Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1015/11.9TBGDM.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: VIEIRA E CUNHA
Descritores: IMPUGNAÇÃO PAULIANA
MÚTUO INVÁLIDO
ASSUNÇÃO DE CUMPRIMENTO
FORMA
Nº do Documento: RP201303051015/11.9TBGDM.P1
Data do Acordão: 03/05/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: CONFIRMADA.
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO.
Área Temática: .
Sumário: I - Para efeitos do disposto no art° 646° n°4 CPCiv, do qual se retira a proibição de perguntas conclusivas ou sobre matéria de direito, a expressão "empréstimo", quando aplicada à realidade que consiste na cedência de uma quantia em dinheiro a uma outra pessoa, com a obrigação para esta de a devolver, constitui um facto conotativo, confirmado pelas regras usuais da vida, e pode figurar na Base Instrutória, não prejudicando a qualificação juscivilística posterior.
II - Sendo pressuposto da acção pauliana a prova, pelo Autor e credor, da existência do crédito, pode este mesmo crédito resultar, não de mútuo válido, mas das consequências de devolução do prestado que, para as partes, acarreta a declaração de nulidade - art° 289° n°1 CCiv e Assento STJ n° 4/95, de 28 de Março, in D.R., Is., de 17/5/95.
III - O contrato de mútuo é um contrato real quoad consíitutionem, ou seja, um contrato que implica a entrega da coisa para que surja o contrato (art°1144°CCiv).
IV - A assunção de cumprimento, enquanto contrato a favor de terceiro, regulado pelo disposto no artº 443° n°s 1 e 2 CCiv, não tem forma tarifada se o cumprimento da obrigação perante o terceiro também o não tinha e é compatível com o compromisso de devolução, por parte do primitivo devedor ao assuntor, das quantias pelo mesmo despendidas na prestação que efectuou ao terceiro credor.
Reclamações:
Decisão Texto Integral:
• Rec. 1015-11.9TBGDM.P1. Relator – Vieira e Cunha (decisão de 1ª instância de 25/06/2012). Adjuntos – Desembargadores Maria Eiró e João Proença Costa.
Acórdão do Tribunal da Relação do Porto

Súmula do Processo
Recurso de apelação interposto na acção com processo ordinário nº1015/11.9TBGDM, do 3º Juízo Cível da Comarca de Gondomar.
Autor – B…..
Réus – C…. e D…...

Pedido
Que os bens identificados na acção sejam restituídos na medida do interesse do Autor/credor, que os poderá executar no património do 2º Réu.

Tese do Autor
O Autor mutuou à Ré e à filha desta a quantia de € 45 500, titulada por um documento particular de confissão de dívida.
Todavia, a Ré constituiu uma hipoteca legal voluntária sobre um prédio urbano, sua propriedade, com base numa escritura de confissão de dívida e constituição de hipoteca, a favor do 2º Réu, seu sobrinho. Tal imóvel, com o respectivo recheio, constituem os únicos bens conhecidos à Ré.
Trata-se de contratos simulados, com o único interesse de prejudicar o Autor. Por outro lado, foram outorgados no exclusivo intuito de impedir a satisfação do direito do Autor.
Tese dos 1ª e 2º Réus
Impugnam motivadamente a alegação do Autor.
A 1ª Ré invoca que, a ter existido qualquer mútuo, o mesmo é nulo, pela carência de forma legal tarifada, o que deve implicar absolvição do pedido.
Sentença
Na sentença proferida pela Mmª Juiz “a quo”, a acção foi julgada procedente e, em consequência, ordenada aos Réus a restituição do imóvel identificado na P.I., na medida do interesse do Autor, sem oponibilidade de hipoteca, Autor que o poderá executar no património do 2º Réu, até onde for necessário para a satisfação do seu crédito.

Conclusões do Recurso de Apelação apresentado pela 1ª Ré
1ª - O Tribunal deveria ter previamente decidido a questão prévia da nulidade do contrato de mutuo, ao não o fazer preteriu uma formalidade substancial.
2ª - Efectivamente o referido contrato de mútuo era e é nulo por falta de forma nos termos do art. 220º do C. Civil, já que os contratos de mútuo de valor superior a € 20.000, 00 só são válidos se forem celebrados por escritura pública, conforme dispõe o art. 1143º do C. Civil,
3ª – Pelo que se tal excepção fosse prévia e imediatamente analisada e declarada, a consequência seria a absolvição do pedido logo no saneador.
4ª - A questão assim levantada era uma questão prévia, que deveria merecer a imediata atenção do julgador, o que não aconteceu.
