Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0220317
Nº Convencional: JTRP00034454
Relator: AFONSO CORREIA
Descritores: AMBIENTE
CONSTRUÇÃO DE OBRAS
EDIFICAÇÃO URBANA
Nº do Documento: RP200204230220317
Data do Acordão: 04/23/2002
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recorrido: T J S JOÃO MADEIRA 2J
Processo no Tribunal Recorrido: 170/99
Data Dec. Recorrida: 10/09/2001
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: CONFIRMADA A SENTENÇA.
Área Temática: DIR AMB.
Legislação Nacional: L 83/95 DE 1995/08/31.
L 11/87 DE 1987/04/07.
Sumário: I - A implantação de um edifício em plano superior atinge a privacidade de quem vive em moradias a cota inferior.
II - Tudo está em saber se a construção naquele local de um prédio afecta de um modo intolerável a qualidade de vida e o ambiente dos vizinhos.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam na Relação do Porto


Manuel....., residente em....., propôs acção com processo comum e forma ordinária contra António....., residente no....., ....., dizendo em suma que
- é morador na Rua de....., onde possui uma vivenda unifamiliar com dois pisos (r/c e andar), na qual habita com o seu agregado familiar;
- a zona onde se insere a vivenda do autor é caracterizada por moradias familiares com dois pisos;
- o réu exerce a actividade de construtor civil e, nas traseiras da habitação do autor, na Rua do Sobreiral, está a construir um edifício destinado a habitação colectiva, edifício esse que se encontra implantado numa parcela de terreno, pertencente ao réu, destinada a construção, originalmente com a área de 3117 metros quadrados;
- por deliberação camarária de 18.6.1998 o município de..... deliberou alterar o número de fogos e unidades de ocupação comercial dos lotes 3 e 4 da Rua do....., nos seguintes termos: lote 3 com a área de 880 metros quadrados, destina-se à construção de edifício com a cércea de cinco pisos acima da cota da soleira e duas caves, servindo de implantação a quatro unidades de ocupação comercial e vinte e quatro fogos;
- na sequência dessa alteração o réu apresentou em 6.10.99 um aditamento ao projecto de obras, no qual se declarou que o coeficiente volumétrico de ocupação do solo seria de 2,05 m3/m2 e o número de pisos seria de 6, sendo 4 dos quais acima da cota da soleira e 2 abaixo da cota da soleira.
Como consta da licença de obras, o coeficiente de ocupação do solo do imóvel a construir era, inicialmente, de 2,19 m3/m2, mantendo-se, após o aditamento, em 2,05 m3/m2, preparando-se o requerido para edificar 5 pisos (Rc+4), tudo contra o disposto no PDM de..... que prevê para a zona um coeficiente de ocupação do solo nunca superior a 2,0 m3/m2 e não mais de 4 pisos (Rc+3), estando ferido de nulidade o acto de licenciamento, nos termos do art. 52º, nº 1, b), do Dec-Lei nº 445/91, de 20 de Novembro, e 3º do Dec-lei nº 448/91, de 29 de Novembro.
Da violação das regras relativas à ocupação do solo e cércea permitida resultará uma excessiva ocupação do solo pela intensa edificação, com a consequente afectação da qualidade de vida, em violação do disposto no art. 3º da Declaração Universal dos Direitos do Homem, dos art. 65º e 66º da Constituição, 2º, nº 1, 13º, nº 5, e 40º, nº 4, da Lei nº 11/87, de 7 de Abril (Lei de Bases do Ambiente), 70º do CC, 1º e 2º , nº 1, da Lei nº 83/95, de 31 de Agosto (Lei da Acção Popular)
Conclui, pedindo que o réu seja condenado a abster-se de, prosseguindo a obra que vem executando, edificar cércea superior a rés-do-chão mais 3 andares e/ou com coeficiente de ocupação do solo superior a 2,0 m3/m2, ou 0,66m2/m2, em violação das normas do PDM para a zona e em pre-juízo dos direitos do requerente e demais vizinhos.
Contestou o réu dizendo - em suma:
A Câmara Municipal concedeu o alvará de licença de construção para 3 fases da construção do edifício, o que o autor soube e jamais impugnou contenciosamente ou reclamou.
Efectivamente o coeficiente de ocupação do solo (COS) era, no projecto primitivo, de 2,19 m3/m2. Mas em 7 de Agosto de 1998 o R. comprou ao Município de..... uma parcela de 293,32 m2 que, anexados ao lote primitivo em 14 de Maio de 1999 (fs. 57) e de acordo com nova folha de estatística apresentada na Câmara, fez baixar a volumetria de construção projectada para 2,05 m3/m2; depois, a redução em 40 cms da largura dos alçados laterais determina ainda mais a redução do COS que nunca excederá o máximo permitido de 5 m 3/m2, como previsto no art. 7º, nº 1, do PDM.
Quanto à cércea do edifício, não é ela desrespeitada, pois o edifício tem, como previsto no PDM, rés-do-chão e três andares e dois pisos abaixo da cota da soleira, destinados a estacionamento, sendo que o aproveitamento do subsolo para caves não releva para determinação da cércea do edifício.
Nunca a diferença de COS, a verificar-se, determinaria um maior número de residentes na zona nem afecta qualquer direito do A.
Em reconvenção, diz que o autor propôs a presente acção com o objectivo de desinteressar os potenciais compradores de apartamentos desse edifício, chegando a embargar a obra extra-judicialmente;
- devido a esse embargo e à presente acção o réu ainda não celebrou qualquer contrato promessa relativamente a qualquer fracção desse imóvel, pois qualquer potencial comprador, quando toma conhecimento desta acção, desinteressa-se da compra;
- um dos blocos está em fase de acabamentos;
- na cidade de...... os construtores civis asseguram 70% das vendas das fracções antes do fim das obras, recebendo em média 30 a 40% dos preços finais aquando da celebração dos contratos promessa;
- a zona do edifício do réu tem uma grande procura de apartamentos; se não fosse a pendência da presente acção o réu já teria vendido 40% dos apartamentos;
- o valor de venda da totalidade dessas fracções será de esc. 400.000.000$00;
- o réu tem vivido num estado de desespero e tem vindo a ser acompanhado medicamente.
Conclui pela improcedência da acção, pela condenação da autor, como litigante de má-fé, em multa e indemnização não inferior a 2.000.000$00 e pela procedência da reconvenção, devendo o autor ser condenado a pagar-lhe, a título de indemnização por prejuízos causados, a quantia que se vier a liquidar em execução de sentença.
Na réplica o autor impugna a matéria da reconvenção, reafirmando o confessado excesso de ocupação do solo, mesmo depois da apressada aquisição do terreno ao Município, bem como a construção de um piso a mais que o permitido, pois aquilo a que chama soleira encontra-se a mais de dois metros de altura da via pública.
