avó na rua.
Pugnou ter visto os proprietários do minimercado na rua, desmentindo o que aqueles haviam dito, como já referimos supra.
(…)
De todo o exposto e como referimos supra pelo depoimento da testemunha J…, corroborado com os outros elementos de prova, foi para nós crível que o acidente e a morte da menina se deu da forma como demos como provado.
Ora, como vimos supra, tendo nós dado credibilidade ao depoimento da testemunha J…, que aliás foi corroborado por outros elementos de prova, como tivemos oportunidade de explanar, a morte da menina foi resultado das condutas dos arguidos e, a eliminar-se uma delas, não teria sucedido – se a avó tivesse segurado a menor ou de algum modo impedido que entrasse na faixa de rodagem; por seu turno, se o arguido, ao avistar, a cerca de 17 metros, uma criança sozinha na rua a brincar/saltitar, e tivesse reduzido a velocidade como lhe ordenava a sinalização existente, ainda que até quase parar, para poder desse modo reagir ao comportamento de uma criança de pouca idade que não está a ser vigiada, não a teria atingido, ou pelo menos, não com o impacto que aconteceu.”

Analisando a prova indicada pela recorrente, temos:
A arguida C… declara que a neta estava consigo que a segurava pela mão esquerda enquanto metia um pacote de bolachas no saco que estava no exterior junto à entrada do supermercado, estando a menor no degrau superior (ao nível da estrada) na berma, onde foi colhida pelo veículo que invadiu a berma, por trás, nas costas;
O arguido B… declarou que a menina estava no patamar inferior das escadas, não estava segura pela avó que estava a falar com um senhor que estava no patamar, e estava de costas para o carro e virada para a avó e quando estava em cima do local ela saiu a correr para a estrada para a atravessar meio transversalmente e tentou desviar-se para a esquerda para evitar o embate o que não conseguiu apanhando-a de lado mais ou menos no meio da sua faixa de rodagem;
A testemunha H…, esposa do arguido/ condutor que ia no banco da frente, diz-nos que a menina estava ao lado da avó (à sua beira) no patamar, que tinha um saco azul de plástico no chão, onde também estava um senhor e de repente virou-se para o lado da avó acenou com a mão e começou a correr na estrada enviesada para a atravessar, tendo o marido guinado para a esquerda para evitar o embate, o que não conseguiu vindo a embater quando o carro já tinha invadido parcialmente a faixa contrária, tendo atingido a menina mais ou menos do lado esquerdo do abdómen; a menina não estava a ser agarrada;
A testemunha I…, mãe do arguido que ia no carro, diz-nos que viu a criança e a avó a falar com um senhor na berma, virados para a estrada estando a criança no meio deles abaixada a brincar e de repetente levanta-se e mete-se à estrada;
A testemunha J… diz-nos que ao passar o carro viu-o aproximar-se do local e quando ia perto a menina saltitou os degraus para cima de frente e meteu-se de repente à estrada tendo sido apanhada pelo carro depois de 50 a 60 cm da faixa de rodagem; viu a menina sozinha e não se apercebeu de ninguém só da menina, e foi uma coisa rápida; e após o acidente a avó apareceu logo da direcção da loja e foi a primeira a chegar junto da criança e não sabe se estava fora ou dentro, pois não a viu e tendo sido tão rápido podia não ver pois a menina chamou mais a atenção;
A testemunha L…, diz-nos que a avó saiu com a neta para fora do estabelecimento ao mesmo tempo e estavam as duas do lado de fora quando logo a seguir ouviu o estrondo;
A testemunha E… militar da GNR que fez as investigações, diz-nos que a casa faz um rebordo e a avó para não ser vista teria de estar para além da porta, e que a parte do carro que bateu na criança foi mesmo na esquina frontal do lado direito, e o embate não ocorreu na berma, e ao ocorrer o embate a criança se estivesse segura (e não apenas agarrada) pela mão, a pessoa que a segurava podia ser puxada ou cair;
Das declarações em acareação das testemunhas H…, I… e J…, ressalta que na altura do acidente se falou que a avó estava abaixada a mexer numas coisas da saca.
- indica como documentos, o relatório final de fls 174 e ss e seu relatório fotográfico, sobre o local, intervenientes e características da via; o auto de reconstituição de fls 318 e ss, e o relatório médico e registos clínicos de fls 539 a 603;

Analisando a fundamentação onde se expressa a apreciação do tribunal e os depoimentos prestados e indicados, verifica-se que a apreciação que o tribunal faz tem suporte nas prova sindicadas, mas quer-nos parecer, todavia, que o faz em moldes inadequados os quais na maneira como os traduz nos factos provados, não corresponderão ao normal acontecer e ao dinamismo inerente aos acidentes rodoviários.
Qualquer depoimento/ testemunho, pode conter e por norma contém, factos verdadeiros e factos que podem não o ser (mas que o depoente os toma como tal), dependendo da percepção / sensação do receptor, de tal modo que o depoimento pode ser em parte valorado e em parte não valorado.
A percepção que se tem ao ler os factos provados e mormente a parte relativa ao nº5 é a de que a menor saiu sozinha do estabelecimento sem que a avó disso de apercebesse ou nada fizesse (alheando-se dela).