5ª - Efectivamente, o Meritíssimo Juíz da instância deveria imediatamente ter-se debruçado sobre tal questão prévia e consequentemente declarado a nulidade do contrato, até porque de conhecimento oficioso, e sem mais determinar a absolvição imediata da Ré.
6ª - Ao não proceder desta forma, e validando documentos que a própria Lei reputa de nulos, ouve erro na aplicação do direito, nomeadamente das normas legais supra referidas.
7ª – Existiu também erro na apreciação das provas produzidas e juntas aos autos.
8ª – Efectivamente, na sentença ora em crise, perguntava-se no quesito 8º: “ Entre Autor por um lado, e por outro lado, e Ré e filha desta, E…., foi acordada a celebração de um empréstimo, no valor global de 45.500, 00 €?”.
9ª - Que recebeu como resposta, conforme resulta da resposta aos quesitos, “provado apenas e com esclarecimento de que o autor emprestou à R, a pedido da R, a quantia global de € 35.500, 00”, conforme vem também referido na motivação da sentença.
10ª - Antes de mais e como se vê, do falado documento de confissão de dívida consta o valor de € 45.500, 00 e da resposta ao quesito resulta só e apenas € 35.500, 00, com o qual também não se concorda, e que faz desde logo levantar suspeitas quanto á forma como tal documento foi realizado, e, por outro lado, justifica o cuidado da Lei ao exigir para tais contrato uma forma mais solene, ou seja a escritura pública.
11ª - Acresce que alegadamente à realização do falado documento estaria pois a outorga de um contrato de mútuo previsto no art. 1142º e sgs. do C. Civil, onde aí se refere que “Mútuo é o contrato pelo qual uma das partes empresta à outra dinheiro ou outra coisa fungível, ficando a segunda obrigada a restituir outro tanto do mesmo género ou qualidade”.
12ª - O contrato de mútuo é um contrato “real quod constitutionem”, isto é, só fica completo e perfeito com a entrega da quantia mutuada.
13ª - Sucede que não ficou provado que o Autor tenha entregue à Ré C..... a mencionada quantia ou outra.
14ª - Efectivamente, quer dos documentos juntos quer das testemunhas apresentadas, nenhuma delas referiu ter o Autor entregue à Ré a quantia falada nos autos.
15ª - Pelo contrário, foi dito pela testemunha F...... que “…os cheques foram levantados e depositados na conta da G......…”, “ Dinheiro que a C..... não recebeu.” “O Sr. B...... nunca lhe entregou o dinheiro.”., pelo que tal depoimento deve ser analisado criticamente.
16ª - Por outro lado do depoimento da E......, resulta entre o mais que “O Sr. B...... nunca entregou dinheiro”; “Foi obrigada a assinar a declaração de confissão de dívida”; “Na altura foi para pagar ao Sr. B......”; “Na altura era para pagar algo que nunca recebeu”, pelo que tal depoimento e nessa medida deve ser analisado.
17ª - Quanto ao depoimento da testemunha F......, referiu que “foi feita uma transferência do valor do dinheiro para a D. H......” “o meu pai transferiu trinta e cinco mil euros”.
18ª - Ouçam-se os depoimentos das indicadas testemunhas, para se ver que efectivamente não só a Ré não pediu emprestado ao Autor a referida quantia como a mesma nunca lhe foi entregue pessoalmente.
19ª - Pelo contrário resulta dos autos a existência de uma transferência de € 35.500, 00 do Autor para a conta da Dra. H......, que, segundo é referido terá utilizado parte do dinheiro para pagamento da penhora do processo 1047/06.9TBGDM. E pergunta-se, que é feito do restante dinheiro? Serviu para quê? Para pagamento de despesas e custos? Quais? Onde se encontram os recibos justificativos dessas despesas? E porque é que nada foi dado conhecimento à Ré? Porque é que não lhe foram entregues documentos comprovativos? Ora nada disso resultou provado para que se dessem como provadas as respostas aos quesitos 9º a 11º.
20ª - E mais grave, se a alegada confissão de dívida foi assinada com data de 03.03.2010, como é que esta, com as alegadas dificuldades económicas, poderia pagar os €45.500, 00 no dia 03.05.2010? Ou seja dois meses depois? Com que intenção foi forjado todo este negócio?
21ª - Existe assim manifesto erro de apreciação de prova, e mais, existe manifesta falta de prova para se dar como provado o que consta dos quesitos 9º a 11º da base instrutória.
22ª -Dos factos dados como provados resulta inequivocamente e sem margem para quaisquer dúvidas que o Autor não entregou à Ré a referida quantia de 35.500, 00 €. Pelo contrário, resulta provado que o Autor terá transferido tal quantia para a conta da Dra. H......, e que esta terá pago o processo 1047/06.9TBGDM.
