Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRP000 | ||
Relator: | AUGUSTO DE CARVALHO | ||
Descritores: | CONTRATO DE DOAÇÃO RESOLUÇÃO INCUMPRIMENTO DE ENCARGOS INGRATIDÃO | ||
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Nº do Documento: | RP20160314463/13.4TBFLG.P1 | ||
Data do Acordão: | 03/14/2016 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | CONFIRMADA | ||
Indicações Eventuais: | 5ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º 621, FLS.129-138) | ||
Área Temática: | . | ||
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Sumário: | I - A resolução da doação, prevista no artigo 966º do C.C., só tem lugar quando as partes no contrato previram essa forma de cessação. II - Não basta que o doador alegue o incumprimento do encargo imposto e que a cláusula modal foi a causa impulsiva da doação, para obter a resolução desta. Também é necessário que o direito de resolução lhe seja conferido pelo contrato. III - A revogação da doação por ingratidão exige que o donatário se torne incapaz, por indignidade, para suceder ao doador, ou que se encontre em alguma das situações justificativas de deserdação. IV - As causas da revogação são apenas as que estão contempladas no artigo 974º do C.C. e, por isso, mesmo que o doador, por qualquer motivo, se arrependa da liberalidade que efetuou, tendo-a o donatário aceitado, fica-lhe vedada a possibilidade de voltar atrás em relação ao que assumiu. | ||
Reclamações: | |||
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Decisão Texto Integral: | Apelação nº 463/13.4TBFLG.P1 Acordam no Tribunal da Relação do Porto B… intentou a presente ação com processo comum de declaração contra C… e mulher D…, pedindo que o tribunal decrete a resolução da doação dos prédios descritos na petição inicial, fundada no não cumprimento do encargo dos réus cuidarem da autora até à sua morte; subsidiariamente, a revogação da doação por ingratidão, fundada na não prestação de alimentos (natureza pessoal); que seja ordenado o cancelamento de todos os registos resultantes da doação e que sejam os prédios registados a seu favor. A fundamentar o pedido, alega que, por escritura pública outorgada em 3 de Maio de 2007, reservando para si o usufruto, e mediante a aceitação dos donatários, fez doação aos réus de um prédio rústico, com reserva de usufruto vitalício relativamente ao prédio urbano. Em 22.10.2007 foi registada a doação escrita do prédio urbano, casa térrea com quintal, sito no lugar de …, Felgueiras, descrito na Conservatória do Registo Predial de Felgueiras sob o nº 45, e do prédio denominado E…, sito na mesma freguesia e concelho, descrito na mesma Conservatória sob o nº 771. A doação dos referidos prédios foi feita com o encargo dos réus/donatários cuidarem da autora/doadora até à sua morte. A autora foi, então, viver para casa dos réus para estes cuidarem dela, mormente, preparando-lhe as refeições, lavando e engomando-lhe a roupa, comprando-lhe os medicamentos, levando-a ao médico. Os cuidados eram e são necessários, já que a autora tem 84 anos. Os réus, no decurso do ano de 2012, começaram a maltratar a autora de diversas formas. Nem sempre preparavam as refeições diárias à autora. Não a chamavam para comer, não compravam os medicamentos e não a levavam ao médico. Era, frequentemente, alvo de insultos por parte da ré, que lhe chamava bruxa, bêbada e feia. Por tais motivos, a autora viu-se obrigada a sair da casa dos réus, em meados de Outubro de 2012. Os réus contestaram, alegando que sempre estiveram e estão dispostos a cuidar da autora, proporcionando-lhe companhia, refeições, assistência na saúde, cuidados e acima de tudo a dar amor, carinho, amizade e atenção, desde que ela deixe. A autora não tem qualquer razão ao imputar aos réus que estes não cumpriram com o encargo imposto na escritura de doação celebrada. Os réus sempre quiseram e querem cumprir, apesar de a autora ainda não necessitar que cuidem dela. Concluem pela improcedência da ação. Procedeu-se a julgamento e, a final, proferida sentença, na qual a ação foi julgada improcedente e, em consequência, os réus absolvidos do pedido. Inconformada, a autora recorreu para esta Relação, formulando as seguintes conclusões: 1.A matéria de facto supra dada como não provada na decisão em recurso, salvo o devido respeito, merece censura, devendo ser julgada provada, por isso, na matéria que a seguir se indica, pontos A, B, C, D, E. 2. A) 1) A autora entregava aos réus, mensalmente, a sua reforma no montante de €330,00 para as despesas mensais (resposta ao artigo 6º da petição inicial). 