Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
6328/09.7YIPRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: AUGUSTO DE CARVALHO
Descritores: DESCOBERTO EM CONTA
EMISSÃO DE CHEQUE
PAGAMENTO DE CHEQUE
MÚTUO
Nº do Documento: RP201205076328/09.7YIPRT.P1
Data do Acordão: 05/07/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Se o titular de um depósito bancário sabendo que não dispunha de fundos necessários ao pagamento de um certo montante, apesar disso procede á emissão do cheque do valor correspondente e transmite ao banco a ordem de pagamento nele incorporada, assumiu um comportamento social típico nas relações bancárias revelador da vontade de que o Banco sacado lhe adiantasse os meios para cobrir o valor de tal cheque, o que o banco aceitou, sem acordo prévio, adiantando fundos seus com que efectuou o respectivo pagamento.
II - Não tendo havido cancelamento do cheque, ou dadas quaisquer instruções ao Banco sacado para que não procedesse ao pagamento do cheque, tem este direito a haver do cliente/depositante o montante que lhe adiantou.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Apelação nº 6328/09.7YIPRT.P1

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

A B…, intentou a presente acção declarativa, com processo sumário, contra a C…, Lda., pedindo a condenação desta a pagar-lhe a quantia de €23.215,43, referente a capital, juros e taxa de justiça paga, acrescida dos respectivos juros moratórios, à taxa contratualizada.

A fundamentar aquele pedido, alega que, no exercício da sua actividade, no dia 29.5.2008, celebrou com a ré um contrato de abertura de conta de depósito à ordem, à qual foi atribuído o nº …./………...
Como de costume, a autora decidiu autorizar o pagamento, sem que a conta estivesse devidamente aprovisionada, cobrando, no entanto, os juros, à taxa mais alta praticada por aquela em operações de crédito activas, acrescida da sobretaxa de 4 pontos percentuais que, actualmente, é de 23% + 4%.
No dia 16 de Dezembro de 2008, a referida conta apresentava um saldo negativo de €22.862,23, quantia em dívida que a ré foi interpelada pela autora para pagar, não o tendo feito até à presente data.

A ré contestou, alegando que a autora nunca tinha autorizado pagar cheques com a conta a descoberto, pois, não se tratava de qualquer conta caucionada, nem a mesma servia para tal efeito.
O que aconteceu foi que a ré tinha passado um cheque pré-datado à sociedade D…, S.A., no valor de €25.776,93, com o fim de lhe realizar um trabalho sem anomalias. Tal cheque servia para pagamento de um negócio que se iria realizar entre a ré e a mencionada sociedade e esta, por sua vez, não cumpriu com o acordado.
Uma vez que essa firma não tinha cumprido com o acordado, a ré comunicou à autora tal facto e mandou cancelar o cheque, dando-lhe instruções que o mesmo não fosse pago, o que, de qualquer forma, não o podia ser, pois, não havia saldo para esse efeito.
Sem qualquer justificação, bem sabendo que a ré não tinha saldo e que não tinha dado instruções para pagar, pelo contrário, deu instruções para não pagar, pagou o cheque indevidamente e tal comportamento deveu-se ao funcionário da autora.
Perante tal facto, não pode vir agora pedir a quantia peticionada porque os seus funcionários cometeram uma irregularidade em pagar o que não deviam.
Deduziu reconvenção, alegando que, devido ao comportamento da autora, sofreu elevados prejuízos elevados, que ainda não é possível calcular.
Conclui pela improcedência da acção e pela procedência da reconvenção.

A autora respondeu, alegando que foi celebrado um contrato de abertura de depósito bancário a que estava associado uma conta corrente que, a determinada altura ficou a descoberto, sendo que este descoberto se destinava a obviar a dificuldades momentâneas de tesouraria do cliente.
Acrescentou que durante os anos de 2007 e 2008 se verificou na conta da ré mais de 100 cheques, que foram pagos, sem que a conta estivesse devidamente aprovisionada.

Procedeu-se a julgamento e, a final, foi proferida sentença, na qual a contestação foi julgada improcedente e, em consequência, a ré condenada no pagamento à autora do montante de €22.862,23.
A autora foi absolvida do pedido reconvencional deduzido pela ré.