23ª - Face aos documentos juntos aos autos, e ao depoimento das testemunhas, nunca deveria ter sido dado como provados os quesitos 8º, 9º a 11º inclusive, 13º. À matéria dada como provada, dúvidas não há que a resposta ao quesito 1º deveria ter sido positiva.

Factos Provados
A. A fracção urbana destinada a habitação com lugar de garagem na cave, designada pelas letras “BF”, no 2º andar esquerdo traseiras do prédio urbano constituído em propriedade horizontal, sito na Rua …, com entradas pelos nºs … e … encontra-se descrita na Conservatória do Registo Predial de Gondomar – Freguesia de Rio Tinto, sob o nº 1681/19890419-BF.
B. Foi inscrita na Conservatória do Registo Predial de Gondomar a favor de C..... a aquisição, por compra a I…., Lda, da fracção descrita em A), pela Ap. nº 63, de 1996/05/31.
C. Foi inscrita na Conservatória do Registo Predial de Gondomar, sobre o prédio descrito em A) a favor de Eduardo Jesus e Silva, hipoteca voluntária de C..... Vieira Fernandes, pelo capital de € 75.000,00 e o montante máximo assegurado de € 78.000,00, garantindo um empréstimo que não vence juros e com despesas de € 3.000,00, pela Ap. nº 2297, de 2010/11/04.
D. Foi inscrito na Conservatória do Registo Predial de Gondomar, sobre o prédio descrito em A), a favor de B...... Cosme da Silva, arresto contra C..... Vieira Fernandes, decretado no âmbito do processo nº 519/11.8TBGDM, do 3º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Gondomar, para garantia da quantia de € 55.050,00, pela Ap. nº 2105, de 2011/02/28.
E. Correram termos neste mesmo Tribunal e Juízo, sob o nº 519/11.8TBGDM, uns autos de procedimento cautelar de arresto, em que é requerente B...... Cosme da Silva e requeridas E...... Fernandes Lourenço, tendo a providência requerida sido decretada, cfr. decisão de fls. 41 a 47, que aqui se dá por integralmente reproduzida, autos esses que ora se encontram apensados aos presentes.
F. No dia 4 de Novembro de 2010 celebrou-se no Cartório Notarial do Notário José António Resende Oliveira, no Porto, escritura pública denominada de “Confissão de Dívida e Hipoteca”, em que foram outorgantes C..... Vieira Fernandes e Eduardo Jesus e Silva, em que a primeira declarou “Que se confessa devedora ao segundo outorgante, Eduardo Jesus e Silva, da quantia de setenta e cinco mil euros, proveniente de empréstimos diversos realizados ao longo destes últimos cinco anos e que nesta data unifica. O referido valor de setenta e cinco mil euros será pago, sem juros, em três prestações de vinte e cinco mil euros cada, vencendo-se a primeira no dia vinte e oito de Fevereiro do ano dois mil e onze, a segunda em trinta de Junho do ano vindouro e a terceira no dia trinta de Outubro do ano dois mil e onze. (…) Em garantia a) do capital em dívida de setenta e cinco mil euros; b) das despesas judiciais e extrajudiciais incluindo honorários de advogado ou solicitador que o credor houver de fazer para garantir e assegurar o reembolso do seu crédito, que para efeitos de registo se fixam em três mil euros, a primeira comparecente constitui hipoteca a favor de D......sobre a seguinte fracção autónoma: Fracção “BF” – segundo andar esquerdo traseiras para habitação, sendo a entrada pelo nº 58 da Rua …., lugar de garagem na cave, tendo a entrada pelo nº 92 da mesma Rua, com todas as suas pertenças, descrita na Conservatória do Registo Predial de Gondomar, sob o número mil seiscentos e oitenta e um/mil novecentos e oitenta e nove zero quatro dezanove “BF” (1681/19890419-BF) (…)”. E pelo segundo comparecente foi dito: “Que aceita a presente confissão de dívida e hipoteca nos termos sobreditos.”.
DA BASE INSTRUTÓRIA:
- a Ré e filha conhecem o autor, sendo que a Ré esteve presentes em, pelo menos, três reuniões havidas com ele e a sua filha em, pelo menos, duas reuniões, em diversos locais (resposta ao quesito 2º).
- Na altura, a Ré e o seu agregado familiar atravessavam graves dificuldades económicas (resposta ao quesito 3º).