O nível de qualidade de vida do A. e demais vizinhos sairá sempre afectado com construção do R. em excesso do coeficiente de ocupação do solo que já é, por si, uma concessão às exigências do aumento populacional.
Quanto à reconvenção, o A. apenas pede que o R. cumpra a lei, pelo que ela improcede de todo.
Foi proferido despacho saneador que afirmou a validade e regularidade da instância e admitiu a reconvenção, organizando-se do mesmo passo a condensação processual, sempre sem reparos das partes.
Realizadas as diligências de instrução oportunamente requeridas, designadamente perícia colegial e prestados esclarecimentos ao relatório apresentado, procedeu-se a audiência de discussão e julgamento com decisão da matéria de facto perguntada no questionário, sem reclamações.
Após o que o Ex.mo Juiz proferiu sentença a julgar improcedentes tanto a acção como a reconvenção, depois de considerar (quanto à acção, pois só a improcedência desta vem impugnada) que não ocorreu violação do PDM de..... por não estar em causa qualquer ultrapassagem do coeficiente de ocupação do solo, improvado que o edifício terá cinco pisos acima da soleira (resposta negativa ao quesito 1º) ou que o COS seja de 2,19 m3/m2 (resposta negativa ao quesito 2º e restritiva ao 3º); de resto - acrescenta-se - a eventual violação do PDM seria da competência de um Tribunal Administrativo. Por outro lado, não se provou qualquer ofensa à qualidade de vida (resposta negativa ao quesito 4º) ou violação do direito geral de personalidade do A.
Isto, depois de julgar assentes os seguintes Factos:
1 - O autor é morador na Rua de....., onde possui uma vivenda unifamiliar com dois pisos (r/c e andar), na qual habita com o seu agregado familiar - (A).
2 - A zona onde se insere a vivenda do autor é caracterizada por moradias familiares com dois pisos - (B).
3 - Essa zona situa-se na área periférica, denominada zona C em termos de plano director municipal - (C).
4 - O réu exerce a actividade de construtor civil - (D).
5 - Nas traseiras da habitação do autor, na Rua do....., o réu está a construir um edifício destinado a habitação colectiva - (E).
6 - Esse edifício encontra-se implantado numa parcela de terreno, pertencente ao réu, destinada a construção, originalmente com a área de 3117 metros quadrados - (F).
7 - Para o efeito, o réu requereu e o município de..... emitiu a licença de obras nº../.., na qual foi certificado que a cércea de construção autorizada é de rés-do-chão mais três andares e o coeficiente de ocupação do solo é de 2,19 metros cúbicos por metro quadrado - (documento de folhas 9 - (G).
8 - Por deliberação camarária de 18.6.1998 o município de..... deliberou alterar o número de fogos e unidades de ocupação comercial dos lotes 3 e 4 da Rua do....., nos seguintes termos: lote 3 com a área de 880 metros quadrados, destina-se à construção de edifício com a cércea de cinco pisos acima da cota da soleira e duas caves servindo de implantação a quatro unida-des de ocupação comercial e vinte e quatro fogos, tudo conforme documentos de folhas 15 a 23 - (H).
9 - Por escritura pública exarada em 7.8.98, no notário privativo do Município de....., o réu declarou comprar e este município declarou vender uma parcela de 293,32 metros quadrados, destinada à rectificação de estremas e aumento da área da parcela onde esse imóvel estava implantado - (I).
10 - Após esta aquisição referida em 9, a parcela de terreno encontra-se actualmente descrita na Conservatória do Registo Predial de..... sob o nº..../...., com a área de 3410,32 m2 confinando de norte com Isabel....., de sul com I....., S.A., de nascente com António B..... e outros, e de poente com Rua do..... - (J).
11 - Na sequência dessa alteração, o réu apresentou em 6.10.99 um aditamento ao projecto de obras, junto a folhas 53, no qual se declarou que o coeficiente volumétrico de ocupação do solo seria de 2, 05 m3/m2 e o número de pisos seria de seis, quatro dos quais acima da cota da soleira e dois abaixo da cota da soleira - (K).
12 - Esse edifício terá 30 fracções de habitação e 2 lojas - (3º).
13 - O edifício que o réu está a construir terá 4 pisos (r/c + 3) acima da soleira (5º) e dois pisos de caves (6º) situados abaixo da cota da soleira (7º), e destinados exclusivamente a estacionamento (8º).
14 - O edifício que o réu está a construir terá um coeficiente de ocupação do solo de 2,05 m3 por m2 (9º) que poderá ainda ser reduzido mediante a redução em 40 cm da largura dos alçados late-rais (10º), situando-se então algumas décimas acima de 2,00 m3/m2 (11º).
15 - As fracções desse imóvel destinam-se à venda a terceiros (13º).
16 - O autor embargou extra-judicialmente a obra - (15º).
17 - Um dos blocos está em fase de acabamentos - (19º).
18 - No bloco da fase 2 estão a ser efectuados trabalhos de trolha - (20º).
19 - O bloco da fase 3 está quase concluído de pedreiro - (21º).
20 - A zona do edifício do réu tem uma grande procura de apartamentos - (24º).
21 - O réu ficou perturbado com a propositura da acção - (29º).
Inconformado com o assim decidido, apelou o A. a pedir alteração da decisão sobre a matéria de facto e consequente revogação da sentença, como se vê da alegação que coroou com as seguintes Conclusões
a) - Nos termos das alíneas a) e b) do nº 1 do artigo 712º do Código de Processo Civil, e porque se escreve que a fundamentação assentou no relatório de “peritagem... considerando que algumas foram por unanimidade” é possível alterar a decisão de facto quanto aos quesitos 2º - este em contraposição com a resposta ao quesito 9º - e 3º este para se dizer “Provado”.
b) - Atento o que, por unanimidade se diz no relatório de peritagem - fls. 156 - e sob pena de contradição com as respostas dadas pelo M.mo Juiz aos quesitos 9º a 11º, mesmo que se deva entender que “não provado” equivale só a “não escrita tal matéria’’, deveria alterar-se a resposta àquele nº 2 da base instrutória, para se dizer Prejudicado pela resposta ao nº 9 da base instrutória” (resposta unânime ao quesito 2º).
