Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2488/03.9TVPRT.P2
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MARIA CECÍLIA AGANTE
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL
ACTO MÉDICO
Nº do Documento: RP201209112488/03.9TVPRT.P2
Data do Acordão: 09/11/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – Pode-se cumular a responsabilidade contratual e extracontratual conferindo-se ao lesado a possibilidade de invocar as normas mais favoráveis de um sistema ou de outro.
II – O exercício colectivo da medicina não prescinde da culpa.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Apelação 2488/03.9TVPRT.P2
Acção ordinária n.º 2488/03.9TVPRT, 1ª Vara de Competência Mista do Tribunal Judicial de Vila Nova de Gaia

Acórdão

Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I. Relatório
B…, residente na Rua …, n.º …, rés-do-chão, dtº., no Porto, propôs a presente acção declarativa de condenação, sob a forma de processo ordinário, contra C…, S. A., com sede na …, n.º … (…), Vila Nova de Gaia, D…, E…, F…, todos com domicílio profissional na …, n.º …, …, Vila Nova de Gaia, Companhia de Seguros G…, com sede na Rua …, …, piso ., Lisboa, pedindo a sua condenação no pagamento da quantia de 20.015,10 euros a título de danos patrimoniais (3.000,00 e 2.075,45 euros) e não patrimoniais (15.000,00 euros), acrescida de juros, à taxa legal, desde a citação até integral pagamento.
Alegou, em síntese, ter sido alvo de operação, nas instalações da ré C…, S.A, ao pé esquerdo para correção de hallux valgus (joanetes). Nessa clínica foi submetido a consulta e, queixando-se de dores nesse pé, apenas com a realização de exame radiográfico, foi sujeito a tal operação, ficando com dores muito fortes no pós-operatório. Foi-lhe recomendada consulta num especialista de cirurgia vascular, que lhe determinou a realização de uma arteriografia por punção femural às artérias ilíceas e restantes dos membros inferiores, que não chegou a realizar por ter recorrido aos serviços de urgência do Hospital … no Porto, devido às intensas dores de que era acometido. Nesse serviço foi-lhe diagnosticada uma infeção com necrose do hallux do pé esquerdo, na sequência da cirurgia ortopédica, e, em 30-04-2000, também lhe foram diagnosticadas psoríase e doença de Buerger. A operação realizada ao hallux valgus foi um erro de diagnóstico, pois o seu padecimento derivava da doença de Buerger (obstrução vascular). Por via da conduta dos réus, sentiu dores durante bastante tempo, sofreu amputação parcial do dedo maior do pé esquerdo e tratamentos doloroso, com a possibilidade de lhe ser amputado o pé. Esteve incapacitado para o trabalho entre 30-03-2000 e 09-06-2000.

Citados os réus, contestou a ré G…, excepcionando a incompetência territorial do tribunal, por estar acordado o foro de Lisboa, e a prescrição do direito do autor, por terem decorrido mais de três anos sobre a operação. Impugnando os factos, por desconhecimento, defendeu que a responsabilidade médica em causa está excluída do contrato de seguro por os factos evocados terem ocorrido há mais de dois anos.
Contestaram os réus C…, D…, E… e F…, refutando a apontada negligência médica. Opuseram que foi correcto o diagnóstico efectuado ao doente, pois padecia de joanetes e não foram detectados sintomas de doença de Buerger. A infecção que sobreveio pode ter tido diversas causas e poderia ter sido debelada com medicação. Requereram a intervenção acessória de H… – Companhia de Seguros, S.A. pelo facto dos réus C…, E… e D… terem transferido para ela a responsabilidade civil decorrente de actos ou omissões no exercício da sua profissão.
Incidente que foi admitido, com a contestação da interveniente na invocação da prescrição do direito do autor e da exclusão da sua responsabilidade relativamente ao réu F…, que foi demandado na qualidade de director da clínica demandada e não pela prática de um acto médico pessoal.

Replicou o autor, contradizendo a prescrição, uma vez que só teve conhecimento do facto ilícito no dia 22-05-2000. No mais, manteve a sua versão dos factos.

Decidido o incidente de incompetência relativa, foram julgadas competentes as Varas Cíveis do Tribunal Judicial de Vila Nova de Gaia.
Realizada a audiência preliminar, foi saneado o processo e relegado o conhecimento da excepção de prescrição para a sentença final. Organizados os factos assentes e a base instrutória, apresentou o autor reclamação, que foi atendida.
No decurso da instrução da causa, foi indeferida a ampliação do objecto da perícia médico-legal ao autor. Despacho de que interpôs recurso, admitido como agravo com subida diferida.

Teve lugar a audiência de julgamento e, no seu decurso, foi requerido pelo autor o aditamento do rol de testemunhas, o que foi indeferido. Desse despacho interpôs o autor recurso, que foi admitido como agravo com subida diferida.
Decidida a matéria de facto, foi apresentada reclamação pelo autor, que não foi atendida.
Prolatada sentença, que julgou a acção improcedente, foi interposto recurso, admitido como apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.
Tendo o autor, na sua alegação, invocado a deficiência de gravação de alguns dos depoimentos prestados, oficiosamente determinou o tribunal a transcrição dos mesmos.

Neste Tribunal da Relação, apreciados os agravos, foram julgados improvido o interposto do despacho que denegou a ampliação do objecto da perícia médico-legal realizada ao autor e provido o interposto do despacho que indeferiu a inquirição da testemunha aditada, com renovação da audiência na parte correspondente e anulação dos actos posteriores. Foi julgada prejudicada a apreciação da apelação, ressalvada a suscitada questão prévia de deficiência da gravação dos depoimentos das testemunhas. Quanto a essa concreta nulidade, atestada a perceptibilidade dos depoimentos, foi decidida a sua inverificação.

Concluída a audiência de julgamento com a audição da testemunha I…, foi decidida a matéria de facto sem reclamação.
Pronunciada a sentença, foi a acção julgada improcedente.

Inconformado, recorreu o autor, cuja alegação assim rematou:
I - Não pode o a./apelante conformar-se com a decisão relativa à matéria de facto, mormente no que foi julgado provado em 9)., 10). e 12).
II - Sobretudo, porque as respostas dadas escamoteiam o comportamento negligente dos Réus, particularmente, do R. D… e do Director Clínico, Dr. F…, no curso do diagnóstico e do tratamento do autor.
III - Ressaltam, por outro lado, insuportáveis contradições entre aqueles factos e os constantes de 30). da douta decisão recorrida.
IV - As testemunhas explicaram que o a. se queixava sobretudo de dores na parte superior da perna, não no pé, esquerda e que apenas o R. D… sustenta – com o objectivo de sustentar o seu diagnóstico – que as queixas do autor se situavam no pé esquerdo.
V – Veja-se o testemunho coincidente da Sra. D. J…, mulher do a., da Sra. Procuradora, Dra. K…, sobrinha do autor, e de L… e M…, amigos do autor, todos afirmaram que o autor se queixada de dores na perna!
VI - A inaptidão do réu D… resulta, aliás, inequívoca do facto lavrado a 21). da douta decisão recorrida: “ao fim de quinze dias, o Autor foi informado pelo Réu D… que teria um problema vascular no hallux esquerdo”(!!!), já que nem depois da operação e do seu desastroso resultado o réu foi capaz de se capacitar de que o autor sofria de um problema vascular, de forma nenhuma circunscrito a um qualquer hallux!
VII – Por outro lado, é também flagrante a contradição entre este facto e os factos que constam de 24.º, 25)., 26)., 29). e 33). já que deste últimos resulta que o diagnóstico da doença vascular que realmente afetava o a. jamais foi efetuado pelo réu D… (antes ou depois da intervenção aos “joanetes” por ele diagnosticados) e só foi, na verdade, logrado pela intervenção dos clínicos que atenderam e trataram o autor no Hospital ….
VIII - Sem conceder, não se compreende – e a douta sentença recorrida não esclarece, padecendo, nessa medida, do vício de falta de fundamentação que se deixa arguido – o relevo que foi dado ao depoimento de parte do réu D… e o total obscurantismo a que foi votado o depoimento das testemunhas arroladas pelo autor, designadamente, daquela a cuja audição foi o Tribunal a quo forçado por este mais Alto Tribunal!
IX - Juízos que determinaram fosse aceite como boa a afirmação do réu D… de que o autor se queixava apenas de dor no pé, como forma de procurar ancorar o precipitado “diagnóstico” por ele efectuado e desvalorizar o facto de não ter usado do zelo e diligência a que estava obrigado, nomeadamente porque, confessou, não fez uso dos meios auxiliares de diagnóstico que o estado da ciência colocou à sua disposição e que as leges artis impunham!
X - Ao que acresce que o Tribunal a quo, aderindo de forma indiscriminada e chocante à tese do réu D…, acaba por imputar ao próprio autor culpa no dano sofrido, designadamente, por não ter informado o réu D… que sofria do mencionado problema vascular, do qual o autor, provou-se nos autos, não sabia – nem tinha de saber – sofrer!
XI – Aliás, a valoração feita pelo Tribunal a quo, na resposta à matéria controvertida e na sentença, do depoimento de parte do réu D… contraria perturbadoramente a função que a lei atribui a este tipo de prova e os respectivos limites.
XII - Na verdade, resulta da conjugação dos artigos 352.º e seguintes com o artigo 552.º do Código de Processo Civil ser o depoimento de parte um meio de prova pelo qual se pretende conseguir que o depoente reconheça a realidade dum facto que lhe é desfavorável e favorece a parte contrária, sendo um meio pelo qual pode ser produzida uma confissão judicial provocada, pelo que só é admissível e só pode ser valorado relativamente a factos que desfavoreçam o depoente e que favoreçam a parte contrária.
XIII - Confronte-se, a este propósito, particularmente, a decisão deste Alto Tribunal, no Ac. de 01/03/2001 (Apelação nº 12640/09.8TBVNG-A.P1 - 5ª Sec.).
XIV - Pela imperfeita análise que fez da prova produzida, pela valoração ilegal que fez do depoimento de parte do réu D… e pela insuficiente fundamentação e obscurantismo, merece a douta sentença recorrida o juízo de censura deste Alto Tribunal, que ocorrerá ordenando-se a respectiva anulação, o que o autor impetra.
XV - Sempre sem conceder, entende o autor que os factos assentes e a respostas dadas à matéria de facto controvertida imporiam, em qualquer caso, solução diferente.
XVI - A doutrina e a jurisprudência têm vindo a evoluir no sentido de ser aplicável à responsabilidade por actos médicos a regra sobre o ónus da prova contida no artigo 799.º, n.º 1, do Código Civil, que o atribui ao devedor no caso de demonstrado incumprimento da prestação.
XVII - Veja-se, a esse propósito, o que decidiu o Supremo Tribunal de Justiça, no douto Ac. de 18/09/2007.
XVIII - O Supremo Tribunal foi ainda mais longe quando, no Ac. de 04/03/2008, considera que a obrigação assumida é, em determinadas circunstâncias, uma obrigação de resultado.
XIX – Ora, no caso sub judice, provados que estão os danos sofridos pelo autor e o nexo de causalidade entre a actuação dos réus e a produção de tais danos, caberia a estes ilidir a presunção de culpa que sobre eles incide, o que estes não lograram.
XX - Sendo que a douta sentença recorrida, aflorando a questão, ultrapassa-a concluindo que o autor não fez a prova da ilicitude, porque «também compete ao paciente fornecer ao médico a informação clínica suficiente para que este possa determinar com a maior precisão possível, quais os exames prévios a realizar a uma operação para que se saibam, os possíveis riscos da mesma ou até para aferir se a operação de se pode realizar. O Autor, face ao que se depreende dos factos e até da alegação, não informou os Réus de que padecia de tal doença e até se pode concluir que nessa altura o Autor não o saberia. (…) os exames a realizar a uma pessoa nesta situação deverão ser os mesmos que numa situação normal devem ser realizados. Se é certo que não se sabe que exames concretos foram realizados, também o é, na nossa opinião, que ao Autor competia demonstrar que não tinham sido realizados os exames necessários e normais para realizar a operação no quadro fáctico em causa.(…) Não existiu erro de diagnóstico como já mencionamos mas existiu antes uma falta de detecção de doença que o Autor não demonstra que os Réus devessem ter detectado».
XXI - O raciocínio explanado na douta sentença recorrida recorre, sempre salvo o devido respeito, a uma falácia da petição de princípio, adoptando como premissa a própria conclusão que se quer demonstrar …
XXII - Pois que jamais poderia incidir sobre o autor a obrigação de relatar aos médicos um sintomas pertinentes à detecção de uma doença de que ele desconhecia – nem tinha de conhecer – padecer.
XXIII - Não cabe ao paciente dar respostas a perguntas que os médicos não fazem, até na medida em que não sabe ele - porque não tem conhecimentos técnicos que lhe permitam saber e por isso consulta um médico - que sintomas ou factos serão relevantes ao correcto diagnóstico!
XXIV - Aos médicos caberia, isso, sim, investigar a história clínica do doente, de forma a despistar as origens alternativas das suas queixas e chegar ao mais correcto diagnóstico.
XXV - Despiste que, no actual estado da ciência médica, se faz com recurso aos meios auxiliares de diagnóstico que, como bem afirma o Supremo Tribunal, praticamente não deixam margem para erro.
XXVI - Sendo certo ainda que dos factos provados resulta que é normal realizar-se, ao menos, antes de uma qualquer operação, as vulgares análises ao sangue e que nem sequer este mínimo cuidado os réus - particularmente, o réu D… – tiveram!
XXVII - Pelo que provado ficou que estava ao alcance dos réus efectuar um diagnóstico correcto ao paciente – diagnóstico ao qual os médicos do Hospital … chegaram depressa e sem dificuldades -, tivessem eles actuado em cumprimento, desde logo, do dever geral de cuidado e que lhes era especialmente exigido pela função desempenhada e imposto pelas leges artis.
XXVIII - De onde - demonstrada que foi a ilicitude - a falta de ilisão da presunção de culpa impor a condenação dos réus.
Nestes termos, deverá: Ser declarada nula a douta sentença recorrida, por força dos vícios de obscuridade e insuficiente fundamentação de que padece. Sem conceder, se assim não se entender, ser a douta sentença recorrida anulada, por ilegal, e substituída por outra que, considerando ter sido feita prova cabal da ilicitude, condene os réus por não terem ilidido a presunção de culpa que sobre eles incidia, assim se fazendo Justiça!

