Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
27468/15.8T8PRT-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ANABELA DIAS DA SILVA
Descritores: CONTRATO DE ARRENDAMENTO
RESOLUÇÃO DO CONTRATO
DESPEJO IMEDIATO
MEIOS DE DEFESA EM RELAÇÃO AO DESPEJO
Nº do Documento: RP2017031427468/15.8T8PRT-A.P1
Data do Acordão: 03/14/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO (LIVRO DE REGISTOS Nº 757, FLS. 196-202)
Área Temática: .
Sumário: I - Excepcionalmente, é legítimo, é um direito que assiste à ré, poder invocar contra o pedido de despejo imediato, outros meios de defesa para além da prova do pagamento ou do depósito das rendas vencidas na pendência da acção, sob pena de violação do disposto no art.º 20.º da C.R.Portuguesa.
II – Esses meios de defesa terão de ser respeitantes ou estarem directamente correlacionados com a obrigação de pagamento da renda, para poderem ter a virtualidade de impedir, modificar o extinguir tal obrigação durante a pendência da acção, (v.g. a mora do senhorio, a compensação, a excepção de incumprimento).
III - Não constitui meio de defesa legítimo e eficaz em relação ao direito potestativo da autora/senhoria de despejo imediato por falta de pagamento de rendas na pendência da acção, a alegação de que esta se encontra em situação de incumprimento quanto à obrigação de realização de obras de conservação e de reparação no locado.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Apelação
Processo n.º 27468/15.8T8PRT-A.P1
Comarca do Porto – Porto - Instância Central – 1.ª Secção Cível – J6
Recorrente – B…
Recorrida – Herança aberta por óbito de C…
Relatora – Anabela Dias da Silva
Adjuntas – Desemb. Ana Lucinda Cabral
Desemb. Maria do Carmo Domingues

Acordam no Tribunal da Relação do Porto (1.ªsecção cível)

I – A Herança aberta por óbito de C… intentou na Comarca do Porto – Porto - Instância Central – 1.ª Secção Cível a presente acção com processo comum contra C… pedindo que fosse decretada a resolução do contrato de arrendamento e ordenado o consequente despejo da ré, ou de quem quer que ocupe o arrendado, mais se condenando a ré no pagamento à autora de todas as rendas em dívida, além das que entretanto se vencerem, acrescidas de juros vencidos, no montante de €690,00, e vincendos, à taxa legal de 4%, contados dos vencimentos respectivos e até pagamento.
Para tanto alegou como fundamentos o não uso do locado por mais de um ano e o não pagamento de rendas, nos termos do art.º 1083,º n.ºs 1, 2 al. d) e 3 do C.Civil.
*
Pessoal e regularmente citada, a ré veio contestar pedindo a improcedência da acção e ainda a condenação da autora como litigante de má-fé.
Para tanto, impugnou a factualidade que lhe é imputada pela autora e deduziu pedido reconvencional pedindo que:
A) - se declare que não são devidas as rendas peticionadas pela autora, ou, assim não se entendendo, a sua redução a 1/3 mensal da renda convencionada, bem como as vincendas, até efectiva reparação dos defeitos do locado;
B) - que fosse a autora condenada a restituir à ré a quantia de €1.334,00, acrescida de juros vincendos à taxa legal, desde a notificação desta peça processual até efectiva restituição;
C) - que fosse a autora condenada a fazer as invocadas reparações do locado, a assegurar à ré o gozo do locado para a habitação e a executar as obras necessárias para impedir a entrada de águas e humidades no seu interior, provindas dos tectos ou das paredes, bem como, a reparar pavimentos, paredes, cozinha, casas de banho, quartos, tectos, hall de entrada e todo o locado de forma a repô-lo no estado que evidenciava à data do arrendamento;
D) - ainda que fosse a autora condenada a reparar ou substituir a caldeira por uma nova, num e noutro caso, de forma a assegurar que não há risco de explosão ou incêndio, a inexistência de barulhos e a realização da função a que se destina;
E) - que a autora fosse ainda condenada na sanção pecuniária compulsória de €150,00 por dia e de €30,00 por dia, desde a data da sentença que for proferida até ao seu efectivo cumprimento, relativamente ao peticionado sob a alínea C)e D) desta reconvenção, respectivamente;
F) - que a autora fosse condenada a pagar à ré a indemnização de €10.000,00, a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros vincendos desde a notificação desta reconvenção até efectivo pagamento;
G) - que fosse a autora condenada a pagar à ré a quantia necessária à sua instalação num hotel de quatro estrelas não inferior a €120,00 por dia, desde o início das obras no locado, ou instalação do estaleiro, até à sua conclusão e restituição do locado à ré em condições de boa habitabilidade e que assegure o respectivo gozo;
H) - finalmente que fosse a autora condenada a indemnizar a ré pelos danos causados no recheio, utensílios, móveis, equipamentos, electrodomésticos da ré no locado, bem como, no seu vestuário em consequência do alegado sob os art.ºs 81.º a 87.º, a liquidar em execução de sentença.