Não é esse todavia o sentido que se extrai dos depoimentos. Deles resulta antes que a menor saiu com a avó que abriu a porta e a menina saiu e que ela a seguiria. Isso resulta não apenas dos depoimentos prestados, mas também pelo facto de já ter feito e pago as compras e ir embora, e por tal se coadunar com a possibilidade de a testemunha J… não a ter visto antes (apesar de estar longe, ainda muito retirada como refere e de ter centrado a sua atenção na menina a saltitar ao sair da loja e no carro e não na porta da loja - o que é perfeitamente normal pois como resultam das fotos de fls 358, do sitio onde estava para o local do acidente o seu campo de visão é muito extenso e com muita dificuldade a testemunha centraria a sua atenção num ponto que não era relevante (a porta da loja) e havia um que clamava por essa atenção – a menina), e porque foi uma coisa tão de repente, que não deu para se estar a aperceber de mais nada, até porque ela saltitou nos degraus, quase a correr, (fls 822, 824, 825, 828), e depois do embate a avô foi a primeira a chegar à beira da menina vinda da direcção da porta da loja (fls 833, o que apenas é compatível com o facto de a avó estar com a menina ao sair, e não com uma qualquer distracção ou outros afazeres da avó na loja, sendo certo que é perfeitamente compreensível o depoimento da testemunha ao referir que centrou a sua atenção na menor desde que saiu e viu o carro passar, e foi tudo tão de repente (835 e 836) tendo visto simplesmente a menina a meter-se ali á estrada e mais nada (fls 836) e a menina saiu directamente para a estrada (fls 845) e aquando do acidente a avó saiu da direcção da porta da loja, apareceu logo de caminho e correu para a neta (fls 849). Ora tal depoimento apenas é compatível efectivamente com o estar ali com a neta, que saiu da loja à sua frente, caso contrário não teria reagido dessa maneira, o que é compatível com o facto por ela (a avó) relatado de o acidente ter ocorrido na sua presença (embora sem o prever), o que está de acordo por sua vez com o testemunho da caixa da loja a testemunha L… de que saíram juntas;
O relatório médico de fls 540, indicando-nos que foram “as lesões predominantemente esquerdas”, constituídas pelas facturas da 9º e 10º arcos costais posteriores esquerda, contusão pulmonar esquerda e lesão esplénica” dando uma ideia de que a menor estaria no momento do embate ligeiramente obliqua à estrada, o que pode ser obtido com um ligeiro movimento de rotação, vão de encontro também às palavras do arguido B… e da testemunha H… de que ela se virou para a avô e acenou e andou fazendo-o de modo enviesado, o mesmo resulta da autopsia (perícia médico legal – fls 119) em que a zona mais atingida teria sido o terço médio da região postero-lateral esquerda do tórax.
Deve assim ser alterada a matéria de facto questionada, quanto aos pontos 4 e 5 que devem passar a ter a seguinte redacção:
“5.º e 6º Cerca das 10h00, a arguida C… e a menor que estavam dentro do minimercado saíram do estabelecimento para irem embora e após sair a menor saltitando subiu os degraus do patamar exterior do estabelecimento e de acesso à berma da estrada e nesta e entrou na faixa de rodagem, sem que a avó a tivesse segura pela mão.”
E quanto ao ponto 24 a seguinte redacção:
“24.º A arguida C… atuou de forma livre e consciente, sabendo que D… tinha apenas 4 anos de idade e se encontrava à sua guarda e cuidados, e sobre si impendia um dever de vigilância, e devia afastá-la da faixa de rodagem, impedindo-a, de brincar ou correr naquele local, e deixou-a sair do mini-mercado sem a segurar pela mão ”.
Vista esta alteração, importa surpreender quais os efeitos que a mesma pode ter na decisão proferida relativamente à reclamante.

A arguida recorrente/ reclamante foi acusada e condenada pela prática por omissão, de um crime de homicídio negligente, p. e p. pelos artºs 10.º e 137.º, n.º 1, do Código Penal.
Para que ocorra o crime por omissão (comissão por omissão) é necessário tal como exige o artº 10º2 CP que sobre o omitente recaia um dever jurídico que pessoalmente o obrigue a evitar esse resultado.
O crime omissivo pressupõe sempre a violação de um dever jurídico de fazer algo (de agir) que não é feito, para evitar o resultado, e o dever do agente consiste em agir para evitar a lesão do bem jurídico que se concretiza com a produção do evento material.
O facto típico é assim a “criação de um risco de verificação de um resultado típico” e existirá sempre quer o risco ocorre ou é potenciado por força da omissão - Figueiredo Dias, Dto Penal, Parte Geral, I, Coimbra editora 2ª ed. Pág.927, por outro lado tem de ocorrer uma ausência de acção, (da acção esperada) que resultará do que segundo a situação típica é necessário para obstar à verificação do resultado previsto no tipo legal, e necessário é ainda que o omitente possa levar a cabo a acção devida (ou necessária a evitar o resultado)- cf. Figueiredo Dias, ob. cit. pág. 928;
Mas importa, também por isso averiguar se sobre a avó impendia um dever jurídico de agir e evitar o resultado.
Tal dever jurídico “de garante” - de não ocorrência do resultado pode emergir ou ter como fontes directamente a lei (dever legal especial) o contrato, e situações de criação do perigo e intimas relações vitais, cabendo nos deveres especiais de garante a aceitação fáctica de deveres e as relações intimas - familiares (recíprocos deveres familiares) (cf. Johannes Wessels, Direito Penal, Parte Geral 1976, pág. 157 e ss, ou como ensina Germano Marques da Silva, Direito Penal Português, II, verbo, pág. 49 e ss, o dever jurídico recai sobre aquela pessoa que equilibra a relação de dependência de outrem. Esse dever jurídico constitui a posição de garante do bem jurídico protegido, e resulta de uma posição de protecção ou de uma posição de controlo, traduzindo-se a posição de protecção em proteger de todos os perigos (caso dos pais), pode ser originária (pais) ou pode ser derivada - passa do titular originário para terceiros através de acto negocial (baby sitter), sendo certo que, para o mesmo professor “vai-se gerando consenso de que a lei impõe a certas pessoas, em razão de especiais qualidades, funções ou relações, determinados deveres de garante e que esses deveres resultam de uma relação fáctica de proximidade entre o omitente e determinados bens jurídicos que ele tem o dever especial de proteger …”- pág. 55.
