Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRP000 | ||
Relator: | HENRIQUE ARAÚJO | ||
Descritores: | CHEQUE VIOLAÇÃO DO DEVER DE DILIGÊNCIA RESPONSABILIDADE CIVIL DO BANCO SACADO | ||
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Nº do Documento: | RP201404085599/12.6TBVNG.P1 | ||
Data do Acordão: | 04/08/2014 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO. | ||
Decisão: | REVOGADA EM PARTE. | ||
Área Temática: | . | ||
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Sumário: | O banco sacado deve estar atento, quer o cheque seja passado à ordem seja ao portador, a todas as particularidades susceptíveis de o alertar de qualquer anomalia e exigirá, se for preciso, as justificações oportunas do sacador procedendo, em todos os casos, à identificação do apresentador. | ||
Reclamações: | |||
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Decisão Texto Integral: | PROC. N.º 5599/12.6TBVNG.P1 REL. N.º 905 Do 6º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Vila Nova de Gaia. Relator: Henrique Araújo Adjuntos: Fernando Samões Vieira e Cunha * ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO: I. RELATÓRIO “B......., Lda.”, com sede na Zona Industrial …., Apartado n.º …, …, Vila Nova de Gaia, instaurou acção declarativa, com processo sumário, contra “C......., S.A.”, com sede na Av. …, n.º …, Lisboa e “Banco D…., S.A.”, com sede na Rua …., n.º …, Porto, pedindo a condenação solidária destas Rés no pagamento da quantia de 9.851,34 €, acrescida de juros de mora contados à taxa legal para dívidas comerciais, desde a data da citação até ao seu efectivo e integral pagamento. Para tanto, alega, em síntese, o seguinte: - É titular de uma conta no D.......; - Emitiu um cheque sobre essa conta a favor da “E......., S.A.” no valor de 9.065,50 €, cruzado, para pagar parte de uma factura relativa a fornecimentos realizados por esta empresa; - Enviou esse cheque pelo correio; - A carta não chegou à sua destinatária, mas a conta da Autora foi debitada do valor titulado pelo cheque; - Com efeito, alguém se apoderou desse cheque, colocou-lhe um carimbo dizendo “E....... a Gerência, S.A.” e apôs-lhe uma assinatura desconhecida, depositando esse cheque em conta bancária domiciliada na C.......; - O respectivo valor foi descontado da sua conta bancária e teve de pagar o valor do cheque à E…., não obtendo reembolso desse valor. O Réu D....... apresentou contestação dizendo que: - O cheque estava cruzado e à ordem, competindo à C....... a conferência da existência, validade e regularidade do endosso; - A C....... ao aceitar esse cheque para crédito em conta de cliente seu, gerou-lhe a convicção de que o endosso estava regular e, face ao valor do cheque, este não circulou para o banco sacado, ficando retido pelo banco sacador, razão pela qual efectuou o pagamento, sem poder aferir da regularidade do endosso. Por sua vez, a C....... apresentou contestação invocando a prescrição do direito invocado pela Autora e, impugnando parcialmente a factualidade alegada por esta, ainda alegou que, ao enviar um cheque de valor elevado, à ordem, a Autora colaborou para a produção do dano que sofreu, sendo-lhe exigível que enviasse o cheque pelo seguro do correio, ou por correio registado e que lhe inscrevesse a cláusula “não à ordem”; A Autora apresentou resposta, pugnando pela improcedência da excepção de prescrição e mantendo o alegado na petição inicial. Referiu ainda que a Ré C....... litiga de má fé. Foi realizada audiência preliminar no âmbito da qual foi proferido despacho saneador, que julgou improcedente a excepção de prescrição. Seleccionaram-se os factos tidos por relevantes, distribuídos pelos factos assentes e pela base instrutória. Realizou-se audiência de discussão e julgamento, tendo-se respondido à matéria inscrita na base instrutória pela forma e com a fundamentação que consta de fls. 134 a 136, sem que surgisse qualquer reclamação. Por fim, sentenciou-se a causa nos termos que seguem: “Face ao exposto julgo a presente acção parcialmente procedente por provada e, em consequência: 1 – Condeno a Ré C......., SA, a pagar à Autora a quantia de € 6345,85, acrescida de juros de mora à taxa legal de 4% ao ano, desde a citação, até efectivo e integral pagamento. 