*
A autora replicou e impugnou os factos alegados pela ré, pediu a improcedência da reconvenção e a condenação da ré como litigante de má-fé.
Deduziu ainda incidente de intervenção provocada do condomínio do prédio sito na Rua …, n.º .., no Porto, representado pela respectiva administradora, “D…”, com sede no Porto, e deduziu pedido de despejo imediato da ré por falta de pagamento das rendas vencidas na pendência da acção, cfr. art.º 14.º n.ºs 3, 4 e 5 do NRAU.
*
A ré veio deduzir impugnação ao pedido de despejo imediato.
*
De seguida, foi proferida a seguinte decisão:
“Na réplica que apresentou veio a autora formular ainda pedido de despejo imediato por falta de pagamento das rendas vencidas na pendência da acção.
Cumprido o disposto no nº 4 do artigo 14º da Lei nº 6/2006, de 27 de Fevereiro, pela ré foi apresentado o articulado de fls. 117 e ss, no qual, em súmula, reconhece não ter procedido ao pagamento da renda contratada, mas defende não haver lugar ao incidente de despejo imediato, na medida em que, afirma, integra o núcleo do litígio a que os autos dão forma o incumprimento pela autora do dever de proporcionar o gozo da coisa locada, e, em consequência, o direito da arrendatária a recusar o pagamento da totalidade da renda acordada.
*
Salvo melhor opinião, não assiste razão à ré.
Os nºs 3 e 4 do artigo 14º da Lei nº 6/2006, de 27 de Fevereiro (vulgo, NRAU), não efectuam qualquer distinção quanto ao fundamento da acção de despejo (no caso recorde-se, a autora cumula 2 fundamentos de resolução do contrato: - falta de pagamento de rendas vencidas anteriormente à propositura da acção; e - incumprimento do dever de uso o locado pela ré).
Em qualquer hipótese, o arrendatário deve pagar a renda ou proceder ao seu depósito (artigos 17º e ss do NRAU).
Existindo litígio judicial quanto à própria obrigação de pagar a renda no âmbito de contrato de arrendamento válido e eficaz (caso dos autos – ou seja, não estamos perante hipótese em que se discute a qualidade de inquilino/senhorio, ou a validade/celebração de contrato de arredamento), o depósito da renda em instituição de crédito, efectuado pelo arrendatário na sequência da notificação feita para os efeitos previstos no nº 4 do artigo 14º do NRAU, deve desde logo considerar-se como impugnado, constituindo verdadeira caução do cumprimento do dever de pagamento da renda caso naufrague a tese defendida pelo arrendatário – cfr. neste sentido, o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 19 de Maio de 2014, disponível em www.dgsi.jtrp.pt/, e ainda os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 09 de Outubro de 2007 e de 15 de Dezembro de 2015, ambos disponíveis em www.dgsi.jstj.pt/.
*
Pelo exposto, e atento o disposto nos nºs 3 e 4 do artigo 14º do NRAU, decreto o despejo imediato da ré B… do prédio identificado no artigo 1º da petição inicial.
Notifique”.
*
Não se conformando com tal decisão, dela veio a recorrer de apelação, pedindo que seja revogada e substituída por outra que indefira o pedido de despejo imediato.
A apelante juntou aos autos as suas alegações que terminam com as seguintes e prolixas conclusões:
1) Pelas razões aduzidas nos pontos I e II das alegações, que aqui se dão por integralmente reproduzidas, na medida em que está sustentada e fundamentada numa interpretação do art.º 14.º, n.º 4, do NRAU, que viola o chamado principio da «proibição da indefesa» ínsito no direito no direito de acesso aos tribunais, constante do artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa, e, como tal, numa interpretação que, em concreto, toma inconstitucional aquela norma legal, a decisão ora recorrida, por maioria de razão, ao interpretar e aplicar aquela norma legal nos termos em que o fez, viola ela mesmo o principio da «proibição da indefesa» ínsito no direito no direito de acesso aos tribunais, constante do artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa, viola, por isso, esta disposição constitucional, o que constitui fundamento bastante para o presente recurso de apelação, art.º 639.º, n.º 2, al. a), do C.P.C.
