Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
5515/15.3T8OAZ-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MARIA JOSÉ COSTA PINTO
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL DOS TRIBUNAIS DO TRABALHO
REVISÃO DA INCAPACIDADE
TRABALHADOR INDEPENDENTE
Nº do Documento: RP201607075515/15.3T8OAZ-A.P1
Data do Acordão: 07/07/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROVIDO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO (SOCIAL), (LIVRO DE REGISTOS N.º243, FLS.100-108)
Área Temática: .
Sumário: As Secções do Trabalho não têm competência em razão da matéria para conhecer do pedido de revisão da incapacidade formulado em 23 de Dezembro de 2015 por um sinistrado que no dia 26 de Agosto de 1997 sofreu um acidente na sua actividade profissional de trabalhador independente.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 5515/15.3T8OAZ-A.P1
4.ª Secção

Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação do Porto:
II
1. B… veio em 23 de Dezembro de 2015 requerer exame médico de revisão de incapacidade para o trabalho, nos termos do disposto no artigo 145.º do CPT, identificando como entidade responsável a C… - Companhia de Seguros, S.A., por força de contrato de seguro com a mesma celebrado, e pedindo lhe seja deferido o pedido de realização de perícia médica para aferição do agravamento da incapacidade e consequente indemnização a suportar pela requerida seguradora.
Invoca em fundamento da sua pretensão, em suma: que nasceu no dia 04 de Março de 1967; que exerceu profissão por conta própria na área da construção civil e no dia 26 de Agosto de 1997 sofreu um acidente de trabalho ao dar uma queda ao descer umas escadas; que, para salvaguarda das situações de risco laboral, havia efectuado com a Companhia de Seguros D…, S.A., hoje integrada por fusão na C… – Companhia de Seguros SA, um seguro no Ramo Acidentes de Trabalho titulado pela apólice nº ……., tendo como objecto seguro a actividade laboral do próprio tomador do seguro, e em vigor na data do acidente, cobrindo a massa salarial anual de Esc. 1.440.000$00; que depois de internamentos e tratamentos que descreve, a seguradora lhe atribuiu uma Incapacidade Parcial Permanente de 37,5 % (0,25 x 1.5) e incapacidade para o trabalho habitual, aceitou o acidente como de trabalho, o nexo de causalidade entre o acidente e as lesões sofridas, prestou-lhe assistência médica e medicamentosa, pagou-lhe valores a título de incapacidades temporárias e passou a pagar-lhe 307.170$00 como pensão anual, desde 1999.11.25, pensão que ulteriormente veio a remir; que o sinistro foi regularizado ao abrigo da Lei 2127 – DL 360/71 e alterações pelo DL 459/79, tendo a seguradora aplicado as respectivas regras técnicas para fixação da incapacidade; que desde 2005 as mazelas do pé e perna esquerdos se têm agravado significativamente, causando crescente sofrimento intermitente, que forçam o sinistrado a claudicar e a sobrecarregar muito também o membro inferior direito, situação de agravamento progressivo que consubstancia e revela que a situação clínica do sinistrado se não estabilizou nos 10 anos subsequentes à Alta Clínica.
A requerida veio invocar que o incidente não pode ser admitido por se verificar a caducidade do direito do sinistrado, pois o incidente de revisão foi instaurado mais de 15 anos a contar da data da alta e do acordo de fixação da incapacidade e da pensão, que teve lugar em 25 de Novembro de 1999, sem que entretanto tenha sido deduzido qualquer outro incidente de revisão pois aplica-se o n.º 2 da Base XXII, da Lei n.º 2127. Invoca ainda que a Lei n.º 98/2009 apenas se aplica aos acidentes ocorridos a partir de 1 de Janeiro de 2010, como constitui jurisprudência pacífica e, à cautela, sustenta não ser este o tribunal competente pois à data do acidente os tribunais onde se resolveria a presente questão seriam os tribunais comuns.
Ouvido o requerente defendeu que não existe caducidade na medida em que, nem a data da alta, nem o grau de incapacidade, puderam ser reconhecidos judicialmente, pois o acidente nunca foi participado ao Tribunal de Trabalho, pelo que não está definido o momento a partir do qual se conta a caducidade, estando assim sujeito ao prazo ordinário de 20 anos. Alegou também que o agravamento da sua situação se iniciou em 2005 e o referido prazo de caducidade deixou de existir em 1 de Janeiro de 2010, que as normas previstas no n.º 2 da Base XXII, da Lei n.º 2127 e no artigo 25.º, n.º 2, da Lei n.º 100/97 de 13 de Setembro, foram declaradas inconstitucionais e que a seguradora não comunicou o acidente nem permitiu o referido controlo judicial, apesar de na data da alta já ter entrado em vigor a Lei n.º 100/97. Quanto à competência material, alegou que, atendendo à data da entrada em juízo do presente incidente de revisão, ao caso é aplicável o Código do Processo de Trabalho (CPT) com as alterações introduzidas pelo DL nº 295/2009, de 13.10 (artº 6º), concretamente o disposto no artigo 145º CPT e que nos termos do disposto no artº 85º, al. c) da Lei nº 3/99, de 13.1, que alterou a Lei 39/87, LOTJ de 23 de Dezembro, compete aos tribunais do trabalho conhecer em matéria cível das questões emergentes de acidentes de trabalho e doenças profissionais, não resultando daí qualquer diferenciação entre acidentes decorrentes de trabalho subordinado ou de trabalho independente, pelo que a partir de 1999.01.13 se devem aplicar também aos acidentes de trabalho por conta própria as normas atinentes aos Acidentes de Trabalho por conta de outrem por estar em causa o princípio da igualdade de tratamento consagrado na C.R.P., além de que o contrato de seguro do autor cumpria o estabelecido no DL 159/99, de 11 de Maio, sendo o Tribunal do Trabalho competente para a apreciação do pedido de revisão.
Foi em 2016.03.02 proferida decisão judicial em que se julgou improcedente a excepção da caducidade e, quanto à competência material, decidiu o seguinte:
«[…]
1. Subsidiariamente, a requerida invoca a incompetência do tribunal pois na data do acidente a questão seria resolvida nos tribunais comuns.
2. O requerente opôs-se a esta incompetência porque, atenta a data da entrada em juízo do incidente, é este o tribunal competente.
