Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRP00042964 | ||
Relator: | HENRIQUE ANTUNES | ||
Descritores: | TRIBUNAL DE COMÉRCIO PRESTAÇÃO DA CAUÇÃO QUESTÃO INCIDENTAL CANCELAMENTO REGISTO DA HIPOTECA | ||
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Nº do Documento: | RP2009092938-B/2000.P1 | ||
Data do Acordão: | 09/29/2009 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO. | ||
Decisão: | CONFIRMADA A DECISÃO. | ||
Indicações Eventuais: | 2ª SECÇÃO - LIVRO 323 - FLS. 131. | ||
Área Temática: | . | ||
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Sumário: | I- A competência para a prestação da caução implica a competência para conhecer da questão incidental da eficácia da caução prestada relativamente à garantia representada pela hipoteca judicial e, portanto, para a questão do cancelamento do seu registo (art° 96 n° 1 do CPC e 89 n° 3 da LOFTJ). II- Desde que é competente para conhecer da causa relativa à prestação da caução, o tribunal de comércio é competente para conhecer de todas as questões incidentais que nela surgirem. | ||
Reclamações: | |||
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Decisão Texto Integral: | Proc. nº 38-B/2000 Acordam no Tribunal da Relação do Porto: 1. Relatório. Os réus, B………….. e C………….., requereram, ao Sr. Juiz de Direito do Tribunal de Comércio de Vila Nova de Gaia, contra D…………. SA, com a finalidade de evitar a execução imediata da decisão da que interpuseram recurso de apelação, a que foi atribuído efeito devolutivo, a prestação de caução bancária, no valor de € 150 000.000 e, uma vez prestada esta garantia, o cancelamento do registo das hipotecas judiciais sobre dois prédios urbanos promovido pela última. A autora opôs-se alegando, designadamente, que o Tribunal de Comércio de Vila Nova de Gaia, é incompetente em razão da matéria para julgar e apreciar o pedido de cancelamento do registo das hipotecas judiciais, uma vez que, a seu ver, sendo os actos registrais de hipotecas do âmbito de decisões administrativas dos conservadores do registo predial, facilmente se apura que nenhum desses actos é judicialmente sindicável, nos termos do artº 89 da LOFTJ, preceito que apenas prevê, no que aos actos dos conservadores concerne, os recursos dos despachos dos conservadores do registo comercial. Todavia, o Sr. Juiz de Direito não se persuadiu da bondade da alegação da autora e, depois de observar que o pedido de cancelamento das hipotecas é consequência do pedido de prestação da caução, caso este seja julgado procedente, desatendeu, designadamente, a arguição da incompetência absoluta do tribunal, e admitiu os requerentes a prestar a caução, no montante já fixado por este tribunal, pelas formas admitidas em direito, devendo seu depósito ser devidamente comprovado nestes autos, após o que, será ordenado o cancelamento das hipotecas. A autora logo apelou desta decisão, pedindo a sua revogação e a sua substituição por outra que julgue aquele tribunal incompetente em razão da matéria para julgar o pedido de cancelamento das hipotecas judiciais. A recorrente condensou a sua discordância relativamente à decisão impugnada nas conclusões seguintes: a) O Tribunal de Comércio de Vila Nova de Gaia é absolutamente incompetente, em razão de matéria para apreciar e julgar o pedido cumulativo de ordenação de cancelamento do registo das hipotecas judiciais requeridas pela Apelante, como interpretativamenle se retira das competências jurisdicionais tipificadas no artigo 89° da LOFTJ; Em verdade, b) Sendo os actos registrais de hipotecas sobre bens imóveis do âmbito de decisões administrativas dos conservadores do registo predial, facilmente se apura que nenhum desses actos é judicialmente sindicável em qualquer das competências definidas no citado artigo 89°; c) Preceito esse que apenas prevê, no que a actos de conservadores concerne o que taxativamente consta no artigo 89° 2,b),da referida LOFTJ, quanto aos recursos dos despachos dos conservadores do registo comercial; d) Acresce que, se fossem inválidas as referidas hipotecas judiciais, cabia aos Apelados promover o processo previsto nos artigos 120° e 121°,1 e 2, do Código do Registo Predial, que é o processo próprio e especial para a rectificação e o cancelamento dos registos prediais inválidos; Destarte. e) O primeiro passo, legalmente estabelecido, para o cancelamento de uma qualquer hipoteca judicial, é de natureza administrativa, regulado nos artigos 120° e segs do CRP; f) E só depois de um eventual indeferimento, pelo conservador do registo predial, de um pedido de rectificação ou de cancelamento registrais, e que o interessado pode