3. Ora, conforme artigo 34º da contestação, a autora contribuía com alguma quantia para ajuda do sustento, principalmente, quando o réu marido ficou sem receber o subsídio de desemprego, que ocorreu em Julho de 2012. 4. B) 2) No decurso do ano de 2012, os réus nem sempre preparavam as refeições diárias à autora (resposta ao artigo 8.º da petição inicial). 4. Os réus, quando preparavam as refeições, não chamavam a autora para comer (resposta ao artigo 9.º da petição inicial). 5. Os réus não compravam os medicamentos à autora (resposta ao artigo 10º da petição inicial). 6. C) 6. A autora era, frequentemente, alvo de insultos por parte da ré que lhe chamava bruxa, bêbada e feia (resposta ao artigo 12º da petição inicial). 7. D) Os réus sempre souberam que a doação, dos únicos bens imóveis da autora, apenas foi realizada com a condição destes cuidarem da autora até à sua morte (resposta ao artigo 14º da petição inicial). 8. Ora, é manifesto que os réus sempre souberam da condição constante da doação; Já que é o que consta da na própria escritura de doação ou seja; 9. O tribunal a quo julgou como provado, existindo assim uma contradição deste facto julgado como não provado e do facto a) julgado como provado já que a outorga da escritura e respectiva condição foi feita pela autora e pelos réus. 10. Os réus nunca negaram o conhecimento da condição destes cuidarem da autora até à sua morte no artigo aliás afirmaram o seu conhecimento nos artigos 7º e 8º da contestação, cita-se “7º Foi o que a autora pretendeu fazer e que os réus aceitaram, conforme resulta do texto do documento da escritura pública. 8º Resulta também do texto do documento que “ esta doação é feita com o encargo dos donatários cuidarem da doadora até à morte”, 11. E) 9. A autora nunca teria feito a doação aos réus se soubesse que estes não iriam cuidar dela até morrer (resposta ao artigo 15º da petição inicial). 12. Acrescentando que, como é evidente e manifesto, com a inclusão de tal encargo na escritura de doação, que qualquer outorgante provavelmente não a celebraria se soubesse que haveria incumprimento e é igualmente manifesto que os outros contraente tem conhecimento deste facto. 13. Assim face ao supra explanado e pela prova produzida supra deveriam tais factos serem julgados provados. 14. Dando tais factos dados como provados é inegável que, os réus não se comportaram segundo o padrão do que teria sido a conduta de um bom pai de família, se colocados nas mesmas circunstâncias do donatário (perante o que se esperaria que o mesmo fizesse pelos doadores). Importa concluir que os donatários não honraram os compromissos a que voluntariamente se submeteram em contrapartida da doação que livremente aceitaram” 15. Como a autora decidiu regressar a sua casa por vontade própria conclui o tribunal a quo que os donatários não podem forçar os doadores a receber os encargos, 16. Tal facto, por si só, não é suficiente para extrair tal conclusão já que nunca foi dito pelos réus ou por qualquer testemunha que a autora tenha impedido aqueles de a visitar ou os tenha impedido de fazer limpeza e de lhe levar comida. 17. Verifica-se que se trata de um contrato, ou negócio jurídico bilateral, que pressupõe duas vontade negociais, a “proposta de doação” e a “aceitação”, definido como um contrato unilateral, porque, apesar de ter subjacente duas declarações de vontade, só gera obrigações para uma das partes. 18. O facto de na escritura de doação com encargos não constar expressamente o direito de resolução não impede a doadora de a resolver com base em incumprimento culposo dos encargos, devendo, para tanto, atendesse às circunstâncias do caso concreto e ao que foi efectivamente contratado entre as partes. 19. Quando se refere no artigo 966º do C.C. que “o doador ou os seus herdeiros também podem pedir a resolução da doação da doação fundada no não cumprimento dos encargos, quando esse direito lhes seja conferido pelo contrato” tal apenas significa que do contrato celebrado entre as partes deve poder resultar o direito à resolução (ou seja, extinção do contrato por incumprimento culposo ou impossibilidade absoluta), não resultando daí que tal efeito tenha de constar expressamente do texto do contrato ou do documento que o formaliza. 20. Se o legislador quisesse que o direito de resolução constasse expressamente do texto do contrato tê-lo-ia dito referindo-se a “documento”, 21. O artigo 966º do C.C. não exige que o direito de resolução conste do documento escrito que formaliza o contrato, bastando que face ao contrato celebrado tal direito possa ser exercido nos termos gerais. 22. Por outro lado, a exigência de o direito de resolução constar do documento ou texto do contrato visa proteger terceiros adquirentes, por forma a que estes tenham conhecimento de que a doação poderá ser resolvida, situação que os afectará. 