3. Em nosso entendimento, temos que ter em conta a data da entrada do incidente em juízo na medida em que, pelo menos ao que apuramos, nunca existiu um processo judicial relativo a este acidente e, como tal, nos termos do artigo 126.º, n.º 1, alínea c), da LSJ, este é o tribunal competente.
4. Pelo exposto, julgo improcedente a exceção de incompetência absoluta deste tribunal.
[…]»

2. A seguradora, inconformada, interpôs recurso desta decisão e formulou, a terminar as respectivas alegações, as seguintes conclusões:
“1ª) O recorrido, com a actividade de trabalhador por conta própria, e um seguro de “acidentes de trabalho de trabalhadores por conta própria”, com o nº ......., celebrado em 20/08/1997, sofreu um acidente de trabalho em 26/08/1997, tendo ficado com IPP de 37,5% desde a alta em 25/11/1999, com direito a uma pensão anual e vitalícia de 307.170$00, actualizada, posteriormente, remida através da entrega, em 2001, do capital de € 26.107,43, recebido sem reserva ou reparo.
2ª) Sem qualquer outra notícia, veio o recorrido, em 2015, requerer o presente incidente, para que se siga “exame médico de revisão de incapacidade”, por alegado agravamento que, antes, jamais foi relatado.
3ª) A Secção do Trabalho da Comarca de Aveiro é materialmente incompetente em razão da matéria para conhecer do presente incidente, pois que, ao tempo do acidente, vigorava o art. 85.º, alínea c) da LOTJ (Lei nº 3/99, de 13 de Janeiro) estabelecendo a competência dos Tribunais do Trabalho, o conhecimento em matéria cível, das questões emergentes de acidentes de trabalho.
4ª) Acidente de trabalho, com a cobertura infortunística então legalmente prevista pressupunha uma relação juslaboral ou de subordinação económica – citadas Bases I, II da Lei nº 2127, de 3 de Agosto de 1965, vigente à data do acidente -, pressuposto que, no caso, não se verifica. Só com a entrada em vigor da Lei nº 100/97, cujo início de vigência foi diferido para 1.01.2000, como acima se disse, é que os acidentes de trabalho ocorridos com trabalhadores independentes passam a ser regidos, com as devidas adaptações, pela nova legislação, que só se aplica aos acidentes de trabalho ocorridos após a sua entrada em vigor.
5ª) Assim, o incidente deveria ter sido liminarmente indeferido.
6ª) À data da celebração do contrato de seguro dos autos e do acidente do recorrido vigorava o regime previsto na Lei 2127, de 3/08/1965 e o Decreto 360/71, de 21/08/1971, sendo acidente de trabalho o definido na sua Base V, sendo indiferente ao caso dos autos as modificações legais posteriormente verificadas, quer a Lei 100/97 e o DL 143/99, quer a actual Lei 98/2009.
7ª) Embora a lei não regulasse os acidentes de trabalho dos trabalhadores por conta própria, o contrato de seguro visava suprir essa necessidade de cobertura desses profissionais, mas através de um acordo facultativo, sujeito à disponibilidade das partes e à sua inteira liberdade negocial.
8ª) As partes convencionaram que a prestação do seguro seguiria o que se previa no regime obrigatório de reparação dos acidentes de trabalho, a saber, a Lei 2127 e o Decreto 360/71, na parte atinente à fixação das prestações.
9ª) Para efeitos de uma eventual revisão da incapacidade, admitindo, sem conceder, que ela se pudesse conter no âmbito da cobertura, ela jamais poderia ter um regime mais favorável do que o resultava para os trabalhadores por conta de outrem.
10ª) Não pode o recorrido contar com “sol na eira e chuva no nabal”, no sentido de aproveitar, no que lhe interessa, o regime legal de reparação de acidente de trabalho então em vigor para abrigar a sua pretensão, para logo o afastar quando (o que já não lhe agrada) se trata de fazer aplicar às regras do direito à revisão da incapacidade, afirmando-se que, nesse aspecto, já não vale o prazo preclusivo de 10 anos previsto na Base XXII, mas sim o prazo de prescrição ordinária do artº 309º do C. Civil (!).
11ª) Muito menos que intua, ainda que implicitamente, a aplicação do actual regime legal da Lei 98/2009, de 4 de Setembro, de cujo artº 187º resulta a sua aplicação apenas aos acidentes de trabalho ocorridos após a sua entrada em vigor, e nunca ao acidente dos autos.
12ª) O entendimento da 1ª instância fulminaria princípios constitucionais como o da confiança, da certeza das relações jurídicas, da segurança jurídica no Estado de Direito, com os quais se previnem as legítimas expectativas do cidadão que confiou na postura e no vínculo criado através das normas prescritas no ordenamento jurídico.
13ª) Tal sucederia se fosse admitido que a cobertura de um contrato de seguro celebrado em 1997, e tendo ocorrido um acidente por ele abrangido nesse mesmo ano, com alta em 1999, pudesse albergar a pretensão de poder ser requerida uma revisão da incapacidade atribuída, mais de 16 anos depois.
14ª) No cálculo do prémio de seguro o segurador avalia o RISCO (elemento essencial deste contrato) e determina o seu valor provável, naturalmente considerados os diversos factores desse risco, para que se estabeleça uma relação contratual equilibrada na qual o prémio é adequado a esse risco, sendo que, na apreciação do risco de acidente de trabalho, é particularmente relevante o regime legal de reparação que está em vigor à data do contrato, o que permite ao segurador a constituição de adequadas reservas matemáticas que mais não visam se não garantir as suas responsabilidades futuras, em função das prestações possíveis.
15ª) Não seria exigível ao segurador prever, aquando da celebração do contrato de seguro em 1997, que por via de uma futura alteração legislativa, ou por alteração dos entendimentos jurisprudenciais, viesse a ser modificado, ou extinto, o limite temporal para ser requerida a revisão, prejudicando intolerável e irremediavelmente o risco assumido, sem possibilidade alguma de ser reposta a situação de equilíbrio contratual antes existente.