Inconformada, a ré recorreu para esta Relação, formulando as seguintes conclusões:
1.A recorrente discorda da sentença proferida, a qual lhe é desfavorável, pois a matéria dada como provada está em nítida contradição com o direito aplicado.
2.Há matéria dada como provada que não devia ser dada, como tal e matéria dada como não provada, que deveria ter sido dada como provada.
3.É verdade que, no exercício da sua actividade e por solicitação da ora recorrente, no dia 23/06/2006, a B…, aqui recorrida, acordou com esta a abertura de uma conta de depósitos à ordem. Conta esta que servia para a requerente fazer os seus depósitos e pagar aos seus fornecedores.
4.A requerente passou um cheque pré-datado à firma D…, S.A., no valor de 25.776,93€, na sequência de um negócio celebrado entre ambas as firmas. No entanto, como a mencionada firma não cumpriu com o acordado, ou seja, como o trabalho não foi realizado sem anomalias como tinha sido negociado, a requerente comunicou tal facto à aqui recorrida, solicitando que o mesmo não fosse pago.
5.Ora, a recorrente apresentou aqui uma justa causa para a revogação do cheque emitido, pelo que a recorrida deveria ter acatado tais instruções, em vez de autorizar o seu saque. Além disso, a referida conta-corrente apresentava um saldo negativo, ou seja, não havia provisão suficiente para pagamento do cheque em causa, o que era mais um motivo para que a recorrida acatasse a ordem de não pagamento dada pelo recorrente.
6.Consta dos autos, um escrito, embora não assinado, que prova especificamente que o cumprimento da ordem de pagamento não era de todo a vontade da aqui requerente, sendo que instruiu o Banco a não dar continuidade à ordem de pagamento do cheque aí identificado e que está aqui em causa, precisamente por ter havido um incumprimento do contrato, que mais que justifica o não pagamento do cheque.
7.É certo e sabido que jurisprudencialmente vigora o entendimento de que “uma instituição de crédito sacada que recusa o pagamento de cheque, apresentado dentro do prazo estabelecido no artigo 29º da Lei Uniforme em matéria de Cheques (LUCH), com fundamento em ordem de revogação do sacador, comete violação do disposto na 1ª parte do artigo 32º do mesmo diploma respondendo por perdas e danos perante o legítimo portador do cheque nos termos previstos nos artigos 14º, 2ª parte do Decreto nº 13004 e 483º, nº 1 do C. Civil”, conforme se pode verificar no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça de 28-02-2008, proferido no Processo 06A542, in www.dgsi.pt.
8.No entanto, será que o Banco sacado não poderia em caso algum dar cumprimento a uma ordem de revogação de um cheque na pendência do prazo da respectiva apresentação? Embora controvertida, a posição maioritária da doutrina e da jurisprudência orienta-se no sentido afirmativo.
9.O contrato do cheque representa um meio posto à disposição do titular da provisão de aceder aos fundos depositados. Os sujeitos da relação jurídica do contrato do cheque são, assim, o sacador e o Banco sacado. O beneficiário do cheque é estranho a esta relação, pelo que não tem qualquer direito de acção contra o sacado.
10.Assim, o Banco sacado não tem obrigação legal de pagar os cheques ao respectivo portador. Este é estranho à convenção estabelecida entre o sacador e o Banco, mediante a qual os fundos disponíveis são utilizados por meio de cheques ou, por outras palavras, mediante a qual se estabelece uma delegação de pagamento (Cfr. Alberto Luís, "Direito Bancário", 1985, pág. 134.).
11.Ora, tem que se reconhecer que seria ilógico pensar que o Banco, podendo em geral recusar o pagamento, venha a perder tal possibilidade quando a recusa corresponder aos interesses do seu cliente.
12.De mais a mais, se o fundamento invocado para a revogação puder ser subsumido ao conceito de justa causa. Na verdade, entendendo-se que o cheque traduz um mandato, conferido também no interesse do mandatário, o sacado está obrigado, nos termos do nº 2 do artigo 1170º do C.C., a aceitar a revogabilidade do mandato, quando ocorra justa causa.
13.Ora, foi o que aconteceu no caso sub judice, tendo presente que o sacador invocou como justificação para o "cancelamento" do cheque, que, tal como foi já referido, prendeu-se com o facto de ter havido um incumprimento do contrato, que motivou a existência do cheque. Foi por isso alegada uma circunstância concreta que integra o conceito de justa causa, no sentido de circunstância, facto ou situação em face da qual, e segundo a boa fé, não seja exigível a uma das partes a continuação da relação contratual, e que revela algum vício apto a prejudicar a formação duma vontade livre e esclarecida, por parte dos oponentes ao darem, e nas condições em que o fizeram, as ordens de pagamentos levadas aos cheques.
14.Desde logo, se é o cliente que tem que ordenar a disponibilização de tais quantias, seria mais do que acertado o banco não as ter disponibilizado, pois, além de não ter havido qualquer ordem de disponibilização, houve, pelo contrário, uma ordem de não disponibilização ou não pagamento, que nem sequer foi tácita, mas sim comunicada por escrito.
15.A ré tinha conhecimento de não possuir os fundos suficientes ao pagamento da dívida, mas a sua intenção seria a de disponibilizar tal quantia até à sua data de pagamento. Porém, ocorreu uma situação em face da qual, e segundo os trâmites da boa fé, passou a não ser exigível a continuação da relação contratual, pelo que, em vez de disponibilizar o dinheiro para pagamento da dívida (como seria intenção da recorrente, caso não se tivesse verificado um incumprimento do contrato), a recorrente optou por informar o Banco desta ocorrência e solicitar a revogação do cheque, não se cumprindo a ordem de pagamento dada ao portador do cheque; ordem esta que foi dada antes de se ter verificado o incumprimento contratual, que funciona aqui como justa causa de revogação do cheque.
16.Impugna-se também, com o devido e merecido respeito, o facto de a douta sentença afirmar que in casu não se provou que a ré tenha ordenado ao banco para não pagar o cheque n.º ………., visto que consta dos autos um escrito, não assinado. O original deste documento encontra-se na agência da recorrida, sita em …, na posse do funcionário da instituição de nome E…, que teve conhecimento das circunstâncias que ocorreram e recepcionou a carta. A também comprovar esta situação, está o depoimento da testemunha F…, que diz claramente e sem quaisquer dúvidas, que o senhor G…, sócio-gerente da aqui recorrente, na altura, telefonou para a B… para dar ordens para não pagarem o cheque aqui em causa, afirmando que lhe foi pedido um documento normal escrito onde constasse tal ordem de não pagamento e identificando esse documento com o que consta dos autos e que é supra referido. Afirma que assistiu ao telefonema, já que na altura era secretária da firma, e que a colega entregou o original desse documento em mão, na B…, ao funcionário E…, ainda que não tivessem ficado com uma cópia do documento carimbada para confirmar a sua entrega, pois funcionava entre o cliente e a instituição bancária uma excelente relação de confiança de parte a parte.