2 – Absolvo o D....... do pedido que contra o mesmo foi formulado.” Desta decisão recorreram a Ré “C......., S.A.” e, subordinadamente, a Autora. Os recursos foram admitidos como de apelação, com efeito devolutivo. Nas suas alegações, a C....... conclui da forma que segue: 1) Qualquer entidade emitente de cheque colocada na real posição da autora, pretendendo efectuar por emissão de cheque tão elevado pagamento, jamais arriscaria enviá-lo por correio simples e coma cláusula à ordem permitindo o endosso, sendo-lhe exigível que, ou enviasse o cheque por seguro do correio, ou mesmo por correio registado ou, se por correio simples, inscrevesse no cheque a cláusula não à ordem 2) Esta cláusula proibiria o endosso – art. 14 da LUC- e como tal o cheque porque, além disso, estava cruzado, só poderia ter sido depositado numa conta da beneficiária Total (art.s 37 e 38 da mesma LUC) ! 3) Acentuando o grau de censura à conduta da Autora, à data, Março de 2009, este tipo de fraude desvio de cheques enviados por correio simples e falsificação de endosso era bem conhecido da generalidade dos cidadãos, por serem frequentes as notícias sobre o mesmo nos diversos meios de comunicação social 4) Quem falsificou o carimbo da beneficiária imputando um gerente a uma sociedade anónima poderia, com igual facilidade fabricar um carimbo com os dizeres E......., SA, A Administração ou E....... SA Os Administradores 5) E num tal circunstancialismo, a C....... jamais poderia ser responsabilizada, porquanto a aparência formal do endosso era totalmente regular, o banco não era obrigado a conhecer e a identificar a assinatura que constava a seguir ao carimbo e a aposição desse carimbo seguido de uma assinatura formalmente imputável ao representante da beneficiária traduzia um endosso em branco (art. 16 da LUC) 6) Na perspectiva do banco e uma vez que a designação da beneficiária constante do carimbo E....... estava correcta não deixando de se censurar a não detecção da irregularidade, esse grau de censura exibe-se como algo mitigado: provavelmente o funcionário que recepcionou o cheque numa leitura apressada depois de confirmar as primeiras palavras E....... bastou-se com isso não lendo ou não prestando atenção ao pormenor da gerência em vez de administração quiçá até pela anormalidade desse erro! 7) Last but not the least, a circunstância de se tratar de um cheque cruzado que só poderia ser, como foi, pago por depósito numa conta de cliente do banco – art. 38 da LUC, n.º 1 – serve ainda para atenuar esse tom de censura ao funcionário da C....... que aceitou o cheque, quando comparada com igual actuação relativa a um cheque cujo portador pretendia levantar de imediato em dinheiro vivo! 8) Assim, a contribuição da Autora para a verificação do dano é largamente superior aos 30% adoptados na douta decisão recorrida, justificando-se, ao invés, que a indemnização seja reduzida em 70%! 9) Decidindo de modo diferente o tribunal a quo violou o disposto no art. 570 CCivil No recurso subordinado, a Autora finalizou as suas alegações dizendo: a) A sentença recorrida depois de justificar as razões porque condena o Banco Réu a pagar os prejuízos sofridos pela Autora, acabou por decidir que a Autora concorreu com 30% da culpa para a produção dos danos que sofreu. b) As alterações do nome do beneficiário do cheque de “E......., S.A.” para o endosso com o nome de “E....... A GERÊNCIA, SA” eram notórias – o nome do endossante era diferente do beneficiário. c) O endosso só pode ser feito pelo legítimo possuidor do cheque, isto é pelo seu originário portador, pelo seu beneficiário, ou por aquele que justificar o seu direito por uma série ininterrupta de endossos, mesmo que o último seja em branco. d) A regularidade formal do primeiro endosso tem de se certificar pelo teor literal do cheque que o nome da pessoa a quem deve ser pago o cheque tem de coincidir com o que se pode ler da assinatura do endossante. e) Bastaria o mínimo de empenho e zelo no exercício das suas