Sem prescindir
2) Pelas razões aduzidas nos pontos III e IV das alegações, que aqui se dão por integralmente reproduzidas, estando em causa nos presentes autos a discussão da existência da obrigação, ou não, da recorrente pagar à recorrida as rendas indicadas por esta na acção para fundamentar o seu pedido de resolução do contrato de arrendamento em causa nos autos e o consequente despejo daquela, bem como a obrigação da recorrente de pagar à recorrida as rendas vencidas nesta acção, na medida em que a existência dessa obrigação tem que estar verificada e reconhecida para que possa subsistir uma situação de incumprimento da mesma por parte da recorrente, sendo esse incumprimento um pressuposto que tem de estar verificado para que se possa decretar o despejo imediato nos termos do disposto no art.º 14.º n.ºs 4 e 5, do NRAU, não restam dúvidas que, uma vez que a existência dessa obrigação da recorrente não está ainda verificada e reconhecida no caso concreto destes autos, não está verificado nem reconhecido o incumprimento da mesma por parte da recorrente, pelo que padece de fundamento legal o despejo imediato da recorrente decretado na decisão ora recorrida.
3) Assim, a decisão ora recorrida, pelas razões acima mencionadas, viola o disposto naquele art.º 14.º, n.ºs 4 e 5, do NRAU, o que constitui fundamento bastante para o presente recurso de apelação – art.º 639.º, n.º2, al. a), do C.P.C.
*
A autora/apelada juntou aos autos as suas contra-alegações onde pugna pela confirmação da decisão recorrida.

II – Com interesse para a decisão do presente recurso, está assente nos autos, documentalmente, por acordo das partes e confissão da ré, que:
1) Por contrato escrito de 25.07.2007, C… deu de arrendamento à ré, para habitação desta, as fracções autónomas “BH”, correspondente ao 5.º andar, “BH1”, correspondente a 2 lugares de garagem, e “BH2”, referente a um arrumo, de um prédio urbano, sito na Rua …, n.º .., freguesia …, concelho do Porto, inscrito na matriz predial urbana respectiva sob o artigo 4041, descrito na 2.ª Conservatória do Registo Predial do Porto sob o n.º 304, pelo prazo de um ano, com início em 1.08.2007, pela renda mensal de €700,00, a pagar no primeiro dia útil do mês anterior àquele a que dissesse respeito.
2) O montante da referida renda foi objecto do aumento legal em 2009, pelo que renda actualmente devida, (€719,60) e que foi arredondada voluntariamente pela ré, cifra-se em €720,00.
3) A ré foi citada para a presente acção em 12.02.2016.
4) Depois da citação da ré e até à data do requerimento do incidente de despejo imediato, venceram-se as rendas de Abril de 2016 (em 1.03.2016), de Maio de 2016 (em 1.04.2016) e de Junho de 2016 (em 1 de Maio de 2016).
5) A ré não pagou, nem depositou em tempo, qualquer das referidas rendas.

III – Como é sabido o objecto do recurso é definido pelas conclusões do recorrente (art.ºs 5.º, 635.º n.º3 e 639.º n.ºs 1 e 3, do C.P.Civil), para além do que é de conhecimento oficioso, e porque os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, ele é delimitado pelo conteúdo da decisão recorrida.
*
Ora, visto o teor das alegações da apelante são questões a apreciar no presente recurso:
1.ª – Da alegada inconstitucionalidade.
2.ª – Da alegada excepção de não cumprimento.
*
Resulta ainda dos autos que, por via da presente acção, a autora peticionou que fosse decretada a resolução do contrato de arrendamento em apreço nos autos e ordenado o consequente despejo da ré, ou de quem quer que ocupe o arrendado, e ainda que a ré fosse condenada no pagamento de todas as rendas em dívida, e das vincendas, acrescidas de juros vencidos, liquidados no montante de €690,00, e nos vincendos, à taxa legal, contados desde os vencimentos das respectivos rendas e até pagamento.
Fundamentou esses pedidos na falta de pagamento de rendas desde Dezembro de 2013, e no não uso de locado por mais de um ano.