- No âmbito da Acção Executiva que correu termos nesse Tribunal sob o n.º 1047/06.9TBGDM, 2º Juízo Cível, figurava como Executada a aqui Ré e estava penhorado o imóvel descrito na Conservatória do Registo Predial de Gondomar, sob o n.º 1681/19890419-BF, da freguesia de Rio Tinto, pela Ap. 53 de 200/02/08, com a respectiva venda marcada para o dia 03.12.2009 (resposta ao quesito 5º e 6º).
- O imóvel descrito em A) constitui a residência da Ré e dos seus dois filhos (resposta ao quesito 7º).
- O autor emprestou à Ré, a pedido da Ré, a quantia no valor global de € 35.000,00 (resposta ao quesito 8º, como resultante da modificação operada nesta instância).
- Essa quantia corresponde ao valor que a Ré despendeu, designadamente com o pagamento da quantia exequenda naqueles identificados autos, pagamento da nota de despesas e honorários discriminativa final apresentada pelo Solicitador de Execução, e bem assim, emolumentos de registo para cancelamento de penhora, honorários da mandatária, pelos quais a ré era responsável (resposta aos quesitos 9º a 11º).
- esses pagamentos no valor global de 35.000,00 foram assegurados pelo autor, através da, na ocasião, mandatária da Ré Rosa, em finais do ano de 2009 (resposta ao quesito 12º).
- Para formalizarem o referido contrato de mútuo, a Ré e a filha daquela assinaram documento particular denominado “confissão de dívida”, em 03.03.2010 (resposta ao quesito 13º).
- … estando as respectivas assinaturas reconhecidas (resposta ao quesito 14º).
- … e pelo qual se obrigaram a restituir ao Requerente a quantia de 45.500,00€, até ao dia 03.05.2010, acrescida de juros de mora à taxa de 20%, a qual se deve considerar reduzida à taxa de 7%, cfr. doc. junto a fls. 18 a 22 do apenso “A”, que aqui se dá por reproduzido (resposta ao quesito 15º).
- Para pagamento daquele montante, obrigou-se a Ré por intermédio da filha a contrair um empréstimo bancário (resposta ao quesito 16º).
- Mais tendo assegurado a Ré, ser proprietária do imóvel descrito em A) (resposta ao quesito 17º).
- … que serviria de garante da divida (resposta ao quesito 18º).
- Com a quantia mutuada pelo Autor a ré iria efectuar os pagamentos que permitiram cancelar a hipoteca voluntária registada no imóvel pela Ap. 20 de 2005/05/31 e a penhora registada pela Ap. 53 de 2008/02/08 (resposta ao quesito 19º).
- … ficando assim o imóvel livre de ónus e encargos (resposta ao quesito 20º).
- A aqui Ré e a filha da mesma, alegaram dificuldades na contratação do empréstimo bancário para justificar o não pagamento do empréstimo (resposta ao quesito 21º).
- a Ré informou que o empréstimo bancário em nome da filha E...... estava a prestes a ser aprovado, mais tendo alegado que o Autor já tinha um contrato promessa a seu favor (resposta ao quesito 23º).
- Só posteriormente o A. teve conhecimento do facto descrito em C) (resposta ao quesito 25º).
- A escritura referida em F) foi feita com o único intuito de impedir o autor de receber o seu crédito (resposta ao quesito 26º).
- Aquela escritura, não passou de um acto concertado entre os Réus (resposta ao quesito 27º).
- … os quais têm uma relação de parentesco entre si, pois a Ré é sobrinha do Réu (resposta ao quesito 28º).
- A Ré confessou ao Autor que a confissão de dívida tratou-se de um acto “simulado” (resposta ao quesito 29º).
- Não existiram empréstimos nos montantes aludidos na escritura referida em F) (resposta ao quesito 30º).
- Ao realizar a referida escritura a Ré pretendeu unicamente onerar o imóvel, de modo a que, em caso de instauração da respectiva acção executiva pelo aqui Autor, aquele bem não fosse apto a satisfazer o crédito daquele, face à garantia real, registada anteriormente (resposta ao quesito 31º).
- Pois o dito imóvel, constituía a única “garantia” do Autor (resposta ao quesito 32º).
- Além do imóvel da Ré, apenas foi possível apurar a existência dos bens móveis que constituem o recheio da casa de habitação, o qual já se encontra penhorado, no âmbito da acção executiva n.º 2230/06.2TBGDM, 2º Juízo Cível, instaurada pela Administração do Condomínio por falta de pagamento das respectivas quotas (resposta aos quesitos 34º e 35º).
- O imóvel referido em A) tem um valor aproximado de 75.000,00 € (resposta ao quesito 39º).