Não consta dos autos a contra-alegação dos réus.

II. Questões a submeter a julgamento
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas da alegação do recorrente, salvo havendo outras que sejam de conhecimento oficioso (artigos 684º, 690º e 690º-A do Código de Processo Civil[1]).
Nessa medida, as questões que importa apreciar são as seguintes:
1. Nulidade decorrente de deficiente fundamentação da sentença.
2. Impugnação da decisão de facto.
3. Responsabilidade civil emergente de acto médico.

III. Fundamentação
1. Nulidade decorrente de deficiente fundamentação da sentença
O apelante atribui à sentença recorrida a nulidade a derivada da deficiente fundamentação da sentença recorrida, sem aduzir qualquer motivação.
A estrutura da sentença, definida pelo artigo 659.º do Código Processo Civil, entronca em três partes: o relatório, a fundamentação e a decisão. Na fundamentação, segmento que o apelante ataca, em obediência ao princípio constitucional do dever de fundamentar os actos jurisdicionais (artigo 205º C.R.P.), o juiz discrimina os factos que considera provados, determina as normas jurídicas aplicáveis, interpreta-as e aplica-as. É assim que uma decisão judicial é nula, além do mais, quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a resolução (alínea b) do n.º 1 do artigo 668º do Código de Processo Civil).
Observada a sentença sindicada vemos que a mesma, para além de exibir os indicados vectores, apresenta a fundamentação de facto, extractando toda a factualidade dada por demonstrada quer por acordo das partes quer por via da decisão de facto tomada sobre a matéria controvertida e, ao nível do enquadramento jurídico, explana os requisitos da responsabilidade civil emergente do exercício da medicina para concluir pela inverificação de qualquer facto ilícito por parte dos demandados. A sentença expressou a motivação do seu juízo jurisdicional, adequando-o à pretensão do autor e à causa de pedir aduzida, dando suficiente arrimo à essência do litígio. Únicas questões que substanciam a solução do pleito, já que os argumentos, razões, juízos de valor ou interpretação e aplicação da lei aos factos evocados pelas partes não exigem integral enfoque. Só há nulidade quando falta em absoluto a indicação dos fundamentos de facto ou dos fundamentos de direito e não a constitui a mera deficiência de fundamentação[2]. Donde a patente inverificação da arguida nulidade.

