Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
3705/11.7TBSTS-B.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: RODRIGUES PIRES
Descritores: SEGREDO PROFISSIONAL DO ADVOGADO
JUNÇÃO AO PROCESSO DE CORRESPONDÊNCIA TROCADA ENTRE MANDATÁRIOS
Nº do Documento: RP201510283705/11.7tbsts-B.P1
Data do Acordão: 10/28/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O Estatuto da Ordem dos Advogados não contém qualquer norma donde decorra uma proibição genérica de revelação ou de junção a processos de correspondência trocada entre advogados em representação dos seus mandantes, ou entre advogados e a parte contrária ou seu mandante.
II - O nº 3 do art. 87º do Estatuto da Ordem dos Advogados apenas impede a revelação ou junção de documentos quando, face ao seu conteúdo, daí resulte violação do dever de segredo.
III - Na alínea e) do nº 1 do Estatuto da Ordem dos Advogados o que se proíbe é tão só a revelação e utilização de factos revelados pela parte contrária, pessoalmente ou através de representante, durante negociações para acordo amigável.
IV - A junção ao processo de correspondência trocada entre mandatários referente à comunicação de vícios e defeitos existentes no locado e pedido de solução urgente desses problemas não constitui violação do segredo profissional do advogado nos termos dos nºs 1, al. e) e 3 do Estatuto da Ordem dos Advogados.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 3705/11.7 TBSTS-B.P1
Comarca do Porto – Póvoa de Varzim – Inst. Central – 2ª Secção Cível – J3
Apelação (em separado)
Recorrentes: B… e C…
Recorrida: D…

Relator: Eduardo Rodrigues Pires
Adjuntos: Desembargadores Márcia Portela e Maria de Jesus Pereira

Acordam na 1ª secção cível do Tribunal da Relação do Porto:

RELATÓRIO
Com data de 11.6.2015 foi proferido o despacho judicial que se passa a transcrever:
“ (…)
A Autora veio, a fls. 68 e ss., alegar que a Tréplica apresentada viola a disposição legal do então art. 503.º, n.º 1, do C.P.Civil, por não ser legalmente devida.
Alega, por outro lado, que a mesma viola claramente o segredo profissional da profissão de advogado.
Especifica que a correspondência entre mandatários por si junta viola a disposição legal do art. 87.º, n.º 1, alínea e), do Estatuto da Ordem dos Advogados.
Em consequência, pede o desentranhamento dos autos da Tréplica.
Responderam os Réus que a Tréplica é admissível, porquanto a Reconvinda deduziu excepções ao pedido reconvencional, o que lhe confere o direito de responder às mesmas.
Mais respondem, por outro lado, que os documentos juntos se tratam de diversas interpelações admonitórias do Réu à Autora, através dos respectivos mandatários.
Acrescentam que, mesmo que se entendesse que a divulgação dos ditos documentos violava o segredo profissional, sempre a mesma teria de ser entendida como absolutamente necessária para defesa dos direitos e interesses legítimos do Réu.
Vejamos:
Prescrevia o art. 503.º, n.º 1, do C.P.Civil (na redacção vigente à data da apresentação dos articulados) que "Se houver réplica e nesta for modificado o pedido ou a causa de pedir, nos termos do art. 273.º, ou se, no caso de reconvenção, o autor tiver deduzido alguma excepção, poderá o réu responder, por meio de tréplica, à matéria da modificação ou defender-se contra a excepção oposta à reconvenção."
Nos presentes autos, a Autora apresentou Réplica, onde - entre o mais - contestou a Reconvenção apresentada, sob a forma de impugnação e sob a forma de excepção (designadamente excepcionando que ficou acordado que a obtenção da […] seria tratada pelo Réu B… e que sempre se mostrou disponível para realizar todas as obras necessárias a colocar o arrendado em condições para o respectivo fim, mas que o Réu a impediu de realizar as mesmas).
Neste contexto, conclui-se que a Tréplica apresentada o foi dentro dos requisitos legais.
Quanto aos documentos juntos a esta pelos Réus, entre fls. 55 e 66 (e repetidos no Apenso entre fls. 24 e 34 e entre fls. 134 e 137) temos que se tratam de comunicações escritas entre os respectivos mandatários constituídos por cada uma das partes.