17.É com base numa relação de confiança que o cliente estabelece com o banco e confiante que a instituição bancária pretende, acima de tudo, zelar pelos interesses dos clientes, que a aqui recorrente confiou que, ao dar a ordem de revogação do cheque, alegando a ocorrência de uma justa causa que impossibilitava a manutenção de tal relação contratual com o portador do cheque, a aqui recorrida iria acatar essa ordem e não efectuar o pagamento do cheque.
18.Não foi isto que aconteceu e foi esta quebra da relação de confiança que motivou o “descoberto em conta”, que serviu de fundamentação à decisão da sentença de que aqui se recorre. Ora, se não fosse esta quebra da relação de confiança, nunca teria ocorrido o “descoberto em conta”, logo deve-se concluir que por este descoberto deve ser responsabilizada a recorrida ou algum dos seus funcionários, e não a aqui recorrente.
19.O que aconteceu no caso sub judice não foi motivado por dificuldades monetárias e imprevistas da recorrida, como se quer fazer entender na douta sentença, já que apenas não foi disponibilizado o valor em causa para pagamento do cheque por a recorrente ter confiado que a sua ordem de não pagamento seria acatada e o cheque não seria pago, visto ser essa a sua intenção comunicada da banco e ser função da instituição bancária zelar pelos interesses do cliente. Por isso, o descoberto em conta não é sua responsabilidade, pois se tal ordem de não pagamento tivesse sido acatada, nunca teria havido um “descoberto em conta”.
20.Todas as testemunhas arroladas pela recorrente foram unânimes em confirmar que o senhor G…, sócio-gerente da C…, na altura, deu ordem de não pagamento do cheque em causa, mediante a entrega de um documento escrito nas instalações da recorrida, a pedido desta, em mão do seu funcionário E….
21.E todas também confirmaram a relação de confiança que havia entre o cliente e a instituição, motivada pelas boas relações bancárias que sempre tiveram.
22.Ou seja, tudo o vertido na contestação foi confirmado pelas testemunhas arroladas pela ré, aqui recorrente, tendo apenas sido contrariada pela única testemunha arrolada pela autora, a quem lhe convinha que nunca tivesse ouvido falar de tal documento escrito.
23.O depoimento da testemunha arrolada pela autora, o senhor E…, mostrou inclusivamente alguma incerteza sobre o que se terá passado nesse dia, já que responde que não se lembra bem se telefonou ao senhor G… a perguntar se o cheque aqui referido era para pagar ou não, apenas admitindo que esta era uma situação igual a tantas outras que anteriormente teriam acontecido e que nessas situações sempre ligou e sempre solicitou uma carta por escrito, para proceder ao pedido de autorização à administração. Ora, se a testemunha não se lembra do que se terá passado nesse espaço de tempo, parece que não é correcta a formação da convicção do tribunal a partir de um depoimento incerto, vago e inseguro.
24.Além disso, o escrito apresentado ao tribunal não estava assinado e um outro escrito, exactamente igual a este, mas que estava na posse da B…, numa pasta de ficheiros entregues à testemunha E…, já continha a assinatura do sócio-gerente da altura, o senhor G…, o que prova que a carta terá sido devidamente entregue nas instalações da aqui recorrida, mas de má fé esse escrito desapareceu, facto que não poderia ser devidamente provado, já que era normal não haver uma cópia carimbada e assinada na altura da entrega dos originais, por causa da já referida relação de confiança e seriedade entre a empresa e a instituição bancária. Não havendo prova de entrega do documento, não haveria por isso prova da obrigação de não pagamento do cheque por parte da requerida, a pedido do cliente.
25.Esta testemunha, o funcionário da aqui recorrida, nem sequer se lembra de ter sido visto este documento assinado numa reunião onde esteve presente juntamente com as testemunhas G… e H….
26.O depoimento da testemunha F…, funcionária da recorrente, confirmou que assistiu ao telefonema entre o senhor G… e o senhor E…, no qual foi solicitado verbalmente o não pagamento do cheque e onde foi também dada a informação de que a solicitação teria que ser feita através de documento escrito, tendo sido ela própria a redigir o documento e tendo ela posteriormente entregue à sua colega, I…, para levar o documento e entregar nas instalações da recorrida. O seu depoimento confirmou ainda que o não pagamento do cheque se terá devido a um incumprimento contratual de um negócio celebrado entre a firma C… e a firma D…, que nas suas palavras se prendeu com um “sistema de vásculas que não estava muito correcto”, constituindo isto uma justa causa para esse não pagamento.
27.Também o depoimento da testemunha I… confirma a entrega do documento escrito nas instalações da recorrida, entregue em mão pela própria, aquando de uns depósitos que realizou na instituição bancária. Confirma também que entregou esse escrito ao senhor E…, “porque o senhor E… era o gerente da B… e normalmente quando é documentação que é referente a essas situações é a ele que entrego (…), faço os depósitos normalmente ao balcão, mas peço sempre para falar com ele para entregar”.
28.A acareação das testemunhas E… e I… mostra desde logo a incerteza no depoimento do funcionário da recorrida, que afirma não ter recebido nada e que terá “ouvido dizer” que a carta terá vindo por fax, quando em lado nenhum no seu depoimento referiu esta possibilidade. A testemunha I… manteve a sua convicção de ter entregue o documento em mão do funcionário E…, apesar de não ter recebido qualquer comentário de que a ordem de não pagamento iria ser devidamente cumprida.
29.Também o depoimento da testemunha H… confirmou a seriedade das funcionárias da aqui recorrente, confirmou ter falado com elas sobre este assunto numa das suas idas à empresa e referiu que teve conhecimento desta situação através dos extractos bancários, tendo sido elucidado sobre a situação que estava a decorrer pelo sócio-gerente da altura, o senhor G….