2. Impugnação da decisão de facto
Discorda o apelante da decisão de facto no tocante aos pontos 9., 10. e 12. da fundamentação de facto, atendo-se a que as respostas dadas escamoteiam o comportamento negligente dos réus no diagnóstico e tratamento do autor. Mais defende que essa factualidade está em contradição com a exarada sob o ponto 30. dessa mesma fundamentação de facto, relativo à sujeição do autor à simpaticectomia lombar esquerda na sequência do diagnóstico da doença de Buerger.
No que tange à apontada contradição não cremos que ela se verifique. A contradição há-de reportar-se à descrição da situação de facto que servirá de base à subsunção normativa e, por isso, tem de estar em causa uma contradição entre factos essenciais que tenham sido dado por provados, por forma a que subsistência de todos eles inviabilize a inclusão ou não inclusão da matéria litigiosa na fattispecie da norma tida por aplicável, prejudicando a solução jurídica do pleito[3]. Nesta base, em regra, não há contradição entre factos provados e não provados, já que, quanto a estes, é como se não tivessem sido alegados. Excepcionalmente, poderá admitir-se a relevância de uma contradição entre factos provados e factos não provados, sempre que as respostas negativas não tiverem acolhido facto que constitui ou integra o antecedente lógico necessário da resposta afirmativa[4].
Os pontos da matéria de facto questionada pelo apelante (9, 10, 12 e 30) reportam-se aos itens 1º, 3º a 5º, 12º e 31º da base instrutória e têm o seguinte teor:
“1º - Antes de 7-02-2000 autor sofria de dores no pé esquerdo?”
“3º - Motivos que levaram o autor a marcar consulta na ré C…?”
“4º - Tendo aí sido atendido, em 7-02-2000, pelo réu D…?”
“5º - O qual (o réu Dr. D…) depois do examinar pediu um exame radiográfico aos pés do autor?”
“12º - Confiando o autor nos réus D… e E…?”
“31º - Foi o autor submetido a intervenção cirúrgica no Hospital … no dia 10-04-2000 a uma simpatectomia lombar à esquerda para remoção dos tecidos moles?”.
Itens que mereceram as seguintes respostas:
1º - Antes de 07-02-2000 o autor tinha dores na zona do pé esquerdo.
3º a 5º - O autor, por sentir dores na zona do pé esquerdo, decidiu marcar uma consulta na ré então denominada «C… ….», tendo aí sido atendido, em 07-02-2000 pelo réu D…, o qual depois de o examinar pediu um exame radiográfico aos pés do autor.
12º - Após a referida consulta e a realização do mencionado exame radiográfico, o réu D…, tendo por base as conclusões deste, decidiu sujeitar o autor a uma intervenção cirúrgica ao pé esquerdo.
31º - No dia 10-04-2000, no Hospital … o autor foi submetido a simpaticectomia lombar esquerda.
No ponto 30º perguntava-se se, aquando da observação do autor no Hospital … “havia gangrena dos tecidos ósseos do pé esquerdo, o que o levava à amputação desse pé” e a resposta foi de “não provado”. Embora o autor apelante não tenha sido muito expressivo no sinalizar da contradição, julgamos, face ao que é razoável, que o mesmo pretende demarcar a antinomia entre a prova de que, naquele hospital, foi submetido a uma simpatectomia lombar esquerda e a falta de prova da “gangrena dos tecidos ósseos do pé esquerdo”. A simpatectomia lombar consiste na ressecção de gânglios simpáticos lombares, em quantidade mínima de 2 a 3 gânglios, por videotoracoscopia ou, a céu aberto, por incisão lombar, com vista ao aumento do fluxo sanguíneo cutâneo e melhoria circulatória. Retirando os nervos da cadeia simpática, que estão localizados no abdómen na porção antero-lateral das vértebras lombares, promove a vasodilatação cutânea no território correspondente, contribuindo, assim, para diminuir a dor de repouso, controlar os fenómenos vasomotores e para a delimitação mais rápida de pequenas necroses cutâneas e cicatrização das lesões da pele[5]. Não há qualquer registo, nem o autor o refere, que o seu pé esquerdo, designadamente o hallux valgus, exibia sinais de ulceração ou necrose, a fazer antever o padecimento de tromboangeite obliterante (TAO - doença de Buerger), com obstrução de artérias distais, lesões isquémicas digitais em evolução e dor intensa local de difícil controlo com analgésicos comuns. Sintomatologia que beneficia, por regra, com a simpatectomia lombar, a qual encontra indicação para casos de isquemia grave, que pode ter, ou não, associada qualquer grangrena. Por isso, nos parece que falece razão ao apelante quando ajuíza que a sua sujeição a tal tratamento cirúrgico é conclusivo no sentido de que tinha o pé gangrenado. Juízo que não está suportado em qualquer dado científico, porque aquele tratamento cirúrgico é usado para as arteriopatias funcionais, designadamente para as arterites secundárias, como a doença de Buerger. Entendemos, pois, que a resposta afirmativa de submissão do autor a simpatectomia lombar não constitui um consequente lógico necessário da gangrena do pé. Questão que foi até dilucidada pela testemunha Dr. N…, cirurgião vascular que observou o autor no Hospital …, no Porto, após a cirurgia ortopédica, dizendo que o doente apareceu-me com muitas queixas dolorosas, num pé, pé esquerdo, no hallux do pé esquerdo… estava necrosado, dores intensas, frio… Instado sobre o aspecto do dedo, esclareceu: … estava numa fase de necrose marcada com um processo inflamatório, potencialmente infeccioso à volta…
Depoimento que não aponta para a gangrena a que apela o autor. A gangrena cutânea é a morte do tecido, associada a um menor fornecimento de sangue à zona afectada, mas seguida de uma invasão bacteriana. A pele pode ter um aspecto pálido de início, mas torna-se vermelha ou cor de bronze até adquirir um tom esverdeado. A infecção também faz com que a pele aqueça e inche. Pode haver uma disseminação extensa por baixo da pele, originando com frequência grandes bolhas cheias de líquido. Esse líquido tem uma coloração castanha e cheira mal. O gás produzido pelos clostrídios costuma borbulhar no líquido e as bolhas de gás fazem com que a pele, ao tacto, pareça crepitar[6]. As considerações tecidas levam-nos a afastar a apontada contradição.
A propósito das respostas dadas à matéria articulada sob os itens 26º e 40º da base instrutória, alega o apelante que a prova testemunhal produzida demonstra que o autor, na consulta pré-cirúrgica, se queixava de dores na parte superior da perna esquerda, não no pé, e que só o réu Dr. D… sustenta que as queixas se situavam no pé esquerdo.
Auditada a prova, constatamos que, a tal respeito, a testemunha J…, esposa do autor, instada acerca de uma queixa que o mesmo tinha, por volta do ano 2000, disse: - A queixa dele era provocada pelo problema que ele tinha.- De que é que ele se queixava?- Queixava-se que lhe doía a perna e mancava… Decidiu ir ao médico, exactamente. - Consultou muitos médicos, consultou só um?- Ele consultou um só, que foi na clínica C….- E quem lhe recomendou esse médico?- Ora bem, isto não foi recomendado. Ele resolveu, como tinha dores na perna ir ao médico, pronto, como ele tinha seguro, foi ao médico da clínica, para ser uma coisa…pronto, mais rápida, por assim dizer. E foi à consulta. - … A Sr.ª lembra-se do nome do médico? - O nome do médico? D….- … A Sr.ª foi com o seu marido à consulta? - Fui e acompanhei tudo.- … O seu marido queixou-se de quê ao Dr. D…? - Queixou-se de que tinha dor na perna e mancava, e o médico mandou tirar o sapato e viu a perna, viu o pé. Neste caso, como ele tinha joanete, ele disse que aquela dor era provocada por joanete. E o melhor que tinha a fazer era operar. - … O seu marido não se queixou do joanete, queixou-se só da perna… -: Da perna, exactamente. E ele disse que era a pressão no pé do joanete que lhe fazia aquela dor. - Olhe, o Dr. D… disse isso imediatamente, ou mandou fazer algum exame primeiro? - Disse logo, imediatamente. Imediatamente, que a dor era provocada pela pressão no dedo, o dedo que fazia isto, não é? E aquela dor é que vinha pela perna acima, mas era provocado pelo joanete…. Exactamente, que a solução era operar. - … E o Dr. D… que perguntas fez mais ao seu marido? Perguntou-lhe se ele fumava? - Olhe, isso já não me lembro. - Não se lembra? - Sinceramente. - O seu marido esteve a falar muito tempo ou pouco com o Dr. D…? - Ainda esteve um bocadinho. - Sim? O Dr. D… ter-lhe-á feito perguntas relacionadas com a história clínica do seu marido: se alguma vez terá sido operado, se sofria de alguma doença. Fez? - Fez. Perguntou se ele já alguma vez tinha sido operado e ele disse que não. E não perguntou mais nada, só disse que ele tinha que ser operado, que era a melhor solução. - Não lhe perguntou, por exemplo, se ele era diabético? - Não, não me lembro, sinceramente, não me lembro, mas eu acho que ele não perguntou isso.- Não se lembra se ele perguntou se fumava?- Não, não me lembro. - Se tinha alguma doença há muito tempo? Não lhe fez estas perguntas?- Não, foi assim uma coisa…ele só dizia que tinha que ser operado e o mais rapidamente possível. - O Dr. D… entendeu que a dor na perna era provocada pelo joanete e que a actuação adequada seria a cirurgia, e depois disso? - Exactamente e, depois disso, ele até disse: vamos ter que ser operados aos dois. - E eu até disse: Sr. Dr., aos dois? Por amor de Deus, como é possível operar aos dois? E depois quem é que vai tratar dele? Vou andar com ele ao colo? E se corre mal? - Mas o seu marido queixava-se de dores nas duas pernas? - Não, mas como ele tinha joanetes nos dois pés, ele automaticamente queria fazer operação aos dois… E marcou a operação passado uns dias ou uma semana, salvo erro… - A operação deu-se logo na semana seguinte? - Parece que sim, que foi logo na semana seguinte, foi uma coisa muito rápida, muito rápida… Foi muito rápida. - Olhe, e que testes é que o seu marido teve que fazer antes da cirurgia? - Sr. Dr.ª, não sei. Isso depois já foi com ele e com o médico, os exames que ele fez… Depois, como foi uma operação contra a minha vontade, que eu não queria que ele fosse, portanto, ele deixou de me dizer assim certas coisas, nem me dizer o que o médico lhe dizia... - Porque é que a Sr.ª não queria que o marido fosse operado? Tinha dúvidas? - Não sei, aquela consulta não me inspirou confiança, porque é assim: eu já fui operada, o médico quando quer fazer uma operação ou quer fazer alguma cirurgia, manda fazer exames, para ver se realmente se pode fazer a cirurgia ou não. Eu até disse: Olha, B…, vais-me desculpar, mas para mim este médico é comerciante! Não é assim que se processa.
Também o depoimento de K…, sobrinha do autor, revela que o autor se queixava de uma dor na perna esquerda e, solicitada para definir os seus problemas de saúde por volta do ano 2000, disse: - Sim, mal de saúde no sentido de que se queixava de ter dores na perna, era isso que me era dado a perceber. Nessa altura, em 2000, eu também, quero corrigir, eu não convivia diariamente, porque nessa altura estava em Lisboa e, portanto, vinha só ao fim-de-semana. Mas recordo-me de, ao fim-de-semana estava, estávamos sempre juntos e de ele referir uma dor na perna esquerda. - Uma dor na perna esquerda? Era essa a principal queixa do seu tio? - Sim, sim… não se queixava assim de mais nada. - Não sei queixava, por exemplo, daquilo a que as pessoas chamam vulgarmente de joanetes? - Não, não tenho essa percepção. - Não se queixava dos pés? - Não, ele dizia, ele queixava-se, em família, nos almoços - que nós almoçamos em família ao domingo sempre todos juntos - da perna.
Identicamente, o depoimento de L…, amigo e vizinho do autor, acentuou esse aspecto das suas queixas de dor na perna esquerda, referindo: - Portanto, às vezes ia lá ao salão e via-o sentado e queixava-se que tinha uma dor na perna, tinha a perna em cima do sofá. Mais tarde, vim a saber que andava numas consultas aqui em Gaia e que lhe tinham dito que a dor da perna era do joanete que ele tinha. - Mas já aqui foi dito que o autor não se queixava de dor na perna, que se queixava de dor no pé. - No pé? - Nomeadamente foi dito que alguns dos médicos que o atenderam… - Pois ele a mim sempre me disse que lhe doía a perna. - Que lhe doía a perna? - A perna. - A perna esquerda? - Sim. - Então, o que lhe contou o Sr. B…? Foi que foi a uma consulta e que lhe disseram… - Que a dor na perna, que era do joanete.
Também a testemunha M…, amigo do autor, sujeito a perguntas similares, narrou: - Sabe que o Sr. B… por volta do ano 2000 teve um problema de saúde? - Sim, eu até acompanhei essa situação… Quer dizer, a partir de uma certa altura, isto já lá vão quê, sei lá, mais de uns anos. Não sei já quantos, mas mais de dez anos. Ele começou-se a queixar de dor numa perna. - Numa perna? - Numa perna. - Não era num pé? - Numa perna. E não conseguia estar em pé. - Lembra-se qual era a perna? - Eu não quero mentir, mas acho que era a esquerda. Ele começou-se a queixar de dores numa perna e…mal conseguia estar em pé. Nós às vezes até saíamos os casais, eles e nós, e ele sentava-se e doía-lhe muito a perna e ele, várias vezes até, duas, três, quatro, cinco, seis…não posso precisar. Que ele me ligou, que eu era vendedor, andava na rua, que ele me ligava aflito e pedia-me para o ir buscar ao salão e para o levar a casa. Isso aconteceu várias vezes.
Estes depoimentos que, na sua aparência, se revelam credíveis, por derivarem de pessoas que conviveram com o autor e puderam constatar as queixas, perdem a sua consistência face à própria articulação do autor. Examinada a petição inicial, é o autor que alega que “… sofria de dores no pé esquerdo, sendo que os dedos deste se apresentavam num tom esbranquiçado e frios, de tal forma que, frequentemente, se via obrigado a dormir com dois pares de meias calçados para aquecer aquele pé”. Foram estas as razões pelas quais o autor se deslocou às instalações da 1ª ré, clínica bem conceituada, para realizar a primeira consulta de ortopedia” (artigos 5º e 6º).
Esta posição inicial do autor, perante o teor das contestações dos réus, é clarificada na réplica pela alegação de que “andava com dificuldade (portanto, claudicando no andar) e que apresentava rubor no pé” (artigo 6º), embora só a alegação da petição inicial tivesse sido vertida na base instrutória.
Daí que, no processo lógico de formação da convicção probatória, surpreendamos a estranheza de as testemunhas não terem referenciado os sintomas iniciais alegados pelo autor, mormente a sua esposa, que não referenciou as dores no pé esquerdo, o tom esbranquiçado e frio, a ponto de ter de dormir com dois pares de meias calçados para aquecer o pé. Todas insistiram na dor na perna, versão mais consentânea com a referenciada na réplica e que surge delineada como um dos sintomas da doença de Buerger pela testemunha Dr. N…, cirurgião vascular no Hospital … no Porto, que, como dissemos, observou o autor após as complicações surgidas na intervenção cirúrgica realizada na clínica C… ao hallux valgus esquerdo (vulgarmente conhecido por joanete). Referiu: - O Sr. B… foi-me enviado por uma pessoa que trabalhava lá no Hospital… O Sr. apareceu-me com muitas queixas dolorosas, num pé, pé esquerdo, no hallux do pé esquerdo… estava necrosado, dores intensas, frio… Comecei a ver se tinha pulsos palpáveis. Perante isso comecei a colher a história do Sr. (narrou a operação, as dores, a infecção, a necrose e proposta de amputação do hallux). Deparou-se-me que este Sr., antes de ter o problema no pé, já tinha problemas na perna, a andar ele tinha claudicação. Tinha, até prova em contrário, indica uma deficiência circulatória arterial desse membro, não é. Ele tem de parar tempos a tempos para deixar de ter dor, portanto havia ali já um dado importante; era fumador, era fumador, outro factor importante e, portanto, perante a situação de não ter pulsos palpáveis ao exame físico…; são situações importantes: a colheita da história e o exame físico são fundamentais, não é, para se aferir um diagnóstico, e depois é que pedimos os outros exames, e um primeiro exame ver as pressões que ele tinha nessa perna, no tornozelo, e as pressões que ele tinha nesse tornozelo eram muito baixas em relação ao lado direito, em relação aos membros superiores. A seguir qual é o que se pede, uma arteriografia, uma arteriografia para confirmarmos a nossa suspeita de lesão arterial, que foi confirmada. Fez-se a arteriografia; havia as artérias principais até ao joelho estavam bem; depois do joelho para baixo, havia lesões importantes, nos eixos esticais até ao pé. Portanto, o que lhe condicionava a tal falta de pressão sanguínea e a dor na perna, porque ele se tinha um joanete, isso não vi, se tinha o tal joanete, pronto, essa dor seria agravada no joanete pela… não é, mas, pronto podia ser só do joanete, não é, mas…
É este cirurgião que evidencia a relevância da dor na perna como sintoma de eventual doença das artérias e que terá despoletado esta acentuação feita pelas testemunhas quanto às queixas do autor na dor na perna antes da intervenção cirúrgica ao hallux valgus, pelo que nos gera perplexidade a completa omissão da petição inicial quanto a essa concreta queixa de dor na perna esquerda.
Na história narrada pelo doente ao perito médico-legal (relatório de perícia de fls. 449 a 453), consta que o mesmo apresentou queixas de dor na coxa esquerda, que irradiava para todo o membro inferior, sensação de peso, relacionadas com a marcha e permanência na postura de pé, aliviando com repouso, surgida cerca de um mês antes da ida à consulta de ortopedia. O relatório descreve antecedentes pessoais com hábitos tabágicos de 10 cigarros por dia e psoríase e relata que o exame radiográfico aos pés, realizado em 7-02-2000 na C…, conclui: “hallux valgus bilaterais, com alteração degenerativa metatarso-falângica dos primeiros dedos, mais acentuadas à esquerda onde se observam pequenas erosões na vertente medial da cabeça do 1º metatarso e pequena calcificação distrófica nas partes moles adjacentes, secundárias a fenómenos de pressão decorrentes do valgismo referido.”. Porém, este exame é já feito no decurso da instrução deste processo, quando o autor estava já na posse da relevância daqueles sintomas para o estabelecimento do diagnóstico.