Ora, o art. 87.º do Estatuto da Ordem dos Advogados estabelece uma proibição de utilização de elementos de prova relativos a factos abrangidos pelo sigilo profissional, nos seguintes termos:
Artigo 87.
Segredo profissional
1 - O advogado é obrigado a guardar segredo profissional no que respeita a todos os factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços, designadamente:
a) A factos referentes a assuntos profissionais conhecidos, exclusivamente, por revelação do cliente ou revelados por ordem deste;
b) A factos de que tenha tido conhecimento em virtude de cargo desempenhado na Ordem dos Advogados;
c) A factos referentes a assuntos profissionais comunicados por colega com o qual esteja associado ou ao qual preste colaboração;
d) A factos comunicados por co-autor, co-réu ou co-interessado do seu constituinte ou pelo respectivo representante;
e) A factos de que a parte contrária do cliente ou respectivos representantes lhe tenham dado conhecimento durante negociações para acordo que vise pôr termo ao diferendo ou litígio;
f) A factos de que tenha tido conhecimento no âmbito de quaisquer negociações malogradas, orais ou escritas, em que tenha intervindo.
2 - A obrigação do segredo profissional existe quer o serviço solicitado ou cometido ao advogado envolva ou não representação judicial ou extrajudicial, quer deva ou não ser remunerado, quer o advogado haja ou não chegado a aceitar e a desempenhar a representação ou serviço, o mesmo acontecendo para todos os advogados que, directa ou indirectamente, tenham qualquer intervenção no serviço.
3 - O segredo profissional abrange ainda documentos ou outras coisas que se relacionem, directa ou indirectamente, com os factos sujeitos a sigilo.
4 - O advogado pode revelar factos abrangidos pelo segredo profissional, desde que tal seja absolutamente necessário para a defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio advogado ou do cliente ou seus representantes, mediante prévia autorização do presidente do conselho distrital respectivo, com recurso para o Bastonário, nos termos previstos no respectivo regulamento.
5 - Os actos praticados pelo advogado com violação de segredo profissional não podem fazer prova em juízo.
6 - Ainda que dispensado nos termos do disposto no n.º 4, o advogado pode manter o segredo profissional.
7 - O dever de guardar sigilo quanto aos factos descritos no n.º 1 é extensivo a todas as pessoas que colaborem com o advogado no exercício da sua actividade profissional, com a cominação prevista no n.º 5.
8 - O advogado deve exigir das pessoas referidas no número anterior o cumprimento do dever aí previsto em momento anterior ao início da colaboração.
Tal como se explica no Acórdão da Relação do Porto de 07/07/2010, " Sempre que estejam em causa profissões (como é o caso do exercício da advocacia) de fundamental importância colectiva, designadamente porque grande maioria das pessoas carece de as utilizar, a inviolabilidade dos segredos conhecidos através do seu exercício constitui condição indispensável de confiança nessas imprescindíveis actividades e, nessa medida, reveste-se de elevado interesse público." Acrescenta-se mais à frente: "O segredo profissional é um direito e um dever do advogado. Só um segredo profissional com tais contornos é verdadeiramente o garante de um interesse público que, com ele, a lei visa prosseguir e que tem uma dupla vertente: por um lado, que as partes se façam, sem qualquer receio, aconselhar o Advogado e que este possa, sem constrangimento, ser informado de tudo o que entenda ser necessário ao exercício correcto do seu múnus; por outro, que o Advogado possa, sem constrangimento, correr o caminho da livre e responsável conciliação de interesses, como forma de reduzir a conflitualidade judicial."
No caso em presença, estamos perante comunicações trocadas entre os mandatários constituídos por cada uma das partes, enviadas nessa qualidade e tendentes à resolução extrajudicial do litígio. Em face do seu conteúdo, é manifesto tratarem-se de comunicações de carácter sigiloso.
Neste circunstancialismo e com este conteúdo, assiste razão à Autora ao defender que esta correspondência junta aos autos viola a disposição legal do art. 87.º, n.º 1, alínea e), do Estatuto da Ordem dos Advogados.