23. O disposto no artigo 966º do C.C. ao estabelecer que o doador ou os seus herdeiros também podem pedir a resolução da doação quando esse direito lhes seja conferido pelo contrato deve ser interpretado restritivamente, aplicando-se apenas nas relações com terceiros, mas já não nas relações imediatas, ou seja, entre o doador e o donatário. 24. Quando se estiver apenas no domínio das relações imediatas, ou seja, quando estiver apenas em causa a relação contratual entre o doador e o donatário e o incumprimento dos encargos, não há razão para a exigência de que o direito de resolução conste do documento ou texto do contrato, até porque, a maioria das vezes, tal imposição pode deteriorar ou minar a relação de confiança mútua que está na génese da celebração da doação com encargos. 25. Numa situação de doação com encargos, estando apenas em causa o cumprimento dos encargos estabelecidos no contrato e continuando o prédio na esfera patrimonial do donatário, o direito de resolução deve ser apreciado à luz das regras que disciplinam o cumprimento/incumprimento dos contratos, independentemente de o direito de resolução constar ou não do texto do contrato. 26. Exigir que o direito de resolução conste do documento ou do texto para que o doador possa resolver a doação com base no incumprimento culposo dos encargos assumidos e aceites pelo donatário, quando o prédio ainda não se tenha transmitido para terceiro, constitui e constituirá, muitas vezes, uma situação de injustiça, ética e moralmente censurável e que excede manifestamente os limites impostos pela boa fé e bons costumes, que o Direito não pode permitir. 27. Os réus aceitaram a doação com os encargos aí estipulados ou contratados, encargos que integram e fazem parte essencial do contrato de doação celebrado entre as partes, constituindo o seu não cumprimento culposo uma questão de incumprimento contratual, sujeito à disciplina do artigo 801º do C.C. 28. Os encargos assumidos e aceites pelos réus constituem, no caso em apreço, uma verdadeira contra-prestação que os réus não cumpriram. 29. Mesmo que se entenda que os encargos aceites pelos réus não constituem verdadeiras contraprestações, mas obrigações acessórias ou laterais, tais encargos não deixam de constituir um verdadeiro dever jurídico podendo integrar, como no caso em apreço, uma autêntica obrigação do donatário. 30. E como se sabe, a violação dos deveres laterais ou deveres acessórios de conduta – integrante da chamada obrigacional complexa ou relação contratual e essenciais ao correcto processamento da obrigação principal, atento o princípio geral da boa fé estabelecido no artigo 762º do C.C. – também acarreta, pela sua gravidade, as mesmas consequências que o incumprimento das obrigações principais. 31. No caso sub judice, a manutenção da doação como válida, face ao incumprimento culposo e voluntário das obrigações e encargos que os réus assumiram e aceitaram como contrapartida pela doação, constitui e representa uma situação de abuso de direito, violando o sentido de justiça e dos fins sociais e económicos que presidiram à doação. 32. Manter-se como válida a doação efectuada e impedindo-se a autora de a poder resolver, neste caso concreto, viola o mais elementar sentido de justiça e a consciência ético-jurídica dominante, o princípio da boa fé e os bons costumes. 33. Assim, também com base no instituto do abuso de direito por parte da ré, deve ser reconhecido e declarado que aos autores assiste o direito de resolver o contrato de doação em causa. 34. Verificando-se, através da prova supra, relativamente aos factos seguintes: – no decurso do ano de 2012, os Réus não preparavam as refeições à autora; que os réus não compravam os medicamentos à autora; – que a autora era frequentemente alvo de insultos por parte da ré que lhe chamava bruxa, bêbada e maluca, (tola), – que a autora nunca teria feito a doação aos réus se soubesse que estes não iriam cuidar dela até morrer. 35. Face ao supra exposto, encontra-se reunida prova bastante para que nos termos dos artigos 970º, 974º, 2034º c) e 2166º c), todos do C.P.C. seja considerada a doação revogada por ingratidão dos réus donatários. 