Tal posição, está, cremos de acordo com o entendimento do Prof Figueiredo Dias, expresso no seu Direito Penal, I, 2ª ed. pág. 939 e ss,, que deixando de lado a teoria formal e a teoria das funções quanto ao fundamento/ nascimento do dever jurídico, opta por uma teoria formal-material, em face da qual há que afirmar, no caso concreto, a existência entre a avó e a neta, de um dever especial de protecção e assistência que fundamenta a posição de garantia, não com base na consagração de tal dever especial que não existe como tal directamente na lei (sem por em causa que o parentesco é fonte de relações familiares- artºs 1576 e 1578º CC) e na ausência de uma confiança da menor aos seus cuidados, mas na “unívoca relação de solidariedade natural entre o omitente e o titular do bem jurídico” - pág. 939, face à existência, no caso concreto, quer de relações fácticas entre ambas (de acordo com os factos provados encontrava-se à guarda e cuidados da arguida - nº4) quer de uma situação real de dependência, sendo certo que “ não haverá razão para que a posição de garante não se estenda a outras relações familiares, máxime, avós/ netos, …”- pág.940, mas também pela assunção fáctica das funções de guarda emergente da relação de confiança estabelecida entre a avó e a neta (cfr. Figueiredo Dias, ob. cit, pág. 941), sem necessidade de questionar sequer a existência do dever de garante face à actuação de terceiro inimputável, origem dos deveres de vigilância e segurança relativamente a perigos que deles partam (idem ob. Cit. pág. 949). No mesmo sentido, Albuquerque, Paulo P. de, Cometário do Código Penal, UCP, pág. 72, e 73;
Dever jurídico significa, assim, dever que “tem de assentar numa relação de confiança susceptível de produzir efeitos jurídicos” in Figueiredo Dias, ob. cit. pág. 933
Grosso modo, para que possa ocorrer o crime por negligência, importa que o resultado tenha ocorrido por desatenção ou falta de observância do dever de cuidado que lhe era exigido e de que era capaz, e que era objectivamente previsível e o resultado evitável se tivesse agido de acordo com esse dever.

Visto isto importa ora apreciar os factos apurados em vista à verificação ou não do crime imputado.
E desde já cumprirá assinalar, que mesmo mantendo-se os factos tal como foram apurados em 1ª instância, tal decisão não poderia manter-se, e muito menos com a alteração emergente da procedência da impugnação da matéria de facto.
Na realidade a sentença, apesar dos factos que dela constam, tem como pressuposto factos que não ocorreram, isto é, que não constam dos factos provados, e tal resulta do que expressa na fundamentação de direito ao dizer:
“No caso em apreço, a arguida tendo à sua guarda e cuidado uma criança de 4 anos, da qual estava habituada a cuidar, deixou-a sozinha, na rua, sendo que, nesse instante a menor é colhida por um veículo e quando regressou encontrou a menor já atropelada, encontrando-se a mesma inanimada, tendo a menor sofrido lesões que foram causa direta da sua morte. A arguida ao deixar a menor, de 4 anos, sozinha na rua, agiu sem tomar as mais elementares precauções, pelo que agiu com manifesta falta de cuidado e diligência, até porque já não era a primeira vez que cuidava da menor, bem como de outras crianças.
(…)
O art.º 99.º, n.º 6, do CE prevê uma coima para quem, com violação dos deveres de cuidado e de proteção, não impedir que os menores de 16 anos que, por qualquer título, se encontrem a seu cargo brinquem nas faixas de rodagem das vias públicas.”
donde resultaria que a avó entrou na loja deixando a menor cá fora (junto á estrada) a brincar, conclusão que os factos provados (da própria sentença não consentem).

Mas na omissão, tem de ocorrer uma ausência de acção, da acção capaz de evitar o resultado, que se traduz na omissão da acção salvadora (Maria Felino Rodrigues, A teoria Penal da Omissão e a revisão crítica de Jakobs, Almedina, 2000, pág. 27), pois no seu dizer a omissão penalmente relevante só pode ser a omissão de uma acção determinada, visto que a omissão em si mesma não existe.
Mas essa acção salvadora que devia ter sido adoptada (a acção omissiva típica) pressupõe a verificação, a existência de um perigo concreto para qualquer daqueles bens jurídicos que confira sentido à omissão do agente. Ou seja, no caso, só perante a eminencia do atropelamento é que se impõe o dever de agir (evitar esse atropelamento) pois antes não existe o perigo que fundamenta o dever de agir, e esse resultado fosse previsível / recognoscível no momento.
Nos factos provados a sentença não nos diz qual a acção salvadora que foi omitida que evitaria o resultado (ou seja que fosse atropelada pelo veiculo automóvel), ou ainda que evitasse a criança de sair do estabelecimento, sendo que por outro lado em face da modificação fáctica, ora operada nos nºs 5, 6 e 24 dos factos provados) não se vislumbra que a avó tenha omitido qualquer acção, nem se demonstra que não tenha agido em conformidade com o que é esperado e socialmente aceitável, pois não se impõe que sempre e em qualquer momento a criança tenha de estar segura pela mão e mormente no momento de sair do estabelecimento, face à necessidade de abrir e fechar a porta, e à ausência de conhecimento e verificação de uma situação de perigo imediato;
É que, como expressa Albuquerque, Paulo P., ob. Cit. pág. 70 “sendo socialmente adequadas as condutas do agente, falta-lhes desde logo qualquer relevância para o Direito, não se pondo sequer a questão de um desvalor da acção para o Direito Penal”
O facto de não ter segura pela mão a menor à saída do estabelecimento não traduz um acto omitivo capaz de evitar o resultado que lhe seja directamente imputável, pois o dever imposto é um dever que pessoalmente o obrigue a evitar o resultado, o que impõe a capacidade fáctica do individuo para adoptar a conduta adequada, e essa acção tem de ser socialmente inadequada, o que não é o caso.