Por inerência, conclui-se pela não admissibilidade dos documentos em causa como meios de prova, por violação do segredo profissional da profissão de advogado.
Acrescenta-se que, em nosso entendimento, não consideramos - tal como alegam os Réus - que se tratem de documentos "absolutamente necessários para defesa dos direitos e interesses legítimos do Réu". De qualquer modo, se os Réus assim os classificam, deveriam ter solicitado prévia autorização de divulgação ao Presidente do Conselho Distrital respectivo, em obediência ao n.º 4 do acima reproduzido art. 87.º do Estatuto da Ordem dos Advogados.
*
Nos termos expostos, por violação do segredo profissional da profissão de advogado, não se admitem os documentos de fls. 55 a 66 destes autos e de fls. 24 a 34 e de fls. 134 a 137 do Apenso A como meios de prova, determinando o seu desentranhamento e devolução ao respectivo apresentante.
(…)”
Inconformados com esta decisão, dela interpuseram recurso de apelação os réus B… e mulher C…, o qual foi admitido com subida em separado e efeito meramente devolutivo.
Finalizaram as suas alegações com as seguintes conclusões:
I) Vem o presente recurso interposto da douta decisão que não admitiu como meios de prova os documentos de fls. 55 a 66 dos autos e de fls. 24 a 34 da acção apensada, por violação do segredo profissional da profissão de Advogado, determinando, por consequência, o desentranhamento e entrega de tais documentos ao apresentante.
II) Não se encontrando no EOA uma proibição genérica de revelação ou de junção a processos de correspondência trocada entre advogados em representação dos seus mandantes, ou entre advogados e a parte contrária ou seu mandante, a sujeição de documentos ao sigilo profissional impede a revelação ou junção de documentos quando, dado o seu conteúdo, daí resulte violação do sigilo profissional.
III) Ora, no caso concreto e analisada a correspondência em causa - cujos conteúdos se dão integralmente por reproduzidos -, constata-se que tais comunicações, enviadas pelo mandatário dos recorrentes ao Ilustre Mandatário da recorrida, consubstanciam meras interpelações para cumprimento. Na verdade, trata-se de correspondência a denunciar a existência de vícios e defeitos no arrendado e a intimar a parte incumpridora para a consequente responsabilidade civil.
IV) De facto, pela simples leitura dos seus conteúdos se verifica que a correspondência em apreço não plasma factos que tenham chegado ao conhecimento dos réus pela autora, ou pelo seu mandatário, no decurso de negociações para acordo. Assim, ao invés do que considera a Meritíssima Juíza a quo, tais comunicações não se destinaram à resolução extrajudicial de qualquer litígio e por essa razão não violaram a disposição legal do artigo 87º, nº 1 al. e) do Estatuto da Ordem dos Advogados.
V) Também não pode olvidar-se a circunstância, desde sempre vulgarizada, de ser prática corrente que a correspondência de interpelação que assiste aos clientes ser subscrita pelos seus mandatários. Aliás, se por acaso os documentos em causa tivessem sido elaborados pelas próprias partes, e não pelos Advogados, não havia “sigilo” que se invocasse, pelo que não tendo sido beliscado qualquer “interesse social na confiança” depositada em Advogado, inexiste, também por aqui, qualquer violação do Estatuto da Ordem dos Advogados.
VI) De resto, o que se impõe aos advogados (cfr. art. 78º-a)) é, antes, o dever de pugnarem pela boa aplicação das leis, pela rápida administração da justiça e pelo aperfeiçoamento das instituições jurídicas, designadamente contribuindo para que se efective a salvaguarda do direito, ainda que haja de suprir a não presença do mandante no momento da subscrição do expediente para interpelação ou denúncia.
VII) Assim, deverão os documentos em causa - de fls 55 a 66 dos autos e de 24 a 34 do apenso A - ser admitidos como meios de prova, atenta a circunstância de não violarem o segredo profissional da profissão de Advogado.
Pretendem assim a revogação do despacho recorrido e a sua substituição por outro que admita como meios de prova os documentos de fls. 55 a 66 dos autos e de fls. 24 a 34 do apenso A.
Não foram apresentadas contra-alegações.
Cumpre então apreciar e decidir.