Fundamentos
As questões substancialmente colocadas pelo recurso em análise consistem em saber:
- se os quesitos 8º a 11º e 13º deveriam ter recebido resposta negativa, e o quesito 1º resposta positiva, conhecendo dos reflexos de tal mudança nos factos provados sobre a solução jurídica da causa;
- da relevância do contrato de mútuo invocado pelo Autor, enquanto contrato inválido, por falta de forma, e insusceptível de fundamentar um crédito sobre a Ré.
Vejamos então.
I
Se o património do devedor responde, em face do credor, pelo cumprimento das obrigações daquele, haverá que prevenir que esse mesmo devedor faça sair do seu património determinados bens, no intuito de frustrar a garantia geral dos credores.
A acção pauliana, do nome do jurisconsulto romano que a consagrou, Paulo, não visa a execução de uma obrigação, mas antes o tornar ineficaz, em face do credor, o concreto acto de empobrecimento do devedor, em proveito de um terceiro, acto esse que tenha frustrado no património do credor a garantia geral do respectivo crédito.
É um simples meio conservatório da garantia patrimonial, que não visa a destruição de um acto, de resto não possuidor de qualquer vício genético, mas simplesmente a prevalência dos interesses de um terceiro credor, prejudicado com o acto, restabelecendo, exclusivamente para o credor, o statu quo ante.
O que interessava assim averiguar, para a procedência da acção, entre o mais, era se o Autor se constituíra, ou não, credor da Ré, e o montante do respectivo crédito.
Passemos então agora à análise da matéria de facto fixada na audiência de julgamento e que resultou impugnada pelas doutas alegações de recurso.
No quesito 1º perguntava-se se “o Autor foi apresentado à Ré por intermédio de uma pessoa conhecida de ambas as partes, em final do ano de 2008, início do ano de 2009”. Respondeu-se “não provado”.
O Código de Processo Civil, na redacção aplicável aos presentes autos e na norma do artº 685º-B nº2, diz que “incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso no que se refere à impugnação da matéria de facto, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda, sem prejuízo da possibilidade de, por sua iniciativa, proceder à respectiva transcrição”.
Desta forma, acompanhando assim a melhor doutrina (ut Consº Abrantes Geraldes, Recursos – Novo Regime, 2007, pg. 138), o Recorrente, lançando mão do CD de gravação, terá que identificar as partes relevantes dos depoimentos, pelo momento temporal do mesmo depoimento em que tais declarações relevantes foram prestadas, ou então identificá-las pela hora, tudo possível pela consulta ao CD, sem prejuízo da faculdade paralela de apresentar transcrições, as quais, outrossim, são aptas a identificar o meio probatório a que se confere relevância impugnatória, face ao decidido em 1ª instância.
Desta forma, como encarar a concreta impugnação recursória dos presentes autos?
Quanto à resposta dada ao quesito 1º, o recurso limita-se a referir que a resposta ao quesito deveria ter sido positiva, todavia não foram indicados quaisquer meios de prova, identificados momentos de depoimentos ou efectuadas transcrições que infirmassem o sentido da resposta dada (“não provado), razão pela qual, quanto a este concreto ponto de facto, o recurso não poderá ser conhecido.
No quesito 8º perguntava-se se “entre o Autor, por um lado, e, por outro lado, a Ré e a filha desta, foi acordada a celebração de um empréstimo, no valor global de € 45 500”. Respondeu-se “provado que o autor emprestou à Ré, a pedido desta, quantia no valor global de € 35 500”. Sustenta-se que deveria ter sido respondido “não provado”.
Como esclarecimento prévio, devemos esclarecer como entendemos a pergunta sobre um “empréstimo” considerada enquanto “facto” (e por essa razão alvo de instrução e prova), que não enquanto instituto jurídico, apto a uma interpretação de cariz ou teor juscivilístico.
Tendo presente o ensinamento do Prof. J. Alberto dos Reis, Anotado, III/212, segundo o qual “a prova só pode ter por objecto factos positivos, materiais e concretos; tudo o que sejam juízos de valor, induções, conclusões, raciocínios, valorações de factos, é actividade estranha e superior à simples actividade instrutória”, não esquecemos porém o precioso complemento da lição do Prof. Anselmo de Castro, Lições, III/424, cit. in Consº Abel Freire, Matéria de Facto – Matéria de Direito, Colectânea STJ, 2003-III-pg. 5: “pode acontecer que o juízo de valor sobre a matéria de facto corresponda, ele próprio, a uma regra da vida ou da experiência (…); então não funciona sequer como juízo de valor sobre a matéria de facto, sendo um puro facto e podendo figurar como tal no questionário”.
É o que pensamos poder entender-se acerca da expressão “empréstimo”, quando aplicada à realidade que consiste na cedência de uma quantia em dinheiro (no caso) a uma outra pessoa, com a obrigação para esta de a devolver.