recorrer judicialmente, nos termos previstos nos artigos 127°, 2 e 131°, 1 e 2, desse Código, para o competente tribunal cível; Assim, g) O processo administrativo de rectificação ou cancelamento, previsto nos artigos 120° e segs do CRP, é pressuposto necessário do recurso para o tribunal cível de 1° instância, regulado nos artigos 131° a 132°-A, do mencionado CRP; h) E também por aqui se vê como é incompetente em razão de matéria o Tribunal de Comércio de Vila Nova de Gaia para ordenar o cancelamento dos registos das hipotecas judiciais, promovidas pela Apelante, para além do que resulta das competências tipificadas no artigo 89° da LOFTJ; i) O direito de a Apelante ter promovido as aludidas hipotecas judiciais, referidas pelos Apelados, emergiu logo no preciso momento em que ela foi notificada da sentença de 14/2/2005, proferida no processo 38/00, como inequivocamente se retira do artigo 710° n°s 1 e 2, do C. C; j) Normativo legal que totalmente fundamenta as apontadas hipotecas, dado que as mesmas foram promovidas pela Apelante em momento temporal posterior ao conhecimento da aludida sentença de 14/2/2005; K) Por isso, o disposto no artigo 625° l, do C.C. não afasta a possibilidade de legal subsunção do artigo 701°,1 e 2,do mesmo Código; Assim, 1) Independentemente do facto de os Apelados terem podido obstar ao efeito meramente devolutivo do seu recurso de apelação, por via de tempestiva prestação de caução, que não efectuaram, isso não significa que a Apelante não pudesse sempre usar, como bem usou, a faculdade processual prevista no artigo 710°, 1 e 2, do CC; Com efeito, m) Os artigos 625°, 1 e 710°, 1 e 2, do C. C., visam regular situações distintas, dado que a hipoteca, sucedânea e supletiva; do artigo 625° 1,do C. C., pode ser requerida se as pessoas obrigadas à caução a não prestarem, e, diferentemente, a hipoteca judicial, regulada no artigo 710° 1 e 2, do C. C. pode ser sempre requerida logo que prolatada a sentença condenatória, aí prevista, independentemente de os Réus condenados virem ou não a prestar a caução, a que tivessem sido obrigados, eventualmente substituível na hipoteca distintamente considerada no artigo 625°,1; Ademais, n) O despacho judicial, proferido no proc. 38/00, sequencialmente à conclusão de 6/12/2008,que foi notificado à ora Apelante em 10/11/2008, constitui caso julgado formal nos termos do artigo 672°, 1, do CPC; Assim sendo, o) Por via de tal despacho, que fixou ao recurso de Apelação dos RR, efeito meramente devolutivo, assiste "ipso facto" à Apelante o direito processual de poder promover a execução provisória da sentença proferida no proc. 38/2000, se e quando assim o entender, p) Pois, se os RR precludiram a possibilidade processual, que tiveram, mas não exercitaram, de prestar a caução prevista no prazo judicial e peremptório, estatuído no artigo 692° 4, do CPC, então não têm eles agora o direito de, por ínvio meio processual, tentar ultrapassar a perempção da inobservância desse prazo e o caso julgado formal adveniente do despacho de 6/11/2008; q) Também absolutamente anómala a utilização, pelos RR, do processo especial de prestação de caução, previsto nos artigos 981° e segs. do CPC, para tentarem obter o cancelamento de registos de hipotecas judiciais, quando, de uma meridiana leitura pelas normas processuais aí consignadas facilmente se vê que o incidente de prestação de caução só pode visar a mera prestação de caução; r) O cancelamento de hipotecas judiciais é da competência da jurisdição dos tribunais cíveis, na forma de procedimento regulado no Código do Registo Predial, nunca, em qualquer circunstância, podendo um incidente de prestação de caução constituir forma de processo adequada ao cancelamento de registos de hipotecas judiciais; s) A decisão recorrida é nula, nos termos conjugados dos artigos 158°, 1 e 2, 666° e 668° 1, b), do CPC, por não especificar os fundamentos de Direito que conduziram à declaração de improcedência da excepção da incompetência absoluta do tribunal, suscitada pela Apelante na sua Oposição; t) A decisão recorrida viola, pelo menos, o artigo 89° da LOFTJ e, por errada interpretação e inaplicação, os artigos 158°, 1 e 2 e 1050, 1, do CPC. Não houve resposta. Fundamentos. 