*
A ré veio contestar, dizendo que pagou todas as rendas do locado, sendo que até pagou a mais a quantia de €1.333,44. Mais alegou que já à data do arrendamento, o locado permitia a entrada de águas e humidades nas paredes de algumas divisões, com estragos nos rodapés, soalhos, rebocos e pinturas, por falta de isolamento exterior do imóvel, tendo reclamado junto da senhoria a necessidade de realização de obras que até hoje não foram feitas. Mais alegou que alguns equipamentos, como canos, torneiras e válvulas não funcionam, deficiências que reclamou junto da senhoria para que esta mandasse reparar, o que não fez. Está, por isso, privada de usar a sala, a cozinha, a marquise e uma casa de banho, sendo que apenas pode utilizar o quarto de dormir e uma casa de banho.
As infiltrações têm-se vindo a agravar ao longo dos anos, e a ré tem reiteradamente comunicado tais factos à senhoria e solicitado que fossem feitas as necessárias obras, mas as mesmas não foram feitas, à excepção da realização de diligências a fim de detectar a origem de tais infiltrações. Também em consequência de tais infiltrações já foram danificados vários bens da ré e as respectivas humidades têm-lhe provocado alergias, pigarros na garganta e constipações, desgosto e tristeza.
Por tudo isto, a ré deduziu pedido reconvencional pedindo, além do mais, que se declare que não são devidas as rendas peticionadas pela autora, ou, assim não se entendendo, a sua redução a 1/3 mensal da renda convencionada, bem como, das vincendas até efectiva reparação dos defeitos do locado; a condenação da autora a fazer as invocadas reparações do locado, a assegurar-lhe o gozo do locado para a habitação e a executar as obras necessárias para impedir a entrada de águas e humidades no seu interior, provindas dos tectos ou das paredes, bem como, a reparar pavimentos, paredes, cozinha, casas de banho, quartos, tectos, hall de entrada e todo o locado de forma a repô-lo no estado que evidenciava à data do arrendamento.
*
A autora replicou e admitiu a existência de danos na sala do locado, provenientes de infiltrações na parede mestra exterior do edifício. Sendo que nessa divisão foram feitas, por conta do condomínio, como é do conhecimento da ré, diligências a fim de detectar a origem das infiltrações.
No mais reafirma o alegado na p. inicial.
E terminou, além do mais, pedindo a notificação da ré, ao abrigo e nos termos – do disposto no art.º 14.º nº4 do NRAU, para comprovar nos autos o pagamento das rendas vencidas na pendência da acção sob pena de despejo imediato.
*
A ré veio responder, dizendo que a autora está em incumprimento contratual não lhe assegurando o gozo e fruição de algumas divisões do locado, pelo que embora se não mostrem, pagas ou depositadas, as rendas vencidas na pendência da acção, a ré entende que não tem obrigação de fazer o pagamento dessas rendas, nem das demais peticionadas nos autos, questão, aliás que está em discussão, razão pela qual não é legalmente admissível o decretamento do despejo imediato peticionado.
*
Como se viu, a 1.ª instância não sufragou a defesa da ré e decretou o despejo imediato, ao abrigo do disposto nos n.ºs 3 e 4 do art.º14.º do NRAU.
*
A ré não se conformou com o assim decidido, daí o presente recurso.
1.ªquestão - Da alegada inconstitucionalidade.
Começa a ré/apelante por defender que a interpretação do preceituado nos n.ºs 3 e 4 do art.º 14.º do NRAU efectuada em 1.ª instância e constante da decisão recorrida é inconstitucional por violação do princípio do princípio da proibição da indefesa, ínsito no art.º 20.º da Constituição da Republica Portuguesa, como já foi decidido no acórdão n.º 673/2005, de 06.12.2005 do Tribunal Constitucional, e na decisão sumária n.º 101/2010, de 17.10.2010, proferida no Processo n.º 147/10, do mesmo Tribunal Constitucional.
*
Vejamos.
A decisão recorrida considerou, além do mais, que “ (…) os nºs 3 e 4 do artigo 14º da Lei nº 6/2006, de 27 de Fevereiro (vulgo, NRAU), não efectuam qualquer distinção quanto ao fundamento da acção de despejo (no caso recorde-se, a autora cumula 2 fundamentos de resolução do contrato: - falta de pagamento de rendas vencidas anteriormente à propositura da acção; e - incumprimento do dever de uso o locado pela ré).