Por outro lado não se mostra reconhecível, para a recorrente (que até é uma pessoa idosa de 86 anos) ao sair do estabelecimento, uma situação de perigo que apenas ocorre em momento posterior a essa saída (com a menor a dirigir-se para a faixa de rodagem, face à aproximação do veiculo, sendo que tudo foi muito rápido), pois o dever de intervir só existe numa situação de perigo: se sabe ou devia saber que vai ocorrer o acidente (dever de evitar o acidente). Na palavras de Albuquerque, Paulo, ob. cit. pág. 72 “… na omissão, agente apenas não desencadeia ou interrompe um processo causal que evite a concretização de um perigo preexistente de lesão do bem jurídico” pelo que não há omissão se quando ainda não há uma lesão em curso ou o perigo de lesão do bem em causa;
Por outro lado o resultado (acidente) deve ser uma consequência previsível da acção/omissão, e essa previsibilidade “deve ser aferida de acordo com um juízo de prognose póstuma (ou juízo ex ante) colocando-se o aplicador no momento histórico da conduta do agente. O aplicador deve proceder a este juízo de acordo com o conhecimento resultante da experiencia comum e os conhecimentos especiais do agente” - Albuquerque, Paulo P. ob. cit. pág. 69;
Ora nada nos permite concluir que a avó se tenha apercebido sequer do veiculo automóvel em circulação e da previsibilidade da ocorrência do acidente, quer por acção daquele quer da própria neta que iria adoptar aquele comportamento repentino, que lhe impusesse a adopção de uma acção especifica para que o acidente não viesse a ocorrer, sendo que a sua conduta se revela por desconhecimento daqueles factos, que não podia prever, socialmente adequada, pois o que a lei pune é o não impedimento de um resultado, a acção que devia ter existido, para evitar que o resultado ocorresse, mas isso só pode ser exigível e logo só pode ser imputado ao omitente, se este sabe que o resultado vai acontecer, ou seja o perigo de lesão é real e existe, donde a sua previsibilidade.

No homicídio negligente, “Do que se trata de apurar para este efeito é se há violação pelo agente de exigências de comportamento em geral obrigatórias cujo cumprimento o direito requer, na situação concreta respectiva, para evitar realizações não dolosas da morte de outrem”- Comentário Conimbricense, I, 2ª ed. pág. 177, pois como exprime F. Dias, ob. cit, pág. 932 citando Damião da Cunha “os deveres não visam impedir resultados, visam exactamente diminuir a probabilidade da ocorrência do resultado”
Mas tratando-se como se trata, no caso, de crime de resultado, o agente/ omitente “…tem de prever o resultado ao menos como consequência possível da sua omissão, não assumindo … relevo autónomo a representação do perigo da produção do resultado típico. Como tem obviamente de representar a acção exigida ou imposta cuja ausência… conforma o essencial do tipo de ilícito objectivo” Figueiredo Dias, ob. cit pág. 957;
Podemos assim concluir que impendendo sobre a avó a dever de garante, não ocorrem os demais requisitos que permitam imputar à conduta avó (ou à sua falta: omissão) o resultado verificado (atropelamento da menor), sendo que “… a obrigação de evitar o resultado é só uma forma de referir … a obrigação de levar a cabo a acção adequada a evitar o resultado” Figueiredo Dias, ob. cit. pág. 933

Mas a avó foi condenada por se ter considerado também por ter actuado/ omitindo de modo negligente.
E neste âmbito, citando Jescheck refere Figueiredo Dias, Dto Penal, cit. pág. 964 que “ao garante cabe o dever de evitar o resultado da mesma forma que ao autor da acção cabe o dever de o não provocar com o seu comportamento positivo”.
Para estarmos perante um crime negligente necessário é que ocorra a violação de um dever objectivo de cuidado, a produção de um resultado típico e a imputação objectiva desse mesmo resultado implicando não apenas a causalidade adequada mas também previsibilidade objectiva, a que acrescerá o risco proibido criado e a concretização desse risco no resultado verificado.
A conduta negligente é aquela que ocorre por desatenção contrária ao dever de cuidado que é exigido na situação concreta, e a culpa negligente é também a atitude interna do omitente de descuido ou leviandade perante o dever existente, mas “… o omitente para que seja punível por negligência, tem não apenas de violar o cuidado objectivamente imposto, mas ainda de não evitar o resultado apesar de aquele se apresentar como pessoalmente cognoscível e este como pessoalmente evitável: só nesta medida se pode afirmar que ele documentou no facto qualidades pessoais de descuido e leviandade pelas quais tem de responder” – Figueiredo Dias, ob. cit. pág. 965.
O cuidado que lhe é exigível tem de ser aferido através de um juízo ex ante, entre a conduta que devia ter adoptado um homem prudente, colocado na mesma situação mas munido dos conhecimentos específicos do agente e colocado na sua posição, e a conduta que este efectivamente observou.
Em face destas regras e tendo em conta estes considerandos e os factos provados, não podemos afirmar a ocorrência de uma conduta negligente, contrária ao dever de cuidado que lhe era exigível, em face da situação concreta e de que era capaz, por parte da avó da menor, pois não se mostra que tenha agido de modo descuidado ou de modo leviano, ou a conduta fosse inadequada em face das circunstâncias concretas de que a avó tinha e podia ter conhecimento. Afigura-se-nos efectivamente correcto e imposto pelo dever de cuidado que a avó levasse a neta pela mão quando circulasse na berma da estrada, mas não que o fizesse para sair do minimercado, até em face da circunstância fáctica da necessidade de abrir a porta do estabelecimento para o efeito, cujo acto cabe/coube à avó, saindo primeiro a menor (como ocorreu) e depois ela, não se mostrando por outro lado que previsse a saída rápida da menor de junto de si e para a estrada, e o aparecimento do veiculo automóvel.
Conduta leviana e descuidada poderia efectivamente ter ocorrido se a sua conduta se tivesse traduzido como se expressou a sentença recorrida, na fundamentação de direito, no texto transcrito supra, se a tivesse deixado sozinha na rua enquanto estava no minimercado, e/ou a brincar na faixa de rodagem, mas que os factos não consentem.
Cremos assim não poder imputar o resultado verificado: atropelamento da menor e subsequente morte à conduta da avó, por ter omitido a acção adequada a evitar esse acidente e seu resultado.
E assim sendo deve a recorrente ser absolvida do crime não sendo de sufragar a decisão sumária nessa parte, e ficando prejudicada a apreciação de outras questões suscitadas pela recorrente reclamante.