Doutro modo, é patente que se violou a regra do artigo 655º do C. P. C., onde não há “discricionariedade”, mas regra vinculada com ... alguma latitude para o juízo “livre”, mas não libérrimo do julgador.
c) - Porque a fundamentação quanto às obras assentou na “peritagem.. considerando que algumas foram por unanimidade”, como na resposta dada por unanimidade - quesito 6º apresentado pelo Réu - sai reforçada a declaração contida no artigo 39º da douta contestação - artigo 38 do C. P. C.
d) - Ao responder negativamente à matéria do nº 3 da base instrutória, violou as regras da “prudente convicção”, mesmo adentro da livre apreciação da prova, como a regra do nº 4 do artigo 646 do C.P.C
e) - Há, pois, que, em sede de matéria de facto assente, considerar não escrita a resposta ao nº 3 da base instrutória e tomar em consideração, de forma positiva, a peritagem e a confissão contida no articulado, para, com base no artigo 659, nº 3 do C. P. C., dar como assente que o “edifício terá 32 fracções, ou melhor ( 32 apartamentos e 2 lojas comerciais)” - artigo 39º da contestação.
f) - Visto que a violação do P. D. M. consubstancia um vício de nulidade - artigos 51, b), 52, nº 1, b) do Dec. - Lei 445/91 e artigo 3º do Dec. - Lei 448/91 - e esta pode ser conhecida por qualquer autoridade, sendo que daí decorre a nulidade dos licenciamentos daquele conexos (cfr. decisões administrativas juntas com a p.i.) viola o princípio dos artigos citados e 134º, nº 2, do C. Procedimento Administrativo, bem como 97º do Código de Processo Civil e artigos 1º e 8º do Código Civil, afirmar que “ o acto é administrativo” e não se ter, nem julgado essencial suscitar questão prejudicial, nem declarar a incompetência em razão da matéria.
g) - Dar como assente que o P. D. M. De..... e no seu regulamento (Diário da República, 1ª serie - B, de 3 0/6/93) - artigo 18, 1.3 alínea a) -, prevê para a Zona C, onde se insere a habitação do recorrente - alíneas a) a c) da especificação - um coeficiente de ocupação de solo nunca superior a 2,0 m3/m2 ou 0,66 m2/m2, e face à matéria assente que no “projecto de obras junta a folhas 53 e cujo restante se dá por reproduzido, ... se declarou que o coeficiente volumétrico de ocupação do solo seria de 2,05 m3/m2 - alínea K -, e que, mesmo após eventual redução da largura dos alçados laterais, situando-se algumas décimas acima de 2,00 m3/m2 tirar a conclusão que NÃO OCORREU VIOLAÇÃO DO PDM, é cometer erro de aplicação da norma do artigo 18, nº 1, 3, alínea c) - desprezando o teor literal “ nunca” e a “ratio” da norma - e de interpretação do artigo 9º, n.os 1 e 2 do Código Civil.
h) - A matéria constante do quesito 4º, ou seja “o que diminuirá a qualidade de vida dos habitantes desse local” é conclusiva, pelo que inócua a resposta que a mesma merece. Mas,
I) - tendo em conta a “ratio” das restrições à ocupação do solo, que não têm, unicamente, a ver com a densidade populacional, antes sim - e isso é facto notório (Palácio dos Coutinhos, em Viana, Edifício do BBVA, na Avenida da Boavista, no Porto, ou edifício do Castelo do Queijo, também no Porto) - destina-se, prioritariamente, a evitar uma excessiva ocupação do solo, pela intensa edificação, com a consequente afectação da qualidade de vida,
J) - considerando que, aliás, quando o projecto global do R. prevê a construção de 3 prédios naquela zona, que estava prevista para moradias, sendo a habitação colectiva só em 25 % da zona e para a confluência de duas ruas (artigos 6º a 8º da p.i., não impugnados) -nunca para aquele local que, pelos documentos apresentados pelo R. revelam quais sejam as confrontações (bem diversas daquelas, aliás!) - e
K) - assente, por unanimidade, no relatório pericial que “poderia eventualmente ser prejudicada a vista e a privacidade (dos vizinhos) pela implantação de qualquer construção que surgisse nesse terreno (onde o Recorrido está a edificar)...., atendendo à topografia do mesmo, (já que) existe uma grande diferença de cotas entre os terrenos confrontantes a nascente, situando-se o terreno do R. em plano superior” - resposta ao quesito 3º apresentado pelo R. - viola o regime do nº 5 do artigo 13º da Lei nº 11/87 de 7 de Abril (Lei de Bases do Ambiente), aceitar que, constatada grande diferença de cotas e daqui resultando violação da privacidade - exactamente porque os imóveis de habitação colectiva”, como os do R. não estão na zona para que fora prevista a implantação desse tipo de habitação em paralelo com moradias, estas em plano inferior! - isso não contraria a “defesa de interesse difuso” de que “a utilização e a ocupação do solo para fins urbanos e industriais, ou implantação de equipamentos e infra--estruturas serão condicionadas pela sua natureza, topografia...”.
L) - Tendo o A agido, não num interesse pessoal, mas em “acção popular” - artigo 49º e 50º - faz errada interpretação dos artigos 70º do C.C., que ao caso não caberia directamente, mas sobretudo deixa de aplicar o regime dos artigos 1º e 2º, nº 1 da Lei 83/95, de 31.08, norma que nem se equacionou, apesar da epígrafe da acção e do alegado no artigo 50º da p. i.
M) - Atento o pedido contido na p.i., que é uma cumulação aparente, julgar improcedente o pedido quando se reconhece que há uma violação - “mesmo que por décimas”! - de norma imperativa, e cujo reconhecimento não é aceite na tese da defesa, e, igualmente, deixar de condenar o R. a ficar convencido a que, futuramente, não poderá construir com o volume que pretende nem com cércea superior àquela que o PDM permite, assegurando assim que, se tal viera a ocorrer, se tem já título para poder impedir grave prejuízo para a “vizinhança”, é violar o regime dos artigos 470º e 472º, nº 2, in fine, do Código de Processo Civil.
N) Porque havia uma deliberação camarária de 18.06.1998 - intocável para a Ré (artigos 7º e 8º da contestação) - que deliberou alterar o número de fogos e unidades de ocupação comercial dos lotes 3 e 4 da Rua do Sobreiral, para edifício com a cércea de cinco pisos acima da cota da soleira e duas caves servindo de implantação a quatro unidades de ocupação comercial e vinte e quatro fogos, tudo conforme documentos de folhas 15 a 23 e só em 6.10.99 - já pendente a acção - o R. apresentou um aditamento ao projecto de obras junta a folhas 53 e cujo restante se dá por reproduzido, no qual se declarou que o coeficiente volumétrico de ocupação do solo seria de 2,05 m3/m2 e o número de pisos seria de seis, quatro dos quais acima da cota da soleira e dois abaixo da cota da soleira, mas para 30 fogos, tinha o A interesse em demandar para certificar que seria convencido o R. de ser também nula, a edificação com mais de quatro pisos, demais que para a Ré “quod autarca dixit, dixit - artigo 7º e 8º da douta contestação.