funções, para o funcionário do Banco Réu verificar a irregularidade grosseira no nome do endossante. f) Pela simples observação do cheque poderia deduzir-se que o endosso teria sido falsificado. g) De nada disto se deu conta o funcionário do Banco não obstante ser reconhecidamente aceite que os funcionários bancários têm a obrigação de não aceitar senão cheques de uma perfeita regularidade aparente, correctamente redigidos e que não ofereçam qualquer traço ou emenda, viciação, etc. (vide Ac. STJ de 14-4-1999, in site da dgsi na net.). h) Esses deveres são exigidos pelo Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, nos artigos 73º e 74º, donde resulta a obrigação de agir com zelo e empenho por parte do banco e um apertado controlo de vigilância e preservação dos interesses dos clientes, que no caso foi perfeitamente relegado. i) O cheque foi enviado, já “sacado”, já assinado, completamente preenchido. j) O depósito do cheque em conta diversa da beneficiária foi indevido – a falsificação do endosso era óbvia. k) O banco recorrido alegou mas não provou a culpa da Apelante. l) A sentença recorrida acabou por valorizar o facto de a recorrente não ter aposto no cheque que emitiu a cláusula “não à ordem”. m) O que, no entendimento do tribunal “ad quo”, poderia impedir o pagamento, já que evitaria o endosso n) Em caso idêntico o TRP – Ac. de 21/02/2011 – desatendeu tal pretensão. o) E o mesmo sucedeu com o TRG – Ac. de 8-6-2010. p) A impossibilidade do endosso não evita a apropriação de um cheque por terceiro, a sua viciação e a obtenção do dinheiro que titula. q) Basta falsificar o nome do beneficiário e contar com a falta de zelo e diligência de um funcionário bancário. r) Nem a aposição da cláusula “não à ordem”, nem o envio do cheque por correio registado, pelo sacador, podiam ter evitado, no presente caso que o cheque acabasse por cair em poder de terceiro falsário. s) A sentença recorrida ao decidir que a recorrente concorreu com 30% para a produção dos danos, avaliou incorrectamente a diligência das partes na produção do dano. t) A recorrente foi prudente na emissão do cheque, cruzando-o para que o mesmo só pudesse ser levantado pela beneficiária ou por outrem a quem esta o cedesse. u) E só não podia antever que a carta se extraviasse no giro postal; que alguém fosse capaz de interceptar e manipular o cheque, e que o Banco, em face da notória falsificação o levasse a depósito em conta diversa da beneficiária contra todas as regras de boa prudência. v) Não existe culpa da Autora lesada. w) O funcionário do Banco Réu não verificou a correspondência entre o nome do beneficiário do cheque e a assinatura do endossante no primeiro endosso, depositando em conta diversa da beneficiária um cheque com um endosso falso e cuja simples aparência global exterior não dava a impressão de ser verdadeiro. x) A produção do dano é da inteira e exclusiva responsabilidade do Banco Réu a quem deve ser imputado por inteiro o prejuízo causado à Autora sem o concurso da actuação por acção ou omissão desta. y) Foi a falta de diligência, zelo e competência técnica do funcionário do banco Réu que atendeu o portador ilegítimo, que lhe deu causa, sem o concurso da actuação por acção ou omissão do sacador, ora Autora z) A sentença recorrida violou o disposto nos artigos 483; 562, 566, 570, 572, do C. Civil, razão pela qual deve ser revogada na parte em que atribui à recorrente 30% da culpa na produção dos danos por si sofridos, condenando-se pelos mesmos, com culpa exclusiva, o Banco Réu. aa) Na sentença recorrida foi feita uma errada interpretação e aplicação dos mencionados preceitos, que deviam ter sido interpretadas e aplicadas no sentido de que, por não haver culpa da A. lesada, deveria ser considerada a R. responsável exclusiva pelo dano. * Sendo o objecto dos recursos balizado pelas conclusões das recorrentes, o que terá de apurar-se é se a responsabilidade da Ré C....... pelo dano causado à Autora deve ser reduzida a 30% ou se deve, pelo contrário, ser total. * II. FUNDAMENTAÇÃO OS FACTOS Os factos que a 1ª instância considerou provados foram os seguintes: 1. A Autora é titular de uma conta de depósitos à ordem com o nº 18174600001, domiciliada na agência do Réu Banco D......., SA em Canelas, Vila Nova de Gaia - (Alínea A) da Matéria de Facto Assente). 