2.1. Delimitação objectiva do âmbito do recurso. Além de delimitado pelo objecto da acção e pelos eventuais casos julgados formados na instância recorrida e pela parte dispositiva da decisão impugnada que for desfavorável ao impugnante, o âmbito, subjectivo ou objectivo, do recurso pode ser limitado pelo próprio recorrente. Essa restrição pode ser realizada no requerimento de interposição ou nas conclusões da alegação (artº 684 nºs 2, 1ª parte, e 3 do CPC). Nas conclusões da sua alegação, é lícito ao recorrente restringir, expressa ou tacitamente, o objecto inicial do recurso (artº 684 nº 2 do CPC). Porém, se tiver restringido o objecto do recurso no requerimento de interposição, não pode ampliá-lo nas conclusões[1]. Dada a vinculação temática deste Tribunal ao conteúdo da decisão impugnada e da alegação do recorrente, a questão concreta controversa que importa resolver é, no caso, a de saber se a decisão impugnada deve ser revogada e substituída por outra que declare a competência absoluta, em razão da matéria, do tribunal de onde provém o recurso, para, no âmbito do incidente de prestação de caução, conhecer do pedido do cancelamento do registo de duas hipotecas judiciais. A resposta à questão enunciada exige uma reflexão sobre as causas de nulidade da decisão e sobre conceito de competência e o critério da sua aferição. 2.2. Nulidade da decisão impugnada. Como é comum, a recorrente imputa à decisão impugnada o vício grave da nulidade. De todas as causas possíveis de nulidade, a recorrente assaca-lhe esta: a falta de motivação ou fundamentação. Convém, portanto, relembrar, em traços largos, o regime das nulidades da decisão. O regime das nulidades da decisão diverge do regime geral das nulidades em pontos em três aspectos muito importantes. Em primeiro lugar, existe aqui um numerus clausus de causas de nulidade[2]. Corolário deste princípio da tipicidade é a de quem nem todo e qualquer vício, de forma ou de conteúdo, da decisão produz nulidade. Estão nessas condições, nomeadamente, os vícios formais diversos da falta de assinatura do juiz, resultantes, por exemplo, da infracção das regras processuais relativas à forma externa da sentença: a sentença que a que falte o nome das partes ou identificação do litígio, encontra-se decerto ferida com um vício formal, mas essa patologia não é causa de nulidade da sentença (artº 659 nºs 1 e 2 do CPC). Em segundo lugar, com excepção da nulidade formal decorrente da omissão da assinatura do juiz, as demais nulidades da decisão não são de conhecimento oficioso, exigindo, portanto, a arguição das partes (artº 668 nº 3 do CPC). Por último, todas as nulidades são supríveis ou sanáveis. Deste princípio apenas se afasta a nulidade por falta de assinatura do juiz que proferiu a sentença, quando se mostrar impossível colhê-la (artº 668 nº 2, a contrario do CPC). A falta de impugnação da sentença nula importa a sanação da nulidade de que se encontra ferida e, consequentemente, o seu trânsito em julgado (artº 677 do CPC). Uma distinção que o regime dos vícios da decisão judicial inculca é a que separa os vícios formais dos vícios substanciais ou de conteúdo. Exceptuando o vício formal da falta de assinatura do juiz todas as demais causas de nulidade – omissão e excesso de pronúncia, falta de fundamentação e contradição entre os fundamentos e a decisão - têm por objecto vícios de substância ou de conteúdo. A falta de motivação ou fundamentação verifica-se quando o tribunal julga procedente ou improcedente um pedido mas não especifica quais os fundamentos de facto ou de direito que foram relevantes para essa decisão. A nulidade decorre, portanto, da violação do dever de motivação ou fundamentação de decisões judiciais (artº 208 nº 1 da CRP e 158 nº 1 do CPC). Isto é assim, dado que uma das funções essenciais de toda e qualquer decisão judicial é convencer os interessados do bom fundamento da decisão. A exigência de motivação da decisão destina-se a permitir que o juiz ou juízes convençam os terceiros da correcção da sua decisão. Através da fundamentação, o juiz ou juízes devem passar de convencidos a convincentes. A motivação constitui, portanto, a um tempo, um instrumento de ponderação e legitimação da decisão judicial e, nos casos em que seja admissível – como sucede na espécie sujeita - de garantia do direito ao recurso. Por isso que as decisões sobre qualquer pedido controvertido ou sobre qualquer, dúvida suscitada no processo serão sempre fundamentadas (artºs 208 nº 1 da CR Portuguesa, 158 nº 1 e 659 nº 2, ex-vi artº 713 nº 2 do CPC). No entanto, quanto a este ponto há que distinguir cuidadosamente a falta absoluta de motivação – da motivação deficiente, medíocre ou errada. O dever de fundamentação restringe-se às decisões proferidas sobre um pedido controvertido ou sobre uma dúvida suscitada no processo e apenas a ausência de qualquer fundamentação conduz à nulidade da decisão (artº 158 nº 1 do CPC)[3]. O que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou mediocridade da motivação é espécie diferente: afecta