Em qualquer hipótese, o arrendatário deve pagar a renda ou proceder ao seu depósito (artigos 17º e ss do NRAU).
Existindo litígio judicial quanto à própria obrigação de pagar a renda no âmbito de contrato de arrendamento válido e eficaz (caso dos autos – ou seja, não estamos perante hipótese em que se discute a qualidade de inquilino/senhorio, ou a validade/celebração de contrato de arrendamento), o depósito da renda em instituição de crédito, efectuado pelo arrendatário na sequência da notificação feita para os efeitos previstos no nº 4 do artigo 14º do NRAU, deve desde logo considerar-se como impugnado, constituindo verdadeira caução do cumprimento do dever de pagamento da renda caso naufrague a tese defendida pelo arrendatário (…)”.
*
Como é sabido, a Lei n.º 6/2006, de 27.02, aprovou o NRAU (Novo Regime do Arrendamento Urbano) e aí se estabeleceu para as acções de despejo, um incidente de despejo imediato, com fundamento na falta de pagamento de rendas, vencidas na pendência da acção, cfr. art.º 14.º n.ºs 4 e 5.
Este incidente encontrava-se anteriormente previsto no RAU (Regime de Arrendamento Urbano), que foi revogado pelo art.º 60.º da supra referida Lei n.º 6/2006. Aí esse incidente encontrava-se previsto no art.º 58.º do RAU, em termos análogos ao regime actual.
Preceituam os n.ºs 3, 4 e 5 do art.º 14.º do NRAU que:
“3 - Na pendência da acção de despejo, as rendas que se forem vencendo devem ser pagas ou depositadas, nos termos gerais.
4 - Se as rendas, encargos ou despesas, vencidos por um período igual ou superior a dois meses, não forem pagos ou depositados, o arrendatário é notificado para, em 10 dias, proceder ao seu pagamento ou depósito e ainda da importância da indemnização devida, juntando prova aos autos, sendo, no entanto, condenado nas custas do incidente e nas despesas de levantamento do depósito, que são contadas a final.
5 - Em caso de incumprimento pelo arrendatário do disposto no número anterior, o senhorio pode requerer o despejo imediato, aplicando-se, em caso de deferimento do requerimento, com as necessárias adaptações, o disposto no n.º 7 do artigo 15.º e nos artigos 15.º-J, 15.º-L e 15.º-M a 15.º-O”.
Ora, o despejo imediato previsto no n.º 5, do art.º 14.º do NRAU tem como razão de ser o evitar-se situações em que o arrendatário, demandado em juízo pelo senhorio, poderia continuar a gozar da coisa arrendada sem pagar a renda estipulada, podendo tal situação arrastar-se por vários anos, desde a instauração da acção até à execução da sentença transitada em julgado, após um ou mais recursos. E assim a forma de pôr termo a tais actuações abusivas dos arrendatários e evitar uma disseminação de tais comportamentos, consistiu precisamente na possibilidade de ser obtido o despejo imediato por falta de pagamento das rendas vencidas durante a pendência do processo. Sendo este incidente configurado como uma nova causa, uma acção enxertada na acção principal, como uma outra causa de pedir, diversa da causa de pedir invocada naquela acção.
Sobre o antecessor incidente de despejo imediato previsto no art.º 58.º do RAU pronunciou-se na realidade o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 673/2005, onde se decidiu:
“Julgar inconstitucional, por violação do princípio da proibição da indefesa, ínsito no artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa, a norma do artigo 58.º do Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 321-B/90 de 15 de Outubro, na interpretação segundo a qual mesmo que na acção de despejo persista controvérsia, quer quanto à identidade do arrendatário quer quanto à existência de acordo, diverso do arrendamento, que legitimaria a ocupação do local pela interveniente processual, se for requerido pelo autor o despejo imediato com fundamento em falta de pagamento das rendas vencidas na pendência da acção, o início meio de defesa do detentor do local é a apresentação de prova, até ao termo do prazo para a resposta, de que procedeu ao pagamento ou depósito das rendas em mora e da importância da indemnização devida”.