2. O cheque n.º 9257646636 da conta referida em 1. foi cruzado por meio de duas linhas paralelas traçadas na respectiva face - (Alínea B) da Matéria de Facto Assente). 3. A conta de depósitos à ordem da Autora foi debitada pelo valor desse cheque - (Alínea C) da Matéria de Facto Assente). 4. O que fez com que a Autora se dirigisse ao Réu D....... para solicitar esclarecimentos a respeito da situação - (Alínea D) da Matéria de Facto Assente). 5. Em resposta, datada de 13 de Março de 2009, a segunda Ré comprometeu-se a efectuar diligências junto da primeira Ré em ordem a apurar o sucedido e voltar ao contacto da Autora - (Alínea E) da Matéria de Facto Assente) 6. O que veio a suceder em 9 de Abril de 2009, informando que o cheque havia sido depositado na ora Ré C....... e que não seria possível a recuperação da quantia junto do depositante porquanto o mesmo apresentava endosso regular - (Alínea F) da Matéria de Facto Assente). 7. Além dos dois carimbos com dizeres da Ré C....... que lhe foram apostos também consta do verso do cheque, de forma expressa, a indicação de que o valor foi recebido para crédito conta do beneficiário da C....... -(Alínea G) da Matéria de Facto Assente) 8. Significando isso dizer que, aparentemente, e achando-se, como se achava a conta do banco sacado aprovisionada, o depósito terá sido materializado na conta n.º 2066.085470.400, da C......., agência de Esmoriz, sem que o Réu Banco D....... tivesse fisicamente conhecimento e interferência na operação - (Alínea H) da Matéria de Facto Assente) 9. No processo nº 3660/09.1TAVNG do 1º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Vila Nova de Gaia foi proferida sentença, em 22 de Junho de 2011, que absolveu a arguida F....... da prática dos crimes de furto, falsificação de documento e burla, de que vinha acusada e julgou improcedente o pedido de indemnização civil que a aqui Autora deduziu contra essa arguida, conforme consta do documento junto a fls. 19 a 29 que aqui se dá por integralmente reproduzido - (Alínea I) da Matéria de Facto Assente). 10. A Autora enviou o cheque à E…., SA através de correio simples - (Alínea J) da Matéria de Facto Assente). 11. A Autora emitiu sobre a conta referida em 1., nominalmente, à ordem da sociedade “E......., SA”, em 18.08.2008, o cheque n.º 9257646636, no valor de 9.065,50 €, conforme consta do documento junto a fls. 16, que aqui se dá por integralmente reproduzido - (Resposta ao quesito 1º) 12. Destinando-se ao pagamento de parte de uma factura relativa a fornecimentos por aquela empresa efectuados - (Resposta ao quesito 2º) 13. Esse cheque foi enviado à E......., SA pelo correio, em carta endereçada para a sua sede, como era prática habitual - (Resposta ao quesito 3º) 14. Por circunstâncias que, à data, a Autora desconhecia em absoluto, a carta e o cheque não chegaram à sua destinatária - (Resposta ao quesito 4º) 15. Veio-se a apurar que por forma não concretamente esclarecida, alguém cuja identidade não se apurou, se apoderou do referido cheque, tendo-lhe colocado no verso um carimbo com os dizeres “E....... a Gerência, SA” - (Resposta ao quesito 5º) 16. Sob o qual foi simulada uma assinatura irreconhecível na falsa qualidade de gerente da beneficiária do cheque, em ordem a fazer crer que o mesmo se encontrava regularmente endossado - (Resposta ao quesito 6º) 17. Sendo que tal carimbo nunca pertenceu à empresa “Total” - (Resposta ao quesito 7º) 18. E que nunca essa empresa tinha usado chancela com estes dizeres - (Resposta ao quesito 8º) 19. A sociedade E......., SA negoceia em petróleos e tem grande dimensão - (Resposta ao quesito 9º) 20. O referido cheque foi depositado e creditado na conta bancária domiciliada sob o n.