o valor doutrinal e persuasivo da decisão – mas não produz nulidade[4]. Depois, o tribunal não está vinculado a analisar e a apreciar todos os argumentos, todos os raciocínios, todas as considerações, todas as razões jurídicas produzidas pelas partes, desde que não deixe de apreciar os problemas fundamentais e necessários á decisão da causa[5]. Se a decisão invocar algum fundamento de facto ou de direito, está afastada a nulidade, no tocante à justificação fáctica e jurídica da decisão. O tribunal deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas, claro, aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras[6]. O tribunal deve, por isso, examinar toda a matéria de facto alegada e todos os pedidos formulados pelas partes, com excepção apenas das matérias ou pedidos que forem juridicamente irrelevantes ou cuja apreciação se tenha tornado inútil pelo enquadramento jurídico escolhido ou pela resposta dada a outras questões. Por isso é nula, a decisão que deixe de se pronunciar sobre questões que devesse apreciar, ou seja, quando se verifique uma omissão de pronúncia (artº 668 nº 1 d), 1ª parte). Face a este enunciado é bem de ver que a decisão impugnada não se encontra ferida com o vício feio da nulidade que a recorrente lhe assaca. A decisão apelada não constitui, talvez, um exemplo de ouro em que deva por os olhos. Mas daí até dever ser estigmatizada com o ferrete da nulidade, vai uma distância considerável. A sentença recorrida especifica, embora de forma avara, os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão que nela se contém, elucidando as partes a respeito dos motivos dessa decisão. O decisor da 1ª instância produziu as razões que, na sua perspectiva, apoiam o conteúdo preceptivo da decisão. Esses fundamentos podem resumir-se assim: o tribunal é materialmente competente para decidir o pedido de cancelamento do registo das hipotecas judiciais, dado que este efeito jurídico constitui consequência ou decorrência da procedência do pedido de prestação de caução. Decerto que não pode dizer-se que a decisão seja particularmente pródiga ou loquaz na justificação da decisão; mas também não pode afirmar-se que não tenha explicado os motivos por que deu ao caso a solução nela contida Seja como for, a sentença recorrida pode ter incorrido num error in judicando mas não, decerto, no error in procedendo, como é aquele que está na origem da nulidade substancial da decisão. De resto, a arguição da nulidade da sentença não toma em devida e boa conta o sistema a que, no tribunal ad quem, obedece o seu julgamento. O julgamento, no tribunal hierarquicamente superior, da nulidade obedece a um regime diferenciado conforme se trate de recurso de apelação ou de recurso de revista. Na apelação, a regra é da irrelevância da nulidade, uma vez ainda que julgue procedente a arguição e declare nula a sentença, a Relação deve conhecer do objecto do recurso (artºs 715 nº 1 do CPC). No julgamento da arguição de nulidade da decisão impugnada de harmonia com o modelo de substituição, impõe-se ao tribunal ad quem o suprimento daquela nulidade e o conhecimento do objecto do recurso (artºs 715 nº 1 e 731 nº 1 do CPC). Contudo, nem sempre, no julgamento do recurso, se impõe o suprimento da nulidade da decisão recorrida nem mesmo se exige sempre sequer o conhecimento da nulidade, como condição prévia do conhecimento do objecto do recurso. Exemplo desta última eventualidade é disponibilizado pelo recurso subsidiário. O vencedor pode, na sua alegação, invocar, a título subsidiário, a nulidade da decisão impugnada e requerer a apreciação desse vício no caso de o recurso do vencido ser julgado procedente (artº 684-A nº 2 do CPC). Neste caso, o tribunal ad quem só conhecerá da nulidade caso não deva confirmar a decisão, regime de que decorre a possibilidade de conhecimento do objecto do recurso, sem o julgamento daquela arguição. Raro é o caso em que o recurso tenha por único objecto a nulidade da decisão recorrida: o mais comum é que a arguição deste vício seja apenas mais um dos fundamentos em que o recorrente baseia a impugnação. Sempre que isso ocorra, admite-se que o tribunal ad quem possa revogar ou confirmar a decisão impugnada, arguida de nula, sem previamente conhecer do vício da nulidade. Isso sucederá, por exemplo, quando ao tribunal hierarquicamente superior, apesar de decisão impugnada se encontrar ferida com aquele vício, seja possível revogar ou confirmar, ainda que por outro fundamento, a decisão recorrida. Sempre que isso suceda, é inútil a apreciação e o suprimento da nulidade, e o tribunal ad quem deve limitar-se a conhecer dos fundamentos relativos ao mérito do recurso e a revogar ou confirmar, conforme o caso, a decisão impugnada (artº 137 do CPC). A arguição da nulidade da decisão – embora muitas vezes assente numa lamentável confusão entre aquele vício e o erro de julgamento – é uma ocorrência ordinária. A interiorização pelo recorrente da irrelevância, no tribunal ad quem, que julgue segundo o modelo de substituição, da nulidade da decisão impugnada, obstaria, decerto, à sistemática arguição do vício correspondente. Por este lado é certo que recurso não tem bom fundamento. 