Em rigor, acerca dos elementos de avaliação que foram fornecidos ao ortopedista, réu Dr. D…, para apreciar da adequação da intervenção cirúrgica a que submeteu o autor, apenas ressalta o resultado do exame radiográfico, porque a história clínica que lhe foi narrada pelo autor não surge registada em quaisquer documentos clínicos juntos aos autos. Foram juntos os exames radiográficos prévios à cirurgia, mas também não foi instado qualquer ortopedista cirúrgico ou qualquer radiologista que fizesse a sua leitura ou que esclarecesse o tribunal acerca da relevância dos dados recolhidos radiologicamente para avaliar de eventual insuficiência vascular.
A história clínica constitui um elemento fundamental para relatar, do ponto de vista médico, todos os dados fornecidos pelo paciente quanto à doença, queixas e actos alusivos ao tratamento prescrito, meios de diagnóstico usados e todos os elementos informativos que tenham sido recolhidos. Embora a valorar com os restantes meios de prova produzidos, é de extrema utilidade o acesso à história clínica do doente, a fim de aferir os dados fornecidos para avaliação e os procedimentos usados na feitura do diagnóstico. Sem prejuízo da confidencialidade que os dados pessoais do paciente impõem, estamos convictos que a consulta da história clínica forneceria a este tribunal os dados clínicos recolhidos pelo médico ortopedista com vista à avaliação cirúrgica. Ignoramos se estamos perante a ausência de história clínica (a questão não foi abordada na instrução do processo e na produção de prova), o que poderia ser perspectivada já como uma flagrante negligência do médico ou, ao menos, sendo ele que se encontra em melhor posição para provar os elementos em causa, se deveria arcar com o ónus de demonstrar em tribunal a máxima diligência usada na pesquisa dos dados clínicos do doente.
Embora não tenhamos encontrado profunda reflexão sobre a matéria, tenderíamos a onerar o médico com a demonstração dos dados clínicos que lhe foram fornecidos pelo doente, sempre que os não registe ou os não forneça ao tribunal. De todo o modo, a história clínica não pode considerar-se como um meio probatório definitivo, o que implicaria a sua valoração como prova legal, pelo que só pode ser avaliada no conjunto das provas produzidas no processo[7]. Nessa base, perante as circunstâncias probatórias em causa, procederemos à valoração dos dados recolhidos e, a tal respeito, restam as versões das partes e da esposa do autor, que diz ter assistido à primeira consulta. São, no entanto, pessoas excessivamente envolvidas no processo, com interesses pessoais em jogo, que não se distanciam da realidade pessoal que os circunda e que não facultam, por isso, uma credibilidade bastante para aderirmos a uma ou outra tese. Enquanto as indicadas testemunhas, arroladas pelo autor, evidenciam a claudicação e queixas de dor na perna esquerda, o Dr. D…, no seu depoimento de parte, acerca dos sintomas apresentados pelo doente, relata: - Queixava-se de uma deformidade num pé… Hallux valgus… Não, foi isso que eu verifiquei e que o doente se queixava. – E o pé em causa só apresentava deformidade ou apresentava inchaço, apresentava ulceração, estava esbranquiçado? – Nada disso. O doente apresentava uma deformidade no pé, que o incomodava, e daí o tal joanete ou “hallux valgus” e que, por isso mesmo, confirmei com exame radiográfico que foi efectuado de imediato… - … mas qual era o incómodo que o paciente se queixava? – Dois tipos. Essencialmente a dor localizada na articulação e a dificuldade no sapato, que é o que normalmente acontece no “hallux valgus” - … O Sr. Dr., perante isso, ordenou que se realizassem que exames? – Raio-x… E umas análises normais… Pode o exame médico (anamnese) dispensar o exame. Questionado acerca das perguntas que dirigiu ao doente, disse: - Bom, lá está. Não estou recordado especificamente o que perguntei. Se fuma, se não fuma. Isso pergunto, no fundo é a história, saber os antecedentes, se tem, se não tem. É pacífico, normalmente, umas análises, electrocardiograma, e pode ser operado. Depois de afirmar ter verificado que o autor não era diabético, pelas análises, perguntado acerca das complicações pós-operatórias: - O que aconteceu é que eu segui-o assiduamente, 3 vezes por semana, e, na primeira semana, as coisas não apresentaram grandes, grandes sinais de alarme e a… ao fim, provavelmente, de 15 dias/3 semanas, não havia, ou até antes disso, não sei, vasodilatador arterial. E, nessa altura, talvez 20 dias/3 semanas, em que observou algum compromisso, e ficou entregue a ele. Fez alguns exames em que se detectou ali uma insuficiência, uma insuficiência arterial na parte do pé. Instado acerca dos sintomas revelados pelo doente, disse: - Claro que todos nós agora podemos dizer que sentimos muita coisa. Mas, na altura o doente, ele não tinha queixa nenhuma a não ser a probabilidade de um indivíduo que tem uma faixa etária entre os 30 e os 40 anos, e que é um fumador, mas a Sr.ª Dr.ª está num país ocidental. Nos orientais a doença de Buerger tem uma incidência muito maior. Aqui é marginal. Tenho 34 anos de medicina em cima e nunca vi nenhum Buerger na minha vida, nunca vi, nunca vi. Vi-os quando passei pela vascular, no internato geral. Explicando que sabe reconhecer a doença de Buerger, referiu que, a partir de certa altura, no pós-operatório, percebeu que havia qualquer complicação, mas antes da cirurgia nunca teve qualquer suspeição, reiterando que o doente nunca se queixou de dores na perna. Referiu que, no pós-operatório: - Observei-o mais que uma vez por semana, mediquei-o a antibiótico. Um pé com Buerger tem de se ter um certo cuidado prévio e, inclusivamente, se fizer a simpatectomia, se tiver o diagnóstico de Buerger, o Buerger pode ter tratamento se o indivíduo deixar de fumar e se inclusivamente… Para insistir: - O doente nunca se queixou de nada do pé. Sr.ª Dr.ª nunca se queixou. O Buerger dele, se calhar, não estava ainda numa fase muito avançada. Provavelmente, pelos sintomas e pela clínica que apresentava. Não tinha edema, não tinha inchaço, não tinha, não tinha comprometimento na parte vascular. Ele andava bem, sem queixas a não ser dores locais e incómodo no sapato.
Como vemos o depoimento de parte do réu Dr. D… não aduz qualquer elemento que confirme a versão das identificadas testemunhas. Ignoramos, por não ter sido efectivada qualquer prova sobre a matéria, se o raio-x permitiria registar as alterações invocadas pelo autor aquando da sua deslocação à consulta de ortopedia, mas estamos em crer que o raio-x só detectou o assinalado nos autos que, para além da deformação óssea, registou “pequena calcificação distrófica nas partes moles adjacentes, secundárias a fenómenos de pressão decorrentes do valgismo referido”. Desconhecemos a relevância dessa conclusão para aferir de uma qualquer doença arterial do autor, por essa questão não ter sido explorada junto do cirurgião vascular inquirido, Dr. N…, designadamente se essa calcificação poderia ser sintomática de um qualquer problema de natureza vascular ao nível do pé. Cirurgião vascular que explicou que a doença de Buerger é uma doença inflamatória das artérias, que aparece nas pessoas do sexo masculino, principalmente mais novos e fumadores, e, portanto, tem umas artérias típicas em saca-rolha, com amputação de outras artérias. Portanto, ele tinha essa imagem. A terapêutica que se usa para o tratamento destes doentes é fazer uma simpatectomia lombar, que é um cortezinho lombar, ir à cadeia simpática, tirar três gânglios simpáticos, dois ou três gânglios simpáticos e aquilo o que provoca é uma vasodilatação periférica dos pequenos vasos. Referiu que, sujeito o autor a tal tratamento, começou a ter uma circulação diferente. Portanto, aquilo favorece a perfusão da pele, portanto, ajudando na cicatrização das lesões, havendo pressões para isso. Se a pessoa tiver 20 de pressão para 140, a simpatectomia não faz nada, mas se tiver uma pressão de 50/60 já faz, não é. Comentou que depois dessa pequena intervenção o autor esteve, durante meses, a fazer pensos ao dedo para secar a necrose até que acabou por amputar a última falange do hallux, que não tinha viabilidade. Ficou com um hallux mais curtinho, mas com o pé todo e a andar. Mais referiu que a deficiência vascular é detectável pela palpação do pulso do pé: - … No pé tem duas artérias bem palpáveis, a pediosa e a tibial posterior… O médico, faz parte do exame físico avaliar. Num doente que tenha… claro que eu tenho a formação profissional da minha especialidade. Não opero ninguém sem palpar o pulso… Agora o problema que pôs dos pulsos, da palpação dos pulsos, às vezes não é fácil palpar os pulsos, às vezes não é. Às vezes, a pessoa está a dizer que, e eu vejo isso muitas vezes em colegas gerais e de outras especialidades, até vasculares, não é, senti o pulso ali e não era o pulso, era o pulso dele. Às vezes, uma pessoa a palpar sente o nosso pulso aqui na ponta dos dedos. - Mas, é um exame que na sua opinião se deve fazer? - Principalmente quando se intervém a nível do pé. Principalmente se há suspeita clínica pela história do doente que haja qualquer problema arterial.- Como é que o Sr. Dr., só para cotejar, com o relato que o réu Dr. D… aqui fez, da forma como colheu a história clínica do paciente. Eu gostava de ouvir como é que o Sr. Dr. o fez, como é que colheu a história do paciente? - Eu, claro que comecei um bocado contrário. Entra-me um Sr. cheio de dores no pé, com o penso, eu fui directo ao penso. Devia colher primeiro a história e só depois fazer o exame físico, mas pronto, foi fora da consulta, foi numa coisa à parte. Comecei por ver o penso e vi o que é que se passava. Uma necrose importante do dedo cheio de dores, com sinais inflamatórios do pé, embora, como eu disse, a parte dos dedos um bocado mais fria e, perante aquilo, porque esta situação podia ser uma situação de infeção da cirurgia prévia, não é, é evidente que tudo isto, se encharca com mais facilidade num país… Mas um pé normal não reage assim, desde que a pessoa não seja diabética, e portanto já me perdi um bocadinho… - Esta infecção que o Sr. B… apresentou podia ser uma consequência, vá normal, da cirurgia a que foi sujeito, menos feliz mas normal, ainda assim? - Podia… Má circulação. Portanto, vendo a lesão eu comecei a perguntar ao Sr. … A sua história. Olhe, aliás, vi logo que ele não tinha pulso, não é, palpáveis, e, pronto, perante isso, comecei a perguntar se tinha sintomas naquela perna, se andava muito, se andava pouco, se quando andava era obrigado a parar com dor na barriga perna ou na planta do pé e ele disse-me que sim. Disse-me que parava com dores com uma distância que não sei já qual, mas que de facto, ultimamente, que o perturbava muito era de facto no pé, a dor na zona do… do joanete, exactamente. Aí era a zona onde lhe doía mais nos últimos tempos, mas antes de ter essa dor nesse local, ele tinha a dor na perna que obrigava também a parar. - O que eu estou a perguntar é porque é tão importante, o Sr. Dr. há pouco referia tinha dor na perna mas quando parava deixava de ter dor. - Exatamente. - O que lhe queria perguntar é o que isso significa clinicamente na sua opinião? - Pronto, isso é típico de uma insuficiência arterial. Embora também possa ser um problema medular. Também pode acontecer isso, só que essa dor quando é causa de doença medular ou radicular, a pessoa tem dor parado, tem dor na perna parado e, no vascular, no doente arterial, ele não tem dor parado. Ele só tem dor quando anda, não é. Só numa fase mais tardia, ele pode passar a ter dores em repouso no pé, no pé, mas aí já tem o pé com umas alterações importantíssimas, com cianose, com o pé frio, pode ter úlceras, pode ter necroses, portanto, aí já está numa fase final numa isquemia crítica, já numa fase final da evolução da aterosclerose… Acredito, acredito, que tivesse um joanete perfeitamente, não é. E pronto, às vezes, os sinais confundem-se, não é. Portanto, eu não faço ideia como é que o meu colega apanhou a situação, mas, provavelmente uma situação, aquilo vermelho, a doer e tal, ele talvez tenha interpretado aquilo como uma dor do problema ósseo, mas que é preciso primeiro também, pôr lá, os tais dedinhos, ver se tem pulsos ou não tem. Não tem pulsos, alto, há aqui qualquer coisa que não está bem. Este joanete dói mais porque é um pé isquémico, então tenho que pedir da opinião da cirurgia vascular… E menos que isso, e menos que isso, suponhamos que ele não tinha lesão nenhuma no pé, nenhuma lesão aguda, nenhuma situação de dor, como era o caso da inflamação, tivesse a história de claudicação, provável claudicação, depois nós temos que ter a certeza de claudicação vascular, e lá está o exame físico, a palpação dos pulsos todos e ver se de facto eles existem ou não, porque não existindo tem que se fazer as pressões e as pressões, às vezes, podem ser compatíveis com a cicatrização e se não forem, isso porquê, há outras patologias, por exemplo do pé, neuromas e coisas assim que, é preciso ser operado, e se uma pessoa for operar a um pé com uma pressão baixa, mesmo sem sinais nenhuns inflamatórios nem nada, aquilo não cicatriza, portanto o local da cirurgia não vai ser… Perguntado se concordava com o depoimento do Dr. D… no sentido de que não havia razões para suspeitar da doença de Buerger, respondeu: - Não. Não. É assim, a doença de Buerger é muito mais frequente no sexo masculino do que no feminino; rara no sexo feminino; é um factor determinante da doença o ser fumador e… - E o Sr. B… é fumador? - Era fumador e claro que, na arteriosclerose, também o fumador tem maior probabilidade de ter a arteriosclerose, pelo fumo, só pelo fumo. Se for diabético ainda pior. Mas, na doença de Buerger, há uma característica fundamental: é o fumo, é o fumo, e é no sexo masculino que aparece mais, é raríssimo ser no sexo feminino. Agora e outra coisa, a pessoa deixa de fumar as lesões param, a evolução da doença para, não é, o problema é deixar de fumar, a maior parte deles não deixam de fumar, não é, mas, o Sr. B… foi … como doente de Buerger, na altura por mim, pelos meus colegas, em reunião de serviço, porque arteriograficamente, tinha artérias típicas de poder ser essa doença mas ela não foi concretamente estabelecida por um exame físico. - Portanto, havia uma suspeita, nunca houve confirmação? - Pois, desculpe, para fazer o diagnóstico correcto é preciso tirar uma artéria do pé, por exemplo, e analisá-la e ver se de facto há características de doença de Buerger ou não. - Mas, Sr. Dr., os seus colegas, face às melhoras não viram necessidade de fazer isso? - Isso é uma agressão grave… - Nem sequer se chegou a confirmar que o Sr. B… tivesse a tal doença de Buerger? - Histologicamente não. - Agora há uma coisa que não havia dúvidas, é que ele tinha um problema vascular?- Tinha, tinha claro.- E que foi o problema vascular que fez com que a cirurgia tivesse aquele resultado infeliz.- Exacto… Se tinha que ser operado, tinha que ser compensado da sua parte arterial primeiro. Pelo menos a avaliação, ver se tinha pressões, pressões de cicatrização e mesmo assim, às vezes, num diabético, nós vimos às vezes, eles fazem, muitas vezes, lesões de necrose de dedos limitadas, tem pressões de cicatrização. Vai-se amputar, por exemplo, o dedo, um dedo, e aquilo não cicatriza apesar de ter pressões de cicatrização. Portanto, muitas vezes, não é assim simples como isso. - As boas práticas recomendam muita cautela de uma cirurgia? - Sem dúvida.
Na contra-instância dos ilustres mandatários dos réus: - Mas, quando o Sr. Dr. observou o paciente, ele estava em plena fase de infecção? - Não, estava numa fase de necrose marcada com um processo inflamatório potencialmente infeccioso à volta, não é, mas mais inflamatório.- …o Sr. Dr. pode garantir que, antes, quando o Dr. D… o observou e decidiu operá-lo, que ele tinha palpação no pé ou não? - Isso, pela história dele, posso garantir. Pela história do Sr., dizendo que tinha dor na perna quando andava uma distância que era uma volta de 50 metros ou menos até, e perante o que eu encontrei no exame físico, a ausência de pulsos palpáveis, posso lhe garantir que ele já tinha lesões arteriais antes. - Não estou a dizer que não tivesse, mas eram visíveis? - Só pelo exame, pelo exame e pela história, a história faz suspeitar… - será vulgar que um ortopedista se aperceba dessa situação que o Sr. Dr. está a referir? - Eles têm obrigação de se aperceberem, porque eu, quando fazia urgências, os ortopedistas, nós tínhamos que trabalhar muito com os ortopedistas, complementarmente, os traumatizados, pessoas novas, e que chegavam à ortopedia com fraturas expostas ou, às vezes, sem ser expostas, e eles, claro, a primeira coisa que faziam também era ver se tinham pulsos nos pés e, quando não sentiam os pulsos, pediam a observação vascular, e nós, muitas vezes, até íamos ver e até tinha pulso palpável; às vezes tinha pulso palpável, outras vezes estava certo. Portanto, eles por norma e especialmente nesses casos, casos de traumatizados e se calhar noutros casos não é, eu não pratico ortopedia, não é, mas pelo que me foi dado ver, eles palpariam com mais ou menos dificuldade os pulsos. Mas é o que eu digo, nos traumatizados, eles com lesão arterial, eles vêm sem pulsos palpáveis, não é. Às vezes é tal coisa de sentirmos o nosso pulso, o pé nem estava muito isquémico. É isso, tem pulsos e tal, pedem ou pediam opinião vascular.- É natural que quando paciente aparece e refere que tem dores, e tem efetivamente dores pelos joanetes… que seja uma situação normal, isso. - Claro pode ser difícil palpar os pulsos. - A doença de Buerguer não é uma doença tão vulgar quanto isso? - Não, é pouco frequente. No mundo ocidental é… Eu só quero fazer aqui um parêntesis. Falamos muito aqui na doença de Buerger, a suspeita foi de doença de Buerger, não é, mas pronto, é uma doença, pelas características das artérias, é uma doença inflamatória. Há vários tipos de doenças inflamatórias das artérias; a de Buerger é a mais frequente, não é, portanto, foi diagnosticada como doença de Buerger… Não, o que eu disse aqui, o que eu disse aqui à bocado foi que, colhendo a história deste Sr., tinha se suspeitar que havia uma doença arterial, fosse de Buerger, de arteriosclerose, fosse de outra coisa qualquer, porque era um doente claudicante, ele tinha dor na barriga da perna, no pé, quando andava. E portanto, faz suspeitar… - Para si, se ele não tivesse queixado do claudicar, então… - Exame físico, o exame físico. Ele fazia o exame físico. - … não tinha pulso na altura? - Quando claudicava? - Sim. - Não tinha. Com a claudicação de causa vascular… Esse Sr. sempre me contou, há muito tempo tinha dores na barriga da perna…. Faz suspeitar que é um problema vascular, só isso que eu posso dizer mais nada… A história que ele me contou, exactamente… Não posso dizer mais nada. Instado de novo pela ilustre mandatária do autor: - … era muito pouco provável que este Sr. tivesse pulso no dia em que foi visto pelo Dr. D…? – Claro, aquilo não se instalou logo.- Não foi de repente, não é? Isto é uma doença progressiva. - Crónica. - Portanto, aquilo que o Sr. Dr. ouviu do Sr. B… e aquilo que o Sr. viu na arteriografia, é isso, leva-o a crer com elevada probabilidade, ainda que não possa garantir que este Sr. já não tinha pulso, no dia em que, ou tinha pulso muito fraco no dia que foi visto pelo Dr. D…, é isso? - É. - Não tem dúvidas, pois não? - Não.