36. Constata-se a violação dos artigos 966º, 970º, 974º, 2034º c) e 2166º c), todos do C.P.C., e 334º do C.C. Os apelados apresentaram contra-alegações, concluindo pela confirmação da sentença. Colhidos os vistos legais, cumpre decidir. Na sentença recorrida foram considerados assentes os seguintes factos: a) No dia 3 de Maio de 2007, foi declarado por meio de escritura pública pela autora, na qualidade de primeira outorgante, “Que da herança ilíquida e indivisa deixada por óbito do referido F…, fazem parte os seguintes prédios: Um) Urbano – Casa térrea com quintal, sito no lugar de …, freguesia de …, deste concelho de Felgueiras, descrito na Conservatória do Registo Predial deste concelho sob o número novecentos e trinta e seis – …, aí registado a favor do autor da sucessão e da primeira outorgante, pela inscrição G-Dois e inscrito na matriz urbana sob o artigo 45, com o valor patrimonial de € 551,89. Dois) Rústico – denominado “E…”, sito no lugar de …, freguesia da …, deste concelho de Felgueiras, descrito na Conservatória do Registo Predial deste concelho sob o número 937 – …, aí registado a favor do autor da sucessão e da primeira outorgante pela inscrição G-Dois e inscrito na matriz urbana sob o artigo 771, com o valor patrimonial de € 16,60. Que, pela presente escritura, por conta da sua quota disponível e com reserva de usufruto vitalício do prédio da verba um), doa aos segundos outorgantes C… e esposa, os prédios acima identificados”. No mesmo documento declararam os réus, na qualidade de segundos outorgantes “que aceitam a presente doação, nos termos acima exarados, e que o prédio se destina exclusivamente a habitação. Que atribuem à presente doação o valor global de €568,49. Que esta doação é feita com o encargo dos donatários cuidarem da doadora até à sua morte. Assim o disseram e outorgaram” (resposta aos artigos 1.º e 3.º da petição inicial e aos artigos 4.º e 8.º da contestação). b) Encontra-se registado na Conservatória do Registo Predial de Felgueiras, freguesia de …, sob o n.º 936/19980708, inscrito à matriz urbana sob o artigo 45º, o prédio urbano situado em …, com a área total de 550 m2, com a área coberta de 50 m2, com a área descoberta de 500 m2, composto de térrea com quintal, que confronta a norte com caminho, a sul e a nascente com G… e a poente com H…; cujo facto aquisitivo identificado em a), se encontra registado a favor dos Réus (resposta ao artigo 2.º da petição inicial). c) Encontra-se registado na Conservatória do Registo Predial de Felgueiras, freguesia de …, sob o n.º 937/19980708, inscrito à matriz rústica sob o artigo 771.º, o prédio rústico denominado “E…”, situado em Felgueiras, com a área total de 3300 m2, com a área descoberta de 3300 m2, que confronta a norte e a poente com I…, a sul com J… e a nascente com L…; cujo facto aquisitivo identificado em a), se encontra registado a favor dos Réus (resposta ao artigo 2.º da petição inicial). d) A Autora foi viver para casa dos Réus para estes cuidarem dela, mormente, preparando-lhe as refeições, lavando e engomando-lhe roupa, comprando os medicamentos, levando-a ao médico, fazendo-lhe companhia e comprando tudo o que fosse necessário para a Autora (resposta ao artigo 4.º da petição inicial). e) Os cuidados referidos em d) são necessários para a Autora já que esta tem 84 anos sofrendo de algumas debilidades físicas, o que a impedem de realizar devidamente as referidas atividades (resposta ao artigo 5.º da petição inicial). f) Na sequência do referido em d), os Réus passaram a tratar das roupas e de todas as refeições da Autora (resposta ao artigo 21.º da contestação). g) Bem como, fazia as refeições aquando e na companhia dos Réus (resposta aos artigos 22.º e 36.º da contestação). h) E, era o Réu marido que marcava as consultas médicas no Centro de Saúde da Autora e levava a Autora aos médicos (resposta aos artigos 25.º, 37.º e 38.º da contestação). i) Bem como, eram os Réus que compravam a medicação necessária à Autora (resposta aos artigos 26.º, 39.º da contestação). j) A Autora comunicou aos Réus, em setembro de 2012 que queria voltar para casa dela (resposta aos artigos 49.º e 50.º da contestação). k) Após a data referida em l), o Réu marido continuou a levar a Autora aos médicos (resposta aos artigos 53.º e 55.º da contestação). Factos não provados. 1. A autora entregava aos réus, mensalmente, a sua reforma no montante de € 330,00 para as despesas mensais (resposta ao artigo 6.º da petição inicial). 2. No decurso do ano de 2012, os réus nem sempre preparavam as refeições diárias à autora (resposta ao artigo 8.º da petição inicial). 3. Os réus quando preparavam as refeições não chamavam a autora para comer (resposta ao artigo 9.º da petição inicial). 4. Os réus não compravam os medicamentos à autora (resposta ao artigo 10.º da petição inicial). 5. Os réus não levavam a autora ao médico (resposta ao artigo 11.º da petição inicial). 6. A autora era, frequentemente, alvo de insultos por parte da ré que lhe chamava bruxa, bêbada e feia (resposta ao artigo 12.º da petição inicial). 7. Em Outubro de 2012, a autora viu-se obrigada a sair da casa dos réus por causa do mencionado em 1) a 6) (resposta ao artigo 13.