30.Do que se conclui que todos os depoimentos das testemunhas foram claros e conclusivos e não deveriam ter originado a formação da convicção do tribunal no sentido exposto na douta sentença de que se recorre, pelo que se impugna todo o conteúdo aí vertido.
31.Logo, devia ter sido dado como provado que a ré comunicou à autora, do não pagamento do cheque, teria que ser dado como provado, tal como se provou em audiência de julgamento, pelas testemunhas F…, I… e H… (ver depoimentos atrás descritos).
32.Sem prescindir e como já se disse, a matéria dada como provada, com base na qual o recorrente foi condenado é manifestamente insuficiente é inconclusiva para sustentar a condenação da apelante.
33.Resultaram provados factos necessários à absolvição da Ré.
34.Assim a sentença proferida em primeira instância é nula, uma vez que contraria o disposto no artigo 668º, nº 1, alíneas c) e d) do C.P.C., i.e., por não especificar os fundamentos de facto e de direito, que justificam a decisão, os fundamentos estarem em oposição com a decisão, e o tribunal a quo, não se ter pronunciado sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.
35.A sentença recorrida padece, assim, de vício na contradição da matéria dada como provada e a decisão de direito, na medida em que o texto da decisão recorrida entra em contradição com os factos provados. Logo, os factos dados como provados têm que logicamente levar a uma decisão totalmente oposta à dada pelo tribunal a quo.
36.O Meritíssimo Juiz tratou a questão muito superficialmente, pois o contrato aberto com o Banco foi pura e simplesmente a abertura de uma conta à ordem, em que a instituição bancária paga se nela houver dinheiro.
37.Logo, o que se discute no presente processo é se estamos perante um contrato de mútuo ou empréstimo.
38.O artigo 1.142º do C.C. diz que “mútuo é o contrato pelo qual uma das partes empresta a outra dinheiro ou outra coisa fungível, ficando a segunda obrigada a restituir outro tanto do mesmo género e qualidade”.
39.Tais factos não nos levam, nem permitem concluir que houve por parte da Ré qualquer contrato ou declaração tácita de pedido ou aceitação de qualquer empréstimo.
40.Ao longo de todo o processo não ficou provado, que tivesse existido, nem contrato de mútuo entre a autora e ré, e por tal motivo, tinha que ter absolvido esta última do pedido.
41.Isto porque, segundo o disposto no artigo 1142º do C.C., “mútuo é o contrato pelo qual uma das partes empresta à outra dinheiro ou outra coisa fungível, ficando a segunda obrigada a restituir outro tanto do mesmo género e qualidade”.
42.Para haver um contrato de mútuo bancário era necessário haver duas declarações de vontade, para entrega do dinheiro, o que não houve, a ré sem qualquer pedido coloca o dinheiro na conta à ordem da ré e pagou o cheque.
43.É mediante esta solicitação e acordo de vontades que se verifica o empréstimo de dinheiro, podendo as partes estabelecer as condições de pagamento (restituição) da quantia mutuada, facto que também não aconteceu, pois nunca a autora e a ré acordaram seja o que quer que fosse.
44.Não tendo, assim, havido qualquer solicitação de empréstimo à autora por parte da ré, terá havido aqui um abuso da relação existente entre a ré e a autora (relação de confiança entre cliente e instituição bancária) e de uma conta bancária que aquela tinha nesta e, nesse âmbito, terá sido efectuado um lançamento a crédito por iniciativa exclusiva do funcionário da autora, E….
45.Não pode, por isso, ser assumida pela ré qualquer obrigação decorrente de qualquer relação negocial com a autora, pois o pagamento não foi efectivado nem ordenado pela ré.
46.Pelo contrário, a ré comunicou que não pagasse o cheque e não pediu dinheiro ao Banco.
47.É também certa que a declaração negocial é um verdadeiro elemento de negócio, e no caso sub judice, não houve essa declaração negociável.
48.Senão, vejamos, existem duas modalidades de declaração negocial: a declaração expressa, que é aquela que é feita por palavras, escrito ou qualquer outro meio directo de manifestação de vontade, e a declaração tácita, definida por lei como “aquela que se deduz de factos que, com toda a probabilidade, a revelam” – artigo 217º, n.º2, do C.C. Declaração expressa e declaração tácita têm, em regra e no mesmo caso, o mesmo valor.
49.No caso em apreço, não houve, com toda a certeza, uma declaração negocial expressa por parte da ré, na qual se formulasse qualquer solicitação ou se desse qualquer autorização para a realização do mútuo, nem sequer se pode considerar que tenha havido uma declaração negocial tácita nesse sentido.
50.Face ao conjunto de factos já referidos, praticados pela autora e ré e ao abrigo dos conceitos expostos, poder-se-á concluir que a autora e ré não emitiram declarações negociáveis do pedido de concessão de empréstimo bancário.
51.Pois no caso em apreço, estamos perante um contrato ou não de mútuo e para tal, tal contrato não se traduz na mera entrega de uma coisa fungível ou de dinheiro, com a obrigação de restituir, pois tem que existir manifestação de vontade de quem quer emprestar e de quem pretende usar a coisa durante certo período de tempo.
52.Pois, o Meritíssimo Juiz tinha que verificar se houve ou não um contrato de empréstimo ou mútuo.
53.Após, teria que concluir que não existiu vontade das partes nesse sentido – conforme dispõe o douto Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13-02-2009.
54.No caso em análise, não ocorreu empréstimo, nem um deferimento relativo a este, não existiu acordo bilateral de vontades.
55.O que aconteceu foi que houve um abuso, por parte do funcionário, de utilização da referida conta e aí colocar dinheiro, para pagar um cheque, sendo aí lançado a crédito, por iniciativa exclusiva do funcionário da autora.
56.Assim, não existe qualquer documento escrito, pedido de empréstimo para cobrir o cheque e que tinha sido objecto de deferimento prévio por parte da ré.
57.Existe no douto acórdão uma violação do disposto nos artigos 1.143º e 217º do C.C.
58.Pois não existiu qualquer mútuo estabelecido entre a autora e a ré, apenas tendo sido abusivamente utilizada a conta bancária da ré para a realização, por parte do funcionário da autora, de actos que a ré nunca solicitou, nem autorizou.
59.Do exposto se conclui que inexiste claramente um dos pressupostos essenciais da relação jurídica invocada, não tendo havido sequer o estabelecimento de qualquer relação obrigacional entre a autora e a ré, no que se refere aos lançamentos efectivados na conta bancária e desta e demais operações com esta conexionada.
60.Assim, por tudo o alegado, deverá a douta sentença sob recurso ser alterada e consequentemente reapreciada e valorizada a prova produzida e ser a ré absolvida no pedido formulado.