Na fundamentação de tal acórdão considerou-se que a limitação dos meios de defesa do demandado à prova do pagamento ou depósito da renda surgia ostensivamente, como uma restrição constitucionalmente intolerável do direito de defesa no incidente de despejo imediato (por falta de pagamento de rendas na pendência de acção de despejo), dizendo-se para tanto que: “Tal meio de defesa é manifestamente desajustado em todos os casos em que justamente se questiona o próprio dever de pagamento de determinada renda, seja por que fundamento for (inexistência de contrato de arrendamento válido, não serem autor e/ou réu os verdadeiros locador e/ou locatário, dissídio quanto ao montante da renda ou da sua imediata exigibilidade, invocação de diverso título para justificar a ocupação do local). No presente caso, em que, para além da controvérsia sobre a qualidade de locatária da primitiva ré, a interveniente (ora recorrente) sustenta o seu direito de ocupação do local em contrato-promessa de compra e venda que teria celebrado com o autor, com consequente inexistência do dever de pagamento de rendas, sendo as entregas de valor feitas imputadas no pagamento do preço de compra, questão que se encontrava ainda pendente quando foram proferidas as decisões das instâncias ora em causa, é óbvia a desadequação e inefectividade do único meio de defesa que foi reconhecido à recorrente: a prova do pagamento ou depósito das rendas pretensamente em falta, acompanhada da indemnização devida”.
Todavia é manifesto que as hipóteses elencadas no referido acórdão do Tribunal Constitucional não se aplicam ao caso em apreço nos autos. Pois que nos autos, não se discute a existência do contrato de arrendamento, pois ele existe e nos termos da lei - contrato de arrendamento escrito, cfr. art.º 1069.º do C.Civil; a ré não invoca a “inexistência de um contrato de arrendamento válido”, acompanhada de recusa de entrega do local ocupado, ou de “não serem autor e/ou réu os verdadeiros locador e/ou locatário”, “ou algum dissídio quanto ao montante da renda ou da sua imediata exigibilidade”, ou, ainda, não faz “invocação de diverso título para justificar a ocupação do local”.
O que nos fica, assim, da citada jurisprudência constitucional é que nas hipóteses aí elencadas não se pode entender, sob pena de inconstitucionalidade por violação do disposto no art.º 20.º da C.R.Portuguesa, que a única defesa admissível é a de o réu provar o pagamento ou o depósito das rendas vencidas na pendência da acção, devendo, nesses casos, ser tida em conta a defesa apresentada pelo réu no requerimento em que toma posição quanto ao pedido de despejo imediato, que se mostre necessária e relevante para a decisão final do incidente.
*
Pelo que entendemos que, segundo o que preceitua o art.º 14.º n.º 4 do NRAU, o incumprimento da obrigação de pagamento de rendas vencidas na pendência da acção de despejo por período superior a 3 meses confere ao senhorio o direito de obter a entrega imediata do prédio arrendado, qualquer que seja o fundamento invocada na acção, direito esse, que, salvo circunstâncias excepcionais, apenas pode ser paralisado com a demonstração do pagamento ou do depósito das rendas em mora e da indemnização, cfr. Acs do STJ de 18.09.2007, de 5.12.2006, e de 22.06.2004, da Rel. de Lisboa de 2.12.2009, todos in www.dgsi.pt.
*
E no caso como o dos autos, em que a ré, na oposição que deduziu ao pedido de despejo imediato, se defendeu alegando, em suma, a excepção material do não cumprimento do contrato, regulada nos art.ºs 428.º a 431.º do C.Civil, em face do invocado incumprimento contratual da autora em lhe assegurar o gozo e fruição do lacado para o fim a que se destina, como já havia defendido em sede de contestação?
Também aqui, sem olvidar que a lei com o incidente de despejo imediato procura combater as situações de interrupção do pagamento das rendas na pendência de acções de despejo, conseguindo o arrendatário manter-se no prédio durante a tramitação da acção de despejo sem o pagamento de qualquer contraprestação, usufruindo desse modo de bens alheios sem nada despenderem por esse facto, julgamos que, embora excepcionalmente, é legítimo, é um direito que assiste à ré, poder invocar contra o pedido de despejo imediato, outros meios de defesa para além da prova do pagamento ou do depósito das rendas vencidas na pendência da acção, sob pena de violação do disposto no art.º 20.º da C.R.Portuguesa - Acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva -, concretamente, meios de defesa respeitantes ou directamente correlacionados com a obrigação de pagamento da renda, com a virtualidade de impedir, modificar o extinguir tal obrigação durante a pendência da acção, (v.g. a mora do senhorio, a compensação, a excepção de incumprimento), oferecendo de imediato as respectivas provas, sendo o incidente de imediato julgado, se tal for o aconselhável, de acordo com as provas produzidas.