Perguntado pelo Senhor Juiz: - Sabe desde quando é que este Sr. teria esta doença de Buerger? - Isso, não posso, não posso, afirmar é evidente, mas a doença de Buerger começa em fases muito jovens, a partir dos vinte, trinta anos, as pessoas podem começar a ter sintomatologia da doença de Buerger… Não, a única coisa que eu posso afirmar é que aquelas lesões que estavam nas artérias, que eram visíveis nas artérias na arteriografia, são lesões, eram lesões, já com muito tempo de evolução. - Como sabe o tempo é relativo e muito tempo também são anos? - Não lhe posso dizer, porque essas tais artérias em saca-rolha são artérias de regeneração após oclusões segmentares das artérias principais, que aparece na doença de Buerger… Começa, pode aparecer, portanto, além de começar, haver uma diferença, uma diminuição de pressão nas artérias do pé, não é. A pessoa, muitas vezes, tem claudicação do pé, tem dores, não só na barriga da perna, mas no pé, no próprio pé, começam a fazer lesões nos dedos, como… - O que é que o médico pode ver pela primeira vez, aquele doente, que já tem Buerger, há muito tempo, o que é que ele vê, o que é o que o médico vê? - Ele aparece-nos com uma lesão, normalmente ele aparece-nos com uma lesão, lesão num dedo, olhe num joanete, num dedo, num antepé, lesão do tipo necrótico, pequenas lesões necróticas, muito dolorosas, um dedo vermelho, parece inflamado, mas aquilo não é inflamação, aquilo não está quente muitas vezes, não está quente… Pois, em princípio, como lhe disse, a doença de Buerger pode começar cedo, 20, 30 anos. Neste caso concreto, eu, eu conheci o Sr. com uma necrose num dedo, e portanto, não lhe posso dizer, Sr. Dr. se de facto, o avanço da doença começou 10 anos antes, 5 anos antes, não posso dizer. Um mês antes não. - E um ano? - E mesmo um ano. Um ano não poderei dizer, agora um mês, não tenho dúvidas. Não pode… Suponhamos que aparece um doente ao médico, um doente que apareça a um médico, com um joanete doloroso, mas sem sinais inflamatórios nenhuns e médico vai-lhe dizer assim: olhe este joanete tem que ser operado, porque o Sr. sofre muito com isso e tal, esse médico tem obrigatoriamente colher uma história do doente e a seguir à história, examinar o doente e uma das partes importantes desse exame é a palpação dos pulsos periféricos. O doente tem pulsos periféricos palpáveis, ele avança à vontade para a cirurgia sem problemas nenhuns. Não tem pulsos palpáveis, tem que pedir opiniões. Eu estou a falar numa situação em que não há aquele caso inflamatório em que pelos vistos era o que existia, uma dor intensa com sinais inflamatórios importantes, não é, esses sinais inflamatórios… - Existia, como é que sabe isso? - Pelo que me foi dito, mas suponhamos, eu não vi, suponhamos que existia essa situação inflamatória e essa coisa toda, pode ter sido interpretado pelo meu colega como inflamação do joanete, mas a tal história da dor na perna há vários anos e a ausência de pulsos, se tivesse palpado os pulsos, punha-o alerta, porque esses sinais inflamatórios no joanete podiam ser perfeitamente hipertrofiados pela isquemia.
No tocante aos dados clínicos juntos aos autos, dispomos de um episódio de urgência Hospital … em 30-03-2000, com detecção de infecção e necrose do hallux do pé esquerdo após cirurgia ortopédica (fls. 18). Da ficha de admissão consta o diagnóstico de doença de Buerger. Foram usados meios auxiliares de diagnóstico - análises HTB e ECG – e determinado o internamento (Dr. O…). Os elementos clínicos desse Hospital evidenciam proposta de cirurgia para 10-04-2000. É feita angiografia em 5-04-2004 e simpaticectomia lombar esquerda em 10-04-2000 para remoção dos tecidos necrosados. Teve alta em 18-04-2000, sem queixas álgicas. O relatório da anatomia patológica revela tecido fibro-adiposo com identificação de estruturas nervosas compatível com simpático lombar (fls. 39 - 18 a 52, fls. 485 a 497). Existem igualmente registos clínicos de consulta externa de dermatologia do Hospital … para acompanhamento da diagnosticada psoríase ao autor (fls. 53 a 61). O relatório de perícia médico-legal, subscrito pela Dr.ª P…, e esclarecimentos posteriores visam somente a avaliação do dano corporal (fls. 532 a 538, 577 a 589, 626 a 637). Igualmente se encontra junto aos autos um relatório médico de angiologia e cirurgia vascular do Hospital …, subscrito pelo Dr. N… em 23-12-2008, referindo que o autor foi internado no serviço de cirurgia vascular do Hospital … em 20-03-2000 com necrose do hallux e sinais inflamatórios ao nível da articulação metacarpofalangia esquerda. Foi feito estudo hemodinâmico e angiográfico, que revelou características de doença de Buerger, com ausência de pulso pedioso esquerdo. Foi submetido a simpaticectomia lombar esquerda em 10-04-2000 e a cuidados de penso à necrose do hallux. Teve alta em 19-04-2000, medicado com antiagregação e seguido em consulta externa de cirurgia vascular para realização de penso desde o dia 26-04-2000. Consultas que se mantiveram durante cerca de dois anos, findos os quais foi submetido a cirurgia para amputação distal do hallux, que teve boa cicatrização (fls. 643).
A prova produzida, tal como resulta da decantação efectuada, é insuficiente para gerar um grau de probabilidade e verosimilhança bastante para ajuizar no sentido de que o demandado ortopedista estava em condições de diagnosticar a doença de Buerger ou, ao menos, uma doença vascular, que impusesse mais aturada indagação acerca da causa das queixas do autor antes de intervir cirurgicamente. É seguro, segundo afirmação do cirurgião vascular, que se ignora se a doença vascular de que padece o autor é a doença de Buerger, que não chegou a ser confirmada histologicamente. Nesta amálgama de elementos, perante o depoimento do cirurgião vascular, cremos que a palpação dos pulsos periféricos poderia dar a conhecer ao ortopedista Dr. D… eventual insuficiência vascular, que pudesse despistar a problemática subjacente. Porém, não foi sequer inquirida qualquer testemunha com formação especializada em ortopedia que pudesse esclarecer o tribunal acerca da prática aconselhada pela leges artis na avaliação da intervenção cirúrgica ao hallux valgus. É certo ter a testemunha Dr. N…, cirurgião vascular, afirmado que o tomar da pulsação do pé permite antever doença vascular, o que aconselha o encaminhamento do doente, sempre que haja uma qualquer suspeição, para essa área da medicina ou a realização de exames ajustados. Explicou que a insuficiente irrigação sanguínea do pé é quadro adequado a subsequentes complicações cirúrgicas, nomeadamente a acentuadas dificuldades de cicatrização. Perante isso, a avaliação do “dever ser” da conduta médica do réu Dr. D… passa por saber se a palpação dos pulsos periféricos constitui uma prática médica que se enquadra na leges artis de um ortopedista, como mecanismo prévio necessário à decisão de intervir cirurgicamente no pé, em concreto no hallux valgus de um doente-padrão ou, ao invés, se essa abordagem é descabida face à evidência do problema apresentado pelo doente e à completa ignorância da específica patologia que o afectava. No fundo, trata-se de saber se as guidelines actuais, que constituem directrizes médicas de actuação elaboradas com base no que é evidenciado pela literatura científica, salientam a importância desse tipo de observação antes da indicação de tratamento cirúrgico ao pé.
Sabemos que o hallux valgus é caracterizado pelo desvio lateral do grande dedo do pé, ao nível da metatarsofalangina. É uma deformação do primeiro dedo do pé, caracterizada pelo desvio da ponta do dedo em direcção aos outros dedos, o que favorece o surgimento de uma típica proeminência na sua base, denominada joanete, que se manifesta através de dores. A saliência medial do primeiro metatarsiano pode inflamar-se e supurar[8]. Na definição da sua sintomatologia assinalam-se dores que aumentam com a marcha e que, por vezes, aparecem mesmo em repouso. Dores que começam na articulação, irradiam para o hallux e, para trás, para a região do tornozelo. Esses fenómenos álgicos, que aparecem no pé, aumentam com a marcha e levam, por vezes, a claudicar durante a marcha[9]. Deformação que, nos casos mais graves, impõe tratamento cirúrgico.
Os procedimentos mais comummente descritos na literatura incluem intervenções em tecidos moles, osteotomias da extremidade proximal ou distal do primeiro metatarsiano, osteotomia do cuneiforme, artrodese da articulação metatarso-falangiana e artroplastia excisional e a tomada de decisão sobre a escolha do procedimento requer “uma cuidadosa avaliação pré-operatória, incluindo achados físicos e radiográficos, a fim de se determinar os elementos específicos que precisam de correção operatória”[10]. Foi nessa base da observação do pé do autor que o ortopedista demandado prescreveu raio-x, que foi realizado no hospital privado C… e cuja leitura foi feita pelo Dr. E…, radiologista, que trabalha nesse mesmo hospital. Testemunha que disse não conhecer pessoalmente o autor, pois não o submeteu ao raio-x, limitando a sua intervenção no caso à leitura radiográfica. Descreveu no relatório que o autor apresentava “Haluxes Valgus Bilaterais, com alterações degenerativas do metatarso falangicas dos primeiros dedos, mais acentuadas à esquerda onde haviam pequenas erosões na vertente medial da cabeça do primeiro metatarso e pequena calcificação distrófica nas partes moles adjacentes, secundárias a fenómenos de pressão decorrentes do valgismo, pés planos e padecia de hiperostose na vertente da cabeça do astragalo esquerdo e diminuta calcificação do tendão de Aquiles do calcaneo direito”.
Este exame radiológico, segundo conseguimos antever das leituras efectuadas, não faculta a detecção das complicações vasculares, o que nos parece confirmado pelo facto de o Dr. Q…, cirurgião vascular, que observou o autor após a complicação cirúrgica, por requisição datada de 27-03-2000, ter pedido a realização de arteriografia por punção femural das artérias ilíacas, femurais e restantes dos membros inferiores (fls. 17). E como o autor desconhecia padecer de uma doença do foro vascular, eventualmente da denominada doença de Buerger, podemos afirmar que não deu qualquer consonante indicação ao ortopedista demandado.
São meios auxiliares de diagnóstico ajustados à pesquisa de complicações dessa natureza a ecografia Doppler, que permite revelar a diminuição da pressão do sangue e do fluxo sanguíneo, e a angiografia, que mostra a obstrução das artérias e outras anomalias da circulação. Meios que, evidentemente, perante a ignorância da dita afecção vascular, não eram exigíveis que fossem usados para despistar doença que nem o doente nem o médico perscrutaram. Entendemos, por isso, que o que está em causa é averiguar se o diagnóstico feito pelo ortopedista demandado deriva do risco próprio da actividade médica ou, ao invés, se está associado à violação do dever das leges artis. Vale por dizer que nem todo o erro tem relevância jurídica, pois há erros que constituem azares, acidentes, que não importam uma violação censurável dos deveres de cuidado e que decorrem do próprio exercício da actividade de curar, cujo risco tem de ser tolerado pelo doente e pela sociedade. Na actividade cirúrgica ortopédica, ainda que o médico possa comprometer-se a um concreto resultado, não pode vincular-se à inexistência de quaisquer possíveis complicações cirúrgicas. Ele vincula-se numa obrigação de meios, ou seja, ao uso de empenho e cuidado na actividade cirúrgica que desenvolve, mas não pode assegurar que a sua capacidade técnica de cirurgião evite os riscos associados à doença, idade, estado pré-operatório do doente e complexidade da intervenção[11].
No caso, face à prova produzida, podemos dizer que houve erro no planeamento da intervenção cirúrgica ao hallux valgus, por ter sido desconsiderada eventual doença vascular do doente, que nem ele próprio conhecia. Doença que não foi previamente diagnosticada, porque a informação e conhecimentos de que o médico dispunha não assinalavam os sintomas típicos de doença vascular ou, em concreto, de doença de Buerger. Daí que o erro nessa avaliação tenha de ser identificado a partir do afastamento do padrão médio do comportamento de um cirurgião ortopédico, das denominadas regras da arte médica, na ponderação daquela concreta intervenção cirúrgica ao hallux valgus. Temos de colocar-nos no momento ex ante para indagar se, a partir dos dados de que dispunha, o médico cirurgião demandado tinha condições de previsibilidade e evitabilidade daquele resultado. Donde a improficuidade, para este concreto domínio, da perícia realizada. O perito não se colocou na posição em que se encontrava o médico para fazer o seu diagnóstico e não extraiu qualquer parecer quanto à conduta do médico ortopedista. Limitou-se a avaliar o dano consequente. É assim que do relatório da perícia médico-legal, como assinalámos, para esta análise, retiramos somente que a história narrada pelo doente ao perito é de dor na coxa esquerda que irradiava para todo o membro inferior, sensação de peso, relacionadas com a marcha e permanência na postura de pé, aliviando com repouso, tudo surgido cerca de um mês antes da ida à consulta de ortopedia. Como acima referenciámos, o autor não invocou estas queixas na petição inicial; fê-lo aquando da realização da perícia, mas o perito não aponta sequer para essas queixas qualquer diagnóstico provável. Daí que também não possamos retirar desse registo qualquer ilação. Acresce que, como acentuámos, nas exposições científicas dos sintomas associados ao hallux valgus, estão descritas as dores que aumentam com a marcha e que aparecem mesmo em repouso, a significar que esses fenómenos álgicos não são emblemáticos de doença vascular, podendo surgir ligados aos joanetes.
As chamadas guidelines, protocolos médicos emitidos pelas sociedades médicas internacionais, fornecem algumas indicações para a definição das leges artis medicinae, não obstante o constante estado de revisão das técnicas e conhecimentos vigentes reduzir o seu valimento e obrigar à redefinição dos parâmetros de actuação nas diferentes especialidades médicas. De todo o modo, elas constituem um instrumento de melhoria da qualidade assistencial do doente, por um lado, e oferecem ao médico, por outro, uma maior segurança na aplicação ao paciente de um determinado procedimento de diagnóstico ou terapêutico. Protocolos médicos que correspondem à cristalização escrita de critérios de prudência que, sem constituírem verdades absolutas, universais, únicas e obrigatórias no seu cumprimento, permitem definir o que é a prática médica adequada e prudente numa situação concreta[12]. São normas despidas de juridicidade, mas podem acolher-se como elemento aferidor do dever de cuidado do médico quer no diagnóstico quer no tratamento. Evidentemente que os protocolos médicos não limitam a liberdade do médico na assumpção da sua decisão clínica ou cirúrgica, mas não deixam de facilitar a valoração do julgador na identificação do que é um comportamento padrão num quadro clínico determinado.
E consultadas as guidelines da Academy of Ambulatory Foot and Ankle Surgery - Medical Specialty Society (sociedade médica dos EUA), validadas em Dezembro de 2003[13], verificamos que, ao nível do diagnóstico do hallux valgus e sua avaliação cirúrgica, o exame físico pode incluir os exames vascular, neurológico, ortopédico, biomecânico e dermatológico, sendo que no âmbito dos procedimentos de diagnóstico se destacam os exames radiográficos e as análises laboratoriais. O exame físico vascular, a par com os exames neurológico, ortopédico, biomecânico e dermatológico, não surge impositivamente mas facultativamente (“may” – pode), a abonar que só um quadro de normal previsibilidade de problemas vasculares justificará a correspondente avaliação. Não temos, por isso, adquirido que os protocolos médicos sobre a matéria demandem um padrão de comportamento médico que, no exame físico, tome a pulsação do pé. Não há, pois, prova de que o médico ortopedista violou as guidelines ou que estivesse em condições de prever a complicação vascular padecida pelo doente e de dimensionar a real incidência dessa complicação na intervenção cirúrgica que propôs. Na realização do diagnóstico não é juridicamente exigível o acerto do caso e só incorre em responsabilidade o médico que, perante os sintomas, erra a sua apreciação por manifesta negligência ou ignorância ou por não empregar os meios técnicos que o ajudem a evitar erros de apreciação[14].
Tudo para ajuizar que não estão reunidos elementos probatórios bastantes para dar guarida à pretendida alteração da matéria de facto. As provas têm por função a demonstração da realidade dos factos (artigo 341º do Código Civil) e traduzem-se no conjunto de operações destinadas à formação da convicção do juiz, sanando as dúvidas existentes na sua mente sobre os factos controvertidos[15]. Embora no âmbito da livre convicção da prova não seja exigível que a convicção do julgador sobre a validade dos factos alegados pelas partes equivalha a uma absoluta certeza, é necessário alcançar um juízo de suficiente probabilidade ou verosimilhança. E na dúvida sobre a realidade de um facto, o facto não pode ser dado como provado, em prejuízo da parte onerada com o respectivo ónus[16], na terminologia legal, resolve-se contra a parte a quem o facto aproveita (artigo 516º do Código de Processo Civil). São muito densas as dúvidas existentes sobre a factualidade em causa, pelo que não temos qualquer censura a dirigir à apreciação probatória efectuada pela primeira instância.