A apelada apresentou contra-alegações, concluindo pela confirmação da sentença.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

A sentença recorrida considerou assentes os seguintes factos:
A. Factos assentes no saneador
a) A autora é uma instituição de crédito.
b) No exercício da sua actividade e por solicitação da ré, no dia 23.6.2006, a autora acordou com esta a abertura de uma conta de depósitos à ordem, à qual foi atribuído o número …./………...
c) Consta dos autos (referência nº 61314), um escrito denominado condições do contrato de depósito, subscrito por J…, contendo o seguinte teor com relevo para os presentes autos:
A. Disposições Gerais
Objecto.
1.1. Este contrato rege as condições gerais acordadas pela B… (consoante a interveniente nesta contrato), doravante abreviadamente designada por B1…, e o titular da conta, sobre a abertura, movimentação e encerramento de contas de depósitos à ordem e outras contas e/ou produtos a elas associadas.
1.2. O contrato reger-se-á ainda por disposições gerais acordadas pelas partes relativas a qualquer conta e/ou produtos, e subordina-se à legislação aplicável.
1.3. A celebração deste contrato fica dependente da assinatura aposta na ficha de abertura de conta de depósito à ordem e da prestação de informações do titular e seus representantes no anexo ao presente contrato, e que dele fazem parte integrante (…)
B. Contas de depósito à ordem (…)
5.2. A conta pode ser movimentada a débito por meio de ordens de transferência, autorizações e cartões de débito, cheques ou quaisquer outros permitidos pela B1… (…)
5.4. Caso não haja provisão suficiente na conta e se a B1… decidir autorizar algum descoberto, este vencerá juros à taxa mais alta praticada pela B1… em operações de crédito activas, a contar da data do descoberto até efectiva regularização.
5.5. Nos casos em que, por qualquer circunstância, a conta apresentar saldo negativo, a B1…, sem necessidade de aviso prévio, fica autorizada a debitar esse montante e os respectivos juros, acrescidos de uma sobretaxa de mora até 4% ao ano, ou outra que seja legalmente admitida, em qualquer conta existente na B1… ou que o Titular possa movimentar, ficando este obrigado à regularização imediata do saldo (…)
O Titular, através dos seus representantes aqui signatários, declara que recebeu previamente cópia das presentes Condições Gerais, de cujo teor tomou prévio conhecimento e por dar o seu acordo às suas cláusulas assina a presente declaração e as presentes Condições gerais.
d) No dia 16.12.2008, a conta referida em b) apresentava um saldo devedor no montante de €22.862,23, o qual não foi regularizado pela ré, apesar de interpelada para o efeito.
e) Consta dos autos (referência 61385) a cópia de um cheque com o nº ………., sacado sobre a conta aludida em b), no qual foi aposta a quantia de €25.776,93, a data de emissão 30.12.2007 e beneficiário D…, S.A.
f) O cheque identificado em e) foi apresentado a pagamento na B1… de compensação em 31.12.2007 e foi debitada na conta aludida em b), em 8.1.2008.
g) Consta dos autos, a fls. 13, um escrito, não assinado, contendo o seguinte teor:
“C…, Lda.,
… – …, R/C Dtº, nº .., ….. – … Vila Flor,
Exmº. Sr.
Gerente do Banco B…
Vila Flor
Data: 26.12.2007
Assunto: Anulação de cheque
Conforme assunto em epígrafe e para os devidos efeitos, vimos por este meio pedir a Vossas Excelências que queiram anular o cheque nº ………., no valor de €25.776,93, por motivo de incumprimento de contrato.
Sem outro assunto de momento, creiam-nos com elevada estima e consideração.
B. Matéria de facto provada que consta da base instrutória
1. A conta de depósito à ordem identificada em b) é movimentada a débito e a crédito.
2. Ao longo dos anos de 2007 e 2008, verificaram-se na conta-corrente referida em 1 mais de 100 cheques emitidos por esta e que foram pagos aos seus portadores, sem que a conta estivesse devidamente aprovisionada para o efeito.
3. A ré emitiu o cheque para pagamento de um negócio que a ré realizou com a D…, S.A.