2.3. Conceito de competência e critério da sua aferição. Uma questão que, desde logo deve pôr-se em claro é a da lei à luz da qual o problema da competência material do tribunal recorrido deve resolvido. Chama-se a atenção para este ponto, dado que a organização judiciária sofreu, mais uma vez, uma alteração relevante, através da Lei nº 52/2008, de 28 de Agosto, que aprovou a Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais (LOFTJ), e que entrou em vigor, no dia 1 de Janeiro de 2009 (artº 187 nº 1). Todavia, aquela Lei apenas é aplicável, a título experimental, às comarcas piloto do Alentejo Litoral, Baixo Vouga e Lisboa Noroeste (artºs 171 e 187 nº 1 da LOFTJ). Isto que significa que à espécie do recurso é aplicável a LOFTJ aprovada pela Lei 3/99, de 13 de Janeiro, com as sucessivas reconformações a que foi sujeita, decorrentes, designadamente da Lei nº 101/99, de 26 de Julho, pelo DL nº 323/2003, de 17 de Dezembro, pelo DL nº 38/2003, de 8 de Março e pela Lei nº 105/2003, de 10 de Dezembro. Diz-se competência a medida de jurisdição de um tribunal. O tribunal é competente para o julgamento de certa causa quando os critérios determinativos da competência lhe atribuem a medida de jurisdição que é a suficiente e adequada para essa apreciação. A competência assim delimitada pode chamar-se competência jurisdicional. A competência jurisdicional pode classificar-se, cumulativamente, quanto ao âmbito e quanto à origem. Quanto ao âmbito, a competência pode ser interna ou internacional (artºs 61 e 62 do CPC). A competência interna é, em regra, aquela que respeita a questões que, na perspectiva do Estado do foro, não apresentam qualquer elemento de conexão com uma ordem jurídica estrangeira; a competência internacional, pelo contrário, é aquela que se refere a objectos processuais que comportam uma ou várias conexões com uma ou várias ordens jurídicas distintas do ordenamento do foro. A delimitação da competência é realizada através de determinados critérios legais que demarcam, no âmbito global da função jurisdicional, o tribunal competente para apreciar certa causa. A competência é aferida segundo determinados elementos – como o objecto ou as partes – tal como se apresentam no momento da propositura da causa. De harmonia com a velha regra ubi acceptum est semel judicum, ibi et finem accipere debet, a competência fixa-se no momento em que a acção é proposta. As modificações do estado de facto ou no estado de direito posteriores são, em princípio, irrelevantes (artº 22 nºs 1 e 2 da LOFTJ, aprovada pela Lei nº 3/99, de 13 de Jan.). É o que se chama perpetuatio fori ou iurisdicionis. A competência interna é aferida por diversos critérios legais e pode determinar-se, no tocante aos tribunais judiciais, em razão, designadamente, da matéria e da hierarquia (artº 17 nº 1 da LOFTJ). O critério material determina se a causa deve ser julgada num tribunal comum ou num tribunal especial ou por qualquer outra entidade a quem a lei reconheça competência jurisdicional, v.g., o conservador do registo predial ou do registo civil ou o Ministério Público (v.g. artºs 2 nº 1 e 12 nº 1 do DL nº 271/01, de 13 de Outubro). A competência material dos tribunais comuns é aferida pelo critério da atribuição positiva e de competência residual. De harmonia com o critério residual, incluem-se nos tribunais comuns todas as causas que, apesar de não terem por objecto uma situação jurídica fundamentada no direito privado, não são legalmente atribuídas a nenhum tribunal judicial não comum, a nenhum tribunal especial ou a nenhuma entidade dotada de competência jurisdicional. Quer dizer: os tribunais judiciais são os tribunais com competência material residual e, no âmbito dos tribunais judiciais, são os tribunais comuns aqueles que possuem essa competência residual (artº 66 do CPC). A determinação da competência do tribunal de 1ª instância exige a observância de subcritérios materiais, dado que podem ser tribunais de competência genérica, de competência especializada, de competência específica e de competência específica mista (artºs 77, 78 e 96 