Julgar improcedente a pretensão do A, com fundamento em situação que só passou a ocorrer depois de proposta a acção, é violar, simultaneamente, o princípio da estabilidade da instância e o interesse em agir, bem como as regras do artigo 450º do Código de Processo Civil.
Contra-alegou o recorrido em defesa do decidido.
Colhidos os vistos de lei e nada obstando, cumpre decidir as questões submetidas á nossa apreciação que, como resultante das conclusões (art. 684º, nº 3, do CPC), são as de saber se:
I - 1 - deve alterar-se a decisão da matéria de facto por forma a substituir-se para Prejudicado pela resposta ao nº 9 da base instrutória a resposta de não provado dada ao quesito 2º - conclusões a) e b);
- 2 - deve substituir-se a resposta dada ao quesito 3º - esse edifício terá 30 fracções de habitação e 2 lojas - por o edifício terá 32 fracções, ou melhor (32 apartamentos e 2 lojas comerciais) como dito em 39º da contestação - conclusões c), d) e e);
II - é de declarar a nulidade do licenciamento da construção por violação do PDM, assente que está a excessiva ocupação do solo por COS superior a 2,0 m3/m2 - concl. f) e g;
III - apesar da inócua resposta ao quesito 4º, a implantação de imóveis de habitação colectiva a cota muito superior às moradias do A. e seus vizinhos viola o disposto no nº 5 do art. 13º da Lei nº 11/87, de 7 de Abril - conclusões h), i), j) e k);
IV - foi desaplicado o comando dos art. 1º e 2º, nº 1, da Lei nº 83/95, de 31 de Agosto - conclusão L);
V - reconhecida a violação de norma imperativa, mesmo que por décimas, deve o R. ser condenado a não construir com o volume e cércea superior ao permitido pelo PDM por forma a conceder ao A. título que permita impedir grave prejuízo para a vizinhança, se tal vier a ocorrer, como resulta dos art. 470º e 472º, nº 2, do CPC - conclusão M);
VI - o aditamento ao projecto inicialmente licenciado, por apresentado já na pendência da acção e alterar para 30 fogos o anterior número de 24, baixando de cinco para quatro o número de pisos acima da soleira, não pode determinar a absolvição do pedido por o A. continuar com interesse em demandar para impedir a construção com mais de quatro pisos, com o que se violou o princípio da estabilidade da instância e o comando do art. 450º do CPC. - conclusão N).
Para tal decidir hemos de ver o aplicável Direito
Começaremos, até por imperativo lógico, pela
I - Apreciação da decisão da matéria de facto
Nos termos das al. a) e b) do nº 1 do art. 712º do CPC, a decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pela Relação:
a) - Se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa ou se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada a decisão factual com base neles proferida, nos termos do art. 690.º-A [art. 7 12.º, n.º 1 alínea a)].
Verifica-se a primeira situação quando a prova de uma determinada questão de facto assentou apenas em documentos e/ou depoimentos de testemunhas inquiridas antecipadamente ou por deprecada e reduzidos a escrito, por impossibilidade de gravação (art. 522.º-A, n.º 2). Num quadro destes, à Relação deparam-se os mesmos elementos de prova com que se confrontou a 1ª instância; daí, poder julgar a questão de facto com a mesma liberdade com que aquela o fez e, se entender que ela errou, quando procedeu à valoração dos meios probatórios, deve alterar a decisão de facto proferida.
Verificando-se a segunda situação, a Relação reaprecia as provas em que assentou a parte impugnada da decisão, levando em conta as alegações do recorrente e recorrido, sem prejuízo de oficiosamente atender a quais-quer outros elementos probatórios que hajam servido de fundamento à decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados, (art. 712º, n.º 2); deve ainda proceder à audição ou visualização dos depoimentos indicados pelas partes, a não ser que o relator considere necessária a sua transcrição, que será realizada por entidades externas (n.º 5 do art. 690.º-A, aditado pelo DL n.º 183/2000, de 10 de Agosto). Tal como na situação anterior, e por se encontrar na posse dos mesmos elementos de prova que a 1ª instância, a Relação, se entender, dentro do princípio da livre apreciação da prova, que aqueles elementos impõem uma decisão diferente sobre o ponto impugnado da matéria de facto, alterará a decisão que sobre ele incidiu.
b) - Se os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa, insusceptível de ser destruída por quaisquer outra provas [art. 712º, n.º 1 alínea b)].
“É o caso, como refere Manuel de Andrade, de o tribunal a quo ter desprezado a força probatória dum documento não impugnado nos termos legais”. Com efeito, encontrando-se junto aos autos documento que faça prova plena de certo facto e o juiz, na sentença, não o der como provado, incumbe à Relação alterar a decisão da 1ª instância, nessa parte, fazendo prevalecer a força probatória do documento (arts. 371.º, n.º 1, 376º, nº 1 e 377º do CC). E o mesmo fenómeno ocorrerá no respeitante a um facto sobre que verse confissão judicial escrita, desde que desfavorável ao confitente (art. 358º, n.º 1 do CC) [Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 2ª ed., 190].
A força probatória das respostas dos peritos (art. 389º do CC), tal como a dos depoimentos das testemunhas (art. 396º CC) é fixada livremente pelo tribunal, decidindo os juízes segundo a sua prudente convicção, salvo quando a lei exija, para a existência ou prova de facto jurídico, qualquer formalidade especial, pois então não pode dispensar-se a formalidade exigida - art. 655º CPC.
A confissão - art. 352º do CC - diz-se judicial quando feita em juízo - 355º, nº 1 - seja nos articulados ou em depoimento de parte - art. 356º CC - mas há-de ser inequívoca (art. 357º, nº 1) e é indivisível (art. 360º CC).
As afirmações e confissões expressas de factos, feitas pelo mandatário nos articulados, vinculam a parte, salvo se rectificadas ou retiradas enquanto a parte contrária as não tiver aceitado especificadamente - art. 38º CPC.
A parte que quiser aceitar especificadamente certas afirmações ou confissões do mandatário da parte adversa há-de declará-lo, indicando concretamente a afirmação ou confissão produzida [R. Bastos, Notas ao CPC, I, 92].
A decisão da matéria de facto declarará quais os factos que o Tribunal julga provados e quais os que julga não provados - art. 653º, nº 2, do CPC - sendo jurisprudência corrente que a resposta negativa a um quesito significa apenas que dele nada se provou, é como se a respectiva matéria não tivesse sido alegada, ou que a resposta a um quesito não tem forçosamente que ser positiva ou negativa, podendo ser restritiva ou explicativa, desde que se mantenha dentro da matéria articulada.