º 2066.085470.400, na C......., agência de Esmoriz, em 18.08.2008, da qual consta como única titular F......., e única pessoa com poderes para a movimentar - (Resposta ao quesito 10º) 21. A Autora teve que pagar o valor do cheque à sociedade E....... - (Resposta ao quesito 13º) 22. E não logrou obter o reembolso, no todo ou em parte, do valor do cheque - (Resposta ao quesito 14º) 23. Revelando-se infrutíferas todas as suas tentativas junto da Ré C....... em ordem a obter a reposição do valor por si despendido em duplicado e o consequente ressarcimento dos demais prejuízos que teve de suportar - (Resposta ao quesito 15º) 24. Pretextando essa Ré com o facto de, não obstante o cheque ter sido depositado numa das suas agências, dever ser o Réu D....... a pagá-lo por ser o banco sacado - (Resposta ao quesito 16º) 25. Dado o seu valor o cheque não circulou para o Réu D......., ficando retido na Ré C....... - (Resposta ao quesito 17º) 26. Não tendo o Réu D....... possibilidade de conferir o respectivo endosso (Resposta ao quesito 18º) 27. Por essa razão, após a aceitação do cheque pela Ré C....... e da aposição no cheque da expressão “REC CRE CNT BENEF BA C.......”, aquela fez criar no Réu D....... a convicção de que o valor a cobrar se destinava a crédito na conta do beneficiário do cheque, e pagou o mesmo - (Resposta ao quesito 19º) 28. O Banco D....... não sabia qual era a conta onde o valor do cheque iria ser creditado, nem a forma como a beneficiária aposta do mesmo se vinculava, nem a identidade da endossada - (Resposta ao quesito 20º) 29. Nem poderia obter essas informações da C....... - (Resposta ao quesito 21º) O DIREITO Discute-se nesta acção a responsabilidade civil da “C......., S.A.” pelo pagamento de um cheque cruzado, no valor de 9.065,50 €, emitido pela Autora à ordem da sociedade “E......., SA”, cheque esse que, tendo sido enviado em correio normal, nunca chegou à sua destinatária, tendo sido interceptado por terceiros que nele apuseram ordem de endosso e o apresentaram naquela instituição bancária, onde foi depositado na conta indicada no ponto 20. dos factos provados. Nos recursos apresentados pela Autora e pela Ré C....... discute-se apenas a medida da responsabilidade desta última no dano provocado àquela. Trataremos, por conseguinte, em conjunto as razões aduzidas pelas duas recorrentes. A emissão de cheques tem como necessário pressuposto um prévio acordo, mediante o qual o sacador tem o direito de ordenar ao banco sacado o respectivo pagamento – é o que se denomina por convenção de cheque. A obrigação do banco sacado não é de natureza cambiária; é uma obrigação extracambiária, que tem o seu fundamento na convenção de cheque, cujo relevo não pode ser limitado às partes nela intervenientes, dado que tem o seu pressuposto legal no próprio ordenamento e na dinâmica do cheque enquanto meio de pagamento. Uma das características do cheque é a de poder ser transmitido a pessoa diversa da que figura no título como beneficiária: essa transmissão designa-se por endosso, materializando-se tal acto através da aposição, no verso do cheque, da assinatura da pessoa à ordem de quem o cheque foi emitido (endosso em branco), podendo ainda constar a indicação da pessoa ou entidade a favor de quem o mesmo é transmitido. Através do endosso transmitem-se todos os direitos que o beneficiário inicial tem sobre o cheque – artigo 13º da LUCH. Para restringir a circulação do cheque e evitar, assim, a possibilidade do seu endosso, o cheque deve conter a expressão ‘não à ordem’, antes ou depois do nome do beneficiário. Por sua vez, o cheque cruzado é aquele que é atravessado por duas linhas paralelas e oblíquas, podendo estas ser manuscritas ou pré-impressas no módulo de cheque. O cruzamento não impede a circulação do cheque por endosso, assim como a sua emissão na forma nominal. Se nenhuma inscrição constar entre as duas linhas paralelas e oblíquas, estaremos perante aquilo que se designa por ‘cruzamento geral’. Nesta hipótese, o cheque deve ser depositado num banco qualquer[1], mas pode ser pago ao balcão, se o beneficiário for também cliente do banco sacado. Pode, portanto, o seu portador depositá-lo em qualquer banco à sua escolha, efectuando depois este banco a cobrança desse mesmo cheque junto do banco que o vai pagar (banco sacado). Esta cobrança é, em regra, feita por