*
FUNDAMENTAÇÃO
O âmbito do recurso, sempre ressalvadas as questões de conhecimento oficioso, encontra-se delimitado pelas conclusões que nele foram apresentadas e que atrás se transcreveram – cfr. arts. 635º, nº 4 e 639º, nº 1 do Novo Cód. do Proc. Civil.
*
A questão a decidir é a seguinte:
Apurar se a documentação cujo desentranhamento foi determinado no despacho recorrido se encontra abrangida pelo segredo profissional do advogado.
*
O conteúdo da documentação, cuja junção aos autos se discute, é o seguinte:
MENSAGEM/FAX
Para: Exmo. Sr. Dr. E…
- Distinto Advogado
N.Ref.: B…
V.Ref.: Dra. D…
Assunto: Contrato de arrendamento de 21/5/2010
Data: 22/12/2010 Nº de Pág. 1
Exmo. Colega:
Com os melhores cumprimentos.
Na impossibilidade de contactá-lo telefonicamente, venho junto do Exmo. Colega. comunicar-lhe o seguinte:
1) O meu referido constituinte já investiu, nas fracções objecto do contrato de arrendamento, quantia superior a € 150.000,00.
2) Sucede que, quando se aprestava para averbar em seu nome as licenças do estabelecimento que – ao que diz – o Exmo. Colega lhe garantiu existirem, verificou não poder fazê-lo, tendo que apresentar projectos de arquitectura, água, luz, saneamento etc. etc.
3) Pelo que se viu impedido de abrir portas – como pretendia – no pretérito dia 8/12, prevendo-se que todo o processo de licenciamento comercial demore meses, com os consequentes prejuízos que daí advirão.
4) Por outro lado, a cave do estabelecimento encontra-se, por efeito das últimas chuvas, totalmente inundada, pelo que é necessário que a constituinte do Exmo. Colega proceda às necessárias obras de isolamento da fracção, no mais curto prazo, a fim de obviar à ocorrência de mais danos no estabelecimento.
5) Assim, atento o circunstancialismo narrado o cheque emitido pelo meu cliente para 31/12/2010, no valor de € 1.000, entregue como garantia, não poderá ser apresentado a pagamento.
6) Com vista a minorar os prejuízos já sofridos, deverá ainda ser concedida uma moratória no pagamento da renda, por período não inferior a um ano, com vista à obtenção do licenciamento do estabelecimento.
Sem outro assunto,
O Colega ao dispor,
*
MENSAGEM/FAX
Para: Exmo. Sr. Dr. E…
- Distinto Advogado -
N.Ref.: B…
V.Ref.: Dra. D…
Data: 15/03/2011 Nº de Pág. 1
Exmo. Colega:
Com os melhores cumprimentos.
Encontro-me na posse da carta datada de 24/02/2011, remetida ao meu constituinte referido em epígrafe.
Em 22/12/2010 remeti ao Exmo. Colega a comunicação cuja cópia anexo. Até ao presente não obtive qualquer resposta. Como compreenderá o meu constituinte dispendeu a quantia de € 150.000,00 neste estabelecimento, sem que o mesmo apresente as mínimas condições para laborar, apesar do que lhe foi garantido.
Assim, agradeço o agendamento de uma reunião urgente, com vista à necessária tomada de decisões.
Sem outro assunto,
O Colega ao dispor,
*
Dr. F…
De: Dr. F…
Enviado: quinta-feira, 28 de Abril de 2011 15:43
Para: Dº E…
N. ref.: B…
V. ref.: Dra. D…
Exmo. Colega:
Com os melhores cumprimentos.
Informa-me o meu constituinte em referência que na passagem das casas de banho para o salão do restaurante o tecto ruiu, por virtude da infiltração das águas provindas dos andares superiores. Mais me deu conta que na cave do estabelecimento há consideráveis manchas de humidade e um cheiro a mofo insuportável.
Agradecia diligenciasse pela resolução das questões ora colodas. [sic]
Sem outro assunto,
O Colega ao dispôr,
*
Dr. F…
De: Dr. F…
Para: Dº E…
Enviado: sexta-feira, 20 de Maio de 2011 09:32
Exmo. Colega:
Com os melhores cumprimentos.