Julgar determinado quesito não provado, prejudicado pela resposta dada a outro ou provado apenas o constante da alínea tal da especificação ou de certo quesito vai dar ao mesmo, que tudo são maneiras de dizer que daquele quesito a que assim se respondeu nada se apurou de interesse.
Têm-se por não escritas as respostas do julgador de facto sobre questões de direito - art. 646º, nº 4, do CPC - cabendo ao julgador de direito, na sentença, tomar em consideração não só os factos julgados provados pelo julgador de facto mas também os plenamente provados por documento ou confissão escrita - art. 659º, nº 3 - nesta medida se ensinando que o julgador de direito é, também, julgador de facto [Ib., 179, T. de Sousa, Estudos ... 357 e A. Varela, Manual, 664].
Se nem sempre é fácil distinguir entre matéria de facto e de direito[Além dos Autores que dedicaram longos e sábios estudos à questão, pode ver-se, por mais recentes, o Ac. do STJ na Col. Jur. (STJ) 2000-I-91 e a Conferência do Prof. A. Varela na Col. 1995-IV-5], também é difícil classificar um determinado quesito de conclusivo ou contendo juízo de valor, como acontece quando, menos correctamente, se quesita o proveito comum, a velocidade excessiva, a medida da incapacidade que afecta o lesado, se A foi concebido em consequência das relações sexuais de B com C, ou se certo facto afecta a qualidade de vida, quantas vezes na sequência do assim alegado.
Ao decidir estas concretas questões há-de ter-se em conta que a pergunta vai ser feita a testemunhas que, sem terem de ser especialistas, têm noção do que seja qualidade de vida, dos factores que a afectam, dos valores ambientais em jogo no domínio do urbanismo e construção. Por isso e sob pena de frequente denegação de justiça, sempre que determinado conceito tenha entrado na linguagem corrente e no conhecimento comum, pode quesitar-se o facto correspondente, ainda que tenha algo de conclusivo ou encerre juízo de valor.
No caso em apreço, perguntava-se no quesito 2º se o respectivo (do edifício que o R. está a construir) coeficiente de ocupação do solo será de 2,19 m3/m2 e respondeu-se não provado.
No quesito 9º inquiria-se se o edifício que o réu está a construir terá um coeficiente de ocupação do solo de 2,05 m3/m2, perguntando-se nos dois seguintes (10º e 11º) se por via de redução de 40 cm da largura dos alçados laterais tal COS ainda poderia baixar, situando-se algumas décimas acima de 2,00 m3/m2. Estes três quesitos mereceram resposta inteiramente positiva.
Está bem de ver que a resposta de não provado ao quesito 2º é equivalente à de prejudicado pela resposta dada ao quesito 9º ou aos quesitos 9º a 11º, tendo sobre esta o valor de maior certeza que sempre acompanha as respostas de provado ou não provado.
Pelo que improcede o concluído em a) e b).
Disse o R. no artigo 39º da contestação: os 3 blocos que compõem o edifício cuja construção o R. leva a efeito, com um COS de 2,05 m3/m2, têm um total de 32 fracções (32 apartamentos e 2 lojas comerciais). O assim afirmado foi impugnado, por desconhecimento, em 4º da réplica. Pelo que daí nasceu o quesito 3º assim formulado: Esse edifício terá 32 fracções de habitação e duas lojas comerciais?. A resposta foi: Está provado apenas que esse edifício terá 30 fracções de habitação e duas lojas.
Sabido que uma loja constitui, em prédio constituído ou a constituir em propriedade horizontal, uma fracção (autónoma) como qualquer apartamento ou fracção destinada a habitação (art. 1414º e 1415º CC), entende-se a precisão constante do quesito por forma a saber-se que as 32 fracções referidas na contestação (na expressão antes do parêntesis) eram para habitação, compreendendo ou não as duas lojas.
Ficou claro que o edifício terá 32 fracções, sendo 30 destinadas a habitação e duas a comércio, que outro não é o significado corrente da palavra loja.
Não é possível, pois, julgar não escrita a resposta ao quesito 3º para, nos termos dos art. 38º e 659º, nº 3, ter por provada a matéria que nele se perguntava. É que a afirmação (confissão, no dizer do A.) contida em 39º da contestação não é, como se viu, inequívoca e jamais foi aceite expressamente pelo A., antes foi impugnada em 4º da réplica.
Por outro lado, os Peritos responderam, por unanimidade, que o prédio terá 1 T1, 23 T2, 6 T3 e duas lojas, ou seja, trinta fracções para habitação e duas lojas, como se respondeu.
Também soçobra o levado às conclusões c), d) e e).
II - Da nulidade do licenciamento por violação do PDM
Logo na petição (n.os 14 a 17 e 51 a 58) afirmou o A. que a obra em curso viola directamente o PDM de..... quer por excessiva ocupação do solo (COS superior a 2,0 m3/m2) quer por ultrapassagem da cércea permitida (Rés-do-chão mais 3, estando em construção um 4º andar).
Nesta parte apurou-se que o edifício em causa terá, quando muito, um COS superior em algumas décimas (deve ter querido dizer-se centésimas) a 2,0 m3 por m2, pois o inicialmente autorizado de 2,19 baixou para 2,05 depois de adquirida parcela de terreno ao Município e da redução em 40 centímetros da largura dos alçados laterais; quanto à cércea, está assente desde sempre [(al. G) da especificação e 7 dos factos assentes)] que a obra foi licenciada (licença nº 100/98) para rés-do-chão mais três andares.
Controverteu o A. a natureza de rés-do-chão do piso de entrada por forma a que estaria a ser construído um quarto andar, contra o Plano e a licença.
Esta questão foi objecto de perícia e de pedido de esclarecimento à Câmara Municipal. Naquela entendeu-se, por unanimidade, que o número total de pisos do edifício era de seis (resposta unânime a fs. 119) mas divergiram os Peritos quanto ao que devia entender-se por cota de soleira ou de entrada, pois dois dos pisos eram destinados a parqueamento e situavam-se abaixo da cota de soleira. Assim, o Perito do Tribunal e o do R entendem que os quatro pisos acima do solo incluem o piso da cota de soleira, pelo que o edifício tinha rés-do-chão, 1º, 2º e 3º; já o Perito do A., lançando mão do conceito de rés-do-chão usado pela Câmara Municipal do Porto, entende que o edifício tem cinco pisos acima da cota de soleira, considerando o piso de aparcamento como rés-do-chão porque a cota de soleira do primeiro piso situa-se a cerca de 2,5 metros da cota do passeio (fs. 119 e 120).
