Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
9050927
Nº Convencional: JTRP00002191
Relator: VAZ DOS SANTOS
Descritores: CRIME SEMI-PÚBLICO
DIREITO DE QUEIXA
PROCURAÇÃO
PODERES ESPECIAIS
RATIFICAÇÃO
Nº do Documento: RP199102279050927
Data do Acordão: 02/27/1991
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recorrido: T COR PORTO 3J
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO. REVOGADA A DECISÃO.
Área Temática: DIR PROC PENAL.
Legislação Nacional: CPP87 ART49 N3.
CPC67 ART40.
CCIV66 ART268 N3.
Jurisprudência Nacional: AC RP PROC02024104 DE 1990/07/11.
Sumário: I - O conceito de "poderes especiais" ( cfr. artigo 49, n. 3 do Código de Processo Penal ), no âmbito do processo criminal, impõe que o titular do direito confira ao mandatário poderes para, em seu nome, apresentar queixa contra terceiros que, na medida do possível, deverá individualizar.
Não obedece a esses requisitos a procuração que se limita a conferir poderes gerais forenses e os especiais para confessar, desistir ou transigir em qualquer processo.
II - Se a procuração confere poderes insuficientes ao mandatário para apresentar queixa, deve a autoridade judiciária desencadear o mecanismo previsto no artigo 40, n. 2 do Código de Processo Civil ( "ex vi" do artigo 4 do Código de Processo Penal ) e se o mandante supre a falta e ratifica o processado no prazo consignado, a queixa deve considerar-se válida desde a data da apresentação, mesmo que o vício só tenha sido notado quando já havia caducado o direito de queixa.
III - Não se tendo adoptado esse procedimento, é prematuro concluir-se pela ilegitimidade do Ministério Público ou pela extinção do direito de queixa.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação do Porto
1 - O digno Agente do Ministério Público da comarca do Porto, em processo comum, deduziu acusação contra Luís Paulo ....., imputando-lhe a prática de um crime de emissão de cheque sem cobertura previsto e punido pelos artigos 23 e 24 do Decreto n. 13004, de 12/01/27, na redacção do Decreto-Lei 400/82, de 23/09.
Distribuido o processo no Terceiro Juizo Correccional desta cidade, o Meritíssimo Juiz proferiu o seguinte despacho:
Em causa crime de emissão de cheque sem cobertura cujo procedimento criminal depende de queixa ( artigo 24 do Decreto n. 13004, de 12/01/1927 ), que a não houve directamente pelo queixoso através de qualquer dos seus legais representantes, ou através de procurador com poderes especiais, pois não os tem o procurador-advogado subscritor do requerimento ( queixa ) de fl. 3.
Por isso que o Ministério Público não tem legitimidade para proceder criminalmente ( artigo 49 do Código de Processo Penal ).
Assim, e sendo que hoje se encontra já extinto o direito de queixa ( artigo 112 do Código Penal ), não recebo a acusação deduzida a fl. 24, e determino o arquivamento dos autos.
Inconformado, o Ministério Público interpôs recurso, em cuja motivação produziu, em síntese, as seguintes conclusões:
A procuração emitida pelo representante legal da firma ......, Lda. a favor do Dr. Pedro .... confere-lhe poderes especiais para participar criminalmente;
Tais poderes são tanto os exigidos em processo tanto cível, como em processo penal, nos termos do artigo 49 do Código de Processo Penal;
Tem pois o ilustre mandatário legitimidade para se queixar em nome do mandante, possuindo consequentemente o Ministério Público legitimidade para introduzir o feito em juízo e exercer a acção penal;
Violou o Meritíssimo Juiz o disposto nos artigos 49 e 313 do Código de Processo Penal;
Devendo por isso o douto despacho recorrido ser substituido por outro que designe data para julgamento.
Não houve resposta.
O Meritíssimo Juiz proferiu despacho de sustentação.