São apenas as questões suscitadas pelos recorrentes e sumariadas nas respectivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar – artigos 684º, nº 3 e 685º-A, nº 1, do C.P.C.
As questões a decidir são as seguintes: nulidades da sentença, nos termos do artigo 668º, nº 1, alíneas c) e d), do C.P.C; impugnação da decisão relativa à matéria de facto, no que concerne aos números 5 e 6 da base instrutória; se o direito está conforme aos factos que se consideraram ou vierem a considerar provados.

I. O artigo 668º, nº 1, alínea c), do C.P.C., estabelece que a sentença é nula, quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão.
Verifica-se esta nulidade, sempre que há um vício real no raciocínio do julgador: a fundamentação aponta num sentido e a decisão segue caminho oposto ou, pelo menos, direcção diferente.
Na alínea c), do nº 1, do artigo 668º, «a contradição não é apenas aparente, é real; o juiz escreveu o que queria escrever; o que sucede é que a construção da sentença é viciosa, pois os fundamentos invocados pelo juiz conduziriam logicamente, não ao resultado expresso na decisão, mas a resultado oposto». Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Volume V, pág. 141.
Esta nulidade só se verifica quando os fundamentos invocados pelo juiz deveriam logicamente conduzir a resultado oposto do que vem expresso na sentença. Assim, sempre que houver um raciocínio típico entre as premissas de facto, donde o julgador partiu, para a decisão de direito, não existe a falada nulidade. O que poderá haver é erro de julgamento. Rodrigues Bastos, Notas, Volume III, edição 1969, pág. 246.
Por sua vez, o artigo 668º, nº 1, alínea d), do C. P. Civil, dispõe que a sentença é nula, quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.
A nulidade prevista no artigo 668º, nº 1, alínea d), traduz-se no incumprimento, por parte do juiz, do dever prescrito no nº 2, do artigo 660º, ambos do C. P. Civil, que é o de resolver todas as questões submetidas à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras, e o de não poder ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.
A apelante invoca as nulidades, afirmando, como se vê das conclusões 34 e 35, que a sentença “não especifica os fundamentos de facto e de direito, que justificam a decisão, os fundamentos estão em oposição com a decisão, e o tribunal a quo, não se pronunciou sobre questões que devia apreciar ou conheceu de questões de que não podia tomar conhecimento.
A sentença recorrida padece, assim, de vício na contradição da matéria dada como provada e a decisão de direito, na medida em que o texto da decisão recorrida entra em contradição com os factos provados. Logo, os factos dados como provados têm que logicamente levar a uma decisão totalmente oposta à dada pelo tribunal a quo”.
Ora, na sentença não existe qualquer oposição entre os fundamentos e a decisão, nem omissão de pronúncia sobre questões que devesse apreciar ou conhecimento de questões de que não podia conhecer.
Como naquela se refere, o cheque contém uma ordem dada pelo sacador (normalmente, o titular do depósito ou alguém por este autorizado) ao banqueiro para pagar a quantia nele inscrita. É um meio de mobilização de fundos que pressupõe que o emitente disponha de fundos bastantes ao pagamento, isto é, de provisão no banco sacado.
Senão existem fundos suficientes para o cumprimento da ordem, o banco recusa-o, mas pode honrá-lo no interesse do cliente e que essa é a sua vontade.
A inexistência de fundos bastantes para o pagamento do cheque não produz qualquer efeito na sua validade.
Apesar da falta de provisão, o banco pagou o cheque apresentado a pagamento pelo terceiro a quem havia sido entregue pela ré e, por outro lado, não se provou que a ré tenha dado ordem ao banco para não pagar aquele título.
Por essa razão, e levando os valores inscritos a débito da conta titulada pela ré, passou esta a acusar um saldo negativo, um descoberto em conta, no caso, no montante de €22.862,23.
Em suma, a ré sabia ou não deveria ignorar que não dispunha de fundos para pagar o cheque e, no entanto, emitiu ordem de pagamento dirigida ao banco em excesso do que a provisão suportava.
Por sua vez, o banco, apesar da falta de provisão, paga o cheque, adiantando fundos seus para satisfazer a ordem constantes do cheque, correndo mesmo o risco de vir a não ser reembolsado.
A conclusão de que esta situação era legal impunha-se e, por isso, a sentença não padece das nulidades invocadas pela apelante.