º da petição inicial). 8. Os réus sempre souberam que a doação, dos únicos bens imóveis da autora, apenas foi realizada com a condição destes cuidarem da autora até à sua morte (resposta ao artigo 14º da petição inicial). 9. A autora nunca teria feito a doação aos réus se soubesse que estes não iriam cuidar dela até morrer (resposta ao artigo 15º da petição inicial). 10. Em 2011, a autora ainda era uma pessoa capaz de cuidar de si, não precisando de ajuda de terceira pessoa, de se deslocar sozinha e de tratar dos seus bens pessoais (resposta ao artigo 20º da contestação). São apenas as questões suscitadas pelos recorrentes e sumariadas nas respectivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar – artigos 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do novo C.P.C. A questão a decidir é a seguinte: impugnação da decisão relativa à matéria de facto, no que concerne aos pontos 1, 2, 3, 4, 6, 8 e 9 dos factos não provados; se pode ser declarada a resolução da doação em causa; se a doação pode ser revogada por ingratidão. I. Encontrando-se gravada a prova produzida em julgamento, nos termos do disposto nos artigos 155º, nº 1 e 2, do novo C. P. Civil, pode alterar-se a decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto, se para tanto tiver sido observado o condicionalismo imposto pelo artigo 640º, como o permite o disposto no artigo 662º, nº 1, ambos do mesmo diploma. Nos termos deste último preceito, a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa. O registo dos depoimentos prestados em audiência de julgamento tem como objectivo facilitar a reparação de um eventual erro de julgamento. Esta tarefa – apreciação da prova – está cometida, em primeira linha e como regra geral, à primeira instância e em execução do princípio da imediação. Os casos em que, pela via do recurso, se há-de reapreciar a prova produzida em primeira instância, terão de ser, concretamente, evidenciados pelo recorrente, destacando-os dos demais, indicando os depoimentos em que se funda, por referência ao assinalado na acta, nos termos do nº 2, do citado artigo 155º (artigo 640º, nº 2, alínea a), do C. P. Civil). A apelante, mencionando os concretos meios probatórios, constantes do processo que, em seu entender, impõem decisão diversa da recorrida, preenche estes requisitos legalmente impostos, para que se possa apreciar os alegados erros na apreciação da matéria de facto. Os pontos da matéria de facto que a autora/apelante considera incorretamente julgados são os seguintes: “A autora entregava aos réus, mensalmente, a sua reforma no montante de € 330,00 para as despesas mensais”; “No decurso do ano de 2012, os réus nem sempre preparavam as refeições diárias à autora”; “Os réus, quando preparavam as refeições, não chamavam a autora para comer”; “Os réus não compravam os medicamentos à autora”; “A autora era, frequentemente, alvo de insultos por parte da ré que lhe chamava bruxa, bêbada e feia”; “Os réus sempre souberam que a doação dos únicos bens imóveis da autora apenas foi realizada com a condição destes cuidarem da autora até à sua morte”; “A autora nunca teria feito a doação aos réus se soubesse que estes não iriam cuidar dela até morrer”. Com base na reapreciação dos depoimentos das testemunhas M…, N…, O…, pretende a autora que aquela matéria de facto seja considerada provada. A apelante, porém, não tem razão na apreciação que faz daqueles depoimentos. A testemunha M…, de mais saliente, referiu: “Antes de 2012, a autora estava a viver na casa deste casal. Não fui a casa do casal. Nunca vi a autora, juntamente com o casal fora da casa. Sim, entregava trezentos e tal euros. Sabe que a autora entregava a reforma ao Sr. C… porque aquela lhe contou. Mas, nunca viu entregar. Não sabe quando a autora foi morar para casa dos réus. Não sabe quanto tempo é que lá esteve. A partir de 2012 (altura das vindimas) passou a viver em casa dela sozinha. Quem levava comida era a sobrinha que tem um café ao lado. Eu é que passava lá para estar com ela. Adquiri géneros, alimentos, medicação, dei-lhe todo o apoio que ela precisava, ir ao médico, tratei da documentação, não tinha cartão único. Ela disse que eles a tratam mal, que sou uma bruxa”. Este depoimento está em conformidade com a apreciação que do mesmo foi feita na motivação da decisão sobre a matéria de facto: «A testemunha M…, sobrinha da autora, esclareceu que não tem conhecimento do encargo fixado na escritura pública; e esclareceu que a autora estava de mal consigo e não contactavam uma com a outra. Esclareceu que, em meados de Outubro de 2012, a autora foi para casa da testemunha chorar porque não