nºs 1 e 2 da LOFTJ). No perímetro dos tribunais de competência especializada contam-se os tribunais de comércio que têm competência para preparar e julgar os processos especiais de recuperação de empresa e de falência, as acções de declaração de inexistência, nulidade e anulação do contrato de sociedade, as acções relativas ao exercício de direitos sociais, as acções de dissolução e de liquidação judicial de sociedades, as acções de declaração em que a causa de pedir verse sobre propriedade industrial, em qualquer das modalidades previstas no Código de Propriedade Industrial, as acções a que se refere o Código de Registo Comercial, as acções de nulidade e de anulação previstas no Código de Propriedade Industrial, os recursos das decisões que concedam, recusem ou tenham por efeito a extinção de direitos privativos previstos no Código de Propriedade Industrial, os recursos dos despachos dos conservadores do registo comercial e das decisões do Conselho da Concorrência, do Conselho de Concorrência e da Direcção-Geral do Comércio e da Concorrência em processo de contra-ordenaçao (artº 89 nºs 1, a h) e 2 a) a c). A competência do tribunal de comércio no tocante a qualquer destes processos compreende ainda os respectivos incidentes e apensos (artº 89 nº 3 da LOFTJ). Assim, o tribunal de comércio é materialmente competente para a prestação de caução, através da qual o recorrente pretenda obstar à execução imediata de uma decisão impugnada por recurso a que foi concedido efeito extraprocessual devolutivo, dado que se trata de um incidente da causa em que foi proferida a decisão impugnada, que é processado por apenso (artºs 692 nº 3 e 990 nº 1 do CPC). A violação das regras de competência em razão da matéria gera a incompetência absoluta do tribunal (artº 101 do CPC). A competência jurisdicional é um pressuposto processual, i.e., uma condição necessária para que o tribunal se possa pronunciar sobre o mérito da causa, através de uma decisão de procedência ou improcedência[7]. Como qualquer outro pressuposto processual é aferida em relação ao objecto apresentado pelo autor ou requerente[8]. A incompetência resolve-se numa excepção dilatória nominada de conhecimento oficioso, dado que respeita a matéria de interesse público, e pode dar lugar a uma das duas consequências, de pura forma, atribuídas às excepções dilatórias - a absolvição da instância, tratando-se de incompetência absoluta, ou à remessa do processo para o tribunal competente, se for meramente relativa (artºs 288 nºs 1 a) e 2, 487 nºs 1 e 2, 493 nºs 1 e 2, 494 a) e 495 do CPC). No caso do recurso, os recorridos, perante o efeito devolutivo que foi concedido ao recurso de apelação que interpuseram de uma sentença proferida pelo tribunal a quo, e de modo a evitar a execução imediata daquela sentença, ofereceram uma caução para cobrir os prejuízos eventualmente causados à apelada naquele recurso pela falta de execução imediata daquela decisão. Todavia, não se limitaram a oferecer a caução, antes tendo cumulado ao pedido de prestação desta, o de cancelamento dos registos de duas hipotecas judiciais. A sentença que condenar o devedor na realização de uma prestação em dinheiro ou de outra coisa fungível é título bastante para o registo de hipoteca judicial sobre quaisquer bens do devedor, ainda que não tenha transitado em julgado (artº 710 nº 1 do Código Civil). Portanto, mesmo que o recurso tenha efeito suspensivo, isso nunca obsta ao registo da hipoteca judicial. Todavia, não é essa a questão discutida no recurso. Neste, a questão controvertida é apenas a de saber se o tribunal recorrido dispõe de competência material para ordenar, caso julgue idónea a caução oferecida, o cancelamento do registo das hipotecas judiciais, em que serviu de título a sentença condenatória dos recorridos, que estes impugnaram por via de recurso ordinário, a que foi atribuído um efeito extraprocessual devolutivo. Segundo a recorrente, a competência para conhecer do pedido de cancelamento dos registos daquela garantia real está subtraída ao tribunal recorrido, pertencendo ao conservador do registo predial, sendo competente para a impugnação judicial – rectior, para o recurso – da decisão correspondente o tribunal de competência cível. É exacto que a competência para o processo de rectificação do registo predial cabe ao respectivo conservador e que as decisões deste são impugnáveis, por via de recurso, para o tribunal de competência de competência genérica e, onde exista, para o tribunal de competência específica cível (artºs 77 nº 1, 96 nº 1 c) e 99 da LOFTJ, 130 nº 6 e 131 nº 1 do Código de Registo Predial). Todavia, os