II. Encontrando-se gravada a prova produzida em julgamento, nos termos do disposto nos artigos 522º-B e 522º-C, do C. P. Civil, pode alterar-se a decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto, se para tanto tiver sido observado o condicionalismo imposto pelo artigo 685º-B, como o permite o disposto no artigo 712º, nº 1, alínea a), ambos do mesmo diploma.
Igualmente, nos termos do citado artigo 712º, nº 1, alínea b), do C. P. Civil, a decisão do tribunal da 1ª instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pela Relação se os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa, insusceptível de ser destruída por quaisquer outras provas.
O registo dos depoimentos prestados em audiência de julgamento tem como objectivo facilitar a reparação de um eventual erro de julgamento. Esta tarefa – apreciação da prova – está cometida, em primeira linha e como regra geral, à primeira instância e em execução do princípio da imediação, que a reforma processual trazida pelo Decreto Lei nº 329-A/95, de 12/12, veio reforçar quanto à prova testemunhal.
Os casos em que, pela via do recurso, se há-de reapreciar a prova produzida em primeira instância, terão de ser, concretamente, evidenciados pelo recorrente, destacando-os dos demais, indicando os depoimentos em que se funda, por referência ao assinalado na acta, nos termos do nº 2, do citado artigo 522º-C (artigo 685º-B, nº 2, do C. P. Civil).
A recorrente, mencionando os concretos meios probatórios, constantes do processo, da gravação ou transcrição nele realizada que, em seu entender, impõem decisão diversa da recorrida, preenche, no essencial, estes requisitos legalmente impostos, para que se possa apreciar o alegado erro na apreciação da matéria de facto.
A recorrente não indica os números da base instrutória em que os factos que considera incorrectamente julgados foram incluídos, mas percebe-se que a impugnação incide sobre os números 5 e 6 da base instrutória, pois, são os essenciais, uma vez provados, para a demonstração da sua tese de que a autora/apelada deveria ter recusado o pagamento do cheque
Neste sentido, os pontos da matéria de facto assente que a recorrente considera incorrectamente julgados são os seguintes: “Uma vez que a D…, S.A., não cumpriu o acordado com a ré, esta comunicou à autora tal facto e mandou cancelar o cheque, dando-lhe instruções para que o mesmo não fosse pago?”; “Tendo, em 26.12.2007, a autora recebido o original do escrito aludido em G)?”.
Com base nos depoimentos das testemunhas F…, I… e H…, pretende a ré que a referida matéria seja dada como provada.
É certo que a testemunha F…referiu que “o senhor G… (sócio-gerente da ré) ligou para a B… e pediu para lhe fazer o cancelamento do cheque”. “E eles solicitaram-lhe o pedido por escrito” Fui eu que fiz (esse documento)”. “O senhor G… assinou”. “Foi a minha colega I… que foi levá-lo à B…”.
“Tem a certeza de que a sua colega é de confiança e que foi lá entregar o original?”
“Tenho”.
“Pronto, mas também não assistiu?”
“Não, não assisti”.
“Só ela é que o poderá confirmar?!
“Exactamente”.
“Mais tarde, já falei com ele e ele (senhor E…) disse-me que não tinha recebido nada”. “Não, em conversa ele disse-me que não tinha recebido nenhum documento”.
“Por norma, nós enviávamos por fax e ficávamos com a cópia”.
“Dos anteriores cheques. O mesmo procedimento, mas outros anteriores que tenha feito antes desta data?”
“Iam por fax”.
“E sempre funcionou quando iam por fax?”
“Por que é que desta vez alterou o procedimento?”
“Porque a minha colega foi no dia, no momento…o senhor G… ligou para lá pediu para não ser pago…”
“Mas, o fax também vai no dia e no momento”.
“Neste caso, a minha colega levou em mão”.
Por sua vez, a testemunha I… referiu, além do mais, o seguinte:
“Antes já tinha acontecido alguma coisa semelhante, entregar cartas para cancelar contas…para cancelar cheques?”
“Para cancelar cheques, já”.
“Em mão?”
“Sim. Ou fax. Mas, normalmente, como eu vou todos os dias, era em mão”.
“Normalmente, era em mão. É que a sua colega disse que normalmente era em fax”.
“Não, eu normalmente levava sempre um…”.
“Olhe, como é que justifica…é que não consegui perceber ainda como é que há uma cópia aqui sem assinatura e uma cópia com assinatura, se o original foi entregue no banco e o banco não recebeu?”.
“Pois, é assim, provavelmente a carta foi feita, é a minha colega que fez, o senhor G… assinou, entregou-me, nós devemos tirar cópia…pois, ela deve-se ter esquecido de tirar cópia. Eu, como não…como foi ela que fez também não tirei cópia”.
“Mas, isso é muito estranho, porque nunca há cópia da carta e agora surge aqui uma cópia da carta”.
“Pois, não sei”.
“Com a assinatura”.
“Não lhe si responder, não lhe sei responder”.
“Sim, entreguei a carta na B… ao senhor E…”. “Entreguei em mão”. Não ele pegou na carta e ficou com a carta. Não, não, comigo não comentou nada”.
A testemunha E…, a este respeito, referiu: “Não, não recebi a carta, não me lembro de me ter dado a carta e já ouvi falar de que afinal essa carta teria vindo por fax. Ouvi comentar após esta discussão toda e quando se falou no processo que haveria uma carta que teria vindo por fax”.
“Que era para se entregar em mão?”.
“Não, quando recebemos algum documento desse género, autenticamos sempre a dizer que recebemos nessa data e acho estranho também as pessoas não pedirem confirmação”.
A testemunha H…, de mais saliente, referiu:
“Não tem dúvidas nenhumas que a empresa deu ordens ao banco para não pagar esse cheque?”.
“O senhor G… transmitiu-me isso, tenho de acreditar nas palavras dele”.
“…Chegou a ver algum documento a solicitar ao banco o cancelamento do cheque?”.
“Não, não, não tive com nenhum…” Foi-me falado só, mas quem faz a gestão de tesouraria não sou eu, só tenho que ter acesso aos documentos contabilísticos”.
“Nunca chegou a ver então essa carta?”.
“Não, não é um documento contabilístico…”. “Não, mas não me foi mostrado nada”.
Os depoimentos das testemunhas F… e I…, de facto, não são consistentes, nem convincentes. Uma diz que o procedimento normal era enviarem as comunicações por fax e a outra que era em mão; uma diz que tirou cópia da carta e a outra que ninguém a tirou.
Existe uma cópia da carta assinada na posse da ré, mas a testemunha F… afirma que “possivelmente nós ficámos, mas não foi encontrada”; e a testemunha I… diz que não foi tirada cópia da carta assinada.
Por outro lado, a testemunha F… afirma que não viu se a sua colega I… entregou a carta à autora.
A testemunha E…, por sua vez, diz que não recebeu a carta e quando recebia algum documento desse género autenticava-o sempre a dizer que recebeu.
A testemunha H… apenas sabe o que lhe foi transmitido pelo sócio-gerente da ré.
Face à contradição dos depoimentos prestados em audiência de julgamento e ao facto de a ré/apelante não possuir qualquer comprovativo da entrega da declaração que diz ter feito chegar ao balcão da autora/apelada, é justificada a dúvida se, efectivamente, a carta a solicitar o cancelamento do cheque foi entregue.
A apelante, no fundo, pretendia que esta Relação fizesse uma nova valoração dos meios de prova, de forma a concluir que os factos que discrimina foram julgados erradamente e que, por consequência, eles deveriam ser alterados. Tal valoração foi feita e, como se referiu, a decisão sobre a matéria de facto retrata com fidelidade e exactidão as provas produzidas em audiência de julgamento.
No caso concreto, tendo em atenção a prova testemunhal, a convicção desta Relação é a de que as dúvidas levantadas pela apelante não tinham fundamento, considerando-se, por isso, correcta a forma como o tribunal a quo decidiu a matéria de facto questionada, ou seja, não provando os factos incluídos nos números 5 a 6 da base instrutória.