queria mais voltar para a casa dos réus, dizendo que estava a ser maltratada. No período anterior a 2012, a testemunha nunca visitou a tia quando estava a viver em casa dos réus. Mais esclareceu que nunca viu os réus e a autora (sua tia) juntos. A partir de Outubro de 2012, a tia passou a viver em sua casa e a testemunha ajudava-a, ia levar medicamentos, alimentos, fazer companhia, leva a autora ao médico. Referiu que nunca viu a tia entregar a reforma aos réus, sabe que a tia entregava a reforma porque foi a tia que contou; não sabe quanto tempo a tia foi morar para casa dos réus, refere que a tia não precisava de ajuda de terceiros». A testemunha N…, afilhado da autora, referiu que esta “dava aos réus a reforma. Era o C1… (réu) que ficava com a reforma. Ela disse que não merecia ser assim tão desprezada, deviam ter olhado por ela, fazer de comer, fazer limpeza em casa, eles não faziam nada. A vizinha do café é que lhe ia buscar os medicamentos. Tudo o que sabe foi a madrinha que lhe disse. Foi, foi. A madrinha nunca viveu em casa deles. Ela paga a uma vizinha para fazer a limpeza, porque esta (ré) não faz nada. Eu nunca a lá vi (ré), eu vejo a vizinha a fazer a limpeza. A herança foi dada para eles olharem por ela até à hora da morte”. Também relativamente a este depoimento, na motivação da decisão sobre a matéria de facto é feita uma avaliação correta do mesmo: «A testemunha N…, afilhado de batismo da autora, esclareceu o Tribunal que via a autora sempre a chorar e que dizia que era desprezada e que a ré fazia pouco dela; refere que a doação foi feita para tratar da autora, foi o que a autora lhe disse que precisava quem olhasse por ela. Ainda há pouco tempo viu a autora a chorar. A autora disse que entregava a reforma; refere que a autora não viveu em casa dos réus, sempre viveu em casa dela e diz que os réus queriam que a autora não falasse com ninguém para não se saber dos podres dos réus. O depoimento desta testemunha não pode merecer qualquer credibilidade por parte do Tribunal, pois, para além desta testemunha ter demonstrado que gosta da maledicência, pois o que gosta é de falar mal dos outros, já que, sem qualquer tipo de razão, refere que os réus têm é medo que os “podres” sejam do conhecimento público, desconhecendo-se que “podres” serão esses. O facto determinante para o Tribunal desconsiderar em absoluto este depoimento, reside na circunstância desta testemunha ter afirmado que é vizinho dos réus e, ao mesmo tempo, ter afirmado que a autora nunca viveu em casa dos réus e viveu sempre em casa dela. Com efeito, as testemunhas são unânimes em referir que a autora viveu em casa dos réus, até a própria autora o afirma no seu articulado. Assim, não se percebe que o afilhado de baptismo da autora não saiba onde mora a sua madrinha e, ainda por cima, sendo vizinho dos réus, local de residência da sua madrinha, pelo menos, por um ano. Esta testemunha demonstrou que não tem conhecimento dos factos, não sabia o que estava a dizer e apenas falava mal dos réus, logo, o seu depoimento não merece qualquer credibilidade». Finalmente, a testemunha O…, amiga da autora e vizinha dos réus, referiu: “Nunca disse que não lhe preparavam as refeições, que não lhe lavavam a roupa. Só dizia que era maltratada. Não (especificava nada). Só chorava. Saiu porque disse que era maltratada. Ela fugiu é com uma borracheira. Fizeram tudo por tudo para lhe passar os meus bens. Eles levaram-me ao engano. Eles disseram que olhavam por mim até ao fim da minha vida. Eles só me tratam de bêbada e de tola. A D… foi lá (jazigo) e tirou-lhe as flores todas. Numa outra vez, foi lá (jazigo) e tirou-lhe as letras e as fotografias do falecido. Ela é muito má”. Essencialmente, o que estas testemunhas sabiam ou referiram saber tinha origem naquilo que a autora lhes dizia. Como se refere na motivação da decisão sobre a matéria de facto, «Nenhuma das testemunhas conseguiu declarar em Juízo que a autora lhes tenha dito expressamente que os réus não lhe preparavam as refeições, não lhe tratavam da roupa, não lhe compravam os medicamentos, não a levavam ao médico, etc. Apenas referiam que ela chorava e que dizia que a maltratavam, mas não especificavam os maus tratos. Apenas a testemunha O… referiu que a autora lhe disse que os réus a apelidavam de tola e de bêbada. Todavia, este depoimento não é suficiente para estabelecer como verdadeiro tal facto e isto por várias ordens de razões: 1ª ordem de razões radica na circunstância desta testemunha não ter assistido a este comportamento que é imputado aos réus (ou, pelo menos, à ré mulher); 2ª ordem de razões esta testemunha só porque vê o réu marido com um papel no banco, não sabendo