Donde não podemos sufragar o entendimento subjacente à decisão recorrida, ou seja, que o único meio de defesa admissível ao pedido de despejo imediato é a prova do pagamento ou do depósito das rendas vencidas na pendência da causa.
Procedem, assim, as respectivas, conclusões da apelante.
*
2.ª – Da alegada excepção de não cumprimento.
Atento o que acima ficou consignado e porque julgamos ser de admitir como meio de defesa da ré ao pedido de despejo imediato do locado, os factos já por ela alegados em sede de contestação, respeitantes à obrigação de pagamento da renda. “In casu” e como se viu, arroga-se a ré ao direito de recusar o pagamento da renda devida pelo uso e fruição do locado, alegadamente por a autora/senhoria estar em incumprimento contratual perante ele, no que respeita à obrigação de proporcionar ao inquilino o gozo e fruição do locado para o fim a que se destina.
Vejamos.
Como se viu, essencialmente, a admissibilidade do incidente de despejo imediato por falta de pagamento de rendas vencidas na pendência da acção, visa tutelar os interesses dos senhorios susceptíveis de serem afectados pela morosidade na apreciação da questão principal, tendo em conta a natural ou a anormal morosidade da resposta judiciária e as oportunidades ilícitas que muitos arrendatários retiram dessa situação. Pelo que julgamos que se não pode confundir o objecto da acção com a questão incidental do despejo imediato, todavia o recurso a este incidente pelo senhorio acarreta para o inquilino um claro comprometimento quanto à seriedade dos meios de oposição invocados na acção e evita o abuso de meios de defesa com intuitos dilatórios.
In casu” sustenta a ré/apelante que lhe assiste a faculdade de recusar a respectiva contraprestação, ou seja, o pagamento da renda devida pelo gozo da fracção locada, nos termos contratados, cfr. art.º 428.º n.º 1 do C.Civil porque a autora/senhoria se encontra em violação da obrigação de assegurar o gozo da fracção locada para o fim a que o seu arrendamento se destina, tal como já havia invocado em sede de contestação ao pedido de resolução.
Vendo a referida contestação temos que a ré, aliás de forma manifestamente contraditória, primeiro começa por afirmar que pagou todas as rendas devidas e depois diz que já à data do arrendamento, o locado permitia a entrada de águas e humidades nas paredes de algumas divisões, o que causou estragos nos rodapés, soalhos, rebocos e pinturas, por falta de isolamento exterior do imóvel. Tal situação veio a agravar-se ao longo dos anos, sendo que ela sempre foi reclamando da senhoria a realização das necessárias obras, sem êxito. Pelo que face à situação do locado, auto privou-se de usar a sala, a cozinha, a marquise e uma casa de banho, apenas utilizando o quarto de dormir e uma casa de banho. Pelo que em sede reconvencional pediu que se declarasse que não lhe eram devidas rendas, ou quanto muito, que essa renda fosse reduzida a 1/3, e a condenação da autora a fazer as reparações/obras necessárias no locado, por forma a assegurar-lhe o gozo do mesmo para habitação, repondo-o no estado que estava à data do arrendamento.
Ora, de acordo com a alegação da ré/arrendatária, a recusa de pagamento de rendas decorre da inércia da senhoria no que concerne à realização de obras no prédio arrendado por forma a que o possa usar e fruir, alegadamente, na totalidade e em condições de salubridade e conforto.
*
Como é sabido que a reciprocidade e interdependência das obrigações dos contraentes, que se verifica nos contratos bilaterais ou sinalagmáticos, tem como consequência relevante a “excepção de não cumprimento do contrato” regulada nos art.ºs 428.º a 431.º do C.Civil. Segundo Almeida Costa, in “Direito das Obrigações”, pág. 309, analisa-se a “exceptio” na faculdade atribuída a qualquer das partes num contrato bilateral, em que não haja prazos diferentes para a realização das prestações, de recusar a prestação a que se acha adstrita, enquanto a contraparte não efectuar a que lhe compete ou não oferecer o seu cumprimento simultâneo, cfr. art.º 428.º n.º 1 do C.Civil.
O contrato de arrendamento é um contrato sinalagmático, sendo certo que tal característica não envolve a generalidade dos direitos e das obrigações, sendo necessária estabelecer distinção entre uns e outras.