+
Pelo exposto, o tribunal da Relação do Porto decide:
Alterar a decisão sumária proferida nestes autos e em conformidade
- julgar procedente o recurso interposto pela arguida C… e em consequência
a)- altera os nºs 5º, 6º e 24º da matéria de facto provada, os quais passam a ter a seguinte redacção:
“5.º e 6º Cerca das 10h00, a arguida C… e a menor que estavam dentro do minimercado saíram do estabelecimento para irem embora e após sair a menor saltitando subiu os degraus do patamar exterior do estabelecimento e de acesso à berma da estrada e nesta e entrou na faixa de rodagem, sem que a avó a tivesse segura pela mão.
“24.º A arguida C… atuou de forma livre e consciente, sabendo que D… tinha apenas 4 anos de idade e se encontrava à sua guarda e cuidados, e sobre si impendia um dever de vigilância, e devia afastá-la da faixa de rodagem, impedindo-a, de brincar ou correr naquele local, e deixou-a sair do mini-mercado sem a segurar pela mão ”, acrescendo aos factos não provados a parte restante destes nºs;
b)- revoga a sentença recorrida quanto à mesma arguida e absolve a arguida do crime de homicídio negligente por omissão p.p. pelos artºs 10º e 137º1 CP de que foi acusada;
Sem custas;
Registe e notifique
Dn
+
Porto, 21/1/2015
José Carreto (relator por vencimento)
Donas Boto (vencido com declaração de voto anexa)
Francisco Marcolino (Presidente)
____________
Declaração de voto
****
Não acompanho a decisão que fez maioria, quer quanto à apreciação da matéria de facto, quer em relação ao direito a aplicar, pelas razões que vamos expor.
Efectivamente, quanto ao primeiro aspecto, sabemos que foram apresentadas várias versões do acidente, algumas contraditórias entre si, outras que até se complementam.

Começando pela versão do Arguido B…, da esposa H… e da sua mãe I…, todos eles referem ter visto a menina na berma, que esta não estava a ser segurada e que se encontrava nas costas de uma senhora que mais tarde veio a saber tratar-se da sua avó, que conversava com um homem de chapéu.
O arguido disse que saiu do carro em movimento sem o travar, sem se preocupar com os demais utentes da via e com a sua própria família que transportava no carro.
Porém, quanto ao local de embate, posição, comportamento da menina e das pessoas que se encontravam perto dela, o arguido foi referindo algo diferente ao longo do processo (dia do acidente, reconstituição do facto e julgamento).
Ora, desde logo, não deixa de ser estranho o relato que fazem da presença de um homem alto, de fato e de chapéu e que desaparece do local, sem se aproximar da vítima ou do condutor, sem se identificar ou ser identificado pelas pessoas que ali estavam, nem mesmo depois de diligências nesse sentido, levadas a cabo pela GNR.
Por isso, esta versão revelou-se inverosímil, quer para o tribunal recorrido, quer para nós, porque contrária às regras da experiência comum e do normal suceder dos acontecimentos.

Depois temos a versão da arguida C… que centra toda a sua defesa no facto de que, aquando do acidente, se encontrava no exterior de mão dada com a neta, nunca a tendo largado, mesmo quando tentava colocar um objecto num saco plástico encontrando-se debruçada sobre ele, altura em que ocorreu o acidente.
Nessa ocasião, refere que tinha a neta segura pela sua mão esquerda, encontrando-se, ambas viradas na direcção de Arouca, surgindo o automóvel do arguido por detrás delas. Estavam antes da marca guia delimitadora da via, a neta encostada a si, mas mais próxima dessa marca, negando que mais alguém ali estivesse.
Foi nesse momento que surgiu o veículo do arguido que colheu a neta arrancando-a das suas mãos, facto de que se apercebeu apenas por um esticão, tendo visto que a menina seguiu a rolar em cima do capot, caindo vários metros à frente, perto da passadeira.
Porém, podemos já adiantar, que para a menina ter sido colhida na berma pela parte da frente do lado esquerdo do veículo do arguido, local onde apresentava danos, o arguido teria de circular fora da faixa de rodagem sobre aquela berma, o que a arguida não afirma, dizendo que não viu desviar de algum modo o carro, o que torna esta versão incompatível com a posição final que assumiu e que é visível na fotografia tirada no dia, onde se vê que estava atravessado na faixa com a traseira mais próxima da linha do meio e a frente virada para a berma.
Ora, se estivesse com a neta pela mão e encostada a ela aquando do acidente, a arguida ter-se-ia desequilibrado e caído, o que não aconteceu, sem esquecer que tendo o arguido embatido com a parte frontal esquerda na menina, teria de a arguida C… ser atingida, quanto mais não fosse com o espelho retrovisor, o que igualmente não aconteceu, daí que, tal como o fez o tribunal de 1ª Instância, não acolhemos esta versão.

Finalmente, por se mostrar manifestamente desinteressada em relatar falsidades, em mentir para ajudar ou agradar alguém e que é congruente com a posição final do corpo da vítima, acolhemos a versão da testemunha J….
Esta testemunha refere que viu a criança a saltitar dos degraus do supermercado entrando na faixa de rodagem cerca de 50/60 centímetros, local onde foi colhida, atravessou de frente para a estrada e por isso, sendo colhida pelo seu lado esquerdo, local onde, segundo os elementos médicos juntos aos autos, apresentava maiores lesões e onde terá sido o impacto.
A criança foi projectada pelo ar e rolou no chão até se imobilizar, sendo o local da posição final do corpo coincidente com os outros intervenientes.
Afirma que ninguém segurava a menina pela mão nem viu a avó fora da porta do supermercado.
Também o guarda E…, instrutor do processo, referiu, em relação à versão da recorrente C…, não ser a mesma compatível com o local de embate e a posição final do corpo.
A testemunha J… estava a olhar para o local onde ocorreu o acidente, sendo inequívoco que a C… não se encontrava próxima da menor, não a segurava pela mão, nem a impedia de entrar e brincar na estrada, pois mesmo que a arguida C… estivesse debruçada sobre o saco e mesmo que existissem veículos ali estacionados, não obstruíam o campo de visão à testemunha J…, pois como disse na acareação, estaria numa rampa, mas sem lhe tirar a visibilidade que tinha para o local onde ocorreu o acidente, vendo ainda a porta do minimercado, conforme se comprovou aquando da diligência de reconstituição do facto, e na deslocação do tribunal ao local, onde se comprovou que se a arguida estivesse no patamar da porta do supermercado necessariamente teria de ser vista, mesmo que debruçada sobre o saco ou estivessem veículos estacionados na berma ou ainda que houvesse caixotes colocados à porta do minimercado.