E acrescenta o Consº Abel Freire, op. cit., pgs. 5 e 6, fundado em Karl Larenz: “a antecipação mental da apreciação jurídica dos acontecimentos não impede em regra o julgador de apreender e transmitir verbalmente, primeiro, esses acontecimentos, independentemente ainda de como devem ser apreciados juridicamente, como o recurso da experiência natural do homem no seu modo de ser particular”.
Se considerarmos uma tal expressão (“empréstimo”) enquanto termo “descritivo” ou “conotativo” (Stuart Mill), designadamente na sequência da tradição escolástica e logicista (Bertrand Russell), encontramo-nos perante uma forma de individualização, na qual temos em conta apenas um facto, ainda que não designado pelo nome mais concretizado – aceitando esta acção como individualização do caso concreto, veja-se Karl Engisch, La Idea de Concreción en el Derecho y en la Ciencia Jurídica Actuales, Granada, 2004, pg. 302.
Isto dito, não há dúvida que a prova testemunhal, conjugada com o documento “confissão de dívida”, aludido no quesito 13º e junto com os autos de providência cautelar em apenso, suporta a existência de uma ou várias entregas em dinheiro, feitas pelo Autor à Ré/Recorrente – a testemunha F...... confirmou o projectado empréstimo, com dinheiro em cheque, e não deixou de declarar que existia pendente um pagamento de € 35.000 ao tribunal e que o encontro que presenciou entre o Autor e a 1ª Ré teria sido para resolver o compromisso anterior (não cumprido por G......) de esta receber a citada quantia entregue pelo ora Autor “para ele entregar à C….” e “resolver o problema que estava na mesa”; a filha da Ré, E......, também invocou que sua mãe “acordou com o sr. B...... a entrega do dinheiro, mas ele nunca me foi dado”, embora depois tenha rectificado ligeiramente que um dos cheques foi primeiro entregue à ora Ré, que o assinou “por trás” e assim foram entregues à D. G….; igualmente a filha do Autor G…. declarou “a D. G…. pediu ao meu pai para emprestar dinheiro à D. C….” e “sempre se falou em emprestar dinheiro” – daí que, embora apenas um dos cheques de que a citada G…. se apropriou ou depositou em contas suas tivesse a assinatura do punho da ora Ré, os restantes tinham a assinatura referida “falsificada”.
Note-se igualmente que, após a invocada apropriação dos cheques por parte da citada G…., esta veio a devolver a parte mais substancial da quantia em dinheiro titulada pelos cheques sacados pelo Autor, a este mesmo Autor, quem, após, procedeu a transferência para a então mandatária da Ré – como decorreu claramente do depoimento da filha do Autor.
Portanto, a substância da resposta é correcta e vai confirmada, havendo apenas que rectificar o montante constante da resposta ao quesito, pois todas as testemunhas citadas, e independentemente do valor probatório do documento “confissão de dívida”, aludiram a um montante emprestado, para a finalidade de pagamento de uma quantia exequenda, no total de € 35 000, e não de € 35 500, como conta da resposta adoptada, certamente por lapso. A citada rectificação consta já da matéria de facto provada, conforme supra.
Nos quesitos 9º, 10º e 11º perguntava-se se “essa quantia corresponde ao valor que a Ré despendeu designadamente com o pagamento da quantia exequenda, naqueles identificados autos, pagamento da nota de despesas e honorários discriminativa final apresentada pelo Solicitador de Execução” e “bem assim emolumentos de registo para cancelamento da penhora, honorários da mandatária, pelos quais a Ré era responsável”. Os três quesitos foram respondidos “provado”; para as doutas alegações de recurso, tal matéria deveria ter resultado “não provada”.
Ora, não há dúvida, pelo teor da fundamentação que atrás expusemos, relativamente à resposta ao quesito 8º, que a citada quantia “emprestada” se destinou, a final, ao pagamento da quantia exequenda e custas do processo – cf. igualmente o depoimento de Ana Cristina Silva.
E tendo sido a transferência para a citada mandatária judicial no montante global de € 35 000 (segundo depoimento de G….) é razoável crer que o montante sobrante da quantia exequenda e custas do processo (fls. 154 dos presentes autos - € 32 500) se destinou ao pagamento de honorários, sem esquecer que a mesma testemunha aludiu a “outros empréstimos”, de montantes inferiores, que teriam totalizado € 5 000.
Confirma-se assim a resposta adoptada.
No quesito 13º perguntava-se se “para formalizarem o referido contrato de mútuo, a Ré e a filha daquela assinaram documento particular denominado “confissão de dívida”, em 3/3/2010”. Respondeu-se “provado” e, uma vez mais, pretende-se a resposta “não provado”.