16ª) Há muito que o SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA firmou jurisprudência no sentido de que, em caso de acidente de trabalho, “Nos termos do n.º 2 da Base XXII da Lei n.º 2127, de 3.8.1965, o sinistrado de acidente de trabalho pode requerer a revisão da incapacidade/pensão no prazo de 10 anos subsequentes à data da última fixação da pensão, nos casos em que desde a fixação (inicial) da pensão e o termo desse prazo se tenha dado como provado o agravamento superveniente das lesões sofridas.”
17ª) Tal entendimento, prossegue o STJ, não é inconstitucional, à luz do princípio da igualdade – não se revestindo, por isso, de flagrante desrazoabilidade –, o entendimento de que, decorridos 10 anos sobre a data da fixação da pensão, sem que se tenha registado qualquer evolução justificadora do pedido de revisão, se considera consolidada a situação clínica relativa às lesões do sinistrado.
18ª) Pelo que, remata o mais Alto Tribunal, “Assim, tratando-se, no caso, de um acidente ocorrido em 1997, na vigência da Lei n.º 2127, é de considerar extinto o direito do sinistrado a suscitar o incidente de revisão da sua incapacidade por ter transcorrido o prazo de 10 anos entre a data da (última) fixação e o requerimento de exame de revisão.”
19ª) Logo, outro não pode ser o regime que disciplina o conjunto de direitos e deveres das partes contratantes do seguro dos autos, pelo que o incidente tem forçosamente de improceder.
20ª) O douto despacho recorrido violou, entre outras, as normas do clausulado da apólice celebrada, das Bases V, XXII da Lei 2127, e fez mesmo uma aplicação indevida do artº 309º do Código Civil, e afrontou jurisprudência há muito firmada no nosso ordenamento jurídico, pelo que deve ser revogado e substituído por decisão que julgue inadmissível e, se assim não for o caso, improcedente o incidente de revisão (...)”
3. O recorrido apresentou contra-alegações, nas quais concluiu que:
“1ª. Os presentes autos visam a apreciação em juízo do eventual agravamento da incapacidade parcial permanente para o trabalho do sinistrado autor, enquanto trabalhador por conta própria.
2ª. O Tribunal do Trabalho é o tribunal competente para conhecer desta questão, como decidiu o douto Tribunal a quo.
3ª. No domínio das leis do processo, a nova lei de processo, na falta de normas de direito transitório, deve aplicar-se imediatamente, não apenas às acções que venham a instaurarse após a sua entrada em vigor, mas também a todos os actos processuais a realizar daí em diante ainda que se integrem em acções pendentes (ut Alberto dos Reis in "Aplicação das Leis quanto ao Tempo", Rev. Leg. e Jurisp., Ano 86.º pág. 51; Manuel Andrade in "Noções Elementares de Processo Civil", pág. 42). Vale neste domínio a regra do art.º 12.º n.º 1 do CC, que é a disposição do nosso ordenamento jurídico que em termos gerais se destina a solucionar o problema da aplicação temporal das leis, sejam substantivas sejam adjectivas: a lei nova é de aplicação imediata aos processos pendentes, mas não possui qualquer eficácia retroactiva. Atendendo à data da entrada em juízo do presente incidente de revisão do grau de incapacidade - 24.11.2015 - ao caso é aplicável o actual Código do Processo de Trabalho (CPT) com as alterações introduzidas pelo DL nº 295/2009, de 13.10 (artº 6º), concretamente o disposto no artigo 145º CPT, ex vi do disposto no artº nº 126º nº 1 alínea c) da Lei nº 62/2013, de 26 Agosto (LSJ), regulamentada através DL n.º 49/2014, de 27 de Março - Regime aplicável à Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais: “- Compete às secções do trabalho conhecer, em matéria Cível: Das questões emergentes de acidentes de trabalho e doenças profissionais”, não resultando daí qualquer diferenciação entre acidentes decorrentes de trabalho subordinado ou de trabalho independente. Circunstância que, aliás, já anteriormente se verificava, pois, nos termos do disposto no artº 85º, al. c) da Lei nº 3/99, de 13.1, que alterou a Lei 39/87, LOTJ de 23 de Dezembro, também aí competia aos tribunais do trabalho conhecer em matéria cível das questões emergentes de acidentes de trabalho e doenças profissionais, já aí não resultando qualquer diferenciação entre acidentes decorrentes de trabalho subordinado ou de trabalho independente.
4ª. A partir de 13.01.1999, se devem aplicar também aos acidentes de trabalho por conta própria as normas atinentes aos Acidentes de Trabalho por conta de outrem, por estar em causa também o princípio da igualdade de tratamento consagrado na Constituição da República Portuguesa. Além disso,
5ª. O contrato de seguro que o autor celebrara com a Ré seguradora cumpria “materialmente” o estabelecido nas exigências do DL 159/99, de 11 de Maio, e porque estava então em vigor aquando da atribuição do grau de incapacidade ao sinistrado – em 05.05.2000 – também por isso se deve considerar competente o foro do direito do trabalho para apreciar o eventual agravamento da incapacidade para o trabalho do sinistrado autor.
6ª. O acidente dos autos ocorreu em 26.08.1997. Tal acidente foi então participado pelo tomador do contrato, sinistrado e aqui autor à seguradora. A referida apólice estava em vigor, fora celebrada na modalidade de seguro completo, tendo como objecto a cobertura dos acidentes que pudessem ocorrer na actividade laboral do próprio tomador do seguro.
7ª. A Seguradora reconheceu estar tal acidente coberto pelo contrato de seguro da apólice nº ....... e aceitou a responsabilidade pelo sinistro. Então, o referido contrato de seguro era um contrato de seguro facultativo (artº 405º C.C.), não sendo obrigatório realizar tal seguro aos trabalhadores por conta própria.
8ª. O regime da Lei 2127 apenas era aplicável aos seguros (obrigatórios), ou seja aos contratos de seguro dos trabalhadores por conta de outrem.
9ª. Mas, por se tratar de um contrato de seguro, os direitos e obrigações emergentes da referida apólice, na falta de um regime especial, devem aplica-se-lhe as normas do regime subsidiário dos contratos, ou seja, o regime do prazo de prescrição ordinário.
10ª. Nos termos do disposto no artigo nº 309º e nº 2 do artº 330º, ambos do Código Civil, o prazo para o sinistrado exercer o seu direito a requerer a revisão da incapacidade apenas terminaria em 26 de Agosto de 2017, ou seja, decorridos 20 anos desde a data do acidente.