Por outro lado, se a arguida C… invoca que o arguido e sua família referem que a vêem fora do minimercado, tentando descredibilizar a testemunha J…, ao mesmo tempo nas suas alegações de recurso refere que este mesmo arguido e sua família criaram uma personagem fictícia, o homem de chapéu, numa tentativa de fazerem recair sobre a arguida a culpabilidade do acidente (fls. 875), isto é, o mesmo depoimento é valorado e desvalorado, conforme a favorecesse ou desfavorece.
Quanto ao depoimento da dona do minimercado, L…, se por um lado se recorda de todos os pormenores antes do acidente, tem uma enorme amnésia nos factos após acidente, que disse nada saber pois nem teve curiosidade em espreitar pela porta do estabelecimento que até era de vidro, mas telefonou para os bombeiros só porque ouviu um estrondo e uma pessoa a gritar.
Porém, apesar de negar ter saído do estabelecimento enquanto os bombeiros e GNR ali se encontravam, o certo é que foi vista e identificada pela testemunha K… como uma das pessoas que estavam no exterior nesse dia.
Por outro lado, as lesões que a menor apresentava incidiam sobre o seu lado esquerdo, como consta do relatório médico a fls. 540, mas não que essas lesões fossem exclusivamente na parte posterior esquerda ou sequer, que essas lesões decorressem de embate com o veículo nessa zona. Tais lesões são compatíveis com o embate tal como descrito na sentença, pois posicionando-se a vítima na estrada, atento o sentido em que seguia o arguido, o embate, estando de lado para a estrada, teria de ocorrer do seu lado esquerdo, lado onde possuía mais lesões.
Assim sendo, acolheria esta versão dos factos relatados pela testemunha J…, tal como o fez o tribunal recorrido.
Temos, pois, como factos incontestáveis, que: - o embate na menina ocorreu na faixa de rodagem destinada ao trânsito automóvel; - a menina antes de ocorrer o embate estava na berma da estrada, desacompanhada; - a menina encontrava-se, nesse dia, à guarda e cuidados da arguida C…; - ao não impedir a menina de entrar e brincar na estrada, a arguida C… violou o dever de cuidado que sobre si impendia, dever este vinculado pela obrigação decorrente do n.º6 do artigo 99.° do Código da Estrada.

Porém, tendo em conta a alteração dada agora aos factos nºs 5º e 6º da matéria de facto provada, passou a constar, salvo melhor opinião, uma versão diferente de todas as apresentadas em julgamento, ou seja, que a arguida C… e a menor saíram do estabelecimento minimercado juntas, mas sem que aquela segurasse pela mão a menor, sua neta.
De facto, a arguida C… sempre disse que nunca deixou de dar a mão à menor, mesmo quando se baixou.
Já o arguido e a sua família, que seguia consigo no carro, sempre referiram que viram a arguida parada e de costas para a menor e para a estrada, a falar com o tal homem de chapéu (mas que ninguém soube quem era!!!), enquanto a menor brincava sozinha, invadindo a faixa de rodagem, altura em que foi colhida pelo veiculo que conduzia.
Por fim, a testemunha J… referiu que a menina andava sozinha a saltitar, mas não viu a arguida, sendo certo que via a porta do minimercado, só vendo a arguida sair daquele estabelecimento, ou daquela direcção, após o acidente.
Assim, repito, não alteraria a matéria de facto dada como provada pelo tribunal de 1ª Instância.
****
Discordo ainda da decisão que fez maioria quanto ao Direito a aplicar aos factos.
Assim, dispõe o Artº 15° do CP que:
"Age com negligência quem, por não proceder com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, está obrigado e de que é capaz:
a) Representar como possível a realização de um facto que preenche um tipo de crime mas actuar sem se conformar com essa realização; ou
b) Não chegar sequer a representar a possibilidade de realização do facto".
Distinguem-se, assim, na alínea a) a negligência consciente e na alínea b) a inconsciente.
Assim, haverá negligência inconsciente, única que nos interessa para o caso em análise, sempre que o agente não previa, como podia e devia ter previsto, a realização do facto.
Maia Gonçalves (Código Penal Português Anotado, 13ª ed., pág. 115) refere que "A negligência inconsciente é aquela que suscita maiores dificuldades. Nos casos subsumíveis a esta modalidade de imputação subjectiva, a lei, para evitar a realização dos resultados típicos antijurídicos, proíbe a prática das condutas idóneas para os produzirem, querendo que eles sejam representados pelo agente, ou permite tais condutas, mas rodeadas dos necessários cuidados, para que os resultados se não produzam. …Quando estes cuidados são acatados, o risco esbate-se; na omissão dos mesmos cuidados se radica o fundamento principal da punição da negligência inconsciente".
Exige-se neste caso, a capacidade do agente para proceder com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, está obrigado e de que é capaz.
Negligência é, pois, a violação de um dever objectivo de cuidado, ou seja, consiste na omissão de uma precaução reclamada pela prudência, cuja observância teria evitado o facto correspondente ao tipo de crime (cfr. Luís Osório, Notas ao Código Penal Português, Volume III, Pág. 150).
Pressuposto da negligência é, portanto, a inobservância do cuidado adequado a impedir a ocorrência do resultado típico, ou seja, a ausência do cuidado que efectivamente poderia impedir o evento que a própria norma pretende evitar, cuidado esse objectivamente adequado e idóneo a impedir a ocorrência do evento.
O dever objectivo de cuidado decorre das circunstâncias particulares do caso em análise, das normas jurídicas que regulam comportamentos existentes, designadamente das que visam limitar ou diminuir os riscos próprios de certas actividades, como são, a título de exemplo, as disposições relativas à circulação rodoviária.