apelados não pediram ao tribunal recorrido a rectificação do registo das hipotecas judiciais ou o seu cancelamento, fundados em qualquer causa, que, segundo a lei do registo, constitui fundamento de rectificação ou de cancelamento – a inexactidão do registo ou o facto de ter sido indevidamente lavrado (artº 121 nºs 1 e 2 do Código Registo Predial): o que os recorridos pediram ao tribunal de que provém o recurso foi que, uma vez prestada a garantia que ofereceram, ordenasse o cancelamento do registo daquelas hipotecas. Como a competência do tribunal se afere pelo quid disputatum, i.e. pelo pedido autor, não é, portanto, em relação ao primeiro daqueles objectos – rectificação do registo das hipotecas, por inexactidão, ou o cancelamento dele, por ter sido indevidamente lavrado – mas em relação ao segundo – cancelamento daquele registo por ter sido prestada a garantia oferecida – que a competência material do tribunal recorrido deve ser aferida. E desde que a forma de tutela jurisdicional enunciada pelos apelados, o efeito jurídico que pretendem obter do tribunal, não é a rectificação do registo das hipotecas judiciais, por este se mostrar inexacto, ou o seu cancelamento, por ter sido indevidamente lavrado – mas o cancelamento daquele registo se for prestada caução idónea destinada a ressarcir a recorrente dos prejuízos sofridos com a atribuição à apelação de efeito suspensivo, é meramente consequencial a conclusão de que a competência para decidir um tal pedido não pertence ao conservador do registo predial e, por via de recurso, ao tribunal comum de competência genérica ou ao tribunal de competência específica cível – mas ao tribunal competente, ratione materiae, para conhecer do pedido de prestação da caução. Na verdade, quanto ao último dos objectos indicados, a argumentação da recorrente não toma em devida em boa conta as regras de extensão de competência. O problema da extensão de competência pode enunciar-se do modo seguinte: até que ponto o tribunal competente para conhecer de uma causa pode apreciar e decidir as questões que nela venham a surgir ou enxertar-se, mais ou menos relacionadas com o objecto da causa? No caso do recurso, trata-se de saber até que ponto o tribunal recorrido – indubitavelmente competente para conhecer do objecto do incidente de prestação da caução - pode pronunciar-se sobre o cancelamento do registo da hipoteca judicial? Ao fixar-se a competência do tribunal de comércio para a prestação de caução com vista à modificação do efeito da interposição de um recurso ordinário, teve-se decerto em vista esse específico conflito de interesses entre o recorrente e o recorrido. Todavia, como é comum, a questão de direito relativa à prestação da caução é perturbada e entrecortada por outras questões, umas necessárias para se decidir essa questão fundamental, outras suscitada à margem desta. Ao lado da questão da prestação da caução, mas em conexão com ela, surgiu esta questão incidental: a do cancelamento do registo das hipotecas judiciais, em caso de procedência do pedido de prestação da caução. Esta questão não faz parte do encadeado lógico necessário à resolução do problema da prestação da caução, mas está de algum modo relacionado com o objecto do processo, dado que se trata de regular o efeito da prestação na caução na subsistência das hipotecas judiciais registadas com base na sentença judicial condenatória proferida pelo mesmo tribunal. Colocada a questão neste plano, vale para ela esta regra: a competência para a prestação da caução implica a competência para conhecer da questão incidental da eficácia da caução prestada relativamente à garantia representada pela hipoteca judicial e, portanto, para a questão do cancelamento do seu registo (artº 96 nº 1 do CPC e 89 nº 3 da LOFTJ). Desde que é competente para conhecer da causa relativa à prestação da caução, o tribunal de comércio é competente para conhecer de todas as questões incidentais que nela surgirem. Assim, uma vez que tem competência para julgar a questão fundamental da prestação da caução, aquele tribunal é também competente para resolver o problema, estreitamente conectado com aquela questão fundamental, da eficácia dessa garantia relativamente a garantia anterior e para o cancelamento do registo constitutivo correspondente. De resto, a arguição da recorrente confunde a competência para a questão do acto de cancelamento do registo da hipoteca – que se inscreve na competência funcional do conservador do registo predial – com o problema da obtenção do título susceptível de servir de base a esse cancelamento. O cancelamento do registo da hipoteca judicial exige, nos