Na sequência das nossas conversas, informo que o meu constituinte continua a assistir ao abandono de clientes do estabelecimento, como resultado da contínua escorrência de águas pelas paredes do restaurante, havendo muitas queixas de clientes que protestam contra "o cheiro a mofo", dizendo alguns que ali se respira "um ar a podre".
Inclusivé, já houve clientes que afirmaram não tencionarem voltar àquela casa, pois nestas condições tem é que fechar as portas.
Assim, tendo em conta o calamitoso estado do arrendado - com as águas a cairem continuamente pelas paredes e tectos - o meu constituinte exige que a senhoria proceda à urgentíssima reparação das fugas existentes nos andares superiores, por forma a evitar-se a debandada geral de clientes e o consequente encerramento do estabelecimento.
Deste modo, agradeço imediata intervenção da constituinte do Exmo. Colega, que deverá efectuar as necessárias obras de eliminação das fugas de água que estão a arruinar um estabelecimento aberto há quatro meses e no qual o meu cliente investiu perto de € 150.000,00, cujo ressarcimento exigirá, caso não haja uma solução urgente, definitiva e pronta para esta questão que lhe venho expôr.
Certo de uma resposta muito breve,
O Colega ao dispôr,
(F…)
*
MENSAGEM/FAX
Para: Exmo. Sr. Dr. E…
- Distinto Advogado
N.Ref.: B…
V.Ref.: Dra. D…
Assunto: Estado do arrendado na Rua…
Data: 14/06/2011 Nº de Pág. 1
Exmo. Colega:
Com os melhores cumprimentos.
Não obstante as promessas da constituinte do Exmo. Colega, o que é certo é que continuam as abundantes infiltrações de água no arrendado, tornando humanamente impossível a continuação da actividade nestas deploráveis condições de higiene e segurança.
Assim, caso anomalias não fiquem solucionadas no decurso da presente semana, o meu constituinte ver-se-á obrigado a tomar medidas urgentes para a resolução definitiva deste assunto.
Sem outro assunto,
Atentamente,
O Colega ao dispôr,
*
Passemos à apreciação jurídica.
O dever de segredo profissional visa proteger a integridade e liberdade das pessoas a quem aproveita e no que concerne ao advogado encontra-se previsto no art. 87º do Estatuto da Ordem dos Advogados, aprovado pela Lei nº 15/2005, de 26.1.
Explica-se o segredo profissional do advogado por relevantes razões de interesse público, uma vez que se trata de um instrumento indispensável ao clima de confiança que deve envolver aquela, bem como outras profissões, cuja actividade se desenvolve na área da privacidade das pessoas e das empresas.[1]
Com efeito, quando estejam em causa profissões, como é o caso da advocacia, de grande importância para a comunidade, porque muitas pessoas a elas têm de recorrer, a inviolabilidade dos segredos conhecidos através do seu exercício constitui condição indispensável para que haja confiança nessas actividades.[2]
Conforme escreve António José de Lima (in “Do Segredo Profissional”, 1939)[3], em palavras que permanecem actuais: “A profissão do advogado tem de inspirar uma confiança sem limites e assegurar uma discrição absoluta (…) Pode dizer-se que a profissão de advogado se assemelha, de certo modo, à do confessor e é assim uma espécie de sacerdócio que impõe, a quem o exerce, deveres indeclináveis e obrigações rigorosas.”
O art. 87º do Estatuto da Ordem dos Advogados estatui o seguinte:
«1 – O advogado é obrigado a guardar segredo profissional no que respeita a todos os factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços, designadamente:
a) A factos referentes a assuntos profissionais conhecidos, exclusivamente, por revelação do cliente ou revelados por ordem deste;
b) A factos de que tenha tido conhecimento em virtude de cargo desempenhado na Ordem dos Advogados
c) A factos referentes a assuntos profissionais comunicados por colega com o qual esteja associado ou ao qual preste colaboração
d) A factos comunicados por co-autor, co-réu ou co-interessado do seu constituinte ou pelo respectivo representante;
e) A factos de que a parte contrária do cliente ou respectivos representantes lhe tenham dado conhecimento durante negociações para acordo que vise pôr termo ao diferendo ou litígio;
f) A factos de que tenha tido conhecimento no âmbito de quaisquer negociações malogradas, orais ou escritas, em que tenha intervindo.