III. Não havendo fundamento para alterar as respostas que foram dadas aos números 5 e 6 da base instrutória, também inexiste razão para alterar a decisão de direito: quer porque o objecto do recurso, visando, essencialmente, a alteração da decisão de direito, na medida em que fosse alterada a matéria assente, essa alteração não procedeu; quer porque, em face dos factos provados, a decisão de direito é a adequada e não merece qualquer censura.
No exercício da sua actividade e por solicitação da ré, no dia 23.6.2006, a autora acordou com esta, a abertura de uma conta de depósitos à ordem, à qual foi atribuído o número …./………... Esta conta podia ser movimentada a débito, por meio de ordens de transferência, autorizações e cartões de crédito ou quaisquer outros meios permitidos pela B….
As partes celebraram, pois, um contrato de depósito bancário que se traduz em a ré efectuar depósitos de somas de dinheiro ou ordens de pagamento (designadamente, por cheques) em relação a tal conta, mediante uma compensação monetária que lhe é atribuída, constituída por juros à taxa estipulada, ficando o depósito com um crédito livremente disponível sobre o banco, enquanto este, por seu turno, utiliza as quantias entregues.
Tal contrato de depósito bancário é denominado, por uns, como mútuo remunerado, por outros, como depósito irregular e, por outros, ainda, como contrato inominado de tipo especial.
De qualquer modo, trata-se sempre de um contrato pelo qual as partes têm direitos e obrigações nele consignados.
Está em causa o cheque identificado na alínea E) da matéria assente, sacado sobre a referida conta, no qual foi aposta a quantia de €25.776,93, a data de emissão 30.12.2007, sendo beneficiária a sociedade D…, S.A.
A conta de depósitos à ordem era movimentada a débito e a crédito e, ao longo dos anos de 2007 e 2008, mais de 100 cheques emitidos pela ré foram pagos aos seus portadores, sem que aquela conta estivesse devidamente aprovisionada para o efeito.
Esta prática da autora traduzia-se numa forma de concessão de crédito, obviando a dificuldades imediatas de tesouraria da ré, concessão de crédito a que, na linguagem bancária se usa chamar de “descoberto em conta”.
O descoberto traduz-se, pois, na concessão de crédito bancário, com ou sem acordo prévio, e consiste na operação pela qual o banco consente que o seu cliente saque para além do saldo existente na conta de que é titular, até um certo limite e por determinado prazo, sendo o seu reembolso exigível a todo o tempo. Acórdão da Relação do Porto, de 16.3.1998, CJ, Tomo II, pág. 206.
«Ele pode aparecer de modo esporádico, sem acordo prévio…, mediante o qual o depositante é autorizado a levantar quantias superiores às depositadas, convertendo o saldo em devedor. Trata-se de uma medida excepcional, de crédito de curto prazo para acudir a necessidades momentâneas e imprevistas de clientes de confiança, e sem necessidade de instruções escritas. Mas, o descoberto pode resultar de uma concessão de crédito segundo intenções do depositante que nisso acordou com o Banco e segundo o qual este paga por conta dele adiantando fundos…, recebendo a final o capital e respectivos juros, mediante o depósito das respectivas quantias». Acórdão do STJ, de 2.2.1993, CJ, Tomo I, pág. 121.
Na situação em análise, de acordo com os factos provados, está-se perante aquela primeira modalidade, pois, sabendo que não dispunha de fundos necessários à emissão do cheque e, apesar disso, transmite ao banco a ordem de pagamento nele incorporada, a ré assumiu um comportamento social típico nas relações bancárias revelador da vontade de que aquele lhe adiantasse os meios para cobrir o valor de tal cheque, o que o banco aceitou (sem acordo prévio, dado que não foi alegado), adiantando fundos seus com que efectuou o respectivo pagamento.
E, não se tendo provado que a ré tivesse mandado cancelar o cheque, dando instruções para que o mesmo não fosse pago, naturalmente que a autora B…, como se decidiu, tem direito a haver daquela cliente/depositante o montante que lhe adiantou, no caso, €22.862,23 (vinte e dois mil oitocentos e sessenta e dois euros e vinte e três cêntimos).
Improcedem, assim, as conclusões das alegações e o recurso da ré.

Decisão:
Pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes desta secção cível em julgar improcedente a apelação e, consequentemente, confirmar a sentença recorrida.

Custas pela apelante.

Sumário:
I. O descoberto em conta traduz-se numa forma de concessão de crédito, mediante a qual o Banco, obviando a dificuldades imediatas de tesouraria do seu cliente, permite que este levante quantias superiores às depositadas.

Porto, 7.5.2012
António Augusto de Carvalho
Anabela Figueiredo Luna de Carvalho
Rui António Correia Moura