o que está escrito no papel, conclui que o réu marido está no banco a receber a reforma da autora e; 3ª ordem de razões, conforme se pode verificar pela gravação do depoimento desta testemunha, a mesma tem uma apetência para a maledicência. Por outro lado, a testemunha P… (sobrinha por afinidade da autora) referiu que viu a tia com boa aparência. De todos os depoimentos resultou que a autora também chora muito por causa do falecido marido, pelo que, se torna difícil destrinçar a razão do choro. Finalmente, se os maus-tratos a idosos se fazem sem público, o resultado desses maus-tratos grita para o exterior. Vejamos: após a autora ter saído da casa dos réus, em Outubro de 2012, a sua sobrinha (a testemunha M…) levou-a ao médico, logo, qualquer sinal de subnutrição, ou qualquer mazela física seria imediatamente revelado. É que os idosos por natureza são frágeis, assim, qualquer privação de medicamentos, de alimentação ou qualquer agressão imediatamente ficam registadas no corpo dos idosos. Nada disto resultou desde que a autora saiu de casa dos réus». No artigo 34º da contestação, os réus alegam que “só esporadicamente é que a autora contribuía com alguma quantia para ajuda do sustento, principalmente, quando o réu marido ficou sem receber o subsídio de desemprego, que ocorreu em Junho de 2012”. Esta alegação, conjugada com os depoimentos das testemunhas M…, N… e O…, não é suficiente para considerar provado, até pelas razões supra referidas, que a autora entregava aos réus, mensalmente, a sua reforma, no montante de €330,00 para as despesas mensais. No que se refere ao ponto 8 dos factos não provados, a apelante tem razão. Com efeito, nos termos da escritura “a doação é feita com o encargo dos donatários cuidarem da doadora até à sua morte” e, por conseguinte, não é plausível que os réus desconheçam uma condição que consta expressamente dessa mesma escritura que outorgaram. Neste sentido, elimina-se o referido ponto 8 dos factos não provados e passa a constar da matéria assente a seguinte alínea l): Os réus sempre souberam que a doação dos únicos bens imóveis da autora foi realizada com o encargo dos donatários cuidarem da doadora até à sua morte. Já quanto ao ponto 9 – a autora nunca teria feito a doação se soubesse que estes não iriam cuidar dela até morrer – não foi produzida qualquer prova credível para o incluir no elenco dos factos provados. A restante matéria impugnada retrata com fidelidade a prova produzida em audiência de julgamento. A apelante pretendia que esta Relação fizesse uma nova valoração dos meios de prova, de forma a concluir que os factos que discrimina foram julgado erradamente e que, por consequência, eles deveriam ser alterados. Tal valoração foi feita e, como se referiu, a decisão sobre a matéria de facto, à exceção do ponto 8 dos factos não provados, retrata com fidelidade as provas produzidas em audiência de julgamento. No caso concreto, tendo em atenção a referida prova produzida, a convicção desta Relação é a de que as dúvidas levantadas pela apelante, no essencial, não tinham fundamento, considerando-se, por isso, correta a forma como o tribunal a quo decidiu a matéria de facto questionada. II. Por escritura outorgada no dia 3 de Maio de 2007, a autora, na qualidade de primeira outorgante, declarou que, por conta da sua quota disponível e com reserva de usufruto vitalício do prédio da verba um, doava aos segundos outorgantes C… e esposa, os prédios aí identificados. No mesmo documento declararam os réus, na qualidade de segundos outorgantes que aceitavam a doação e que o prédio se destinava exclusivamente a habitação. Que atribuíam à doação o valor global de €568,49. Que a doação era feita com o encargo dos donatários cuidarem da doadora até à sua morte. A doação, no dizer do artigo 940º, nº 1, do C.C., é um contrato pelo qual uma pessoa, por espírito de liberalidade e à custa do seu património, dispõe gratuitamente de uma coisa ou de um direito, ou assume uma obrigação, em benefício do outro contraente. O artigo 963º do C.C., através das chamadas cláusulas modais, permite que o doador imponha ao donatário um ónus ou encargo, sem que a atribuição donativa não deixe de ser liberalidade pelo facto de o donatário assumir a obrigação de realizar certa prestação. E o artigo 966º do mesmo diploma estabelece que o doador, ou os seus herdeiros, podem pedir a resolução da doação, fundada no não cumprimento dos encargos, quando esse direito lhes seja conferido pelo contrato. Tem-se entendido que, ao contrário do que defende a apelante, a resolução da doação, prevista no citado preceito, só tem lugar quando as partes no contrato previram essa forma de cessação. Como refere