termos gerais, um título – a certidão que comprove a extinção da garantia - e é em face desse título que é efectuado o cancelamento (artºs 43 nº 1, 50 e 56 do Código de Registo Predial). Independentemente desta consideração, permanece exacta esta conclusão: o tribunal de comércio, desde que é competente para julgar a prestação de caução tem também competência para estatuir sobre a questão incidental da eficácia dessa prestação na hipoteca judicial registada e, correspondentemente, no cancelamento desse registo. De resto, seria sistematicamente incoerente e materialmente inexplicável que um tribunal não tivesse competência para apreciar a questão da subsistência de uma garantia registada com base numa decisão proferida por esse mesmo tribunal. É certo que o tribunal recorrido pode ter-se equivocado quanto à exacta eficácia da prestação da caução, oferecida para obstar a exequibilidade provisória de uma sentença condenatória, relativamente a subsistência da hipoteca judicial registada com base nessa mesma sentença. Todavia, esse é um problema de erro de julgamento, que transcende o problema, que lhe é prévio, da competência material daquele tribunal para esse mesmo julgamento. E quanto a este, a solução exacta é a de que cabe na competência material do tribunal recorrido a resolução do problema da eficácia da caução prestada no tocante às hipotecas judiciais e, portanto, para decidir do seu cancelamento. Nestas condições, do ponto de vista do julgamento do recurso, só uma solução se tem por exacta: a sua improcedência. Duas palavras mais para dar cumprimento ao ingrato e insólito dever de sumariar o acórdão que a lei impõe ao juiz relator (artº 713 nº 7 do CPC)[9]. A retórica argumentativa do acórdão, de que se extrai a solução de improcedência do recurso, pode sintetizar-se nesta proposição simples: a competência do tribunal de comércio para a prestação de caução, oferecida para obstar a exequibilidade provisória de uma sentença condenatória, compreende a de decidir da subsistência das hipotecas judiciais registada com base nessa mesma sentença e do cancelamento do acto de registo correspondente. A recorrente deverá suportar porque sucumbe no recurso, as respectivas custas (artº 446 nºs 1 e 2 do CPC). 4. Decisão. Pelos fundamentos expostos, nega-se provimento ao recurso. Custas pela recorrente. Porto, 09.09.29 Henrique Ataíde Rosa Antunes Ana Lucinda Mendes Cabral Maria do Carmo Domingues _________________ [1] Acs. do STJ de 16.10.86, BMJ nº 360, pág. 534 e da RC de 23.3.96, CJ, 96, II, pág.24. [2] Ac. do STJ de 09.04.92, BMJ nº 416, pág. 558. [3] Acs. do STJ de 08.07.87, BMJ nº 369, pág. 481, da RP de 06.01.94, CJ, 94, I, pág. 197 e da RL de 03.11.94, CJ, 94, V, pág. 90. [4] Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, vol. V, Coimbra, 1984, pág. 139 e 140 e Acs. da RP de 06.01.94 e da RL de 03.11.94 e 17.1.91, CJ, 94, I, págs. 197, 94, V, pág. 90 e 91, I., pág. 121, respectivamente. [5] Ac. do STJ de 26.09.95, CJ, 95, III, pág. 22 e da RE de 24.11.94, BMJ nº 441, pág. 420. [6] Acs. do STJ de 26.09.95, CJ, STJ, III, pág. 22 e de 16.01.96, CJ, STJ, III, pág. 43. [7] Note-se, porém, que, por força do princípio da auto-suficiência do processo, o tribunal incompetente para se pronunciar sobre o mérito da acção tem competência para se pronunciar sobre a sua competência. Cfr. Miguel Teixeira de Sousa, Introdução ao Processo Civil, Lisboa, 1993, pág. 46. [8] Acs. RE de 20.2.86, BMJ nº 356, pág. 456; RP de 5.6.86, BMJ nº 358, pág. 606 e RC de 7.7.93, CJ, 93, IV, pág. 33. [9] Cfr., para uma apreciação crítica – fundada – desta solução da lei, Lopes do Rego, A Reforma dos Recursos em Processo Civil, in As Exigências do Processo Civil, Associação Jurídica do Porto, pág. 248 e António Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, Novo Regime, Almedina, Coimbra, 2007, págs. 300 e 301. De resto, esta exigência pode revelar-se uma fonte de embaraços, como sucederá, por exemplo, no caso de haver contradição entre o sumário e o conteúdo do acórdão. Regra geral, a solução do problema não oferece dificuldades, mas poderá mostrar-se espinhosa, tratando-se de acórdão de uniformização de jurisprudência, tirado no recurso ordinário ampliado de revista ou no recurso extraordinário para uniformização de jurisprudência, dado o seu carácter de recurso uniformizador (artºs 732-A, 732-B nº 5 e 770 nº 1 do CPC). Problema de solução difícil é também o saber se o relator se encontra adstrito ao dever se sumariar no caso de julgar sumariamente o recurso e no julgamento da reclamação contra o despacho de indeferimento do requerimento de interposição do recurso. |