3. Factos provados
3.1. A ré «C… …» é uma clínica de saúde privada, licenciada pela Direcção-Geral de Saúde sob o nº … (A).
3.2. O réu D… é médico ortopedista prestando serviço nas instalações da ré «C… …» aí atendendo pacientes e realizando intervenções cirúrgicas (B).
3.3. O réu E… é médico radiologista prestando serviço nas instalações da ré «C… …» aí realizando exames de radiologia e fazendo os respectivos relatórios (C).
3.4. Por contrato titulado pela apólice nº ………, a ré «C… …» transferiu para a ré Companhia de Seguros G… a responsabilidade civil legal extracontratual imputável ao segurado pelos danos patrimoniais resultantes de lesões corporais e/ou materiais causados a terceiros nomeadamente a doentes e sinistrados, pela exploração do referido estabelecimento de saúde tudo conforme consta de fls. 100 a 132 cujo teor se dá por integralmente reproduzido (D).
3.5. Por contrato titulado pela apólice nº ……, o réu D… transferiu para a ré S… a responsabilidade civil em que o mesmo réu possa incorrer relativo a atos de ortopedia, traumatologia e cirurgia por danos corporais, materiais causa dos terceiros em consequência de actos ou omissões no exercício da sua profissão, tudo conforme consta de fls. 217 e 218 cujo teor se dá por integralmente reproduzido (E).
3.6. Por contrato titulado pela apólice nº …… o réu E… transferiu para a ré S… a responsabilidade civil em que o mesmo réu possa incorrer relativo a atos de radiologia ortopedia, traumatologia e cirurgia por danos corporais e materiais causados a terceiros em consequência de actos ou omissões no exercício da sua profissão, tudo conforme consta de fls. 243 cujo teor se dá por integralmente reproduzido (F).
3.7. Por contrato titulado pela apólice nº ……… o réu F… transferiu para a ré S… a responsabilidade civil em que o mesmo réu possa incorrer por danos corporais e materiais causados a terceiros, conforme consta de fls. 241 cujo teor se dá por integralmente reproduzido (G).
3.8. O autor pagou em 07-02-2000 e 08-03-2000 por primeira consulta, exame radiográfico e intervenção cirúrgica a quantia de € 2.075,45 (H).
3.9. Antes de 07-02-2000 o autor tinha dores na zona do pé esquerdo (1.º).
3.10. O autor, por sentir dores na zona do pé esquerdo, decidiu marcar uma consulta na ré então denominada «C… ….» (3.º), tendo aí sido atendido, em 07-02-2000 pelo réu D… (4.º), o qual depois de o examinar pediu um exame radiográfico aos pés do autor (5.º).
3.11. Foi realizado um exame radiográfico aos pés do autor tendo o respectivo relatório sido efectuado pelo réu E… (6.º), tendo o mesmo réu E… concluído que os pés do autor mostravam Haluxes Valgus Bilaterais, com alterações degenerativas do metatarso falângicas dos primeiros dedos, mais acentuadas à esquerda onde haviam pequenas erosões na vertente medial da cabeça do primeiro metatarso e pequena calcificação distrófica nas partes moles adjacentes, secundárias a fenómenos de pressão decorrentes do valgismo (7.º), os pés do autor eram planos (8.º) e que sofria de hiperostose na vertente da cabeça do astragalo esquerdo e diminuta calcificação do tendão de Aquiles do calcâneo direito (9.º).
3.12. Após a referida consulta e a realização do mencionado exame radiográfico, o réu D…, tendo por base as conclusões deste, decidiu sujeitar o autor a uma intervenção cirúrgica ao pé esquerdo (10.º).
3.13. O autor aceitou submeter-se a tal intervenção cirúrgica porque foi convencido pelo réu D… que a mesma seria o tratamento adequado para a hallux valgus bilateral de que padecia (11.º).
3.14. O autor confiou nas opiniões médicas dos réus D… e E… (12.º).
3.15. O autor foi operado pelo réu D… nas instalações da ré «C… ….» ao pé esquerdo para correção do hallux valgus esquerdo (13.º).
3.16. O autor esteve internado nas instalações da «C… ….», após a referida operação, pelo menos três dias tendo depois sido dada ordem médica de poder regressar a casa (14.º).
3.17. Nos dias seguintes à operação e após ter saído das instalações do «C… …» o autor sentia dores na zona operada (15.º).
3.18. O autor tomava medicação para tornar as referidas dores suportáveis (16.º).
3.19. O autor transmitiu, nas instalações da ré «C… ….», durante a realização «cuidados de penso» que sentia dores no pé esquerdo que não passavam (18.º).
3.20. Nas instalações da ré «C… …», aquando da realização dos «cuidados de penso», foi o autor informado durante um período não superior a quinze dias, que se tratava de uma situação normal o sentir dores (19.º).
3.21. O autor tomava medicação receitada pelo Dr. D… (20.º).
3.22. Ao fim de cerca de quinze dias, o autor foi informado pelo réu D… que teria um problema vascular no hallux esquerdo e que se colocava a hipótese de amputação do dedo maior do pé esquerdo (21.º).
3.23. O réu D… prescreveu ao autor o medicamento constante de fls. 16 (22.º).
3.24. O autor, por indicação do réu D…, consulta um médico especialista em cirurgia vascular no dia 27-03-00 (23.º) o qual, após observação, requisita uma arteriografia por punção femural às artérias ilíceas e restantes dos membros inferiores (24.º).
3.25. O autor, sentindo dores, recorreu aos serviços de urgência do Hospital … em 30-03-2000 (25.º).
3.26. Nesse dia foi-lhe diagnosticada nos mencionados serviços de urgência uma infecção com necrose do hallux do pé esquerdo após cirurgia ortopédica (26.º).
3.27. O autor ficou internado no serviço de cirurgia vascular desse Hospital (27.º).
3.28. Ao autor, no Hospital …, foram realizados exames, incluindo ao sangue e urina e ao de foro vascular (28.º).
3.29. No Hospital …, em 30-04-2000, foi diagnosticado ao autor que sofria de psoríase e que sofria de doença de Buerger (29.º).
3.30. No dia 10-04-2000, no Hospital … o autor foi submetido a simpaticectomia lombar esquerda (31.º).
3.31. O autor teve alta no dia 19-04-2000 com diagnóstico principal de doença de Buerger (32.º).
3.32. Após a alta o autor passou a ter consultas externas de cirurgia vascular no referido Hospital (33.º).
3.33. No registo clínico de consulta externa do Hospital … no Porto consta, no dia 25-05-2000 que, em Fevereiro de 2000, o autor foi operado a «joanetes» quando se tratava de obstrução vascular (34.º).
3.34. Ocorreu amputação do 1.º dedo do pé esquerdo do autor ficando com 3 cm de base por 3 cm de altura (36.º).
3.35. Para realizar a operação referida em 15) é necessária a realização de exames ao sangue (38.º).
3.36. Após a realização da operação referida em 13) surgiu infeção com necrose do hallux do pé esquerdo (40.º).
3.37. O autor, em virtude da realização da operação referida em 13) e da infecção com necrose do hallux do pé esquerdo acima mencionada e seu tratamento esteve impedido de realizar a sua actividade profissional desde 08-03-2000 a 26-05-2000, num total de 85 dias (41.º).
3.38. O autor é cabeleireiro (42.º), passando horas de pé (43.º).
3.39. O autor sofreu emocionalmente quando o réu D… lhe colocou a hipótese de o dedo maior do pé esquerdo poder ter de ser amputado (49.º).
3.40. O autor sofreu emocionalmente com a possibilidade de amputação do dedo maior do seu pé esquerdo enquanto esteve no Hospital … (50.º).
3.41. O autor mostrava-se deprimido na altura do internamento no Hospital … (51.º).
3.42. O autor sofreu por ter tido de ocorrer a amputação referida em 34 (52.º).
3.43. O réu F…, director do então «C… ….» conheceu a atividade dos réus D… e E… no tratamento efectuado pelo autor em tal estabelecimento hospitalar (55.º).
3.44. Os réus D… e E… não detectaram no autor sintomas da doença de Buerger (57.º).
3.45. Os réus D… e E… não diagnosticaram ao autor doença de Buerger (58.º).