11ª. Solução que não pode escandalizar a recorrente, na medida em que se compagina com o disposto no novo regime jurídico do contrato de seguro – ut nº 2 do artº 121º do D.L. nº 72/2008, de 16.04.
12ª. Daí que, tendo o requerimento de revisão de incapacidade entrado em Juízo em 24.11.2015, não está por isso tal prazo vencido. Mas, por outro lado,
13ª. Dada a natureza indisponível e a oficiosidade de processamento da acção emergente de acidente de trabalho, nada obsta a que a instância possa ser aberta para conhecimento de direitos que, por qualquer razão, não tenham sido apreciados numa acção que tenha tido lugar, em virtude de acidente de trabalho determinado, e sobre os quais não haja formação de caso julgado. Pois, os interesses de ordem pública subjacentes à reparação dos danos emergentes de acidentes de trabalho, expressos na Lei de Acidentes de Trabalho (LAT), como o direito dos sinistrados à indemnização decorrente da incapacidade resultante do acidente de trabalho é um direito indisponível, sendo nula qualquer convenção contrária aos direitos ou às garantias conferidas pela Lei dos Acidentes de Trabalho, sendo uns e outras inalienáveis, impenhoráveis e irrenunciáveis. Como garantia desses direitos, estabeleceu a lei processual um processo especial para a sua efectivação, de cujas características se destaca o seu curso oficioso, isto é, o processo corre sem necessidade do impulso das partes, sendo que a negligência destas não tem a virtualidade de exercer qualquer influência sobre o processo, nomeadamente o efeito de interromper a instância à luz do art. 285.º, do Código de Processo Civil.
14ª. A seguradora faz apelo à aplicação das normas da Lei 2127 para a contagem dos prazos para requerer o exame de revisão, mas não o participando a Tribunal parav aferição do grau de incapacidade e atribuição da data da Alta médica para efeitos de cálculo da pensão a atribuir.
15ª. Ou seja, aproveita apenas a contagem dos prazos no contexto da Lei 2127, mas evita aplicar-lhe o foro comum quer o de competência especializada.
16ª. Em 05.05.2000 os clínicos da seguradora atribuíram ao sinistrado autor o grau de 37,5 % de Incapacidade Parcial Permanente - 2ª página do doc nº 6 junto pela recorrente seguradora com as suas alegações de recurso.
17ª. A data de atribuição do grau de IPP pelos médicos da seguradora é este o momento a considerar para efeitos de data de Alta médica.
18ª. À data do acidente – 26.08.1997 – a Lei 2127 permitia requerer a revisão da incapacidade dentro dos 10 anos posteriores à data da fixação da pensão, o que permitiria ser requerido e reapreciado qualquer agravamento clínico que ocorresse até 05.05.2010.
19ª. Ora, o agravamento da situação clínica do autor ocorreu em 2005, ou seja dentro daquele período. Pois,
20ª. Desde 2005 que o sinistrado vem sofrendo agravamento da situação de incapacidade.
21ª. Desde então a situação clínica do sinistrado vem-se agravando e manifesta-se com dores fortes no pé, no tornozelo e perna esquerda, a que se associa a falta de força. O que consubstancia um agravamento da situação clínica desde então, apresentando as sequelas que constam do relatório médico que se encontra junto aos autos. Lesões que lhe impedem a reconvertibilidade e implicam alteração visível e desfigurável do aspecto físico. Por outro lado, o referido agravamento, força-o a sobrecarregar o pé e perna direitos, o que lhe dificulta também a marcha com o membro inferior direito.
22ª. Como em 2005 a situação clínica do sinistrado não estava estabilizada podia então ser requerida a revisão da incapacidade. E como em 2005 os 10 anos não estavam esgotados, não pode dizer-se haver caducidade do direito do sinistrado a requerer a revisão da incapacidade, pois, a Lei nº 98/2009, de 4 de Setembro, passou a permitir que a revisão de incapacidade possa ser requerida uma vez em cada ano civil (nº 3 do artº 70º da mesma lei). Aqui se incluindo as situações em que nessa data não tinham decorrido ainda 10 anos desde o agravamento clínico. Ou seja,
23ª. A partir de 1 de Janeiro de 2010 deixou de haver o limite temporal de 10 anos, passando a ser possível aos sinistrados requererem a revisão da sua incapacidade uma vez em cada ano civil.
24ª. E com igual direito ficaram os sinistrados que estivessem numa situação de agravamento clínico anterior com decurso inferior a 10 anos, como era o caso do sinistrado autor.
25ª. E nem se diga que a norma do nº 2 da Base XXII da Lei 2127, de 3 de Agosto de 1965, e o nº 2 do artigo 25º da Lei nº 100/97, de 13 de Setembro, limitavam a 10 anos o prazo para requerer a revisão da incapacidade. Pois, estas normas foram declaradas inconstitucionais pelos Ac. nº 219/2012, de 26 de Abril e Ac. nº 548/09, do Tribunal Constitucional.
26ª. Ou seja, aquando da apresentação do pedido de revisão da incapacidade, tal prazo apenas se mostraria esgotado nas situações em que no decurso dos 10 anos posteriores à fixação da incapacidade não tivesse havido agravamento da situação clínica do sinistrado. E esse não é o caso dos autos, como se alegou e constata pelo relatório médico junto aos autos.
27ª. O grau da incapacidade atribuída pela seguradora e a data da Alta médica não foram e não puderam ser verificadas e/ou reconhecidas judicialmente, em virtude de o acidente não ter sido participado ao Tribunal do Trabalho. E deviam sê-lo.
28ª. O doc nº 5 supra referido, junto pela seguradora, mostra que a data da atribuição do grau da Incapacidade é de 05.05.2000, data da Alta médica.
29ª. Em 05.05.2000 estava em vigor o D.L. 159/99, de 11.05, que tinha entrado em vigor em 01.01.2000.
30ª. Desde 01.01.2000 a demandada seguradora estava obrigada a participar ao tribunal por escrito os acidentes de que resultasse incapacidade permanente, como o dos autos (nº 2 do artigo 8º DL 159/99). E não o fez.
31ª. Desse modo, não permitiu que fosse efectuada a necessária fiscalização quer da legalidade do grau de incapacidade quer a fixação de data da Alta do sinistrado.