Teresa Beleza, citando Fragoso e Stratenwerth, refere: "O que é característico dos crimes negligentes, ao contrário dos crimes dolosos, é justamente a incongruência entre a situação objectiva e a situação subjectiva. Na negligência, a pessoa não representa uma situação objectiva, ou se a representa como uma possibilidade, não se convence dela, e, portanto, essa incongruência, essa oposição, essa contradição entre a realidade objectiva e a representação duma pessoa é justamente aquilo que é característico dos crimes negligentes; e por isso talvez não se deva falar no elemento subjectivo do tipo de crime" (in Direito Penal Vol. II, pág. 573, AAFDL).
Porém, a doutrina dominante entende que a negligência contém um tipo de ilícito e um tipo de culpa, ou seja, como violação de um dever de cuidado objectivo, faz parte do tipo de ilícito, como censurabilidade pessoal da falta de cuidado de que o agente é capaz, é elemento de culpa. Tal é, aliás, consagrado na própria definição legal de negligência, plasmada no art° 15° do Código Penal: "Age com negligência quem, por não proceder com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, está obrigado..." isto é violação do cuidado objectivamente devido, que corresponde ao tipo de ilícito e "... e de que é capaz", ou seja capacidade instrumental (violação do cuidado que o agente é capaz de prestar, segundo o seu conhecimento e capacidades pessoais), que corresponde ao tipo de culpa (neste sentido Figueiredo Dias in Temas Básicos da Doutrina Penal, Coimbra Editora - 2001, pág. 352).
Em termos de previsibilidade de um certo resultado, teremos de analisar não só aquilo que é previsível e evitável para a generalidade das pessoas, mas também se para aquela pessoa em concreto, era previsível e evitável que um certo acontecimento se desse.
Ora, o dever cuja violação a negligência supõe, consiste em o agente não ter usado aquela diligência que era exigida segundo as circunstâncias concretas para evitar o evento, decorrente quer de normas legais, quer do uso e experiência comum, sendo fundamental que a produção desse resultado seja previsível e que só o facto de se ter omitido aquele dever tenha impedido a sua previsão.
Eduardo Correia (Direito Criminal, I, Vol., pág. 426) refere que “A previsibilidade e o dever de prever que assim objectivamente limitam a negligência não são todavia uma previsibilidade absoluta -mas uma previsibilidade determinada de acordo com as regras da experiência dos homens, ou de certo tipo profissional de homem”.
Existe, pois, um dever de prever, e, portanto, a objectiva possibilidade de negligência, sempre que uma conduta em si, sem as necessárias cautelas e cuidados, seja adequada a produzir um evento.
O dever objectivo de cuidado não tem uma origem necessariamente formal, bastando a sua idoneidade, em abstracto, para, em face das concretas circunstâncias do caso, evitar o resultado proibido, porém, pode reconduzir-se o dever objectivo de cuidado ou diligência aos usos e normas jurídicas associadas ao exercício de um certo ofício ou actividade, às normas ou regulamentos que visam prevenir perigos - como justamente sucede com as disposições do Código da Estrada - e, finalmente, aos usos e à experiência comum com vista à adopção de determinadas cautelas e cuidados a fim de evitar a produção do resultado (cfr. Eduardo Correia, Direito Criminal I, 1971, pg.425 e ss.).
Ora, o dever objectivo de cuidado impõe por um lado, um dever de representar ou prever o perigo para o bem jurídico tutelado e de valorar correctamente esse perigo, o seu processo causal e as suas consequências, sendo certo que esse perigo só surge quando se ultrapassam os limites do risco permitido; e, por outro lado, um dever de adoptar uma conduta adequada a evitar esse perigo, quer omitindo acções perigosas, quer actuando prudentemente em situações que, pese embora perigosas, são toleradas pela ordem jurídica (risco permitido), quer munindo-se, aquando da adopção de uma conduta de risco, dos conhecimentos que permitam empreender essa conduta com segurança [Jescheck, Tratado de Derecho Penal, p. 525].
Figueiredo Dias – Temas Básicos da Doutrina Penal- 11º Tema – Velhos e Novos Problemas da Doutrina da Negligencia (2001), 349/381, defende que para determinar a negligência, há que utilizar um critério duplo – doutrina do duplo escalão – critério que parte da distinção entre tipo de ilícito negligente e tipo de culpa negligente, traduzindo-se o tipo de ilícito negligente na violação do cuidado objectivamente devido e o tipo de culpa negligente na violação do cuidado de que o agente é capaz de prestar, segundo os seus conhecimentos e capacidades.
A negligência determina-se, por um lado, mediante a averiguação do comportamento que seria objectivamente devido para evitar a violação (involuntária) do bem jurídico na concreta situação (de perigo) - tipo de Ilícito - e, por outro lado, através da averiguação sobre se esse comportamento pode ser exigido ao agente, tendo em atenção as suas capacidades individuais – tipo de culpa - Figueiredo Dias, ob. cit., 376/378.
As capacidades a que se há-de fazer apelo na formulação do juízo de culpabilidade da negligência, terão de ser aferidas a partir das características do tipo de pessoa em que o agente se insere, que tanto pode ser superior como inferior ao homem médio.
Só se justifica a imputação do facto se este se tiver ficado a dever a uma omissão de cuidado que o ordenamento jurídico exija, na concreta situação fáctica, das pessoas conscienciosas, pertencentes ao tipo a que o agente também pertence.
Embora coexistam no tipo de ilícito negligente uma face objectiva e outra subjectiva, não tem sentido autonomizar um tipo de ilícito subjectivo, porquanto a vontade de realização do agente negligente se não dirige ao resultado típico, de tal modo que a relevância jurídico-penal desta vontade não resulta imediatamente do seu conteúdo, mas sim de uma comparação com o comportamento imposto – F. Dias, ob. cit., 371/372.
Por isso, para que a culpa negligente se afirme, não é necessário (nem possível) apelar ao concreto poder do agente de actuar de outro modo na situação. Do que ali se trata é apenas da conclusão de que, de acordo com a experiência, os outros, agindo em condições e sob pressupostos fundamentalmente iguais àqueles que presidiram à conduta do agente, teriam previsto a possibilidade de realização do tipo de ilícito e tê-la-iam evitado – Figueiredo Dias, ob. cit., 377/378.