A Câmara informou não dispor de nenhum regulamento em que se defina rés-do-chão; mas sempre foi usado, na análise de processos, o conceito comum, segundo o qual rés-do-chão será o de primeiro pavimento acessível a partir do arruamento principal que serve o edifício, designando-se por cota de soleira a cota de entrada do edifício, não tendo, sequer, de ser coincidentes as cotas do arruamento e do pavimento, mormente quando se trata de edifícios voltados a arruamentos com perfil longitudinal inclinado.
É, pois, ponto assente que o edifício em causa não ultrapassa a cércea de rés-do-chão mais três que consta do PDM, tal como foi licenciado e executado, não contando para este efeito as duas caves destinadas a parqueamento.
Já quanto ao coeficiente de ocupação do solo é diferente a conclusão. Não obstante ter reconhecido que o COS permaneceria, a final, algumas décimas (centésimas ?) acima dos 2,0 m3/m2 específicos da zona C em que o prédio se situa, o Ex.mo Juiz conclui não estar em causa qualquer ultrapassagem do coeficiente de ocupação do solo pelo prédio em construção. Conclusão esta contrária à fundamentação de facto e por isso geradora, como dito na alegação mas não levado às conclusões, da nulidade prevista na al. c) do nº 1 do art. 668º do CPC.
O Regulamento do Plano Director Municipal de..... consta do DR., I Série B, de 30 de Junho de 1993.
Depois de no art. 6º, nº 1, se definir coeficiente de ocupação do solo como o quociente expresso em metros cúbicos por metro quadrado entre o volume total das construções existentes ou edificáveis num lote ou numa parcela de território e a área desse mesmo território ou lote, dispõe o nº 1 do art. 7º que «o COS máximo absoluto de qualquer lote, parcela ou conjunto de parcelas não poderá exceder o valor de 5 m3/m2, sem prejuízo dos COS específicos de cada uma das classes estabelecidas no art. 12º».
Consoante o nº 3 deste art. 7º «a autorização de um COS superior ao estabelecido para cada uma das classes 1 e 2 (do art. 12) até ao valor máximo absoluto indicado no nº 1 só será possível nos termos e de acordo com as condições do mecanismo de compensação estabelecido nos artigos 8º, 9º e 10º e mediante prévia aprovação da Câmara Municipal, atendendo ao enquadramento urbanístico da zona».
O art. 12º do Regulamento inclui na Classe 1 - espaços urbanos - a Categoria 1.3 como área periférica (zona C), precisamente a que nos ocupa.
Esta área periférica (zona C) e conforme o art. 18º, nº 1.3, é «caracterizada por uma densidade de edificação baixa, uma infraestruturação adequada à ocupação determinada, com uma ocupação funcional predominantemente residencial,
o Cos é igual a 2,0 m3/m2 ou 0,66 m2/m2 e
o número máximo de pisos admitido para esta área é de quatro pisos (rés-do-chão + três pisos).
Da leitura conjunta das normas destes art. 7º, 8º, 12º e 18º conclui-se que na área abrangida pelo PDM de..... há um COS absoluto de 5 m3/m2 que em caso nenhum poderá ser excedido; e há COS específicos para cada uma das classes de solos estabelecidas no art. 12º, COS específicos estes que não ficam rigorosamente sujeitos ao coeficiente fixado para cada classe de solos.
Com efeito e de acordo com os vistos n.os 3 do art. 7º e 1 do art. 8º, sempre que a edificação, embora respeitando o COS máximo (de 5 m3/m2) exceda o COS fixado para a zona em que se insere, é devida ao município uma compensação [Em favor destes “mecanismos de perequação ou de compensação”, ainda antes da Lei nº 48/98, de 11 de Agosto, Alves Correia, Manual de Direito do Urbanismo, 484, maxime 500] pela diferença entre o COS específico da zona e a área ou o volume da edificação pretendida (compensação que a Assembleia Municipal pode reduzir ou dispensar). O que só pode significar que a Câmara pode licenciar para certa zona uma edificação com COS superior ao previamente estabelecido para essa zona desde que não seja ultrapassado o COS máximo absoluto de 5 m3/m2 e seja prestada ao Município compensação devida.
Nos termos do art. 52º, nº 2, al. b) do Dec-lei nº 445/91, de 20 de Novembro, com a redacção dada pelo art. 1º do Dec-lei nº 250/94, de 15 de Outubro, são nulos os actos administrativos que decidam pedidos de licenciamento (de obras particulares) que violem, além doutros, o disposto no plano municipal de ordenamento do território.
Ora, apurado que a Câmara Municipal pode licenciar obra com COS superior ao fixado para a zona em que aquela se insere, desde que não ultrapasse o COS máximo absoluto, é manifesto que o licenciamento documentado na licença de obras nº 100/98, permitindo para a zona C um coeficiente de 2,19 m3/m2, contra os 2,0 especificamente para ali previstos, e uma cércea de rés-do-chão mais três andares, não viola o PDM e, como tal, não padece o acto administrativo de licenciamento da nulidade que o A. lhe atribui.
Com o que fica prejudicada a questão da competência (incidental) do tribunal cível para declarar a nulidade de acto administrativo prejudicial do litígio e se desatende o concluído em f) e g).
III, IV e V - Afectação do ambiente e qualidade de vida; acção popular e condenação in futurum
Apesar de não ferido de nulidade e conforme ao plano municipal de ordenamento do território, o acto de licenciamento de uma obra particular ou a concreta execução da obra pode afectar terceiros nos seus direitos de propriedade, de personalidade, a um ambiente sadio e equilibrado.
Estes direitos e interesses dos terceiros lesados são protegidos por diversas formas e leis, desde a invocada Declaração Universal dos Direitos do Homem ao velho Regulamento Geral das Edificações Urbanas, passando pela Constituição e pelas Lei de Bases do Ambiente (Lei nº 11/87, de 7 de Abril, com a ligeira alteração introduzida no art. 45º pela Lei nº 13/2002, de 19 de Fevereiro) e pela Lei nº 83/95, de 31 de Agosto (Direito de participação procedimental e de acção popular).
Depois de no art. 65º a Constituição consagrar o direito de todos a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e de conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar, o que implica uma política urbana global, desde a nacionalização e municipalização dos solos urbanos (nº 4) até à planificação da urbanização e do equipamento social [(nº 2, al. a)] e faz prevalecer este direito sobre o direito de uso e disposição da propriedade privada [Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição Anotada, notas ao art. 65º], logo no artigo seguinte se proclama o direito de todos a um ambiente humano, sadio e ecologicamente equilibrado e o dever de o defender - art. 66º, nº 1, da CRP - do mesmo passo que no nº 3 do art. 52º confere a qualquer cidadão o direito de acção popular, incluindo o direito de pedir a respectiva indemnização em defesa, além do mais, da qualidade de vida e da preservação do ambiente.