Todavia, como decorre do que já expusemos, designadamente dos depoimentos de E...... e J…., é manifesto que o citado documento particular pretendeu apenas formalizar uma garantia para a entrega de cheques, por parte do ora Autor, a fim de se extinguir o processo executivo contra a ora Ré e para pagamento de outras despesas relacionadas com a execução.
A resposta “provado” ao quesito 13º vai assim também confirmada.
II
Como é sabido, na sistemática civilística portuguesa dos artºs 610º a 612º CCiv, ut Prof. Menezes Cordeiro, R.O.A., 1991-II-552, são os seguintes os pressupostos da acção pauliana:
- um acto praticado pelo devedor que não seja de natureza pessoal;
- acto esse que provoque, para o credor, a impossibilidade de obter a satisfação integral do seu crédito ou o agravamento dessa impossibilidade;
- havendo má fé, ou simplesmente um acto gratuito;
- um crédito anterior ao acto ou
- mesmo um crédito posterior, quando o acto tenha sido efectuado dolosamente com o fim de impedir a satisfação do direito do futuro credor.
Em causa no presente recurso encontra-se assim o específico requisito do crédito invocado pelo Autor sobre a Ré, sua validade, ou até, simplesmente, a sua efectiva existência.
Comecemos então pela questão relativa à relevância do contrato de mútuo invocado pelo Autor, enquanto contrato inválido, por falta de forma, e insusceptível de fundamentar um crédito sobre a Ré.
Não há dúvida, e têm razão as doutas alegações, quando invocam a nulidade do contrato de mútuo celebrado; a validade do mesmo encontrava-se dependente de escritura pública, nos termos do disposto no artº 1143º CCiv, na redacção do D-L nº 116/2008 de 4 de Julho.
Para atingir esta conclusão não vale argumentar com o facto de o documento que fundamenta o invocado crédito sobre a Ré ter sido intitulado “confissão de dívida”, à semelhança do negócio unilateral previsto no artº 458º CCiv: o que se encontra em causa na referida norma é apenas uma presunção de causa, como se extrai da sua própria literalidade.
Ora, são os outorgantes do referido contrato ou reconhecimento unilateral que aludem a um “empréstimo concedido” pelos segundos outorgantes (entre eles o aqui Autor).
Sendo assim, não há que falar de reconhecimento unilateral de dívida e de desconhecimento da respectiva causa, já que são os próprios falados outorgantes (e agora o próprio Autor, na acção) quem alude ao negócio causa da declaração – um determinado empréstimo de uma quantia em dinheiro.
E finalmente, mesmo considerando o negócio uma declaração unilateral ou confissão de dívida (que o não é, em boa verdade), também não se encontrava a Ré mutuária impedida de invocar a respectiva invalidade ou nulidade, com os efeitos a que se reporta o disposto no artº 289º nº1 CCiv, ou seja, com a restituição do que tiver sido prestado.
E assim, no caso, tendo a prestação do Autor sido efectuada pela entrega de uma determinada quantia em dinheiro, tem assim o Autor sobre a Ré o crédito decorrente da restituição do que prestou, restituição que opera por força da nulidade do negócio.
Observe-se que as consequências da nulidade devem ser feitas operar oficiosamente pelo Tribunal, como o impõe a doutrina do Assento STJ nº 4/95, de 28 de Março, in D.R., Is., de 17/5/95, doutrina essa que se sufraga por inteiro.
Outra coisa não diz, de resto, a douta sentença recorrida, à qual devemos o reconhecimento de que, efectivamente, tratou da questão da nulidade do negócio, e bem o fez, aplicando a doutrina adequada, no que respeita às consequências para a presente acção, isto é, para a necessária constatação da existência de um crédito do Autor sobre a Ré.
Sob um outro ângulo, as doutas alegações invocam, com razão, ser o contrato de mútuo um contrato real quoad constitutionem, ou seja, um contrato que implica a entrega da coisa para que surja o contrato (artº 1144º CCiv e, por todos, Prof. Pessoa Jorge, Obrigações, lições policopiadas, 75/76, pgs. 169 e 170).
Abstraindo dos factos julgados provados, não há dúvida de que a ausência da entrega da coisa, no mútuo, torna o contrato igualmente nulo, por falta de objecto (cf. artº 280º CCiv e, v.g., S.T.J. 15/2/2007 Col.I/71, acórdão relatado pelo Consº Urbano Dias). Continuaríamos, pois, no âmbito da nulidade e, em consequência, da possibilidade de existência de crédito sobre a Ré, por força da actuação dos efeitos declarados da referida nulidade.