Assim, não é elemento do tipo de ilícito negligente a motivação da violação do dever de cuidado, aquilo que subjectivamente determinou o agente, a razão que o levou a não assumir o comportamento devido, uma vez que a conduta negligente surge as mais das vezes desligada de qualquer representação por parte do agente relativamente à realização do facto, sem esquecer que o fundamento da punição na negligência não reside na vontade do resultado nem na vontade da violação do dever de cuidado, mas sim no facto de o agente não ter querido, em face do conhecimento de que certos resultados são puníveis, preparar-se sempre que uma conduta que projecta seja adequada para os produzir, representar esses resultados (negligência inconsciente).

Neste mesmo sentido vai o ACSTJ de 28-05-2008, Proc. n.º 1778/08 -3.ª Secção, onde se diz:
- Na concretização dos critérios de imputação objectiva da morte à conduta cabe desde logo particular relevo à violação de normas de cuidado da mais diversa ordem (legais, regulamentares, profissionais, da experiência). Uma tal violação pode constituir indício do preenchimento do tipo de ilícito, mas não pode em caso algum fundamentá-lo. Como diz Roxin, «o que em abstracto é perigoso, pode deixar de o ser no caso concreto». E a violação das normas de cuidado assume especial importância em domínios altamente especializados que importam riscos para as outras pessoas.
- A doutrina dominante considera que o crime negligente se preenche com a violação de um dever objectivo de cuidado, enquanto a questão da capacidade individual do agente para o observar deve ser remetida para a culpa (cf. Comentário Conimbricense do Código Penal, tomo 1, págs.107-109).
- No crime de homicídio por negligência o sujeito actua com culpa: tendo a possibilidade de agir de acordo com o direito, não o faz, pelo que não observa a diligência pessoal possível para evitar o resultado danoso (morte). Daqui resulta que a culpabilidade decorre da previsibilidade objectiva, ou seja, da possibilidade de ser prefigurada a morte de alguém. Trata-se, porém, da previsibilidade actual, presente, aquela que no momento da conduta era acessível ao agente. A previsibilidade é, pois, aferida por critérios subjectivos, isto é, tendo em conta as condições pessoais do agente (como, por exemplo, a sua capacidade de prever o resultado), mas também por critérios objectivos (de acordo com o que, no momento concreto, era de admitir que fosse a forma de reagir de um homem normal).
- Como refere Nelson Hungria «existe previsibilidade quando o agente, nas circunstâncias em que se encontrou, podia, segundo a experiência geral, ter-se representado como possíveis as consequências lesivas do seu acto. Previsível é o facto cuja possível superveniência não escapa à perspicácia comum. Por outras palavras: é previsível o facto, sob o prisma penal, quando a previsão do seu advento, no caso concreto, podia ser exigida do homem normal ou comum». E o homem normal ou comum é, segundo o mesmo Autor, «a personificação do bom senso, do equilíbrio moral. É ele quem sempre reconduz ao justo ponto de equidistância entre os extremos o pêndulo da evolução humana».
***
Pelo atrás exposto, parece-nos inequívoco que a arguida, a quem estava confiada a menor (que ainda não havia completado os quatro anos de idade), com larga experiencia no comportamento de crianças, como se diz nos autos, ao deixá-la sozinha junto a uma estrada com muito movimento (sem qualquer fundamento, pois a arguida apenas alega que a teve sempre junto a si e de mão dada), em particular nesse dia e hora (um sábado, cerca das 10 horas), quando esse local (porta e escadas do minimercado) está a escassos centímetros da referida estrada, que ali faz uma curva, e onde não existe qualquer separação com a estrada, para além de uma simples linha divisória, pintada a branco, leva inevitavelmente a pensar que uma criança, desacompanhada, possa ir para a estrada e aí poder ser atropelada, como efectivamente foi.
Não se diga que a arguida era idosa, pois para cuidar da menor não seria necessário usar força física ou ser ágil para a acompanhar, bastava olhar por ela, falar-lhe, dar-lhe a mão, etc., sendo certo que a arguida nunca invocou qualquer incapacidade ou dificuldade para cuidar da menor, nem há a menor referência nos autos a qualquer atitude de indisciplina, rebeldia ou desobediência da menor à arguida, nem tão pouco se fez qualquer referência ao facto de a menor ter largado a mão da arguida, dado um esticão, ter corrido, etc..
Ora, como atrás dissemos, o fundamento da punição na negligência não reside na vontade do resultado nem na vontade da violação do dever de cuidado, mas sim (no caso concreto), no facto de a arguida não ter querido, em face do conhecimento de que certos resultados são puníveis, preparar-se, face a uma conduta que projecta seja adequada para os produzir, representando esses resultados.
Há, portanto, uma omissão de cuidado que o ordenamento jurídico exigia, na concreta situação fáctica, de pessoas conscienciosas, como seria o caso da arguida, ou seja, nas circunstâncias em que a arguida se encontrou, podia, segundo a experiência geral, ter representado como possíveis as consequências lesivas do seu acto, que não escapam à perspicácia comum, e podia ser exigida do homem normal ou comum, valorando correctamente esse perigo, o seu processo causal e as suas consequências, adoptando uma conduta adequada a evitar esse perigo.
Concluindo, houve por parte da arguida, omissão de uma precaução reclamada pela prudência, cuja observância teria evitado a morte da menor, pelo que a arguida ao não ter usado aquela diligência que era exigida segundo as circunstâncias concretas para evitar o evento, decorrente do uso e experiência comum, cuja produção desse resultado era previsível e que só o facto de se ter omitido aquele dever tenha impedido a previsão dos acontecimentos que vieram a ter lugar.

Assim, ao contrário da decisão que fez vencimento, condenaria a arguida como principal responsável pela morte da menor (mais que o arguido, que circulava na sua faixa de rodagem a não mais de 50 kms/h), confirmando a decisão de 1ª Instância que a condenou numa pena de multa de 250 dias à taxa diária de €6,00, pela prática de um crime de homicídio negligente.

Donas Botto