Estes preceitos constitucionais obtiveram consagração na já referida Lei nº 11/87, desde o princípio geral expresso no art. 2º, aos conceitos de qualidade de vida e de ambiente vertidos no art. 5º, aos componentes do ambiente referidos no art. 6º, em especial a luminosidade (art. 9º) - que deve ser de nível conveniente à saúde, bem estar e conforto (nº 1), ficando condicionados o volume dos edifícios a construir que prejudiquem a qualidade de vida dos cidadãos e a vegetação, pelo ensombramento, dos espaços livres públicos e privados (nº 4, a) - e o solo cuja utilização e ocupação para fins urbanos serão condicionados pela sua natureza e topografia.
Em conformidade, o nº 4 da dita Lei confere aos cidadãos directamente ameaçados ou lesados no seu direito a um ambiente de vida humana sadio e ecologicamente equilibrado o poder de pedir a cessação das causas de violação e a respectiva indemnização.
A Lei nº 83/95 conferiu a qualquer cidadão, pessoalmente ou através de organizações não governamentais de ambiente (Lei nº 35/98, de 18 de Julho), independentemente de terem ou não interesse directo na demanda (art. 2º) o direito de acção popular para a prevenção, cessação ou perseguição judicial das infracções previstas no nº 3 do art. 52º da Constituição (art. 1º), tanto no foro administrativo como no civil (art. 12º), derrogado que está o art. 45º, nº 1, da Lei nº 11/87 [Ac. do Tribunal de Conflitos, de 11 de Janeiro de 2000, na Col. Jur. (STJ) 2000-I-15 a 18].
O art. 58º do RGEU dispõe que a construção de qualquer edifício deve executar-se por forma a que fiquem assegurados o arejamento, iluminação natural e exposição prolongada à acção directa dos raios solares, valores defendidos nos art. 59º e 60º para edificações fronteiras e no art. 62º nas edificações para habitação multifamiliar ou colectiva.
Diz-se no preâmbulo do REGEU que se visa “não apenas tornar as edificações urbanas salubres, mas também no de as construir com os exigidos requisitos de solidez e defesa contra o risco de incêndio e ainda de lhes garantir condições mínimas de natureza estética”.
Estas finalidades de garantir saúde, beleza e segurança nos aglomerados urbanos não são mais do que o cumprimento do Estado do dever de garantir a realização dos direitos da personalidade atribuídos aos cidadãos pelas normas citadas.
A propósito de licenças administrativas de construção ensinou o Prof. Gomes Canotilho, R.L.J. 124º pág. 365 que “mesmo que não existam normas directa ou indirectamente protectoras de terceiros vizinhos, subsiste apesar disso um dever de protecção destes perante os efeitos danosos de medidas de edificação e construção urbana, isso significa que, na interpretação das normas fixadoras dos pressupostos de actos administrativos de limitação da edificação, se deve partir do principio de que essas normas contêm a positivação da exigibilidade de ponderação de interesses de terceiros”.
De tudo isto podemos concluir que, segundo a nossa ordem jurídica, da construção urbana podem ser ofendidos ou ameaçados direitos de vizinhos a um ambiente de vida sadio - direito a uma vida em comum com qualidade.
Podemos concluir ainda que essas violações ou ameaças são juridicamente tuteladas pelo recurso às acções judiciais nos tribunais comuns.
Podemos concluir, por último, que na falta de norma especial tutelando esse direito, em qualquer dos elementos complexos de que se compõe, as normas reguladoras da construção podem visar também a tutela desse direito [Ac. do STJ (Armando Lourenço), de 15.02.2000, Pº 873/99, da 6ª secção cível].
Também o CC é chamado a tutelar o direito de personalidade dos indivíduos (art. 70º) o direito de propriedade e suas restrições, em geral (art. 1305º) como em função das relações de vizinhança por obras ou instalações nocivas (art. 1346º e 1347º) ou construções com aberturas de janelas ou portas que deitem directamente sobre o prédio vizinho sem deixar entre este e cada uma daquelas aberturas o intervalo de metro e meio (art. 1360º).
Há anos se ensinou [António Cordeiro, A Protecção de Terceiros em Face de Decisões Urbanísticas, Almedina, 1995, 145 e ss] serem de vários tipos os interessados quanto a decisões urbanísticas:
- O vizinho “civil” a quem a proximidade da obra ilegal efectivamente prejudique, no âmbito das normas de direito civil, desenvolvidas e precisadas pela disciplina pública do urbanismo.
- O vizinho “urbano”, figura que abrange um conjunto de pessoas não coincidente com a colectividade em geral, localizado em determinado espaço abrangido pela norma reguladora do acto autorizativo da construção e com certo grau de permanência em tal espaço e estreitas relações com ele.
- O “munícipe”, figura algo prejudicada pela criação em moldes diferentes da acção popular, como a previa o art. 822º do Código Administrativo.
- O cidadão, agindo como actor popular, nos termos do art. 52º da Constituição e da Lei nº 83/95, de 31 de Agosto, em defesa dos interesses difusos do ambiente, da qualidade de vida, do património cultural e de um correcto ordenamento do espaço, desde que o particular não seja titular de uma posição jurídica substantiva [Fernando Alves Correia, Manual de Direito do Urbanismo, Almedina, 2001, pág. 455].
No nosso caso apresentou-se o A. a defender os seus direitos de personalidade, à qualidade de vida e de habitação, a um ambiente humano e ecologicamente equilibrado que naquele se inclui (n.os 32º e ss da petição); mas agiu ainda como actor popular para prevenção do ambiente e da qualidade de vida (nº 50), direitos violados pela construção com cércea e COS excedentes ao permitido pelo PDM.
Já se viu que assim não é, quer no tocante à cércea quer no que tange ao coeficiente de ocupação do solo.
Quesitou-se, com os reparos já ditos, se aquelas cércea, ocupação do solo e número de fracções diminuirá a qualidade de vida dos habitantes do local; a resposta foi não provado, mas entende o Autor que, não obstante tal decisão, há efectiva afectação da qualidade de vida, dele e dos vizinhos da zona: há excessiva ocupação do solo e porque as moradias estão em plano inferior ocorre violação de privacidade e perda de insolação.