32ª. Somente a partir daí poderia ser aferido o momento inicial para a contagem dos ditos 10 anos. “Sibi imputet…”.
33ª. A disciplina prevista no nº 2 do artigo 8º DL 159/99 consubstancia uma norma imperativa que não foi cumprida pela seguradora o que fere de nulidade os actos por si praticados posteriormente, por contrários à lei, na medida em o sinistrado não se viu protegido pelo crivo do primado da legalidade fiscalizada pelo Mº Pº junto do Tribunal do Trabalho, visto que estavam em causa direitos indisponíveis do sinistrado.
34ª. Não o tendo sido, questionam-se a validade e também os efeitos dos actos e procedimentos da seguradora perante este sinistro. E por isso não faz qualquer sentido a alegação da seguradora sobre uma eventual ofensa grave da certeza e segurança do direito consolidado da seguradora decorrente do artigo 2º da CRP, ao alegar ver-se confrontada com o ressurgimento desse direito quando, diz, estava juridicamente extinto…
35ª. A demandada seguradora não pode aqui dizer-se surpreendida com o pedido de revisão da incapacidade do sinistrado, pois bem sabe não ter existido o controlo prévio da legalidade da situação e, nessa medida, a revisão de incapacidade requerida pelo sinistrado não pode ter o efeito de surpreender, de pôr em causa a expectativa, a previsibilidade, nem a segurança do direito que a ré diz estaria consolidado.
36ª. A Ré sabe que celebrou um contrato de seguro, e sabe também que deve obediência às normas relativas aos prazos sendo estes os da prescrição ordinária.
37ª. Nenhuma das decisões invocadas pela seguradora se reporta a situações jurídicas semelhantes à dos autos, não permitindo afastar a pretensão do sinistrado.
38ª. O direito do sinistrado a rever o grau da sua incapacidade é inalienável, subsiste apesar do tempo decorrido em virtude de, aquando do agravamento das lesões (2005), ainda não terem decorrido os 10 anos mesmo pudesse aplicar-se a previsão da Lei 2127.
39ª. A lei nº 98/2009 já não apresenta limitação temporal para ser exercido o direito a requerer a revisão da incapacidade devendo poder aplicar-se ao caso dos autos na medida em que só desta forma se respeitará o princípio da igualdade previsto e defendido na alínea f) do nº 1 do artigo 59º da C.R.P.
40ª. O sinistrado está em tempo de requerer o exame médico-legal para verificação do agravamento das lesões sofridas desde 2005 pelo acidente de trabalho descrito nos autos: agravamento significativo das mazelas do pé e perna esquerdos, causando sofrimento intermitente ao sinistrado, e por via disso forçam-no a claudicar e a sobrecarregar também o membro inferior direito.
41ª. Tal agravamento progressivo revela uma não estabilização das lesões do sinistrado
42ª. A pensão vitalícia atribuída ao sinistrado em 2001 foi de 325.869$00, equivalente a €1.532,00.
43ª. O acordo realizado entre o sinistrado e a Seguradora de 19.04.2001, relativo às prestações anuais e vitalícias calculadas para o sinistrado mostram que, tendo em conta quer o montante da pensão (325.869$00), quer com base no grau de IPP de 37,5%, não foram respeitados os normativos legais então aplicáveis, nomeadamente não foram respeitados os limites impostos pelo artº 74º do Dec. Lei nº 143/99, de 13 de Setembro (ex vi do artº 2º do DL 382-A/99, de 22 setembro), pois o regime transitório da referida remição apenas seria possível em 2003 e não em data anterior, como fez a seguradora, ao arrepio da dita legislação.
44ª. O dito acordo mostra-se ferido de nulidade, ainda e também porque, nos termos do disposto no artº 280º e 286º C. Civil, a remição não podia ser efectuada por se tratar de incapacidade superior a 30%, obedecendo aos termos do disposto no nº 2 do artº 56º do DL 143/99 de 30 abril.
45ª. O que sempre permitiria ao sinistrado requere a revisão da incapacidade para o trabalho, como pretende nestes autos.”
O recurso foi admitido quanto à questão da competência do tribunal, a subir em separado, por despacho documentado a fls. 79, o qual não admitiu o recurso relativo à excepção da caducidade, por entender que se trata de decisão não imediatamente recorrível.
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4. Recebidos nesta Relação os autos do recurso em separado que foi admitido, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu douto Parecer em que se pronunciou no sentido de ao mesmo ser negado provimento uma vez que a competência material para conhecer de qualquer acidente de trabalho, seja de trabalhador por conta de outrem, seja de trabalhador independente, seja de acidente legal ou contratualmente equiparado, pertence de acordo com a LOSJ às Secções do Trabalho.
Notificadas as partes, nenhuma delas se pronunciou sobre tal Parecer.
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5. Cumprido o disposto na primeira parte do nº 2 do artigo 657º do Código de Processo Civil aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho, aplicável “ex vi” do art. 87.º, n.º 1, do Código de Processo do Trabalho, e realizada a Conferência, cumpre decidir.
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6. Sendo o âmbito dos recursos delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente – artigo 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil, aplicável “ex vi” do art. 87.º, n.º 1, do Código de Processo do Trabalho –, ressalvadas as questões do conhecimento oficioso que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado, a questão essencial que se coloca à apreciação deste tribunal prende-se com saber se as Secções do Trabalho têm competência em razão da matéria para conhecer do pedido de revisão da incapacidade formulado em 23 de Dezembro de 2015 por um sinistrado que sofreu um acidente na sua actividade profissional de trabalhador independente no dia 26 de Agosto de 1997.
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7. Com interesse para a decisão desta questão, há que atender à factualidade que emerge do relatório antecedente e, ainda, aos seguintes factos:
O sinistrado sofreu um acidente em 26 de Agosto de 1997, quando exercia as suas funções como trabalhador independente.
Não existiu qualquer processo judicial, tendo a seguradora dado alta ao sinistrado em 24 de Novembro de 1999 com uma IPP de 37,50%, pagando-lhe desde então uma pensão anual e vitalícia, entretanto actualizada e objecto de remição.
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8. Cabe enfrentar a questão da competência em razão da matéria.