IV. Enquadramento jurídico
O autor, exercitando uma pretensão de tutela indemnizatória ressarcitória dos danos sofridos com a intervenção cirúrgica a que foi submetido, não especifica o tipo de responsabilidade civil que assaca aos médicos demandados. Nada impede, porém, que a responsabilidade contratual coexista com a responsabilidade extracontratual, já que o facto de existir um vínculo contratual, negocial, obrigacional, entre o médico e o paciente não significa que ele não possa violar um dever geral de conduta.
A maior parte da doutrina inclina-se para conferir à responsabilidade extracontratual um carácter residual, subsidiária da contratual, tida esta como norma especial, dando azo a que lex specialis derogat generalis. Contudo, pode sustentar-se que as normas da responsabilidade contratual e extracontratual são igualmente gerais ou igualmente especiais e, por isso, o critério da especialidade não resolve a problemática da sua concorrência[17]. Daí que, na busca de critérios mais flexíveis, se admita a doutrina do cúmulo, conferindo ao lesado a possibilidade de invocar as normas mais favoráveis de um sistema ou de outro, conforme mais lhe convier[18].
São processualmente distintas as acções de responsabilidade civil contratual e extracontratual, as quais, embora recondutíveis ao mesmo facto jurídico, têm efeitos que se excluem, ainda que traduzidos em fundamentos jurídicos distintos que coexistem e convergem. Vale por dizer que, havendo identidade de pedido, diversifica-se a causa de pedir, mas admite-se a cumulação das duas acções na forma subsidiária, pedindo uma concreta tutela jurídica e, para o caso do seu insucesso, formulando a outra ou até alternativamente, deixando ao juiz a eleição de uma ou outra via para conceder a tutela jurídica pretendida pelo autor[19].
Como antecipámos, o autor não apelou expressamente a qualquer destas vias de tutela; antes se limitou a deduzir o pedido indemnizatório com base num arrazoado de factos que entende serem suficientes para fundar o seu pedido, sem erigir a sua pretensão numa ou noutra via de responsabilidade civil, o que, de todo o modo, não inibe o julgador de aplicar as normas jurídicas ajustadas aos factos apurados, atenta a sua integral liberdade na indagação, interpretação e aplicação das regras de direito, independentemente da contribuição das partes (artigo 664º do Código de Processo Civil).
Estamos no âmbito da actividade clínica privada e o médico pode ser responsabilizado contratualmente, pela existência de vínculo contratual prévio, que não cumpriu ou cumpriu defeituosamente, ou extracontratualmente, com fundamento na violação da integridade física do doente. Como sublinhámos, embora se entenda que cabe ao doente escolher a forma de responsabilidade que melhor tutela os seus interesses[20], não está o tribunal impedido de enquadrar juridicamente o pedido em função dos factos apurados, o que faremos.
Por norma a actividade médica não se restringe à intervenção de um único profissional de saúde, tal como no caso, o que levou autor a demandar o estabelecimento de saúde privado, o seu responsável, o médico cirurgião e o médico radiologista. De todo o modo, o exercício colectivo da medicina não prescinde da culpa.
Na descrição factual de que dispomos, não duvidamos que o autor contratou os serviços da clínica demandada, a convocar para essa relação clínica-paciente o regime da responsabilidade contratual e, nesse âmbito, foi atendido quer pelo radiologista quer pelo ortopedista, que veio, posteriormente, a intervir como cirurgião. Nesta cadeia médicos-estabelecimento de saúde privado poderíamos perscrutar a responsabilidade da clínica no regime da responsabilidade do comitente (artigo 500º do Código Civil). Aquele que encarrega outrem de qualquer comissão responde, independentemente de culpa, pelos danos que o comissário causar, desde que sobre este recaia também a obrigação de indemnizar. É sabido que a relação de comissão, traduzida num vínculo de autoridade e subordinação correspectivas, existe quando há uma relação de dependência ou subordinação entre o comitente e o comissário, por forma a que aquele vigie, dê instruções, fiscalize e controle as funções por este desempenhadas[21]. Questiona-se se o médico, atenta a liberdade e a ética profissionais imanentes ao exercício da medicina, poderá actuar como comissário de uma clínica privada, recebendo instruções e ordens do seu dono, e é quase unânime o entendimento de que a especificidade do exercício da medicina se não compadece com a existência de uma relação de comissão entre estes sujeitos[22]. No contraponto, há quem defenda que o médico pode funcionar como comissário da casa de saúde em que presta serviço, pois a comissão não pressupõe no comitente os conhecimentos técnicos do comissário[23]. É nossa opinião que a actividade médica se não compagina com a relação de subordinação, consubstanciada no recebimento de ordens e instruções, que a comissão supõe, deixando de haver margem para respeitar a liberdade profissional ínsita à própria natureza da actividade médica, que reclama autonomia técnica. É inconciliável com a especificidade do exercício da medicina aceitar que o dono ou a direcção do estabelecimento de saúde, quiçá sem formação académica compatível, possa dar ordens ou instruções quanto ao concreto modo de desenvolvimento do acto médico[24].
Posição que não é diversa para o exercício da medicina em equipa, pois o chefe de equipa responderá sempre com base na sua culpa, ou porque escolheu mal os elementos da equipa (culpa in elegendo), ou porque não transmitiu correctamente as instruções (culpa in instruendo) ou porque não fiscalizou devidamente a função desenvolvida (culpa in vigilando). Em todo o caso, em qualquer das situações, responderá sempre por culpa própria[25].
Esta discussão remete-nos para uma outra vertente do problema, centrada na responsabilidade do devedor pelos actos dos seus auxiliares (artigo 800º, 1, do Código Civil). Com efeito, estatui essa norma que o devedor é responsável perante o credor pelos actos dos seus representantes legais ou das pessoas que utilize para cumprimento da obrigação, como se tais actos fossem praticados pelo próprio devedor. É a sagração da responsabilidade objectiva do devedor pelos actos dos seus auxiliares numa situação em que essa responsabilidade do devedor não exige uma qualquer relação de subordinação, podendo o auxiliar actuar de forma autónoma e independente. Ainda neste campo, a solução não é pacífica, desde logo, devido à diversidade de enquadramentos jurídicos que a realidade facticial pode avocar: a clínica pode assumir apenas a obrigação contratual inerente ao internamento e cedência de instalações para a prática do acto médico ou, ao invés, arrogar-se a uma integral contratualização de obrigações de prestar o acto médico e fornecer internamento. Só neste último caso parece aceitável a responsabilização do estabelecimento de saúde pelo comportamento culposo do médico.
No quadro factual descrito, o autor entrou em contacto com a clínica, que o encaminhou para o médico ortopedista demandado que, por seu turno, o remeteu para os serviços de radiologia da clínica, sendo os respectivos exames radiológicos relatados pelo réu Dr. E…. A clínica proporcionou meios materiais para a realização da cirurgia, alojamento, alimentação e cuidados sanitários conexos, a justificar que só na esfera organizativa o médico está dependente da clínica, pois mantém a sua independência no exercício da medicina, com inteira liberdade na realização do diagnóstico e na prescrição do tratamento. Sem prejuízo de se detectar a responsabilidade da clínica na deficiente escolha do médico, de lege ferendo propugna-se a responsabilidade da clínica como garante, protegendo o paciente das possíveis condutas danosas dos profissionais que nela trabalham.
No actual quadro do nosso ordenamento jurídico, não dispomos de quaisquer dados de facto que permitam assacar qualquer culpa à clínica ou ao seu responsável. De qualquer modo, os termos desta problemática estariam sempre dependentes do resultado alcançado quanto à responsabilização do réu Dr. D….
No que tange à conduta do médico radiologista, os factos disponíveis colocam-no num plano totalmente alheio ao erro de diagnóstico do médico ortopedista. A leitura e relato dos exames radiológicos não facultam, segundo conseguimos intuir, qualquer apreciação arteriográfica e vascular, pelo que era-lhe inexigível, mesmo impossível, perscrutar e sinalizar a afecção padecida pelo autor.
Nuclearizando a problemática da acção, averiguemos da ilicitude e da culpa do réu ortopedista, Dr. D…, já que estes são os únicos pressupostos da responsabilidade civil que estão questionados. A responsabilidade civil do médico visa a reparação do dano causado ao paciente, independentemente da sua relação aportar a uma obrigação contratual ou extracontratual. Qualificação que, contudo, não é indiferente porque, na responsabilidade de natureza contratual, aceita-se a culpa presumida do médico sempre que o tratamento não alcance os objectivos fixados. No entanto, a responsabilidade médica tem vindo a ser encarada na contraposição de uma obrigação de meios e numa obrigação de resultado. Enquanto nesta, a simples constatação de que certa finalidade não foi alcançada faz presumir a censurabilidade ético-jurídica da conduta do devedor, podendo este provar o contrário, na obrigação de meios cabe ao credor fazer a demonstração de que a conduta do devedor não foi conforme com as regras de actuação susceptíveis de, em abstracto, virem a propiciar a produção do resultado almejado[26]. Quando falamos da prática do acto médico tanto pode estar em causa uma obrigação de meios como uma obrigação de resultado, embora, genericamente, a obrigação do médico consista em prestar ao doente os melhores cuidados ao seu alcance, aliviando o sofrimento, salvando ou prolongando a vida, tudo em função dos seus conhecimentos pessoais e das leges artis. Por regra, o médico não se compromete a curar o doente, desde logo porque estão em jogo factores que excedem a sua capacidade de controlo e que são alheios à sua vontade, como sejam o estado físico do doente, o seu estado anímico, a capacidade de regeneração do próprio organismo, as infecções subsequentes, muitas vezes independentes do acto e veiculadas pelo próprio ambiente. No entanto, casos há em que o médico está vinculado a obter um resultado concreto, como na cirurgia estética de embelezamento, nas manobras próprias do parto, na odontologia e nas áreas da vasectomia e exames laboratoriais[27].
O autor nada articulou a esse respeito, mas é inquestionável tratar-se de uma mera obrigação de meios, que não de uma obrigação de resultado. Por regra, ao médico cirurgião está acometida uma obrigação de meios, pelo que não responde pela obtenção de um determinado resultado mas pela omissão ou pela inadequação dos meios utilizados aos fins correspondentes à prestação que se propôs prestar, incumbindo ao credor o ónus de provar a falta de diligência do médico[28]. No fundo, defende-se que a obrigação de resultado implica a convocação do regime de presunção de culpa do médico e se o lesante, onerado pela presunção de culpa, demonstrar que agiu sem culpa, cabe ao lesado suportar o infortúnio do sucedido. Ao invés, se o médico não afastar a sua presunção de culpa, responderá pelos danos que causou. É nesta medida que se defende que a responsabilidade médica se aproxima da responsabilidade objectiva[29]. Trata-se de situar o regime da presunção de culpa numa zona fronteira entre a responsabilidade subjectiva e a responsabilidade objectiva, reputando-a como uma responsabilidade subjectiva agravada ou uma responsabilidade objectiva atenuada[30]. Não obstante reconhecermos que o exercício da medicina é uma actividade de risco, não aderimos à posição doutrinária dos que propugnam para os seus profissionais a responsabilidade pelo risco e, tal como o plasmado no nosso ordenamento jurídico, a responsabilidade médica é fundada na culpa. Sem prejuízo de aceitarmos que a evolução da sociedade impõe a adopção de sistemas alternativos de recomposição dos danos resultantes da actividade médica, à semelhança do que já sucede em alguns ordenamentos jurídicos, a verdade é que, entre nós, continuamos arreigados à ideia de responsabilidade médica só com culpa, seja ela contratual ou extracontratual. E, por isso, os médicos só respondem pelos danos provocados na esfera jurídica de outrem quanto actuem com culpa. Culpa que é apreciada pela diligência de um bom pai de família, que não é um sujeito irrepreensível, mas que corresponde ao homem normal, ao bom cidadão, perante as circunstâncias concretas em que actua, e que, no domínio da medicina, se reporta ao médico normal. Normalidade aferida pelas leges artis, pelos protocolos de boas práticas clínicas[31].
Os protocolos médicos, como referimos, plasmam, por escrito, as regras técnicas tidas por adequadas em determinado momento histórico, mas podem assumir diversas classificações, embora nos interesse somente os apelidados protocolos clínicos, aqueles que servem de guia para o exercício de concreto acto médico. Protocolos que, respondendo à cristalização escrita de critérios de prudência, sem que constituam verdades absolutas, universais, únicas e obrigatórias, permitem definir o que é a prática médica adequada e prudente a uma situação concreta, supondo dessa forma a “positivización de la lex artis”[32]. São resultado de debate e acordo entre sociedades científicas, de âmbito estatal e internacional, e grupos de trabalho multidisciplinares de profissionais de diversas especialidades e até de agentes sociais alheios aos profissionais de saúde. Protocolos que, sem coarctar a liberdade de decisão do médico, constituem um guia clínico que o orienta o médico na prática de determinado acto médico. Concatenam um conjunto de dados que proporcionam maior segurança na avaliação da leges artis num concreto procedimento, sem deixar de perspectivar a sua vocação de generalidade e que o dever de cuidado deve atender às especiais circunstâncias do caso concreto[33].
É assim que, no plano da ilicitude, se nos impõe indagar se existe uma desconformidade da concreta actuação do médico com o padrão de conduta profissional exigível a um profissional medianamente prudente, averiguando se existe o desvalor da conduta. É o lesado que tem de provar a ilicitude, ou seja, que não foi cumprida a medida de cuidado exigida no caso, sendo que a violação do dever objectivo de cuidado ocorre quando o agente não actua de acordo com o cuidado esperado do profissional médico da especialidade colocado perante as circunstâncias concretas do paciente[34].
Aqui chegados, na certeza de que o acto ilícito é algo contrário ao direito, averiguemos da ilicitude da conduta do réu Dr. D…. Sem nos imiscuirmos na discussão gerada à volta do carácter objectivo ou subjectivo da antijuricidade, como o nosso ordenamento jurídico exige a ilicitude subjectiva (artigo 483º, 2, do Código Civil), partimos da linha mestra de que o acto ilícito constitui a violação de um dever, o que implica, por um lado, a existência desse dever e, por outro, a prática voluntária de conduta diversa da imposta por esse dever. A ilicitude envolve sempre “um juízo de reprovação: não se fez, podendo fazer-se, aquilo que se devia ter feito”[35]. Por isso, se diz que a ilicitude congrega um aspecto objectivo e outro subjectivo; o objectivo, traduzido na omissão do comportamento devido e o subjectivo na atribuição ou imputação da falta de cumprimento à vontade do agente, de forma a poder formular-se a respeito da sua conduta um juízo de reprovação, a culpabilidade[36].
O relato factual adquirido, repetimos, patenteia um inquestionável erro médico ao nível do diagnóstico, porque o réu Dr. D… não verificou que o autor padecia de uma insuficiência vascular que lhe provocou a complicação pós-cirúrgica e que conduziu à amputação do primeiro dedo do pé esquerdo, que ficou com três centímetros de base por três centímetros de altura. Como já deixámos antever em sede de reapreciação da matéria de facto, temos de avaliar se esse comportamento consubstancia conduta violadora das regras fundamentais da ciência médica[37].
Ignoramos se, no exame físico, o réu fez a palpação dos pulsos periféricos, o que nos poderia conduzir ao juízo de que omitiu um comportamento necessário a sondar a vascularização do pé e só por isso não detectou a insuficiência vascular que veio a causar a complicação pós-cirúrgica. Só que, como também antecipámos, os protocolos médicos consultados sobre a matéria não exigem como conduta padrão esse tipo de observação. E, como sabemos, assiste-se hoje a uma medicina cada vez mais defensiva, expressa no abuso de exames complementares de diagnóstico e na superprescrição[38], o que se agrava na saúde privada, pelo que a ausência de encaminhamento do doente para a feitura de exames vasculares só tem justificação na completa falta de suspeição da doença. Contudo, a ética do cuidado, o senso do juízo crítico, o critério de exigência apontaria para outro tipo de conduta, ou seja, para intuir um problema de cariz vascular? Pergunta que merece resposta negativa.
Não cremos poder afirmar que o médico procedeu objectivamente mal. Não está provado que o autor apresentasse sintomas típicos de doença vascular nos membros inferiores e o próprio autor não suspeitava desses problemas, pelo que nos parece razoável, para o padrão do médico comum, que essa questão não tenha sido despistada. Mas ainda que aceitemos que o réu agiu objectivamente mal, a violação é ilícita se comportar a reprovação ou censura do direito, isto é, a culpa. Juízo de reprovação que lhe não pode ser dirigido, porque as conhecidas circunstâncias do caso não impunham outros exames para além dos que mandou realizar, os radiográficos. Ao contrário do que sustenta o apelante, julgamos que qualquer suspeição determinaria à realização de exames complementares de diagnóstico da área vascular, o que não podemos é afirmar, como seria necessário para reprovar a conduta do médico, é que tais exames devam ser feitos por rotina, quando o quadro clínico aparente não aponta nesse sentido. Nem as guidelines o propugnam.
Mesmo que consideremos de natureza contratual a responsabilidade do réu, só provada a ilicitude da sua conduta funcionaria a presunção de culpa do artigo 799º, 1, do Código Civil, incumbindo, então, ao médico a sua ilisão, demonstrando que a desconformidade não se deveu a culpa sua por ter utilizado as técnicas e regras de arte adequadas ou por não ter podido empregar os meios adequados. Ora, não dispomos de qualquer indício que o réu tenha ignorado algum manifesto sintoma de qualquer problema vascular do doente e que a sua não detecção se tenha devido a imperícia ou falta de cuidado, aptidão, zelo, senso e experiência [39]. Foi um lamentável erro médico, que muito padecimento deu ao autor, mas que cai no âmbito do risco próprio do exercício da medicina.
Os considerandos tecidos levam-nos a não dirigir censura à decisão recorrida, que mantemos na íntegra.