Mota Pinto, «para as doações, tenha o encargo valor patrimonial ou moral, parece inferir-se do artigo 966º que o doador ou os seus herdeiros poderão pedir a resolução de toda a doação, apenas quando, por interpretação do contrato, esse direito lhes seja conferido. Não bastará, portanto, provar, por qualquer meio, que a cláusula modal foi causa impulsiva da doação, isto é, que o doador a não teria feito se soubesse que o inadimplemento teria lugar; é necessário que o direito de resolução lhe seja conferido pelo contrato e, portanto, corresponda a uma vontade real susceptível de desentranhar a sua eficácia em sede interpretativa». Teoria Geral do Direito Civil, 3ª edição, pág. 583. No mesmo sentido, Pires de Lima e A. Varela, escrevem que «o direito de resolução, correspondente à condição resolutiva admitida no nº 2 do artigo 801º no domínio dos contratos bilaterais, só é reconhecido, quer o modo não tenha, quer tenha valor patrimonial, quando seja atribuído pelo contrato; e é conferido exclusivamente ao doador ou a seus herdeiros. Nem os titulares do direito subjectivo correspondente ao encargo podem exercê-lo, no que, aliás, não teriam interesse direto, nem o próprio doador, se não tiver sido convencionado esse direito no contrato de doação». Código Civil Anotado, volume II, pág. 272 e 273. Não basta, assim, que a doadora, ora apelante, alegue o incumprimento do encargo imposto e que a cláusula modal foi a causa impulsiva da doação, para obter a resolução desta. Também é necessário que o direito de resolução lhe seja conferido pelo contrato. No caso, nem resultou provado o incumprimento dos encargos por parte dos réus, pois, foi a autora/apelante que decidiu regressar a sua casa – alínea j) dos factos provados; nem resulta do contrato celebrado que tenha sido convencionado o direito do doador ou dos seus herdeiros exigirem a resolução daquele. III. Da revogação por ingratidão. Estabelece o artigo 974º do C.C., que a doação pode ser revogada por ingratidão, quando o donatário se torne incapaz, por indignidade, de suceder ao doador, ou quando se verifique alguma das ocorrências que justificam a deserdação. A revogação da doação por ingratidão exige que o donatário se torne incapaz, por indignidade, para suceder ao doador, ou que se encontre em alguma das situações justificativas de deserdação. As causas da revogação são apenas as que estão contempladas naquele artigo e, por isso, mesmo que o doador, por qualquer motivo, se arrependa da liberalidade que efetuou, tendo-a o donatário aceitado, fica-lhe vedada a possibilidade de voltar atrás em relação ao que assumiu. As primeiras causas de ingratidão do donatário vêm enumeradas no artigo 2034º do C.C. As duas primeiras alíneas deste artigo, consideradas também como causas de deserdação, exigem a condenação do indigno por algum dos crimes aí previstos. As causas de deserdação estão enumeradas no artigo 2166º. O último fundamento previsto – ter o sucessível (donatário), sem justa causa, recusado ao autor da sucessão (doador) ou ao seu cônjuge os devidos alimentos – tem de ser confrontado com o disposto no artigo 2011º. São devidos alimentos pelo donatário ou seus herdeiros na medida apenas em que os bens doados pudessem assegurar ao doador meios de subsistência e este carecesse deles. cfr. Pires de Lima e A. Varela, ob. cit., volume II, págs. 278 e 279. Dos factos provados não resulta qualquer fundamento legal para a revogação da doação por ingratidão do donatário, nos termos do citado artigo 974º do C.C. Improcede, assim, o recurso da autora B…. Decisão: Pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes desta secção cível em julgar improcedente a apelação e, consequentemente, confirmar a sentença recorrida. Custas pela apelante. Sumário: I. A resolução da doação, prevista no artigo 966º do C.C., só tem lugar quando as partes no contrato previram essa forma de cessação. II. Não basta que o doador alegue o incumprimento do encargo imposto e que a cláusula modal foi a causa impulsiva da doação, para obter a resolução desta. Também é necessário que o direito de resolução lhe seja conferido pelo contrato. III. A revogação da doação por ingratidão exige que o donatário se torne incapaz, por indignidade, para suceder ao doador, ou que se encontre em alguma das situações justificativas de deserdação. IV. As causas da revogação são apenas as que estão contempladas no artigo 974º do C.C. e, por isso, mesmo que o doador, por qualquer motivo, se arrependa da liberalidade que efetuou, tendo-a o donatário aceitado, fica-lhe vedada a possibilidade de voltar atrás em relação ao que assumiu. Porto, 14.3.2016 Augusto de Carvalho José Eusébio Almeida Carlos Gil |