Vendo o que preceitua o art.º 1022.º do C.Civil, podemos concluir que a sinalagmaticidade de tal contrato se verifica entre a obrigação do senhorio de proporcionar ao arrendatário o gozo temporário do imóvel e a obrigação do arrendatário de pagar a renda acordada. Assim, no contrato de arrendamento, o pagamento da renda é uma das obrigações do arrendatário, cfr. art.º 1038.º al. a) do C.Civil, e enquanto o senhorio não proceder à entrega do prédio, o arrendatário não está obrigado a pagar a renda, podendo invocar, segundo sustenta Aragão Seia, in “Arrendamento Urbano”, pág. 355, a “exceptio”", de harmonia com o disposto no art.º 428.º n.º 1 do C.Civil.

Todavia, já não vislumbramos semelhante característica (sinalagmaticidade) entre o pagamento de rendas e a obrigação de realização de obras no locado a cargo do senhorio, obrigação de natureza complementar, submetida a condicionalismo diversificado que varia em função do teor do contrato, da sua natureza ou de outras circunstâncias que emergem de normas dispersas, designadamente do art.º 1036.º do C.Civil.
*
In casu”, é para nós óbvio, a ré/apelante confunde o conteúdo da obrigação que manifestamente impende sobre a senhoria de lhe proporcionar o gozo temporário do locado para o fim a que se destina, com o conteúdo de uma outra obrigação do senhorio, qual seja, a de realização de obras de reparação ou de conservação do locado, a fim de proporcionar tal gozo e fruição em termos salubres e de conforto.
Atento o alegado pela ré, é para nós manifesto que a autora/senhoria por forma alguma está a impedir ou limitar, total ou parcialmente, o gozo e fruição do locado por parte da ré, que está de posse de todo ele, podendo usá-lo e frui-lo como sua habitação pela forma que o entender fazer. Nenhum facto impeditivo ou diminutivo desse gozo e fruição é imputado à autora. O que a ré alega é que ela própria e, de motu próprio, se auto limitou ao gozo de uma parte do locado, alegadamente por razões de conforto e de salubridade, todavia “sibi imputet”, sendo certo ainda que é a própria ré quem alega que as invocadas infiltrações de água já existem desde a data do arrendamento e provêm de mau isolamento das paredes exteriores do edifício, facto que não pode ser imputado a qualquer acção ou omissão por parte da autora/senhoria no que respeita ao cumprimento da obrigação de proporcionar à ré o gozo temporário de tal locado.
Julgamos que não é legítimo à ré/apelante tentar evitar os necessários efeitos da falta de pagamento das rendas vencidas na pendência da acção com a mera invocação de tais factos, aliás, já invocados em sede de contestação e fundamentadores da sua reconvenção. Ou seja, não constitui meio de defesa legítimo e eficaz em relação ao direito potestativo da autora/senhoria de despejo imediato por falta de pagamento de rendas na pendência da acção, a alegação de que esta se encontra em situação de incumprimento quanto à obrigação de realização de obras de conservação e de reparação no locado.
Destarte e sem necessidade de outros considerandos, improcedem as derradeiras conclusões da apelante, confirmando-se o despejo imediato do locado por falta de pagamento das rendas devidas na pendência da acção.

Sumário – I - Excepcionalmente, é legítimo, é um direito que assiste à ré, poder invocar contra o pedido de despejo imediato, outros meios de defesa para além da prova do pagamento ou do depósito das rendas vencidas na pendência da acção, sob pena de violação do disposto no art.º 20.º da C.R.Portuguesa.
II – Esses meios de defesa terão de ser respeitantes ou estarem directamente correlacionados com a obrigação de pagamento da renda, para poderem ter a virtualidade de impedir, modificar o extinguir tal obrigação durante a pendência da acção, (v.g. a mora do senhorio, a compensação, a excepção de incumprimento).
III - Não constitui meio de defesa legítimo e eficaz em relação ao direito potestativo da autora/senhoria de despejo imediato por falta de pagamento de rendas na pendência da acção, a alegação de que esta se encontra em situação de incumprimento quanto à obrigação de realização de obras de conservação e de reparação no locado.

IV – Pelo exposto acordam os Juízes desta secção cível em julgar a presente apelação improcedente e em confirmar a decisão recorrida.
Custas pela apelante.

Porto, 2017.03.14
Anabela Dias da Silva
Ana Lucinda Cabral
Maria do Carmo Domingues