Nesta instância, o Ilustríssimo Procurador-Geral Adjunto emitiu proficiente parecer no sentido de que o recurso não merece provimento, devendo, porém, revogar-se o despacho recorrido e ordenar-se que o Meritíssimo Juiz "a quo" marque prazo nos termos e para os efeitos do n. 2 do artigo 40 do Código de Processo Civil, aplicável por força do artigo 4 do Código de Processo Penal.
2 - Colhidos os vistos, cumpre decidir:
2.1 - Sumariemos os factos com interesse para a decisão do presente recurso:
No dia 27/09/89, a sociedade comercial ....Ldª, em requerimento subscrito pelo Senhor Advogado Dr. Pedro ...., apresentou queixa crime contra Luís Paulo ........., por este haver emitido a favor daquela sociedade os dois cheques juntos a fls. 7, datados de 24/03/89, que vieram a ser devolvidos por falta de provisão em 28 de mesmo mês;
Através de procuração junta a fls. 5, o gerente dessa sociedade, em nome desta, constituiu seu bastante procurador o Dr. Pedro ..... a quem conferiu "todos os poderes forenses em direito permitidos, podendo substabelecer, e ainda os especiais para confessar, desistir e transigir em qualquer processo, praticando requerendo e assinando tudo o mais que seja preciso a estes fins".
Em declaração que, no decurso do inquérito, lhe foram tomadas em 06/06/90, José ......... que se identificou como empregado de escritório, trabalhando no local de trabalho do queixoso, o qual não exibiu quaisquer credenciais que o habilitassem a representar aquela, declarou confirmar a queixa e desejar procedimento criminal.
2.2 - O crime de emissão de cheque sem cobertura reveste natureza semi-pública, por isso que o procedimento criminal só terá lugar a pedido do portador do cheque ( cf. artigo 25 do Decreto n. 13004, na redacção que lhe foi dada pelo artigo 5 do Decreto-Lei n. 400/82 ).
Quando o procedimento criminal depender de queixa, tem legitimidade para apresentá-la, salvo disposição em contrário, a pessoa ofendida, considerando-se como tal o titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação - artigo 111, n. 1 do Código Penal - sendo que o direito de queixa extingue-se no prazo de seis meses, a contar da data em que o titular teve conhecimento do facto e dos seus autores - artigo 112, n. 1 do mesmo diploma legal.
O direito de queixa deverá ser exercido pessoalmente, isto é, pelo respectivo titular, ou ainda por mandatário munido de poderes especiais ( artigo 49, n. 3 do Código de Processo Penal ).
A exigência dos poderes especiais tem a sua razão de ser perante a natureza especial da infracção e os bens jurídicos em disputa, em que poderá estar em causa o bom nome e a honorabilidade do denunciado, exigindo-se, por isso, que a participação seja feita ou directamente pelo titular do direito afectado ou por procurador com poderes específicos para esse fim, pela garantia que daí resulta que, em princípio, a queixa não será feita de ânimo leve; de contrário, em casos de denúncia caluniosa, poderia haver dificuldades em responsabilizar o respectivo sujeito activo.
Nesta conformidade, o conceito de poderes especiais será mais restrito e exigente do que em processo civil: no âmbito do processo criminal, o titular do direito deverá conferir expressamente ao respectivo mandatário poderes para em seu nome apresentar queixa contra terceiros que, na medida do possível, deverá individualizar, pela prática de um ou vários crimes.
2.3 - Pois bem. No caso em apreço, a procuração passada pela firma queixosa não contém aqueles poderes especiais; limita-se a conferir poderes gerais forenses e os especiais apenas para confessar, desistir e transigir em qualquer processo.
O processo crime ( por infracção de natureza particular ou semi-pública ) só poderá ser desencadeado por quem tem a respectiva legitimidade, e não será um mandatário com os restritos poderes que aquela procuração outorgou que ficará suficientemente habilitado a promover o procedimento criminal.
Do que se trata, pois, é de uma procuração com poderes insuficientes. Com efeito, tendo sido outorgada por quem tenha legitimidade para o fazer, não conferiu ao respectivo mandatário os poderes especiais exigidos por lei para este poder apresentar uma queixa crime válida e eficaz.