compensação, processo através do qual se apuram as posições devedoras ou credoras dos bancos que efectuam entre si cobranças e pagamentos mútuos, designadamente dos cheques recebidos em depósito de outros bancos. O Sistema de Compensação Interbancária (SICOI) é um sistema gerido pelo Banco de Portugal que efectua, de forma electrónica, a compensação de pagamentos entre os participantes no sistema, expressos em euros, até um determinado valor. Engloba cinco subsistemas, correspondentes aos instrumentos de pagamento referidos: cheques e documentos afins; efeitos comerciais; débitos directos; transferências electrónicas interbancárias; e operações processadas através do Multibanco. No subsistema de compensação de cheques e documentos afins são processados cheques, vales de correio, ordens de pagamento da Segurança Social e ordens de pagamento de prémios de apostas mútuas. Os cheques ficam retidos fisicamente no banco onde são depositados e a respectiva imagem é transmitida ao banco emissor, para verificação do preenchimento, quando se trate de cheques cujo valor seja superior ao do montante de truncagem[2] acordado pelo sistema bancário[3]. No ponto 17.2 do Regulamento do SICOI estabelece-se que, com a adesão a este subsistema, o participante sacado delega automaticamente no participante tomador, e este aceita, a responsabilidade enunciada no artigo 35º da Lei Uniforme Relativa ao Cheque, relativamente à verificação da regularidade dos endossos. Feitas estas considerações introdutórias, entraremos definitivamente na apreciação do caso concreto. O cheque emitido pela Autora foi nominativo – na medida em que nele foi indicado o nome do beneficiário – e cruzado. Enviado por correio normal para a sociedade beneficiária, não chegou ao destino desta. Em vez disso, foi interceptado por terceiros que no seu verso apuseram um carimbo da beneficiária e uma assinatura da ‘gerência’ desta, ambos falsos – cfr. pontos 15. e 16. Apresentado tal cheque ao balcão da C......., foi o mesmo depositado e creditado na conta n.º 2066.085470.400, da agência de Esmoriz desse banco, em 18.08.2008, da qual consta como única titular F....... – cfr. ponto 21. O banco sacado pagou o referido cheque, depois de a C....... o ter aceite e nele ter colocado a expressão “REC CRE CNT BENEF BA C.......” – cfr. ponto 27. Ora, como se sabe, as instituições bancárias, em função do seu importante e específico papel na economia estão obrigadas a um conjunto de deveres. Os deveres bancários, quase todos eles deveres de acção, impõem aos bancos comportamentos baseados em competência técnica, diligência, discrição, neutralidade e lealdade, tendo sempre em vista o escrupuloso respeito pelos interesses dos clientes bancários – cfr. artigos 73º e 74º do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, aprovado pelo DL 289/92, de 31 de Dezembro, na versão consolidada após várias alterações. Essa a razão pela qual Alberto Luís afirma, reproduzindo a decisão da Cassação italiana de 12.10.1982, que a diligência que o banco deve aplicar no exame da genuidade e fidelidade do cheque apresentado a pagamento deve “ser referida não à de um qualquer observador de médio interesse e de média diligência, mas à de um examinador atento e previdente pelo maior grau de atenção e de prudência que a profissionalidade do serviço permite esperar”[4]. E complementa, logo a seguir: “Mas o exame da genuinidade do título não se limita à verificação da conformidade da assinatura do sacador à do espécime por ele fornecido: o banco sacado deve estar atento a todas as particularidades susceptíveis de o alertar para a existência de qualquer anomalia, e exigirá, se for preciso, as justificações oportunas do sacador, procedente, em todos os casos, à identificação do apresentador”, quer esse cheque seja passado ao portador, quer seja passado à ordem (nominativo). No caso, esse específico dever de diligência não foi observado, como, de resto, a própria C....... sempre reconheceu (cfr. artigo 20º da contestação e conclusão 8. da apelação). A sentença recorrida enumera três aspectos que evidenciam essa menor diligência por parte do