IV. Decisão
Face ao exposto, acordam os Juízes do Tribunal da Relação do Porto em julgar a apelação improcedente e, por conseguinte, em confirmar a sentença impugnada.

Custas a cargo do apelante (artigo 446º, 1, do Código de Processo Civil).
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Porto, 11 de Setembro de 2012
Maria Cecília de Oliveira Agante dos Reis Pancas
José Bernardino de Carvalho
Eduardo Manuel B. Martins Rodrigues Pires
______________________
[1] Na redacção imperante até à introduzida pelo Decreto-Lei 303/2007, de 24 de Agosto, à qual pertencerão todas as normas que desse Código indicarmos.
[2] José Lebre de Freitas, “Código de Processo Civil”, Anotado, 2º Volume, 2ª ed., pág. 703.
[3] Ac. STJ de 16-12-2010, in www.dgsi.pt, processo 5889/05.4TBAVR.C1.S1.
[4] Ac. STJ de 20-05-2010, in www.dgsi.pt, processo 2655/04.8 TVLSB.L1.S1.
[5] José Ribas Milanez de Campos e Paulo Kauffman, São Paulo, “Simpatectomia Torácica: indicações e cuidados”, in www.sbct.org.br/pdf/livro_virtual/simpatectomia_toracica.pdf.
[6] http://www.manualmerck.net/?id=200&cn=1028.
[7] Javier Larena Beldarrain, “La carga de la prueba en el processo civil por responsabilidad médica”, in “Los Avances del derechoantes los Avances de la Medicina”, Universidad Pontificia, Madrid, 2008, Capítulo 12, ponto I, pág. 6.
[8] John Crawford Adamus, “Manual de Ortopedia”, 8º ed., pág. 438.
[9] Álvaro Moita, “Algumas considerações sobre o hallux valgus e sua correcção cirúrgica”, in Separata do Jornal Médico, 37, págs. 3 e 4.
[10] Kelly Cristina Stéfani, Wellington Farias Molina, Bartolomeu Ribeiro Coutinho Filho, Thiago Medeiros Storti, in RBM - Revista Brasileira de Medicina, de 22 de Julho de 2012, págs. 23 a 29 .
[11] Maria Paula Leite Ribeiro de Faria, in “Lex Medicinae – Revista Portuguesa de Direito da Saúde”, Ano 7, n.º 14 (2010), pág. 14.
[12] Virgílio Rodriguez Vázquez, “El valor jurídico dos protocolos sanitários en la determinación de la responsabilidade penal del médico por lesiones o muertes imprudentes en el ejercicio profesional”, in “Los Avances del derechoantes los Avances de la Medicina”, Universidad Pontificia, Madrid, 2008, Capítulo 28, ponto III, págs. 6 a 8.
[13] Guideline Summary NGC-3244, in http://www.guidelines.gov/content.aspx?id=4244.
[14] Javier Larena Beldarrain, “Los Avances del Derecho ante los Avances de la Medicina”, Universidad Pontificia de Madrid, 2008, ed. Aranzadi, cap. 12, ponto I. pág. 2.
[15] Rui Manuel de Freitas Rangel, “O Ónus da Prova no Processo Civil”, 3ª ed., pág. 22.
[16] José Lebre de Freitas, “Introdução ao Processo Civil – Conceito e Princípios Gerais”, 2ª ed., pág. 175.
[17] Santiago Cavanillas Múgica e Isabel Tapia Férnandez, “La Concurrencia de Responsabilidad Contractual e Extracontractual”, 1995, págs. 132 e 133.
[18] Santiago Cavanillas Múgica e Isabel Tapia Férnandez, ibidem, pág. 136; Vaz Serra, in BMJ, n.º 72, pág. 231.
[19] Santiago Cavanillas Múgica e Isabel Tapia Férnandez, ibidem, págs. 237 e 238.
[20] Maria Paula Leite Ribeiro de Faria, in “Lex Medicinae – Revista Portuguesa de Direito da Saúde”, Ano 7, 2010, n.º 14, pág. 8.
[21] Mário Júlio de Almeida Costa, “Direito das Obrigações”, 4ª ed., pág. 405.
[22] Carla Gonçalves, ibidem, pág. 98.
[23] Vaz Serra, in BMJ nº 85, pág. 162
[24] Carla Gonçalves, ibidem, págs. 117 e 124.
[25] Carla Gonçalves, ibidem, pág. 100.
[26] Antunes Varela, “Das Obrigações em geral”, II, 4ª ed., pág. 97; Ac. STJ de 22-09-2011, in www.dgsi.pt, processo 674/2001.P L.S1.
[27] Maria Paula Leite Ribeiro de Faria, “O Erro em Medicina e o Direito Penal”, in Lex Medicinae, Revista Portuguesa de Direito da Saúde, ano 7, n.º 14, 2010, pág. 14; Ac. STJ de 15-12-2011, in www.dgsi.pt, processo 209/06.3TVPRT.P1.S1.
[28] Ac. STJ de 15-12-2011, in www.dgsi.pt, processo 209/06.3TVPRT.P1.S1
[29] Carla Gonçalves, “A Responsabilidade Médica Objectiva”, FDUC, Centro de Direito Biomédico, Fevereiro 2005, pág. 23.
[30] Rui de Alarcão, “Direito das Obrigações”, texto policopiado, 1983, págs. 245 e 246.
[31] Carla Gonçalves, “A Responsabilidade Civil Médica: Um Problema Para Além da Culpa”, FDUC, Centro de Direito Biomédico, 14, págs. 25 e 26.
[32] Virgilio Rodriguez Vasquez, “Los Avances del Derecho ante los Avances de la Medicina”, Universidad Pontificia de Madrid, 2008, ed. Aranzadi, cap. 28, págs. 7 e 8.
[33] Virgilio Rodriguez Vasquez, ibidem, págs. 15 e 16.
[34] Maria Paula Leite Ribeiro de Faria, ibidem, pág. 24.
[35] Fernando Pessoa Jorge, “Ensaio Sobre os Pressupostos da Responsabilidade Civil”, 1995, pág. 68.
[36] Fernando Pessoa Jorge, ibidem, pág. 69.
[37] Paula Bruno, “Registo de Incidentes e Eventos Adversos: Implicações Jurídicas da Implementação em Portugal- Erro em Medicina”, 2010, pág. 71.
[38] João C. Gomes-Pedro, António Vaz Carneiro, Armando Fernandes, “Negligência Médica”, in Acta Pediátrica Portuguesa, V. 32, nº 6. Nov./Dez. 2001, pág. 348.
[39] Manuel Rosário Nunes, “O Ónus da Prova nas Acções de Responsabilidade Civil por Actos Médicos”, 2005, págs. 41e 42.