2 - A obrigação do segredo profissional existe quer o serviço solicitado ou cometido ao advogado envolva ou não representação judicial ou extrajudicial, quer deva ou não ser remunerado, quer o advogado haja ou não chegado a aceitar e a desempenhar a representação ou serviço, o mesmo acontecendo para todos os advogados que, directa ou indirectamente, tenham qualquer intervenção no serviço.
3 – O segredo profissional abrange ainda documentos ou outras coisas que se relacionem, directa ou indirectamente, com os factos sujeitos a sigilo.
4 – O advogado pode revelar factos abrangidos pelo segredo profissional, desde que tal seja absolutamente necessário para a defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio advogado ou do cliente ou seus representantes, mediante prévia autorização do presidente do conselho distrital respectivo, com recurso para o bastonário, nos termos previstos no respectivo regulamento.
5 - Os actos praticados pelo advogado com violação de segredo profissional não podem fazer prova em juízo.
6 - Ainda que dispensado nos termos do disposto no n.º 4, o advogado pode manter o segredo profissional.
7 - O dever de guardar sigilo quanto aos factos descritos no n.º 1 é extensivo a todas as pessoas que colaborem com o advogado no exercício da sua actividade profissional, com a cominação prevista no n.º 5.
8 – O advogado deve exigir das pessoas referidas no número anterior o cumprimento do dever aí previsto em momento anterior ao início da colaboração.»
No caso “sub judice”, a 1ª instância, no despacho recorrido, determinou o desentranhamento da documentação acima transcrita com o fundamento de que a mesma se reportava a comunicações trocadas entre os mandatários constituídos por cada uma das partes, enviadas nessa qualidade e tendentes à resolução extrajudicial do litígio.
Apoiou-se na alínea e) do nº 1 do citado art. 87º.
Vejamos então.
O Estatuto da Ordem dos Advogados não contém qualquer norma donde decorra uma proibição genérica de revelação ou de junção a processos de correspondência trocada entre advogados em representação dos seus mandantes, ou entre advogados e a parte contrária ou seu mandante.
O nº 3 do dito art. 87º apenas impede a revelação ou junção de documentos quando, face ao seu conteúdo, daí resulte violação do dever de segredo.
Por seu turno, na alínea e) do nº 1 o que se proíbe é tão só a revelação e utilização de factos revelados pela parte contrária, pessoalmente ou através de representante, durante negociações para acordo amigável.
Solução que se compreende, uma vez que nestas negociações, tendentes a evitar o recurso aos tribunais, se espera um comportamento de boa fé e se age com uma certa dose de confiança. Aliás, o esforço de fazer sentir à parte contrária as razões próprias obriga a que se abra o jogo e se digam factos que não se devem converter em trunfos para o adversário.
Em suma, sendo provável a existência, nestas negociações, do objectivo de conseguir uma transacção, é natural que se façam cedências ou concessões cuja revelação se não quer.[4]
Regressando ao caso dos autos, há a destacar que a documentação cuja junção foi recusada reconduz-se a vários faxes e mails que foram enviados pelo Sr. Dr. F…, mandatário de B…, ao Sr. Dr. E…, mandatário de D....
Ora, da leitura da correspondência aqui em apreciação, enviada pelo mandatário do recorrente ao mandatário da recorrida, o que se verifica é que a mesma se reporta à comunicação de vícios e defeitos existentes no locado e ao correspondente pedido de urgente solução para tais problemas.
Não se evidencia que estes factos tivessem chegado ao conhecimento dos aqui recorrentes por informação da parte contrária ou do seu mandatário, tal como não se evidencia a existência de quaisquer negociações minimamente sérias e consistentes com vista à obtenção de um acordo.
A simples troca de correspondência entre advogados, só por si, não significa a existência de negociações, sendo certo que, nesta correspondência, o que se vai constatando é a progressiva radicalização das posições das partes e a total ausência de vontade conciliatória.