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8.1. Tendo em consideração que o presente incidente de revisão da incapacidade deu entrada em juízo em Dezembro de 2015, a competência material deverá ser aferida à luz da Lei da Organização do Sistema Judiciário aprovada pela Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto (LOSJ)[1], que entrou em vigor em 1 de Setembro de 2014 – artigos 188, n.º 1, da Lei n.º 62/2013 e 118.º do Decreto-Lei n.° 49/2014, de 27 de Março, que regulamenta a LOSJ. Isto porque o artigo 38.º, n.º 1 desta LOSJ estabelece a regra de que a competência se fixa no momento em que a acção se propõe e o acidente sub judice apenas foi objecto de uma acção judicial com a instauração do presente incidente de revisão.
Como refere Manuel de Andrade, a competência dos tribunais em geral resulta da medida de jurisdição atribuída aos diversos tribunais, do modo como entre si fraccionam e repartem o poder jurisdicional que, tomado em bloco, pertence ao conjunto dos tribunais[2].
Quanto aos tribunais judiciais, estabelece o art. 40º, n.º 1 da Lei da Organização do Sistema Judiciário (LOSJ), que “[o]s tribunais judiciais têm competência para as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional”.
No âmbito dos tribunais judiciais a que se reporta a LOSJ, encontram-se as instâncias centrais onde podem ser criadas secções de competência especializada de Trabalho – cfr. os arts. 79.º e 81.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2, alínea e).
A competência especializada das Secções do Trabalho encontra-se definida no art. 126°, desta Lei, norma de acordo com a qual compete a estas Secções conhecer, em matéria cível, entre outras:
“c) Das questões emergentes de acidentes de trabalho e doenças profissionais”
De modo similar se dispunha na alínea c) do artigo 85.º da LOFTJ, relativo à competência dos Tribunais do Trabalho.
Erigindo a lei como critério definidor da competência conceitos de natureza jurídica, devem esses conceitos ser compreendidos em conformidade com o modo como o ordenamento jurídico os perspectiva, pelo que as “questões” a que se reporta o preceito são necessariamente aquelas que resultem de acidentes ou doenças que, segundo a lei substantiva que lhes é aplicável, devam ser considerados como “acidentes de trabalho” ou “doenças profissionais”.
Como se disse no Acórdão da Relação do Porto de 9 de Outubro de 2012, “[a] competência do tribunal de trabalho com fundamento na al. c) do art. 85° da LOFTJ - questão emergente de acidente de trabalho -, pressupõe que se encontre em causa a reparação de danos emergentes de acidente de trabalho a que os trabalhadores ou seus familiares tenham direito nos termos previstos na lei do trabalho e demais legislação regulamentar[3].
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8.2. Constitui entendimento jurisprudencial sedimentado o de que a competência em razão da matéria do tribunal se afere pela natureza da relação jurídica, tal como ela é configurada pelo autor na petição inicial, ou seja, no confronto entre a pretensão deduzida (pedido), independentemente do seu mérito, e os respectivos fundamentos (causa de pedir)[4]. Parte esta jurisprudência dos ensinamentos do Prof. Manuel de Andrade no sentido de que a competência dos tribunais, ou a medida da sua jurisdição, se afere em função dos termos em que a acção é proposta, seja quanto aos seus elementos objectivos (natureza da providência solicitada ou do direito para o qual se pretende a tutela judiciária, facto ou acto donde teria resultado esse direito, bens pleiteados, etc.), seja quanto aos seus elementos subjectivos[5].
Analisando o modo como o recorrido estruturou a presente demanda e exprimiu a sua pretensão em juízo, verifica-se que o mesmo descreve o acidente que sofreu explicitando que o mesmo ocorreu em 26 de Agosto de 1997 e que exercia então a sua profissão por conta própria na área da construção civil, tendo celebrado com a recorrente um seguro no ramo acidentes de trabalho, tendo como objecto a actividade laboral do próprio tomador de seguro.
Em termos jurídicos, diz ser o acidente sofrido um acidente de trabalho, descreve que o mesmo foi regularizado ao abrigo da Lei n.º 2.127 e requer a revisão da incapacidade ao abrigo do artigo 59.º, n.º 1, alínea f) da CRP e 145.º do CPT.
Ora, já perante os factos alegados no requerimento inicial, é possível afirmar que o sinistro verificado, tendo em consideração o regime jurídico a que se encontra submetido, não consubstancia um acidente de trabalho nem lhe é equiparável, não conferindo a lei ao sinistrado ora recorrido o direito à reparação prevista na legislação infortunística laboral.
Com efeito, de acordo com a factualidade alegada pelo requerente, tendo o acidente em causa ocorrido em 26 de Agosto de 1997 quando o requerente exercia a sua profissão por conta própria, não se podia qualificar como acidente de trabalho à luz do regime legal então em vigor, definido pela Lei n.º 2.127, de 3 de Agosto de 1965, considerando as disposições conjugadas das suas Bases I, II e V, e uma vez que o âmbito desse diploma legal visava exclusivamente a protecção dos trabalhadores por conta de outrem, num quadro primacial de responsabilidade objectiva dos empregadores pelos danos físicos sofridos pelos trabalhadores ao seu serviço[6].
À data, nada impedia que um trabalhador independente ou por conta própria – no sentido de a sua prestação não ser, na respectiva configuração e conformação, subordinada a ordens, instruções, direcção e disciplina de outrem – celebrasse com uma seguradora um seguro facultativo para reparar os danos que eventualmente sofresse em virtude de acidentes verificados no âmbito do seu exercício profissional, podendo ainda as partes do contrato de seguro, no âmbito da liberdade contratual (artigo 405.º do Código Civil), incluir em tal contrato as cláusulas que bem lhes aprouvessem, desde que não violassem regras legais imperativas, podendo designadamente estabelecer os termos da reparação convencionada em moldes equivalentes ao que então eram conferidos pela lei reparadora de acidentes de trabalho em vigor.
Mas esta convenção contratual não tem, a nosso ver, a virtualidade de alterar a natureza jurídica do acidente que se verifique, por não contender com os pressupostos estabelecidos na lei para a sua qualificação como acidente de trabalho, e muito menos tem a virtualidade de, por essa via, alcançar a extensão ou restrição da competência em razão da matéria das diversas Secções das instâncias centrais dos Tribunais de Comarca.