2.4 - Em processo civil, para os casos de falta de procuração, sua insuficiência ou irregularidade, o artigo 40 do Código de Processo Civil preceitua que, em qualquer altura, esses vícios poderão ser arguidos pela parte contrária e suscitados oficiosamente pelo tribunal, devendo o juiz marcar o prazo dentro do qual deve ser suprida a falta ou corrigido o vício e ratificado o processado; se findo o prazo a situação não tiver sido regularizada, fica sem efeito tudo o que tiver sido praticado pelo mandatário.
Através da ratificação, que pode acontecer em qualquer altura, dentro do prazo fixado ( e por isso mesmo depois do decurso do prazo de caducidade do direito de propôr determinada acção ), o titular do direito, nos casos de representação sem poderes, aceita ou confirma a queixa oportunamente apresentada, exteriorizando assim a sua vontade de prosseguir com o exercício da acção penal.
A ratificação é uma forma de legitimação superveniente, em que o acto ratificado passa a ser válido retroactivamente, desaparecendo o motivo da nulidade ( cf. artigo 268, n. 3 do Código Civil, que expressamente acentua que a ratificação tem eficácia retroactiva ).
Antes da ratificação, a queixa já existe, mas só depois daquela passa a adquirir eficácia plena, que tem de se considerar existente "ab initio", por o acto ratificativo produzir efeitos retroactivos; isto é, tudo se passa como se a queixa já fosse plenamente eficaz desde o momento da sua apresentação.
Seguindo a linha argumentativa desenvolvida no acórdão desta Relação de 11/07/90, que merece a nossa concordância, digo 11/07/90, recurso n. 24104, segunda secção, que merece a nossa concordância, se o juiz se aperceber de que uma queixa foi apresentada, dentro do prazo de caducidade, por quem não estava munido de poderes especiais para o efeito, deverá desencadear a fixação do prazo previsto no n. 2 do artigo 40 do Código de Processo Civil e aguardar a reacção do titular do direito: se este suprir a falta e ratificar o processado, então a queixa deverá ser considerada plenamente eficaz desde que foi apresentada, e assim é juridicamente correcta a afirmação de que existe queixa anterior ao transcurso do prazo de caducidade; de contrário, isto é, se a falta ficar por suprir e o processado não for ratificado, a queixa deixou de ter valor, ficando sem efeito, e, decorrido o prazo de caducidade, haverá que declarar a extinção do direito de queixa.
Estes princípios são aplicáveis em processo penal, "ex vi" do artigo 4 do Código de Processo Penal.
Com efeito, não regulamentando este diploma as questões resultantes da falta de procuração e a sua inexistência ou irregularidade, defronta-se-nos uma lacuna a integrar de acordo com a norma do n. 2 do artigo 40 do Código de Processo Civil, que se harmoniza com o processo penal.
2.5 - No caso "sub judice", a queixa foi apresentada antes de decorrido o prazo de caducidade, por mandatário sem poderes especiais.
Perante a insuficiência da procuração, competiria à autoridade judiciária desencadear o mecanismo previsto no n. 2 do artigo 40 do Código de Processo Civil, marcando-se prazo por o suprimento da falta e a ratificação do processado.
Não se tendo adoptado esse procedimento é prematuro concluir-se pela ilegitimidade do Ministério Público ou pela extinção do direito de queixa.
Impõe-se, pois, fixar o prazo dentro do qual o ofendido poderá vir suprir a falta e ratificar o processado.
3 - De harmonia com o exposto, acordam em negar provimento ao recurso, revogando-se, porém, o douto despacho recorrido, que deverá ser substituído por outro em que se dê cumprimento ao disposto no n. 2 do artigo 40 do Código de Processo Civil, devendo, em seguida, o Meritíssimo Juiz proceder em conformidade com a posição assumida pelo representante legal da sociedade ofendida.
Não é devida taxa de justiça.
Porto, 27 de Fevereiro de 1991
Vaz dos Santos
Hernâni Esteves
Ramiro Correia