Ao quesito proposto pelo A. responderam os Peritos pela forma seguinte: «poderia eventualmente ser prejudicada a vista e a privacidade pela implantação de qualquer construção que surgisse neste terreno, independentemente de qualquer cércea, pois, atendendo à topografia do mesmo, existe uma grande diferença de cotas entre terrenos confrontantes a nascente, situando-se o terreno dos RR em plano superior». O Perito indicado pelo A. acrescentou «que de um modo genérico, poderá (a qualidade de vida) ser prejudicada pelo aumento do tráfego automóvel que provoca para toda a zona», pela projecção de sombra durante a tarde sobre os edifícios da R. de....., diminuindo-lhes as capacidades caloríficas das fachadas sul e poente, para além dos óbvios prejuízos para a luminosidade que estes recebem.
É claro que a implantação de um edifício (qualquer edifício, independentemente da sua cércea, como notam os senhores Peritos) em plano superior atinge a privacidade de quem vive em moradias a cota inferior, da mesma forma que sobre elas projectará sombra. Mas isso é assim em qualquer zona predominantemente residencial como é o caso, principalmente na construção de habitação colectiva, mal necessário para oferecer habitação condigna a que também têm direito as pessoas impossibilitadas de aceder a moradias unifamiliares.
Tudo está em saber se a construção naquele local de um prédio com rés-do-chão (ainda que elevado) e três andares afecta de modo intolerável a qualidade de vida e o ambiente dos vizinhos.
Como se escreveu no Acórdão do STJ, de 15.2.2000 acima referido, «a questão que se nos põe é se a gravidade dessa violação, no caso presente, justifica a tutela pretendida.
O conteúdo do direito ao ambiente é demasiado impreciso e variável de local para local, no sentido de que um determinado acto pode ser intolerável numa situação e tolerável noutra. Depende muito do nível social, cultural e económico de um país, duma região, duma cidade, dum bairro.
Não pode ser apreciado dum ponto de vista subjectivo do lesado nem da visão de um ambiente ideal para um determinado local.»
No caso em apreço, ainda que se admita estar o A. prejudicado com a perda de algumas horas de sol, entendemos que não ocorre afectação da qualidade de vida ou do ambiente, ao menos em termos intoleráveis, da mesma forma que se não justifica condenação em prestações vincendas ou in futurum.
Pelo que não assiste ao A., em qualquer das vestes que enverga, o direito de impedir a construção do edifício do R nos termos em que licenciada foi, improcedendo o concluído de h) a M).
VI - Estabilidade da instância e condenação em custas
Por último defende o Apelante ter sido violado o princípio da estabilidade da instância e o seu interesse em agir, além do comando ínsito no art. 450º do CPC, quando se julgou a acção improcedente por facto - aditamento ao projecto de obras apresentado pelo R. em 6.10.99 - posterior à propositura da acção.
Nos termos do art. 268º do CPC, citado o R., a instância deve manter-se a mesma quanto às pessoas, ao pedido e à causa de pedir, salvas as possibilidades de modificação consignadas na lei. Por sua vez, dispõe o art. 481º, b), do mesmo diploma, que a citação torna estáveis os elementos essenciais da causa, nos termos daquele art. 268º, elementos essenciais que são os sujeitos (autor e réu), o pedido (pretensão formulada pelo autor) e a causa de pedir (facto concreto que serve de fundamento jurídico à pretensão).
Está bem de ver que não ocorreu aqui qualquer modificação dos elementos essenciais da causa nem foi relevante para decisão a alteração ao projecto de obras apresentado pelo R. em 6 de Outubro de 1999, pois que a licença de obras passada ao R. tem o nº 100/98, data de Setembro de 1998 (muito antes da propositura da acção) e já violava, no entender do A. que em tal violação, inter alia, fundou o pedido, o PDM de..... ao permitir uma ocupação do solo de 2,19 m3/m2, preparando-se o R. para construir cinco pisos (Rc+4) quando a licença autorizava apenas rés-do-chão mais três andares.
De resto, a aquisição pelo R. de terreno ao Município e consequente diminuição do COS na alteração apresentada são factos anteriores à contestação e nesta alegados, pelo que o A. teve possibilidade de a eles replicar, como de facto replicou.
Nos termos do art. 663º, nº 1, do CPC, a sentença deve tomar em conta os factos constitutivos, modificativos ou extintivos do direito que se produzam posteriormente à proposição da acção, de modo que a decisão corresponda à situação existente no momento do encerramento da discussão.
Comentando este preceito, ensina o Prof. A. Varela [Manual de Processo Civil, 2ª ed., 681]:
«Mantiveram-se, entretanto, no Código de 1961, as três linhas de força que constituem a espinha dorsal do principio lançado no Código de 1939.
Por um lado, o direito processual não manda julgar rigidamente a acção de acordo com a situação existente no momento da proposição da acção, declarando-se, pelo contrário, aberto à consideração da evolução dinâmica da relação litigada, até ao momento derradeiro do encerramento da discussão da causa.
Por outro lado, a atendibilidade dos factos supervenientes, dentro da moldura substantiva aceite para o efeito, tanto aproveita ao autor, mediante a admissão dos (novos) factos constitutivos do seu direito, como beneficia o réu, através da consideração dos (novos) factos modificativos ou extintivos da pretensão contra ele deduzida.
Ë o reflexo decorrente, aliás, da ampliação correspondente introduzida no âmbito dos articulados supervenientes (art. 506º)
Mantém-se, por último, o efeito tipicamente processual da repercussão da evolução da situação de facto no capítulo das custas judiciais (art. 663º, 3), tendo especialmente em conta os factos supervenientes, dependentes em maior ou menor grau da vontade das partes, e procurando distribuir equitativamente o encargo das custas, numa relação duradoura como a relação processual, de acordo com o tempo em que cada uma das partes teve a razão pelo seu lado (art. 450º)».
O princípio consagrado no art. 450º do CPC - cada uma das partes paga as custas relativas aos actos praticados durante o período em que exerceu no processo uma actividade injustificada - é o de que a responsabilidade pelas custas pertence às partes na correspondência que puder estabelecer-se entre o processado e o período em que pleitearam sem razão ou infundadamente [R. Bastos, Notas ao CPC, 3ª ed., II, 217].
Porque a licença de obras impugnada não sofreu alteração na pendência da causa, antes a construção se manteve em moldes alegadamente violadores do PDM e dos direitos do A., não tendo a alteração do projecto, levada à contestação e objecto de réplica, qualquer influência na decisão da causa, não ocorreu alteração dos elementos essenciais da causa nem indevida condenação do A. nas custas.
Improcede a última conclusão.
Decisão
Termos em que, na improcedência da apelação, acordam os da Relação
- confirmar a decisão recorrida e
- condenar o Apelante nas custas, por vencido - art. 446º, n.os 1 e 2, do CPC.
Porto, 23 de Abril de 2002
Afonso Moreira Correia
Albino de Lemos Jorge
Rui Fernando da Silva Pelayo Gonçalves