Assim, ao invés do sustentado pela 1ª instância, não há com a junção da documentação que se vem apreciando violação do segredo a que o advogado estava vinculado em virtude do disposto na referida alínea e) do nº 1.
Há, porém, que equacionar a possibilidade de tal junção infringir a mais genérica alínea a) desse mesmo nº 1 do art. 87º, onde se estatui que o advogado é obrigado a guardar segredo no que respeita a factos que vieram ao seu conhecimento no exercício da sua actividade, exclusivamente, por revelação do cliente ou que lhe foram revelados por ordem deste.
Não pode, contudo, ignorar-se que os factos cujo conhecimento advenha para o advogado em virtude do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços não são todos e quaisquer factos, mas apenas aqueles que tenham vindo ao seu conhecimento em situação tal que, pela relação de confiança criada, seja indesculpável deontologicamente a sua revelação.[5]
Acontece que não é de modo manifesto a situação dos autos.
Como já se assinalou, a documentação em causa corresponde tão só a diversos faxes e mails que foram enviados pelo mandatário do recorrente ao mandatário da recorrida, em que o primeiro comunica a existência de graves vícios e defeitos no locado, pretendendo que se tomem medidas urgentes para a solução dos problemas.
Sucede que a junção ao processo de correspondência com este conteúdo não envolve factos que tenham vindo ao conhecimento do advogado em contexto tal que torne a sua revelação como deontologicamente reprovável.
Aliás, se bem que este tipo de correspondência seja muitas vezes trocada entre os mandatários das partes, também nada impediria que a mesma tivesse sido trocada entre as próprias partes, sem qualquer intermediação, e nessas circunstâncias nenhum segredo profissional seria susceptível de ser invocado.
Deste modo, os documentos em causa, não violando o segredo profissional a que o advogado está vinculado, deverão ser admitidos como meio de prova, o que impõe a procedência do recurso e a consequente revogação do despacho recorrido.
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Sumário (da responsabilidade do relator – art. 663º, nº 7 do Cód. do Proc. Civil):
- O Estatuto da Ordem dos Advogados não contém qualquer norma donde decorra uma proibição genérica de revelação ou de junção a processos de correspondência trocada entre advogados em representação dos seus mandantes, ou entre advogados e a parte contrária ou seu mandante.
- O nº 3 do art. 87º do Estatuto da Ordem dos Advogados apenas impede a revelação ou junção de documentos quando, face ao seu conteúdo, daí resulte violação do dever de segredo.
- Na alínea e) do nº 1 do Estatuto da Ordem dos Advogados o que se proíbe é tão só a revelação e utilização de factos revelados pela parte contrária, pessoalmente ou através de representante, durante negociações para acordo amigável.
- A junção ao processo de correspondência trocada entre mandatários referente à comunicação de vícios e defeitos existentes no locado e pedido de solução urgente desses problemas não constitui violação do segredo profissional do advogado nos termos dos nºs 1, al. e) e 3 do Estatuto da Ordem dos Advogados.
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DECISÃO
Nos termos expostos, acordam os juízes que constituem este tribunal em julgar procedente o recurso de apelação interposto pelos réus B… e C… e, em consequência, revoga-se o despacho recorrido, que se substitui por outro que admite como meios de prova os documentos de fls. 55 a 66 dos presentes autos e de fls. 24 a 34 e de fls. 134 a 137 do apenso A.
Custas a cargo da recorrida.

Porto, 28.10.2015
Rodrigues Pires
Márcia Portela
Maria de Jesus Pereira
_________________
[1] Cfr. Acórdão do STJ de 15.4.2004, proc. 04B795, disponível in www.dgsi.pt.
[2] Cfr. Acórdão da Relação do Porto de 7.7.2010, proc. 10443/08.6 TDPRT-A.P1, disponível in www.dgsi.pt.
[3] Citado no Acórdão da Relação de Lisboa de 9.3.1995, CJ, ano XX, tomo II, págs. 67 e segs.
[4] Cfr. Acórdão da Relação de Lisboa de 9.3.1995, CJ, ano XX, tomo II, págs. 67 e segs.
[5] Cfr. anotação de Augusto Lopes Cardoso, Revista da Ordem dos Advogados, ano 49º, pág. 875.