Defende a Ré, no entanto, nas suas doutas alegações, ter efectivamente inexistido a falada entrega de dinheiro à Ré – de facto, como resulta da resposta ao quesito 12º, e apesar da alusão da matéria de facto a um “empréstimo”, “os pagamentos no valor global de 35 000,00 foram assegurados pelo autor, através da, na ocasião, mandatária da Ré Rosa”.
Assim, na tese da Ré, resulta antes dos autos a transferência de uma determinada quantia em dinheiro para a conta de uma ilustre advogada, que terá utilizado parte do dinheiro para pagamento de uma quantia exequenda, desta forma propiciando o levantamento de uma penhora e a extinção da execução.
Esta interpretação é, de facto, a mais consentânea com a globalidade do apurado.
Nesse estado de coisas, algo muda, quanto a considerarmos a efectiva existência de um crédito do Autor sobre a Ré, justificativo do accionamento da acção pauliana? De forma alguma.
Na dita configuração, e entre o ora Autor e a ora Ré, o negócio subsume-se à figura da promessa de liberação ou assunção de cumprimento, regulada pelo disposto no artº 443º nºs 1 e 2 CCiv.
Esta prévia assunção de cumprimento ou promessa de liberação, porém, não faz desaparecer o compromisso existente, e que resulta do “contrato de mútuo” ou da denominada “confissão de dívida” dos autos, de devolução ao assuntor, por parte do primitivo devedor, da quantia efectivamente remida pelo assuntor e entregue a terceiro, na modalidade expressamente permitida pelo disposto no artº 443º nº2 CCiv.
Nesse sentido, o contrato que liga o Autor à Ré é perfeitamente válido e opera quanto à obrigação que impende sobre a Ré devedora de pagar, no futuro, ao assuntor, as quantias pelo mesmo despendidas na prestação que efectuou ao terceiro credor da Ré.
Note-se que, como se retira da própria natureza da prestação a favor do terceiro e do disposto nos artºs 443ºss. CCiv, o concreto contrato dos autos não possui qualquer espécie de forma tarifada, já que o cumprimento da obrigação perante o terceiro (o exequente, no processo de execução movido contra a ora Ré) também o não tinha (assim, Prof. Menezes Cordeiro, Obrigações – 1º vol., 1980, pg. 538, ou Tratado, Direito das Obrigações, II, 2010, pg. 571).
Sob todos os ângulos de análise, o Autor podia ter invocado um crédito sobre a Ré, como fundamento do seu direito à impugnação pauliana do acto jurídico que o impossibilitava de satisfazer o seu crédito.
Para concluir, a douta sentença merece, de pleno, confirmação.

A fundamentação poderá resumir-se por esta forma:
I – Para efeitos do disposto no artº 646º nº4 CPCiv, do qual se retira a proibição de perguntas conclusivas ou sobre matéria de direito, a expressão “empréstimo”, quando aplicada à realidade que consiste na cedência de uma quantia em dinheiro a uma outra pessoa, com a obrigação para esta de a devolver, constitui um facto conotativo, confirmado pelas regras usuais da vida, e pode figurar na Base Instrutória, não prejudicando a qualificação juscivilística posterior.
II – Sendo pressuposto da acção pauliana a prova, pelo Autor e credor, da existência do crédito, pode este mesmo crédito resultar, não de mútuo válido, mas das consequências de devolução do prestado que, para as partes, acarreta a declaração de nulidade - artº 289º nº1 CCiv e Assento STJ nº 4/95, de 28 de Março, in D.R., Is., de 17/5/95.
III - O contrato de mútuo é um contrato real quoad constitutionem, ou seja, um contrato que implica a entrega da coisa para que surja o contrato (artº 1144º CCiv).
IV – A assunção de cumprimento, enquanto contrato a favor de terceiro, regulado pelo disposto no artº 443º nºs 1 e 2 CCiv, não tem forma tarifada se o cumprimento da obrigação perante o terceiro também o não tinha e é compatível com o compromisso de devolução, por parte do primitivo devedor ao assuntor, das quantias pelo mesmo despendidas na prestação que efectuou ao terceiro credor.

Com os poderes que lhe são conferidos pelo disposto no artº 202º nº1 da Constituição da República, decide-se neste Tribunal da Relação:
Julgar improcedente, por não provado, o interposto recurso de apelação, e, em consequência, confirmar a douta sentença recorrida.
Custas pela Apelante.

Porto, 5/III/2013
José Manuel Cabrita Vieira e Cunha
Maria das Dores Eiró de Araújo
João Carlos Proença de Oliveira Costa