É certo que posteriormente à ocorrência do acidente foi publicada a Lei n.º 100/97, de 13 de Setembro (Regime Jurídico dos Acidentes de Trabalho e das Doenças Profissionais), que entrou em vigor em 1 de Janeiro de 2000 (seu art. 44.º, nº 1 e 71.º, nº 1 do Decreto-Lei nº 143/99, de 30 de Abril na redacção dada pelo art. 1.º do Decreto-Lei nº 382-A/99, de 22 de Setembro) e veio prever a obrigação dos trabalhadores independentes efectuarem seguro que garanta as prestações previstas na legislação própria dos acidentes de trabalho. De harmonia com o artigo 3.º dessa Lei nº 100/97, os trabalhadores independentes devem efectuar um seguro que garanta as prestações previstas nessa mesma Lei, nos termos que vierem a ser definidos em diploma próprio (n.º 1), considerando-se trabalhadores independentes os que exerçam uma actividade por conta própria (n.º 2). Na decorrência, o Decreto-Lei nº 159/99, de 11 de Maio, veio a prescrever a obrigação dos trabalhadores independentes de efectuar um seguro de acidentes de trabalho que garanta, com as devidas adaptações, as prestações definidas na Lei n.º 100/97, de 13 de Setembro, para os trabalhadores por conta de outrem e seus familiares (artigo 1.º, n.º 1), seguro esse que se rege, com as devidas adaptações, pelas disposições da mencionada lei e diplomas complementares (artigo 2.º). O legislador, não obstante não ter incluído os trabalhadores independentes no elenco do artigo 2.º da Lei n.º 100/97, veio estender a tais trabalhadores (ou seja, aqueles que exercem uma actividade por conta própria e desde que a respectiva produção se não destine exclusivamente ao consumo ou utilização por si próprio e pelo seu agregado familiar – cfr. o artº 3º, nº 2, da Lei nº 100/97 e o nº 2 do artº 2º do Decreto-Lei nº 159/99) os «benefícios» emergentes da Lei nº 100/97, fazendo depender a garantia das indemnizações e prestações nela previstas da efectivação de um seguro[7].
Pretendeu-se com este novo regime, de forma clara, equiparar as garantias da legislação infortunística, própria para os trabalhadores por conta de outrem, aos trabalhadores independentes sujeitos a idênticos riscos laborais e através dum seguro de acidentes de trabalho (vide o preâmbulo do Decreto-Lei nº 159/99). No âmbito da Lei n.º 100/97, todos os acidentes que ocorram com trabalhadores independentes no seu exercício profissional e de que tenha resultado incapacidade permanente são obrigatoriamente processados judicialmente, mediante a comunicação pela seguradora, imposta pelo art. 8.º Decreto-Lei nº 159/99, de 11 de Maio, sendo-lhes aplicáveis as mesmas regras de que beneficiam os “trabalhadores por conta de outrem”.
No panorama jurídico que se seguiu à Lei n.º 100/97 – que é o actual –, apesar de a Lei n.º 98/2009 de 4 de Setembro (Lei de Acidentes de Trabalho em vigor desde 1 de Janeiro de 2010) não conter uma norma semelhante ao antecedente artigo 3.º da Lei n.º 100/97, que acolhia a aplicabilidade do regime jurídico dos acidentes de trabalho a esta categoria de trabalhadores, o artigo 4.º, n.º 2 do Código do Trabalho aprovado pela Lei n.º 7/2009 de 12/02 dispõe que o trabalhador que exerça actividade por conta própria deve efectuar um seguro que garanta o pagamento das prestações previstas nos artigo 283.º e 284.º do Código do Trabalho e respectiva legislação complementar. E, por sua vez, o artigo 184º da Lei n.º 98/2009 dispõe que a regulamentação relativa ao regime do seguro obrigatório de acidentes de trabalho dos trabalhadores independentes consta de diploma próprio, o qual continua a ser o Decreto-Lei n.° 159/99[8].
Mas, ao tempo do referido acidente, não era assim.
Na verdade, o regime jurídico da Lei n.º 100/97, de 13 de Setembro aplica-se apenas aos acidentes de trabalho que ocorreram após a sua entrada em vigor [artigo 41.º, n.º 1, alínea a)], o que aconteceu em 1 de Janeiro de 2000, conforme resulta da alínea a) do n.º 1 do seu artigo 41.º, conjugada com o disposto no n.º 1 do artigo 71.º do Decreto-Lei n.º 143/99, de 30 de Abril (Regulamento da Lei de Acidentes de Trabalho), na redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 382-A /99, de 22 de Setembro.
Ou seja, apenas relativamente aos acidentes verificados a partir de 1 de Janeiro de 2000 em que seja vitimada uma pessoa que desenvolva um labor “livre”, no sentido de não ser, na respectiva configuração e conformação, subordinado a ordens, instruções, direcção e disciplina de outrem, e celebre um contrato de seguro que garanta o pagamento das prestações previstas na LAT, é possível afirmar que a acção se funda num acidente de trabalho e o foro laboral é competente para dele conhecer[9].
Quanto aos acidentes anteriores a 1 de Janeiro de 2000, a cobertura infortunística então legalmente prevista para os acidentes de trabalho pressupunha uma relação jus-laboral ou de subordinação económica – de acordo com as citadas Bases I, II da Lei nº 2127, de 3 de Agosto de 1965 – e a lei não tutelava os acidentes sofridos por trabalhadores independentes no exercício da sua actividade profissional, pelo que, naturalmente, os mesmos não consubstanciavam acidentes de trabalho ou acidentes a estes equiparados por qualquer meio.
E, por isso, o conhecimento das questões emergentes de tais sinistros, ainda que a sua reparação houvesse sido convencionada num contrato de seguro facultativo que previsse prestações reparadoras equivalentes às previstas na LAT, não pode considerar-se compreendido na competência que às Secções do Trabalho a lei confere para conhecer “[d]as questões emergentes de acidentes de trabalho e doenças profissionais” – alínea c), do n.º 1, do artigo 126.º da LOSJ.