funcionário da Ré C......., fazendo-o nos termos que a seguir reproduzimos: “Como se disse no verso do cheque foi colocado um carimbo com os dizeres ‘E....... a Gerência, SA’. Compulsado o documento junto a fls. 16 – cópia do cheque - afigura-se que não podia a C......., caso tivesse analisado devidamente o cheque em causa deixar de ter sérias dúvidas quanto à sua regularidade, designadamente no que diz respeito à menção no carimbo aposto no endosso do órgão de administração da sociedade beneficiária do cheque como ‘a gerência’, sendo que a sociedade beneficiária do cheque era uma sociedade anónima, expressamente identificada como tal na identificação do beneficiário e no próprio carimbo, sendo que era exigível do funcionário da Ré C....... que tivesse conhecimento que as sociedades anónimas não têm gerência como órgão de administração. Dúvidas quanto à legítima posse do título deveria ainda ter levantado a colocação no carimbo da partícula SA após a expressão ‘a gerência’, sendo que aquela, integrando a firma, deveria ser colocada imediatamente após o nome da sociedade e não após a expressão ‘a gerência’. Tais dúvidas deveriam ter sido ainda acrescidas pelo facto de o cheque ter sido depositado em conta de pessoa singular, cliente da C......., e não em conta da sua destinatária.” Revemo-nos integralmente nestas considerações. Já não assim, no entanto, em relação à repartição de culpas que foi operada na sentença, com base no artigo 570º, n.º 1, do CC. Segundo essa norma, quando um facto culposo do lesado tiver concorrido para a produção ou agravamento dos danos, cabe ao tribunal determinar, com base na gravidade das culpas de ambas as partes e nas consequências que delas resultaram, se a indemnização deve ser totalmente concedida, reduzida ou mesmo excluída. Importa esclarecer, seguindo alguns autores, que não é rigoroso falar, como se faz nesse preceito, de culpa do lesado, pois a culpa pressupõe um facto ilícito danoso e, na generalidade dos casos abrangidos pelo artigo 570º, nem sequer há um acto ilícito do lesado[5]. A expressão ‘facto culposo do lesado’ utilizada pelo legislador serve a finalidade de afastar os actos do lesado que, embora contribuindo para a produção ou agravamento do dano, não traduzam um comportamento censurável por não se poder afirmar que ele tenha agido com dolo ou negligência. Ponderando a citada disposição legal, a Mmª Juíza discorreu e ajuizou do seguinte modo: “No caso em apreço o dano da Autora é de natureza pecuniária pelo que o ressarcimento do dano passará apenas pela entrega do montante devido pela Ré C....... à Autora. Todavia, o montante a pagar pela Ré não deverá corresponder à totalidade do valor do cheque. Isto porque a própria Autora, ao optar por efectuar o pagamento através de um cheque de valor elevado por correio simples, deixando-o meramente cruzado, sem ter a preocupação de lhe apor cláusula não à ordem, tendo a Autora necessariamente consciência do acréscimo de risco que assumia o pagamento pelo referido meio, sendo que o cheque facilmente poderia ser extraviado e adulterado com apropriação por terceiro da quantia titulada pelo cheque, e encontrando-se disponíveis para a Autora outras formas mais seguras e de uso generalizado de efectuar o pagamento, se não através de correio garantido ou registado, pelo menos através de transferência bancária, à data já francamente generalizada, a Autora assumiu correr o risco de que o cheque viesse a ser pago a pessoa a que se não destinava e contribuiu para o dano que veio efectivamente a sofrer. Assim sendo, julgo adequado fixar o grau de culpa na ocorrência dos danos em 30% pela Autora e 70% pela Ré C......., devendo, consequentemente a Ré pagar à Autora a quantia de € 6 345,85, correspondente à proporção do dano a que deu causa.” Exporemos agora as razões da nossa discordância quanto a esta parte da decisão. O dano só se considera efeito do facto lesivo se, à luz das regras da experiência e a partir das circunstâncias concretas do caso, for provável que o primeiro decorra do segundo, de harmonia com a evolução normal e previsível dos acontecimentos – é a teoria da causalidade adequada, adoptada no artigo 563º do CC[6]. No caso vertente, o dano tem cariz pecuniário, na medida em que corresponde ao total do valor do cheque indevidamente aceite para depósito pela Ré C........ O n.º 2 do artigo 566º do CC dispõe: “Sem prejuízo do preceituado noutras disposições, a indemnização em dinheiro tem como medida a diferença entre a situação patrimonial do lesado, na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal, e a que teria nessa data se não existissem danos.” Uma das situações abrangidas pela ressalva contida na primeira parte do referido preceito, é o da atendibilidade da culpa do próprio lesado na produção ou agravamento do dano, conforme previsto no artigo 570º do CC. Todavia, o juiz só poderá socorrer-se deste normativo quando o acto do lesado tiver sido uma das causas do dano, de acordo com o princípio da causalidade adequada. É aqui que está o ponto. A Autora teve o cuidado de emitir nominalmente o cheque à ordem da “E......., S.A.”, enviando-o para esta sociedade através de correio simples, como era prática habitual – cfr. pontos 10. a 13. O cheque não chegou à sua destinatária, em virtude do descaminho a que se alude nos pontos 14. e 15. Por via de regra, o serviço de distribuição postal, mesmo quando o envio da correspondência é realizado na modalidade mais simples (isto é, sem registo), faz chegar aos destinatários os objectos expedidos. Casos haverá em que, por variadíssimos motivos, tal não sucede. De todo o modo, parece-nos arrojada a conclusão de que foi a circunstância de o cheque não ter sido enviado por correio registado que contribuiu para a produção do dano. Seria certamente mais apropriado – mas ainda assim juridicamente incorrecto – dizer-se que foram os serviços postais que, devido a falha no seu funcionamento, permitiram que o dano viesse a produzir-se. A verdade, porém, é que, consistindo o cheque em causa um título de crédito livremente transmissível por endosso (por não conter a menção ‘não endossável’ ou ‘não à ordem’), poderia estar sujeito, em abstracto, a alterações ilícitas na ordem de transmissão. E era à instituição bancária onde fosse apresentado que caberia conferir a regularidade do endosso e esclarecer quaisquer dúvidas que surgissem quanto à identidade do seu portador. Entendemos, assim, que a Autora lesada em nenhuma circunstância contribuiu para a produção do dano, pelo que a responsabilidade pela reparação deste recai em exclusivo sobre a Ré “C......., S.A.”, preenchidos que estão os demais pressupostos da responsabilidade civil extracontratual. * III. DECISÃODe harmonia com o exposto, decide-se: A. Julgar improcedente o recurso principal, interposto pela Ré “C......., S.A.”. B. Julgar procedente o recurso subordinado interposto pela Autora “B......., Lda.”, alterando-se a sentença recorrida e condenando-se a Ré “C......., S.A.” a pagar à Autora a quantia de 9.065,50 €, acrescida dos juros de mora à taxa anual de 4%, juros esses contados desde a citação até efectivo e integral pagamento. * Custas pela Ré “C......., S.A.”.* PORTO, 8 de Abril de 2014Henrique Araújo Fernando Samões Vieira e Cunha ______________________________________ [1] Ao contrário do que sucede no ‘cruzamento especial’, em que o cheque só pode ser depositado no banco indicado entre as linhas, embora possa ser pago ao balcão, se o banco indicado for o sacado e o beneficiário cliente do mesmo. [2] A truncagem consiste na retenção do cheque em papel pela instituição financeira que o acolheu em depósito. [3] Cfr. ponto 14.1, alínea a) do Regulamento do Sistema de Compensação Interbancária (SICOI), aprovado pela Instrução n.º 25/2003, do Banco de Portugal, em vigor na data em que o cheque foi apresentado a pagamento na C......., entretanto revogado pela Instrução n.º 3/2009. [4] Revista da Ordem dos Advogados n.º 59, Tomo III, página 910. [5] Pessoa Jorge, “Ensaio sobre os pressupostos da responsabilidade civil”, página 360, e Antunes Varela, “Das Obrigações em Geral, Volume I, 4ª edição, página 824, nota 1. [6] Pessoa Jorge, “Ensaio sobre os pressupostos da responsabilidade civil”, páginas 392/393. |