Tendo em consideração a causa de pedir alegada pelo ora recorrido no requerimento inicial (os factos concretos em que radica o pedido de revisão), o sinistro que sofreu não pode qualificar-se como acidente de trabalho à luz da lei em vigor quando o mesmo se verificou, sendo certo que a lei que ulteriormente veio alargar a reparação laboral a sinistros sofridos por trabalhadores independentes que houvessem celebrado um contrato de seguro, é expressa quanto à sua aplicação temporal – apenas se aplica a acidentes ocorridos após 1 de Janeiro de 2000 – não podendo o seu âmbito alargar-se a acidentes anteriormente verificados.
No que diz respeito ao pedido formulado – de revisão da incapacidade – trata-se de um pedido com fundamento na Base XXII da Lei n.º 2.127, em vigor à data do sinistro, lei a que vimos já não se subsumir o acidente sub judice.
Perante este desenho da petição inicial, pelo qual deve aferir-se a competência material do tribunal, impõe-se concluir que o presente litígio não emerge de um acidente de trabalho, pois que a lei assim não configurava um acidente sofrido por um trabalhador independente em 26 de Agosto de 1997 – tivesse, ou não, ele celebrado um contrato de seguro – apenas passando a subsumir à lei reparadora dos acidentes de trabalho os acidentes sofridos por trabalhadores por conta própria a partir de 1 de Janeiro de 2000.
Salvo o devido respeito, não acompanhamos a posição expressa pelo Exmo. Procurador-Geral Adjunto que, apesar de entender ser aplicável ao caso a lei substantiva n.º 2.127 de 3 de Agosto de 1965, conclui no sentido de que a causa de pedir e pedido correspondem aos de “um acidente de trabalho de trabalhador independente” regulado pela lei dos acidentes de trabalho ao tempo em vigor, sendo as partes que lhe atribuíram essa equiparação.
Como resulta do já dito, entendemos que a equiparação convencional das prestações previstas num contrato de seguro, às prestações previstas na LAT para os acidentes de trabalho, limita os seus efeitos à delimitação das prestações devidas em caso de sinistro, não tendo a virtualidade de alterar a natureza do acidente de modo a qualificar-se o mesmo como acidente de trabalho independentemente do prescrito na lei aplicável. Perante os factos alegados no requerimento de revisão, pode desde já dizer-se que o sinistro ali descrito não se reveste da natureza de acidente de trabalho à luz da Lei n.º 2.127 de 3 de Agosto de 1965, nem confere, por isso, o direito à cobertura infortunística então legalmente devida aos sinistrados vítimas de acidente de trabalho.
Assim, à data da dedução do presente incidente de revisão – como aliás anteriormente, face à LOFTJ – o acidente no qual o requerente, ora recorrido, fez radicar o seu pedido de revisão da incapacidade não era qualificável como acidente de trabalho, não estando em causa neste litígio submetido à apreciação da 3.ª Secção do Trabalho da Instância Central do Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro (com sede em Oliveira de Azeméis) uma qualquer questão emergente de acidente de trabalho ou doença profissional, pelo que não cabia à referida Secção do Trabalho competência em razão da matéria para do mesmo conhecer.
E impõe-se revogar a decisão recorrida, absolvendo a recorrente seguradora da instância por procedente a excepção dilatória da incompetência material, nos termos prescritos nos artigos 96.º, alínea a), 97.º, n.º 1, 99.º, n.º 1, 577.º, alínea a) e 578º do Código de Processo Civil aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho, todos aplicáveis “ex vi” do art. 1.º, n.º 2 al. a) do Código de Processo do Trabalho.
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9. As custas em dívida a juízo serão suportadas pelo recorrido, uma vez que decaiu na apelação (artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil).
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10. Em face do exposto, concede-se provimento ao recurso e revoga-se a decisão da 1.ª instância, absolvendo da instância a recorrente C… - Companhia de Seguros, S.A. atenta a incompetência em razão da matéria do Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro — Secção de Instância Central — 3.ª Secção do Trabalho com sede em Oliveira de Azeméis.
Custas pelo recorrido.

Nos termos do artigo 663.º, n.º 7, do CPC, anexa-se o sumário do presente acórdão.

Porto, 7 de Julho de 2016
Maria José Costa Pinto
António José Ramos
Jorge Loureiro
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[1] Que revogou os artigos 1.º a 159.º da Lei n.º 52/2008 na parte em que aprova a LOFTJ e a Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro.
[2] In “Noções Elementares de Processo Civil”, Coimbra, 1979, pp.88-89.
[3] In Colectânea de Jurisprudência 2012, tomo IV, p. 157.
[4] Vide os Acórdãos do Tribunal dos Conflitos n.ºs 21/10, 25/10 e 29/10, proferidos, respectivamente, em 2010.11.25, 2011.03.29 e 2011.05.05, in www.dgsi.pt e os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 2010.11.16 e de 2011.03.30, respectivamente Procs. n.ºs 981/07.3TTBRG.S1 e 492/09.2TTPRT.P1.S1, ambos in www.dgsi.pt .
[5] In ob. e loc. citados, p. 91.
[6] Vide o Acórdão da Relação de Lisboa de 14 de Setembro de 2011, Processo n.º 597/10.9TTLSB.L1-4, in www.dgsi.pt.
[7] Vide Carlos Alegre, in Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, 2ª edição, p 30.
[8] Considerando que actualmente se mantém em vigor o regime ínsito no Decreto-Lei n.° 159/99 de 11/05 - diploma que regulamentou a anterior LAT e que não foi revogado - como também, que as remissões efectuadas ali para a Lei 100/97 se fazem, agora, para a Lei 98/2009, vide o Acórdão da Relação de Guimarães de 3 Dez. 2015, Processo 297/11, in JusJornal, n.º 2305, de 29 de Janeiro de 2016.
[9] Vide os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 2005.05.24, Agravo n.º 1539/05, da 6.ª Secção Cível, e de 2004.02.19, Recurso n.º 4347/03, da 4.ª Secção Social, ambos sumariados in www.stj.pt.
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Nos termos do artigo 663.º, n.º 7, do Código de Processo Civil aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho, lavra-se o sumário do antecedente acórdão nos seguintes termos:
As Secções do Trabalho não têm competência em razão da matéria para conhecer do pedido de revisão da incapacidade formulado em 23 de Dezembro de 2015 por um sinistrado que no dia 26 de Agosto de 1997 sofreu um acidente na sua actividade profissional de trabalhador independente.

Maria José Costa Pinto